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ianismo O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? © que foi mudado ao longo do tempo na Millia + Os erros das adaptagies rradugties + Os inceresses da Igreja nas divernan Appean Ao ler 0 Novo Testamento, as prenuoits pen sam estar lendo uma cépia exata dan palavias de Jesus ou dos escritos de seus apdutulon, Contudo, por quase mil ¢ quinhentos anes: esses manuscritos foram reprodusices par copistas profundamente influenciados pelay controvérsias politicas, reolégicas ¢ culturals de seu tempo. Tanto os erros quanto ag mudan- ¢as intencionais s4o muitos nos manuacritos subsistentes, dificultando a reconstituigdo das palavras originais. Este livro mostra a histéria que estd por trie das alteragdes que eclesidsticos politicos ¢ co» pistas ignaros fizeram no.Novo ‘Téstamento, causando um impacto enorme na compreensio ¢ interpretagéo da Biblia que temos hoje, Um livro para leigos, tedlogos, historiadaresi. @ |rstigio > cASSIC SNsal IND O NYWYHY ‘C Lavg C BART D. EHRMAN A maior autoridade em Biblia do mundo O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? QUEM MUDOU A BIBLIA E POR QUE O objetivo serd nao ser repetitive. Colocar livros e autores que ainda nao esto disponibilizados. Deixemos a preguiga de lado. Como diria o filosofo, "escaneio e publico no 4shared; logo existo" Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificagéo por tal zelo para com o conhecimento. Aqui va minha gratificagao: MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como forma de gratidéo por seu incrivel trabalho. "Nao terho ouro nem prata, mas tudo que tenho te dou": Muito obrigadol!!. A gratificagéo pecuniaria deixe pra depois, visto que oS homens para pensar sua existéncia devem estar com as necessidades materiais satisfeitas, vocés néo precisam do dinheiro. Isso é um elemento acessério a existéncial Ao comprar um livro, 0 autor recebe da editora uma micharia que nao daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem, leiam e nao paguem nada! Essa sera sua forma de gratificagao! coat que tu queres, ORK oC ce Bart D, EHRMAN O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? 1 099 pleaser de A Uw Biv hee tacte bibrn fea, Quem mudou a Biblia e por qué ib ae 2 rimpresso Tanah Tradugao Marcos MARCIONILO Prestigio Tio ong Misquving Jens: he Story Behind Who Changed he Bl rd Wy {© 2005 by tae. Fhann (© Copyright 2006, EDIOURO PUBLICAORS SA. Dirt cide pcs es eich & EDIOURO PUBLICACOES S.A Publado por PRESTIGIO EDITORIAL Preparagio:Alexandes Ca Revi: Rey Cinta Pana «Gabriela Semionoas Ofira rj grit ediagramasio- Onna Gaia bo eto de oogeatie harass Ieuodoyie ThePerpont Mop Libary, New Yor M. 777,635 6.24% £39 6 She Cpt 1s mitorca Laurens, Flores ei For Sela vt Rene, NY (Cpu 2: Cone de Bar. thins Capi : Vico & Alles Masur, Londtes fot Vitor Alec Mus Tondteiare Remuarce, Capt 4: ts Lira, es fot: HUA Resour, NY Capital dn Saker Winches Bete bray Lancs ft: HIMVAr Resour NY apical 6: vant Dourados de Hesighe VI, Alemanba, Abadi de So Manin “Tiss The Pent Monge Library New York os The Pegs Mpa Libary Resour, NY (Conlde:Bti Libeary; Cort Neto, BAY: Hin 21; fotos HIBVAR Resource, NY "ate din? Ogu eo Ba Prestigio A Prestigio Editorial um clo de Edionro Publicis ua Nova Jerusalém, 345 ~ CEP 21042-250 es de Janeiro — 8) Tel (2) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-82127 313 ‘ema: diorisapediro coi ‘ernastedioura.con.be mere: ewer em bepress Para Bruce Metzger SUMARIO AGRADECIMENTOS 9 inrropugso IT 1 os nicios xs EscKiTURAs cxisthS 27 2 os conistas DOS HSCRITOS CRISTROS PRIMITINOS.§ 5 3 vexros vo novo restamento: 8 I apusca pas onicens ITT 5 oqyorsats Que raven a piFERENGA 137 6 avrenacdes TEXTUAIS TEOLOGICAMENTE MoTIVADAS TOT 7 os muspos soca v0-7Ex10 187 Conclusdo: MUDANGAS NAS ESCRITURAS 217 ixpice 229 AGRADECIMENTOS Devo agradecer especialmente a quatro atenciosos ¢ cuidadosos pesquisa dores, que leram o meu manuse ‘esugeriram (por vezes, recomendaram in- sistentemente e defenderam) mudancas: Kim Haines-Eitzen, da Cornell University; Michsel W. Holmes, do Bethe] College, em Minnesota; Jeffrey Si- kker, da Loyola Marymount University, e minha esposa, Sarak Beckwith, espe- cialista em Wade Média da Duke University. © mundo académico seria um lugar mais feliz se todos os autores tivessem leitores como eles. ‘Teno de agradecer também aos editores da Harper San Francisco: John Loudon, por ter estimulado e assumido 0 projeto; Michey Maudlin, por té-1o aperfeigoado; ¢, acima de tudo, a Roger Freer, por sua atenta leitura do texto € por seus uilssimos eomentitios. ‘Todas as cradugdes dos textos biblicos, exceto quando dito o contro, so minhas. Dediquei este livro a meu mentor ¢ “Pai-Dontor”, Bruce M. Metager, que ‘me ensinou tudo nesse campo e continua a ser inspiragao em meu trabalho. (Os eseritores dos Quatro Evangetbos, com seus simbolos de animais tradicionais, cada wm dels iuminando wm aspecto do retrato que eles fizeram de Jesus: Mateus como um homem (bumanidade): Marcos como um ledo (realeea): Lucas como um bo (submissio} Jo io como uma diguia (divindade). INTRODUCAO alvez mais do que qualquer outra coisa sobre a qual eu tenha escri- to, o assunto deste livro permaneceu em minha mente nos iltimos trinta anos, desde quando eu ainda era um jovem adulto ¢ iniciava os meus estudos do Novo Testamento, Pelo fato de esse assunto ter feito parte de mim par todo esse tempo, pensci dever comegar com um relato pessoal de por que esses dados foram, e continuam a set, tio importan tes para mim. O livro versa sobre os antigos manuscritos do Novo Testamento € as diferengas encontradas neles, sobre os copistas que reproduziram as Es crivuras ¢, as vezes, a alteraram. Isso pode nao ser lé muito meritério ‘como chave para a autobiografia de alguém, mas é um fato, Geralmente ‘nao se tem muito controle sobre essas coisas. [Antes de explicar como’e por que os manuscritos do Novo Testamen- to causaram uma grande diferenga emocional e intelectual em mim, na compreensio de mim mesmo, do mundo em que vivo, em minha visio de Deus e da Biblia, preciso falar um pouco de mim mesmo. Nasci e cresci em um tempo ¢ Ingar conservadores — a dea central dos Estados Unidos da América, em meados da década de 1950. Minha criagio nada teve de extraordinério. ramos uma familia normal, de cco membros que iam & igreja sem ser especialmente religiosos. Comecan- ry © QUE ESUS DISSE? do pelo ano em que eu estava na S* série, estivamos envolvidos com a igreja episcopal em Lawrence, Arkansas, uma igceja dirigida por um pas- tor sabio ¢ temo, que por acaso era nosso vizinho e cujo filho era um de meus amigos (e com quem fiz algumas travessuras mais tarde, jé no ensi- no médio — algo envolvendo charutos). Como a maioria das igrejas epis- copais, a nossa era socialmente respeitavel e socialmente responsivel. Ali se levava a sério a liturgia da igreja, e as Escrituras faziam parte dessa li turgia. Mas a ia ndo era abertamente ressaltada: estava ali, como um dos guias para a fé e a pritica religiosa, ao lado da tradi¢ao da igreja e do bom senso. Nés realmente nao falévamos muito sobre a Biblia, nem liamos muito, nem mesmo nas aulas da escola dominical, que se foca- vam mais em questdes praticas e sociais e em como viver no mundo. A Biblia tinha um lugar de honra em nossa casa, por causa especial- mente de mamae, que de vez em quando lia a Biblia e procurava se certi- ficar de que suas histérias € ensinamentos éticos fossem bem entendidos or nds (sem se prender muito as suas “doutrinas”). Até minha época de segunda fase do ensino fundamental, acho que eu via a Biblia como um livro misterioso um tanto quanto importante para a religiio, mas certa- mente no como algo a ser aprendido e dominado. Eu a considerava um tipo de antigiiidade, de algum modo estreitamente vinculado a Deus, & Igreja € a0 seu culto. Mesmo assim, eu no via razio alguma para ‘em carter privado ou como estudo, As coisas mudaram drasticamente para mim quando passei para a 6" sé- rie do ensino fundamental. Foi nessa época que fiz a experiéncia de “nas- cer de novo” num ambiente muito diferente do que reinava na igreja de ‘minha comunidade, Eu era um menino comum — um bom estudante, in- teressado ¢ empenhado nos esportes escolares, mas que nao se destacava em nenhum deles; interessado ¢ empenhado na vida social, mas que nao fa ia parte do alto escaléo da elite dos mais populates da escola, Lembro que sentia uma espécie de vazio interior que nada parecia capaz. de preencher, ue nio saia muito com meus amigos (nés jé tinhamos comecado a beber socialmente nas festas), que namorava (comegava a entrar no mysterium tremenduom do mundo do sexo), que estudava (eu dava duro ¢ tirava boas Notas, mas ndo era nenhum crinio}, que trabalhava (eu era vendedor por- ta a porta de uma firma que comercializava produtos para venezianas), € ue ia & igreja (eu era acélito © muito piedoso — estava presente nas ma- thas de todos os domingos, no importa o que tivesse acorrido nas noies INTRODUGAO! SUED Gala de sébado). Havia uma espécie de soliddo associada ao fato de eu ser um jovem adolescente, mas, naruralmente, cu nao entendia que isso decorria de ser um adolescente. Eu sempre achava que faltava algo, Nessa época, comecei a fregitentar as reunies do clube Campus Life Youth for Christ. Elas ococriam nas casas dos garotos —a primeira a qual cu fai era uma festa no quintal de um garoto muito popular, o que me le~ vou a pensar que o grupo devia ser legal. © lider do grupo era um rapaz de uns vinte e poucos anos chamado Bruce, que fazia aquele tipo de coisa profissionalmente — organizava clubes Youth for Christ localmente, ten- tava convencer garoros que cursavam o fundamental a “nascer de novo” €.a se dedicar a estudos biblicos mais sérios, a encontros de oraco ¢ coi- sas assim, Bruce era uma personalidade absolutamente cativante — mais jovem que nossos pais, mas mais velho e mais experiente que nbs —, com uma mensagem poderosa, segundo a qual 0 vazio interior que sentiamos {n6s éramos adolescentes!, todos nds sentiamos um vacuo) era causado 2 a c -nos pedir a cla auséncia de Cristo em nossos coragoes. Bastava-nos ps idade que s6 05 ‘que entrasse ¢ ele viria e nos eobriria com a alegria ea fel “salvos” viiam a conhecer, Bruce era capaz de citar a Biblia espontaneamente, ¢ 0 fazia com mui- ta constincia, Diante de meu respeito ¢ de minha ignorancia da Biblia, tudo me soava aleamente persuasivo. Tudo era bem diferente daquilo que eu aprendera na igreja, que implicava um ritual estabelecido a a to tempo e que parecia muito mais voltado pata adultos jé be dos na vida do que para criangas desejosas de diversio € de aventura, ue se sentiam vazias por dentro. rmepara abreviar ainda mais esa bistriajéresumida, por fim conheci Bruce, aceitei sua mensagem de salvagio, aceitei Jesus em meu coragio € fiz, de boa-fé, a experiéncia de nascer de novo. Eu nascera factualmente ‘quinze anos antes, mas agora se tratava de uma experiéncia nova ¢ exci tante para mim e que me fez dar inicio a jornada de uma vida de f€ que passou por grandes reviravoltas ¢ foi daz num beco sem saida que, de fato, demonstrau ser um novo caminho, que venho seguindo faz mais de trinta anos. Aqueles dentre nds que fizeram experiéncias de novo nascimento con- sideravam-se crstios “de verdade” — em oposigdo aqueles que simples ‘mente iam a igreja por obrigagao, que nao conheciam verdadeiramente Cristo em seus corages e que simplesmente se deixavam levar por im- ' (0 QUE HSU DISSE? pulsos sem nenbum contesido real. Um dos modos de nos diferenciar des- Se$ outros era 0 nosso compromisso com o estudo da Biblia.e com a ora: sido, Especialmente com o estudo da Biblia. © préprio Bruce era um homem da Biblia: ele freqitentara o Moody Bible Institute de Chicago ¢ Podia dar uma resposta tirada da Biblia para qualquer pergunta que se pudesse imaginar (e que nenhumn de nés jamais imaginaria). Logo, logo, asseia ter inveja de sta capacidade de citar as Fscrituras e comecei a es tudar a Biblia, a aprender alguns textos, a entender a sua importincia ¢ até mesmo a decorar os versiculos-chav Bruce me convenceu a tentar me tornar um cristdo “sério” e a me dedi- car por inteiro a f& crista. Isso significava estudar as Escrituras em periodo integral no Moody Bible Institute, o que, entre outras coisas, implicaria uuma dristica mudanga de estilo de vida. No Moody, havia um “eédigo™ de ética que os estudantes tinham de assinar ao entrar: nada de heber, fumar, dangar,jogar cartas, nada de cinema. E Biblia na veig. Costumavamos di- zer que no “Moody Bible Institute, Biblia era 0 nosso segundo nome”, Acho que eu 0 encarava como uma espécie de acampamento cristo mili tarizado, Pelo sim, pelo nao, resolvi ndo usar meias medidas no que dizia Fespeito & minha fé: matriculei-me no Moody, entrei e la permaneci até o segundo semestre de 1973. A experiéncia no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia biblica, o que significava encarar muito estudo biblico e varios cursos de teologia sistematica, Ensinava-se uma s6 perspectiva em todos esses cur- s0s, subscrita por todos os professores (eles todos assinavam um termo de compromisso) ¢ por todos os estudantes (nds também o assinavamos): a Biblia é a palavra infalivel de Deus. Ela ndo contém etros. E completa- mente inspirada e é, em todos os seus termos, “inspiracdo verbal plena”, Todos os cursos que fiz pressupunham e ensinavam essa perspectiy Gualquer outra era considerada desviante e até mesmo herética. Acho ue alguém pode chamar isso de lavagem cerebral. Para mim, era um rande passo avante, que me afastava da timida visio da Biblia que eu ti- vera na qualidade de um episcopaliano em proceso de socializagao em ‘minha primeira juventude, Aquilo era cristianismo intransigente, para os verdadeiramente comprometidos. Contudo, havia um problema dbvio com a afirmacao de a Biblia ter sido verbalmente inspirada — em todas as suas palavras. No Moody, aprendiamos num dos primeiros cursos do curriculo que na cealidade BLES ad INTRODUGAO, o Testamento. Tinhamos e6- pias desses escritos, fetas anos mais tarde — em muitos casos, muitos e muitos anos mais tarde. Além do mais, nenhuma das cépias era comple: imente.exata, visto que os copistas que as produziram introduziram “Hudancaer algumas passagens, inaduertida c/ou intencionalmente. To- “dos 08 copistaso fizeram. Desse modo, em vez de realmente ter a pala- vas inspiradas dos aut6grafos (ito €, 0s originais) da Biblia, o que remos sho RopiaAos autégrafns sepletas de erros. Por isso, uma das tarefas ais prementes era averiguar 0 que os originais da Biblia diziam, em face das citcunstincias de cles serem inspirados e de ndo os termos mais. Devo dizer que muitos de meus colegas no Moody nao consideravam essa tarefa assim tao significativa ou interessante. Eles se contentavam originais do Nov ndo tinhamos os escrit¢ com a afirmacio de que os aut6grafos tinham sido inspirados, dando de ombros, mais ou menos, ao problema da nio-subsisténcia dos autogra- fos. Para mim, porém, tratava-se de um problema muito atraente, Trata- s da escritura que Deus inspirara. Claro que mos saber como Ele va-se das préprias palav ; recisamos saber 0 que essas palavras eram se q I omuncon sf vie gu ap palava aus ra San aloes ‘misturadas com algumas outras (aquelas que tinham sido despercebida cu intencionalmente criadas pelos copistas) que nijo nos ajudam muito se juisermos conhecer as palavras Dele. Fotis que acendev ome interes pelos manners do Novo Ts tamento, ali pelos meus dezoito anos. No Moody, aprendi os rudimentos de uma drea de pesquisa conhecida como critica textual “um termo tée- nico para a cigncia que busca restaurar. as palavras “originais” de um texto a partir dos manuscritos qus.as.alteraram. Mas eu ainda nfo on ‘va equipado para me lancar a esse estudo: primeiro, presisava aprender rego, a lingua original do Novo Testamento, ¢ provavelmente ee Tinguas antigas, como hebraico (a lingua do Antigo Testamento cristo} « latim, sem falar nas modérnas linguas européias, como alemac ¢. fas fs, para poder verificar 0 que outros pesquisadores disseram acerca des se assunto, Era um longo caminho a percorret. . | Ao término do meu triénio no Moody (era uma graduagio de trés anos), tive um bom aproveitamento em meus cursos € me encontrava mais decidido que nunca a me tornar um pesquisador cristo. Na época, eu tinha idéia de que havia muitos pesquisadores altamente capacitados entre os evangélicos cristos, mas ndo muitos evangélicos entre os alta profes Gober \wlnels trate qn vert ee eer 3 16 © QUE JESUS Diss mente gabaritados pesquisadores (seculares). [Por essa razio, eu queria sme tornar uma “voz” evangélica em cieculos seculares pela aquisigao de jitulos académicos que me permitissem dar aulas em instituicdes leigas (sem abrie mo de meus compromissos evangélicos! Para tanto, eu preci sava, primeiro, concluir 0 meu bacharelado e, cm vista disso, decidi me matricular em uma destacada faculdade evangélica. Escolhi o Wheaton College, nos arredores de Chicago. No Moody, tinham-me avisado que eu teria dificuldade para achar fundamenta- lista era 0 Moody: 0 Wheaton s6 recebe cristios evangélicos e é a alma cristdos verdadeiros no Wheaton —o que demonstra q ‘mater de Billy Graham, por exemplo. No principio, eu o achei um pou- co liberal demais para meu gosto. Os estudantes discutiam literatura, his- spiragdo verbal das Escrituras. isso de uma perspectiva crista, mas mesmo assim... seri que eles nao per: cebiam 0 que realmente importava? Decidi me formar em literatura inglesa no Wheaton, visto que a leitu- 1a fora sempre uma de minhas paixdes, e dado que cu sabia que para abrir camino nos circulos eruditos eu precisaria me tornar versado em ‘outra drca de erudigao além da Biblia. Também me comprometi a apren- der grego. Foi, entéo, durante o meu primeiro semestre no Wheaton, que conheci © De, Gerald Hawthorne, meu professor de grego, pessoa que vir ria a ter uma grande influéncia em minha vida como pesquisador, mestre t6ria e filosofia mais que a les faziam €, por fim, amigo. Hawthorne, como a maioria dos meus professores no ‘Wheaton, era um cristo evangélico comprometido. Mas nao tinha medo de questionar a prépria fé, Na época, tomei essa sua atitude como sinal de fraqueza (na realidade, eu pensava ter quase todas as respostas para as Perguntas que ele fazia); no fim, passei a consideri-la um comprometi- ‘mento real com a verdade, propria de alguém desejoso de se abrir & hipé- tese de que as préprias posigdes tém de ser revistas & luz do conhecimento acumulado ¢ da experiéneia de vida. Aprender grego foi urna experiéncia impressionante para mim, No de- correr do curso fui demonstrando facilidade no aprendizado dos rudimen- tos da lingua e estava sempre disposto a aprender mais. Contudo, num nivel mais avancado, a experiéncia de aprender grego se tornou win pouco ‘perturbadora para mim, por causa da minha visio das Escrituras. Logo co- Imecei a ver que o sentido, completo ¢ as nuances do texto grego do Novo Testamento s6 podem ser plenamente apreendidos quando ele €lido ees Bet ie INTRODUCAO 7 tudado na lingua original. (o mesmo pode ser dito do Antigo Testamento, como vim a descobrir posteriormente, quando aprendi hebraico). Entéo ppensei: mais uma razao para aprender bem a lingua. Ao mesmo tempo, co- mecei a questionar minha compreensio das Escrituras como verbalmente inspiradas por Deus. Se o sentido completo dos termos das Escrituras s6 pode ser apreendido quando cles sto estudados em grego (e em hebraico), isso nao significa que a maioria dos cristaos, que nao Ieem linguas antigas, rnunca terdo completo acesso ao que Deus thes quer comunicar? E isso nao torna a doutrina da inspiragao uma doutrina exclusiva da elite académica, que detéim habilidades intelectuais ¢ disponibilidade para aprender linguas, c estudar os textos, lendo-os no original? De que serve dizer que as pala-| ‘ras so inspiradas por Deus se a maioria das pessoas no tem 0 menor acesso a essas palavras, mas apenas a verses mais ou menos canhestras/ dessas palavras para uma lingua, como 0 portugués, por exemplo, que nada tem a ver com as palavras origin ‘Meus questionamentos iam ficando cada vez mais complexos quanto mais eu pensava nos manuscritos que transmitiam as palavras. Quanto mais eu estudava grego, mais me interessava pelos manuscritos que pre~ servam para nés 0 Novo Testamento e pela ciéncia da critica textual, que supostamente pode ajudar-nos a reconstruir 0 que eram as palavras ori ginais do Novo Testamento, Eu sempre voltava a meu questionamento bisico: de que nos vale dizer que a Biblia € a palavra infalivel de Deus se, de fato, ndo temos.as palavras que Deus inspirou de modo infalivel, mas, apenas as palavras copiadas pelos copistas — algumas vezes corretamen- te, mas ourras (muitas outras!) incorretamente? De que vale dizer que os aucégeafos (isto €, 08 originais) foram inspirados? Nés nao temos os ori- ginais! © que temos so c6pias-civadas de ertos, ¢ a vasta maioria delas sho centirias retiradas dos originais e diferentes deles, evidentemente, em milhares de modos. Essas diividas me afetaram ¢ me levaram a mergulhar, cada vez iblia realmente era. Eu me forme mais, em busca de entender 0 que a em Wheaton em dois anos ¢ decidi, sob a orientagio do professor 1. Meu amigo, Jeff Siker, diz que a leitura do Novo Testamento em grego & como ver uma figuea em quatro cores, a0 passo que I-o traduzido & como ver a mesma gravura em prero-e-branco: voz? pode chegar ao ponto, mas perde as nuances. Ad ' eee ee 18 0 QUE JESUS DISSE? Hawthorne, especializar-me em critica textual do Novo Testamento. Fui estudar com o maior especialista do mundo no assunto, um pes quisador chamado Bruce M. Metzger, que ensinava no Seminério Teo- logico de Princeton, E uma vez mais, meus amigos evangélicos me avisaram que eu no de- via ir para 0 Semindrio de Princeton, porque, segundo me disseram, eu teria dificuldade em encontrar cristios “verdadeiros” Ii. Afinal de con- tas, Princeton era um semindrio presbiteriano, um solo ndo exatamente fértl para ctistéos “renascidos”. Contudo, meus estudos de literatura in- lesa, filosofia e histéria — para nao falar do grego — tinham ampliado significativamente meus horizontes. En estava apaixenada pelo conheci- || mento, em todos os seus campos, sacro ou secular, Se aprender a “verda- “de” significasse no mais me identificar com os cristaos renascidos que ‘eu conhecera no.ensino fundamental, que assim fosse. Meu interesse eta avan em minha busca da verdade, onde quer que ela me levasse, na confianga de que toda yerdade que cu aprendesse nio era menos verda- de por scr inesperada.ou.impossivel de enquadrar nos pequenos escani- nhos fornecidos por minha experiencia evangélica Quando cheguei a0 Seminario Teolégico de Princeton, imediatamen- te me matriculei no primeiro ano do cutso de exegese (interpretacao) he- braica ¢ grega, e preenchi minha grade curricular com 0 maximo de disciplinas do curso. Pensei que essas aulas seriam um desafio académi- £0 pessoal. O desafio académico era completamente bem-vindo, mas 0s desafios pessoais que encarei eram emocionalmente penosos. Como men- cionei, ja em Wheaton, eu comegara.a.questionar alguns dos aspectos fundamentais de meu compromisso com a Biblia. como palavra infalivel de Deus. Esse compromisso sofreu um sério baque diante de meus por- menorizados estudos em Princeton. Resisti a tadas as tentaes de mudar ‘© meu ponto de vista e conheci muitos amigos que, assim como eu, pro- vinham de escolas evangélicas conservadoras e estavam rentando “man- ter a £6" (um jeito engracado de falar — olhando as coisas agora —, porque, afinal de contas, estévamos todos fazendo um curso de teologia crist@). Mas meus estudos comegaram a me transformar. Uma reviravolta aconteceu no segundo semestre, em um curso que eu seguia € que era dado por um professor respeitado e virtuoso, chamado Gallen Story, Era um curso sobre a exegese do Evangelho de Marcos, 4 época (¢ até hoje}, meu Evangelho favorito. Para seguir esse curso, preci- Me sdvamos est decorara todo o vocabulirio grego desse Evangelho uma semana antes de © semestre comerar}; precisvamos registrar num caderno exegético nos- sas reflexes sobre a interpretago das principais passagens; discutimos os problemas de interpretagio do texto ¢ tivemos de escrever uma monogra- fia de final de curso sobre um ponto interpretativo crucial, de livre esco- tha. Escolhi uma passagem de Marcos 2, quando Jesus € confrontade pelos fariseus porque seus discipulos, ao atravessar um campo de trigo, comeram graos no Sabado. Jesus quer mostrar aos fariseus que “o Saba do foi feito para. os humangs, nao os humanos para o Sabado”, lembran- do-thes 0 que fizera o grande Rei Davi quando cle ¢ seus homens tiveram fome, como eles entraram no Templo “quando Abiatar era 0 sumo sacer- dote” ¢ comeram 0 pio da proposigo, que s6 os sacerdotes podiam co- mer, Um dos célebres problemas da passagem é quando se examina a passagem do Antigo Testamento que Jesus esta citando (1 Samuel 21,1-6): que Davi nio fez nada_disso quando Abiatar era o sume sacerdore# ‘mas, de fato, quando o pai de Abiacar, Ahimelec,. Em outras pala- ‘ras, essa é uma daquelas passagens destacadas para demonstrar que a Bi: blia nao ¢ infalivel; ela contém-ercas.4 Em minha monogratia para o professor Story, desenvolvi um longo complicado argumento para provar que, embora Marcos indique que 0 fato se deu “quando Abiatar era © sumo sacerdote”, isso no significa realmente que Abiatar fosse o sumo sacerdote, mas que o fato ocorreu numa parte das Escrituras que tem Abiatar como uma das figuras princi- pais. Meu argumento baseava-se no sentido dos termos gregos envolvi- dos ¢ era meio enrolado. Eu estava seguro de que o professor Story receberia bem o argumento, porque eu sabia que ele era um bom pesqui- sador crist3o, que obviamente (a meu ver) jamais pensaria que pudesse haver algo semelhante a um erro genuino na Biblia. Mas, no final do meu trabalho, ele fez um comentario de uma linha que, por algum motivo, me atingiu profundamente. Ele escreyeu: “Talvez Marcos simplesmente te nha errady”. Passei a pensat sobre isso, ponderando todo 0 trabalho que me dera por aquilo no papel, entendendo que eu dera uma grande volta em torno do problema e que minha solugao era, de fato, bastante forga- da. Por fim, conch calvez Marcos tenbaerrada”. Uma vez admitido isso, as comportas se abriram. Porque se podia ha- ver um errinho insignificante em Marcos 2, provavelmente haveria erros 20 © QUE JESUS DISSE? . Marcos 4 se cei mostarda “é a menor dentre todas as sementes da Terra”, talvez eu niio precise arrumar uma explicac3o extravagante ‘come o grio de mostarda pode ser a menor das scmentes qu 'feitamente.que.ndo €. Talvez esses erros se apliquem a qu ‘mais importantes. Por exemplo, quando Marcos diz que Jesus foi cruci- |fendo um.dia depois da ceia pascal (Marcos 14,12; 15,25) ¢ Jodo diz que + clemorren um dia antes da ceia (Jodo 19,14), taluez haja ai aleuma dife | senca genuina. Ou quando Lucas indica em seu relato do nascimento de Jesus que José e Maria regressaram a Nazaré um més depois de texem ido Belém (e cumprido os ritos de purificagao: Lucas 2,39), ao passo que Mateus indica que, em vez disso, sles tinham fugido par a sus ), talvez essa seja uma diferenca. Ou quandoPaulddiz que, depois de sua conversio no caminho de Damaseo, ele ndo foi a Jerusa Jém para encontrar-se com aqueles que eram apéstolos antes dele (Gala. tas_1,16-17), enquanto o livro-dos Atos dos Apéstolos.diz que foi a primeira coisa que ele fez. r Damasco (Atos 9,26), talvez haja af alguma difereaga Descobertas desse tipo coincidiram com problemas que eu estava en- frentando em meus estudos mais aprofundados dos manuscritos gregos do Novo Testamento gue haviam sobrevivido. Uma coisa ¢ dizer que os jriginais foram inspiadas, mas 9 verdade-é.que nao temas os originai {Entao, dizer que eles foram inspirados nao me serve de grande coisa, a ’ndo sex que-cu possa reconstruit 0s originais. E além disso, a vasta mai fos cristdns. cm toda a hist da Igreja, nao teve acesso aos originais, fazendo de sua inspiragio um objeto de controvérsia. Nos nao apenas nio Jtemos os originais, coma nia temos as primeitas cépias dos originais. ; Nao. temoy nem mesmo as c6pias das cépigs dos originais, ou as cépias ‘das cépias das copias das originais, emos sio cépias feitas mais _-setarde, muito mais tard@. Na maioria das vezes, trata-se de cépias feitas sé culos depois. E codas elas|difercii7 umas das outras em milhares de passa gens. Veremos depois neste livro que essas cépias diferem umas das outras em tantas passagens que nem chegamos a saber quantas diferengas ha. ‘Talver,seja mais fécil falar comparativamente: hd mais diferengas entre os ‘nossos zniunuscritas que palavras no Novo Testamento, Muitas dessas diferencas sao absolutamente secundaias ¢ insignifi santes, Boa parte delas simplesmente nos mostra que os antigos copistas INTRODUGAD, 2H tinham tanta dificuldade em escrever quanto a maior parte das pessoas. hoje (e eles nem tinham.dicionssias, sem falar em corretores ortogrii- cos). Sendo assim, para que falar de todas essas diferencas? Se algué insiste em afirmar que Deus inspirou cada uma das palavras das Escri turas, do que estaria falando se nés ndo temos todas as palavras das Es- |crituras? Em alguns trechos, como veremos, simplesmente nio temos**" 1! | certeza de o rexto original ter sido reconstruido comexatidio. E bem di- *§* {{ficil saber.o queas palavras da Biblia querem dizer se no sabemos nem (mesmo que paleveas so essas! Isso se tornou um grande problema para meu entendimento da inspi- ragaio, porque passei a compreender que teria sido tio dificil para Deus preservar as palavtas das Escrituras quanto deveria ter sido, em primei- ro lugar, inspiré-las. Se Ele quisesse que seu povo tivesse suas palavras, ccectamente as teria dado (¢ possivelmente até Ihes tivesse dado as pala vras em uma lingua que pudessem entender, ¢ nao em grego e em hebrais co}; © fato de nao termos as palavras deve seguramente demonstrat, ; pensei, que le no as preservou para nés. E se Fle nao fez esse milagre, * nao haveria razio para pensar que teria feito o milagre anterior: inspirar + (+ essas palavras. Em suma, meus estudos do Novo Testamento grego e minhas pesqui sas dos manuseritos que © contém me levaram a repensar radicalmente 0 * ‘meu entendimento do que é a Biblia. Antes disso — a comegar de minha experiéncia de novo nascimento no ensino fundamental, passando por ‘meu periodo fundamentalista no Moody, até chegar aos meus tempos de evangélico em Wheaton —, minha fé baseava-se completamente em uma certa visio da Biblia como palavra infalivel de Deus, integralmente inspi- _/ rada. Agora, deixei de ver a Biblia desse modo. t_passou a ser* para mim.um livro completamente humano. Do mesmo modo como os copistas humanos copiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros ‘anos escreverdim os originais dos textos das Escrituras. Ela € autores hi “itm livre humano do comego.ao fim. E foi escrita por diferentes autores hhumanos, em diferentes épocas e em diversos lugares para atender a di- ferentes necessidades. Muitos desses autores sem diivida se sentiam ins- pirados por Deus para dizer o que disseram, mas tinham suas préprias pperspectivas, suas préprias crencas, seus prOprios pontos de vista, suas préprias necessidades, seus proprios desejos, suas proprias compree ses, suas préprias teologias. Tais perspectivas, crengas, pontos de vista, © ie nn ta ttn en pten! an 0 QUE J8SUS DISSED necessidades, desejos, compreensdes e teologias deram forma a tudo 0 que cles disseram. Por todas essas razdes € que esses escritores diferem uum do outro. Entre outras coisas, isso significava que Marcos nao disse a mesma coisa que Lucas porque nao quis dar a entender © mesmo que Lucas. Joao é diferente de Mateus —eles niio so os mesmos. Paulo é di- ferente dos Atos dos Apéstolos. E Tiago € diferente de Paulo, Cada autor 6 um autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se teate sempre de autores homens) tem a dizer, sem pressupor que aquilo que ele diz ¢ 0 mesmo — ou assimilivel a — ou consistente com aquilo ‘que qualquer outro autor tenha a dizer. A Biblia, feitas todas as contas, é um livro inteiramente humana, Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo dis- tinta da visio que eu tinha quando era um cristo evangélico — e que no € a visdo da majoria dos evangélicos de hoje. Dou um exemplo da di- ferenga que minha mudanga de perspectiva traz para a compreensio da Biblia. Quando eu estava no Moody Bible Institute, um dos livros mais populares no campus era a copia mimeografada da visio apocaliptica de Hal Lindsay para © nosso futuro, The late great planet earth. O livto de Lindsay era popular nao s6 no Moody: de fato, era o best-seller de nio- ficgio (sem falar na Biblia ¢ usando a categoria de “nio-ficgio” de modo bastante amplo) em lingua inglesa nos anos 1970. Lindsay, como todos 16s no Moody, acreditava que a Biblia era absolutamente infalivel em cada uma de suas palavras, de modo que vocé podia ler 0 Novo Testa. mento ¢ saber nao s6 0 que Deus queria que voce vivesse ¢ cresse, mas até mesmo o que o préprio Deus planejava fazer no futuro e como o fa: ria, O mundo se encaminhava para uma crise apocaliptica de propargdes, catastr6ficas, ¢ as palavras infaliveis das Escrituras podiam ser lidas para demonstrar 0 que, como ¢ quando isso viria a acontecer. Fiquei particularmente chocado com o “quando”. Lindsay indicava a parabola da figueira como uma indicagao de Jesus de para quando po- diamos esperar 0 futuro Armagedon. Os discipulos de Jesus querem sa- ber quando vira o “fim”, ¢ Jesus responde: Aprendei da figueira esta pardbola: quando os seus ramos ficam ten- 108 e suas folhas comecam a brotar, sabeis que o vero se aproxima, As- sim também vés, quando virdes todas essas coisas, sabei que [0 Filho do Homem] esta préximo, as vossas portas. Em verdade, eu vos digo: esta geragao ndo passard sem que tudo isso acontega (Mateus 24,32-34). INTRODUCAO | © que essa parabola significa? Lindsay, pensando tratar-se de uma pa- lavra infalivel do proprio Deus, interpreta sua mensagem indicando que, na Biblia, a “figueira” é freqiientemente usada como uma imagem da na- gio de Israel. O que significaria nessa passagem fazer folhas brotarem? Que a nagao, depois de permanecer dormindo durante uma estagao (o in- vyerno), voltaria & vida. E quando Israel voltou a vida? Em 1948, quando volton a ser uma nagio soberana. Jesus indica que o fim viré no decurso da geracao dentro da qual isso ocorrer. E quanto dura uma geragao na Bi- blia? Quarenta cnos. Bis ai o ensinamento divinamente inspirado vindo direramente da boca de Jesus: o fim do mundo deveria ocorrer-nalgum momento antes de 1988, quazenta anos depois da ceemergéncia de Israel, Essa mensagem foi completamente avassaladora para nos. Pode pare- cer bizarra agora — visto que 1988 veio e se foi, sem Armagedon —, mas, no entanto, hé milhdes de crist@os que ainda acreditam que a Biblia pode set lida literalmente, como completamente inspirada em suas predi- Ses do que acontecera em breve para levar a histéria, tal como a conhe- cemos, a seu fim. Prova disso é a loucura atual em torno da série escrita por Timothy LaHaye e Jerry Jenkins, Deixadas para_teds, outra visio apocaliptica de nosso futuro baseada em uma leitura literal da Biblia € ‘que jd vendeu mais de sessenta milhoes de c6pias até agora. £ uma mudsnga radical da leitura da Biblia como um documento para nossa fé, vida e furuco vé-la como um livro humano, com muitos * pontos de vista humanos, muitos dos quais diferem entre si, com nenhum. deles fornecendo uma orientagao infalivel de como devemos viver, Essa foi a mudanga que acabou acontecendo em meu pensamento ¢ com a qual estou agora completamente comprometido. Naturalmente, muitos cristios nunca defenderam essa visio literal da Biblia em primeiro lugar ¢, para eles, uma visio como essa deve parecer completamente unilateral ¢ descontextualizada (para nao dizer bizarra ¢ estranha as questdes de fé). Contudo, hi muitas pessoas por af que ainda véem a Biblia desse modo. De vez em quando, vejo um adesivo no qual se pode ler: “Deus disse, eu acredito ¢ esti resolvido”, Men comentario sempre é: ¢ seen _ndo river dito? E se o livro que vocé toma por transmissor-das-palavras, de Dews conrives s6 palavras humanas? E se a Biblia ndo der uma respos- ta a toda prova para as questées dos tempos modernos — aborto, direi- tos das mulheres, direitos dos homossexuais, supremacia religiosa, democracia ocidental, ¢ assim por diante? Ese n6s mesmos tivermos de SUES iia 23 24 © QUE JESUS DISSE? descobrir como viver € como acreditar por nés mesmos, sem olhar para a Biblia como um falso idolo, ou um oréculo que nos dé uma linha de ‘comunicagao direta com 0 Todo-poderoso? Ha raz6es muito claras para pensar que, de fato, a Biblia nao é 0 tipo de guia infalivel para nossas vi- das; entre outras coisas, como venho adiantando, em muitos lugares, nds [como especia cemos 0 que as palavras originais da Biblia realmente eram. ou apenas como leitores comuns) nem me Minha visio teologica pessoal mudou radicalmente depois dessa des- coberta, levando-me a percorrer trajetos muito distintos daqueles que eu fizera na minha juventude, Continuo a apreciar a Biblia e as muitas ¢ va- riadas mensagens que ela contém. Do mesmo modo, vim a apreciar ou- tros escritos dos primeiros cristios, da mesma época ou de um pouco mais tarde, escritos de figuras menos conhecidas como Indcio de Antio- quia, Clemente de Roma, Barnabé de Alexandria. Também vim a apre- ciar escritos de pessoas de outras crencas, mais ou menos da mesma &poca, como os escritos de Flavio Josefo, Luciano de Samosata ¢ Plutar 99. Todos esses autores esto rentando entender o mundo ¢ o seu proprio lugar nele, e todos tém ensinamentos valiosos a nos transmnitir. £ impor. tante saber o que foram as palavras desses autores, de modo a poder ver, a partir do que eles tinham a dizer e de seus julgamentos, o que podemos pensar e como podemos viver & luz dessas palavras. Isso me faz retornar a0 meu interesse pelos manuscritos do Novo Testamento ¢ pelo estudo desses mesmos manuscritos no campo conhe- cido como critica textual. Estou convicto de que a critica textual é um campo de estudos intrigante, atraente e de real importancia nio s6 para 6s especialistas, mas para toda pessoa interessada na Biblia (seja um fundamentalista, um fundamentalista em recuperagio, alguém que ja- mais seria um fundamentalista na vida, ou simplesmente alguéi um remoto interesse na Biblia como fendmeno cultural e hist6rico). De todo modo, 0 que impressiona € que muitos leitores — mesmo os inte- ressados no cristianismo, na Biblia e em estudos biblicos; tanto 0s que acreditam na Biblia como infalivel como os que nao acreditam — nada sabem de critica textual. E ficil saber por qué. A despeito do fato de a critica textual ser uma area de estudos que vem sendo cada vez mais pesquisada ja ha mais de trezentos anos, ha pouquissimos livrgs a res- Peito escritos para um piblico leigo — ou seja, para quem nao sabe nada disso, para quem nao sabe grego e as ourras linguas necessérias Std iia nvrroDucho para um estudo profundo, para quem nem mesmo entende que hé um “problema” com 0 texto, mas que ficaria muito intrigado € disposto a saber que problemas so esses e quais instrumentos 0s pesquisadores ram para lidar com eles. Este 6 0 tipo de livro que é — que eu saiba — o primeiro em seu gé- nero. Ele foi escrito para pessoas que nao sabem nada de critica textual, mas que gostariam de aprender algo sobre como os copistas foram mu- dando as Escrituras ¢ sobre como podemos reconhecer onde eles fizeram alteracBes. Foi escrito com base em meus trinta anos de reflexdo sobre 0 tema ¢ em minha perspectiva atual, que passou por muitas transforma- ges radicais acerca do meu proprio modo de ver a Biblia, Foi escrito para todo aquele que tiver interesse: + em ver como chegamos ao que o Novo Testamento é hoje; + em descobrir que, em algumas instincias, nem chegamos a imagi- nar quais eram as palavras originais; ‘+ omconstatar que essas palavras por vezes mudaram de modo mui- to interessante; ‘© em concluir que devemos, pela implementagio de alguns métodos de anslise rigorosa, reconstruir 0 que as palavras originais eram na realidade, De muitas formas, este é um livro muito pessoal para mim, o resulta- do final de uma longa jornada, Talvez, para outros, possa vir a fazer par- te da jornada que eles mesmos iniciam. 2. O livro que chega mais pesto disso & PARKER, David C. The living text of the gospels, Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 1 OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS ‘ata examinar as c6pias do Novo Testamento que possuimos, preci- samos comecar bem do inicio, por uma das caracteristicas incomuns do ctistianismo no mundo greco-romano: seu cardter de “religiio do li- vro”. Realmente, para entender essa caracteristica do cristianismo preci- samos remontar ao seu inicio, ou seja, 4 religido da qual brotou: judaismo. O cariter de religio do livro do cristianismo fora, de certo ‘modo, antecipade e prefigurado pelo judaismo, a primeira religido do li- veo da civilizacao ocidental O JupaisMo COMO UMA RELIGIAO DO LIVRO (© judaismo, do qual provém 0 cristianismo, é uma religido incomum no mundo romano, embora nao fosse, de modo algum, a tinica. Assim como os adeptos de qualquer uma das outras (centenas de) religides da regiio do Mediterrineo, os judeus reconheciam a existéncia de um reino divino habitado por seres sobre-humanos (anjos, arcanjos, principados, potes- tades)s praticavam a adoragéo de uma divindade por meio do sacrificio " de animais e da oferenda de outros produtos alimentares; afirmavam que Uma imagem dos famosos Evangelhos de Radbula, um elegante ‘manuscrto biblico da Siria do século VI. as (© QUE JESUS DISst? havia um lugar sagrado especial onde o ser divino habitava na Terra (0 Templo, em Jerusalém) e era la que os sacrificios deviam ser feitos. Eles oravam a esse Deus pelas necessidades pessoais e coletivas. Contavam historias sobre como esse Deus interagira com os seres humanos ¢ ante- cipavam seu auxilio aos seres humanos no presente. Por todas essas ca- racteristicas, o judafsmo era “familiar” aos adoradores de outros deuses ‘Mas, de algum modo, 0 judaismo era diferente. Todas as outras reli- gides no Império Romano eram politefstas — reconheciam ¢ adoravam muitos deuses, de todas as extragdes e para todas as fungdes: grandes deuses do Estado, deuses menores de varias localidades, deuses que con- trolavam diferentes aspectos do nascimento, vida e morte dos humanos. O judaismo, por seu lado, era monoteista. Os judeus insistiam em ado- rar apenas 0 Deus tinico de seus ancestrais; © Deus que, afirmavam eles, criou e controlava este mundo e, sozinho, provia todas as necessidades de seu povo. Segundo a tradigao judaica, esse Deus tinico e poderoso chamara Israel para ser o seu povo especial e prometera protegé-lo e de- fendé-lo em troca de sua absoluta devocdo a ele, s6 a ele. O povo judeu, acreditava-se, tinha uma “alianga” com esse Deus, um acordo de ser uni- camente dele e ele unicamente seu. Sé6 esse Deus devia ser adorado ¢ obe- decido; por isso, havia um dinico Templo, diferentemente das religides politeistas da época, nas quais, por exemplo, poderia haver no importa Jquantos templos a um deus como Zeus. Na realidade, os judeus-padiam s onde quer que vivessem, mas s6 podiam realizar suas obri- gages religiosa sno Templo, em Jerusalém. Em ou- tros lugares, porém, eles podiam se reunir em “sinagogas” para orar € discutir as tradigdes ancestrais que estavam no centro de sua religiaio, Essas tradigdes implicavam historias sobre a interagao de Deus com 108 ancestrais do povo de Israel — os patriarcas e as matriarcas da fé, tais como Abraio, Sara, Isaac, Raquel, Jacé, Rebeca, José, Moisés, Davi en- tte outros —¢ instrugdes detathadas a respeito de como esse povo devia prestar culto e viver. Uma das coisas que tornavam 0 judaismo Gnico em meio as religides do Império Romano era que essas instrugSes, além das outras tradigdes ancestrais, tinham sido escritas em livros sagrados. Para pessoas modernas, intimamente familiarizadas com algumas das mais destacadas religides ocidentais (0 judaismo, o cristianismo, o isla- mismo), pode ser dificil imaginar, mas os livgos nao representavam vir- tede n't tn duchies barrie. tun ther tn trope ‘OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS, tualmente nenhum papel nas religides politeistas do antigo mundo oxi dental. Essas religides dedicavam-se quase exclusivamente a honrar os deuses por meio de atos rituais de sacrificio. Nao havia doutrinas a aprender, explicadas em livros, e praticamente nao havia prinefpios é cos a ser seguidos registrados em livros. Isso ndo significa que os adeptos das varias religiées politeistas nao tivessem crengas em seus deuses ou rio tivessem ética, mas crengas e éticas — por mais que isso soe estranho a ouvidos modernos — no desempenhavam papel algum na religizo propriamente dita. Tratava-se de um dominio da filosofia pessoal, ¢ as fi- losofias, claro, podiam estar nos livros. Visto que as proprias religides antigas no exigiam conjuntos particulares de “retas doutrinas” ou, em sua maioria, de “cédigos éticos”, 0s livros nio desempenhavam fungao de destaque em seu scio. $6.0 judaismo insistia em leis, costumes ¢ tradigGes ancestrais — e de- fendia que eles fossem r jos em livros sagrados, que gozavam, po tanto, do status de “escritura” para o povo judeu. Durante o periodo que estamos estudando — o século I da era cbifum,' quando os livros do Novo Testamente estavam sendo escritos —, judeus dispersos pelo Impé- rio Romano entendiam particularmente que Deus dera diregio a seu povo nos escritos de Moisés, coletivamente chamados de Torah, termo {que significa literalmente algo como lei ou “orientago”. A Torah con- siste em cinco livros, algumas vezes chamados de Pentateuco (0s “cinco rolos”), o inicio da Biblia judaica (0 Antigo Testamento cristio): Géne- sis, Exodo, Levitico, Niimeros e Deuteronémio. Ali se encontram 0s re- latos da criagio do mundo, do chamado a Israel para set 0 povo de Deus, as histérias dos patriarcas e das matriarcas de Israel, 0 envolvi- mento de Deus com eles e, 0 mais importante (e mais extenso): as leis que Deus entregou a Moisés para indicar como seu povo devia adori-lo e se comportar um com o outro e em comunidade. Eram as leis sagtadas, que deviam ser aprendidas, discitidas e seguidas — e que, para isso, foram escritas em um conjunto de livros. 1, Atualmente os pesquisadores usam “era comum” (abreviadamente E.C.) em vez da antiga designacao anrio Domini (A.D. 01 “no ano do Senhor™; em portugués, D.C. ou "depois de Cristo"), porque “era comum” ¢ mais inclusive de todas as formas de ff SUE aaa to 0 QuEISUS DISSE Os judeus tinham outros livros, que eram também muito importantes para sua vida religiosa, como por exemplo os livros dos profetas (como lsaias, Jeremias e Amés), os poéticos (Salmos) ¢ 0s histéricos (como Josué € Samuel). Por fim, algum tempo depois do inicio do cristianisma, uma sé- rie desses livros hebraicos — vinte e dois deles — passou a ser considera- da canon sagrado das Escrituras, a Biblia judaica_atual, aceita_pelos ctistdios.como a primeira parte do cdnon cristio,.o Antigo Testament. Esses breves fatos sobre os judeus e seus textos escritos so importan- tes porque definem o cenério para o cristianismo, que é também, desde seus inicios, uma religiio “do livro™. O cristianismo naturalmente come- ou com Jesus, que era um rabi (mestre) judeu que aceitava a autoridade da Torah e, possivelmente, outros livros sagrados judaicos, e que ensina- ¥a a prépria interpretagio desses livros aos seus discipulos.' Assim como outros rabis de seu tempo, Jesus afirmava que Deus poderia ser encontra- do nos textos sagrados, especialmente na Lei de Moisés. Ele lia as Escri- turas, estudava-as, interpretava-as, era adepto delas € as ensinava. Seus seguidores eram, desde o inicio, judeus que tinham os livros de sua prd- ria tradigéo em alta conta. Por isso, jd desde os primeiros tempos do cristianismo, os adeptos dessa nova religido, os seguidores de Jesus, eram tudo « rentes no In| pmano: a semelhanga dos judeus antes eles, mas diferentemente de quase todos os demais, situavam a autori- dade sagrada nos livros sagrados. Assim, desde o seu inicio, o cristianis- mo foi uma religido do livro. " Te Det CE hae 2. Para um esbogo da formagéo do canon judaico das Escrituras, ver: SANDERS, James, “Canon, Hebrew Bible”. In: FREEDMAN, David Noel (Ed.). The anchor Bible dictionary. New York: Doubleday, 1998, p. 1838-1852. 3. Ao chamar Jesus de rabi, nfo quero dizer que ele tivessealguma posiglo expec {nterior do judatsmo, mas que era simplesmente um mestre judcu, Evidentemente, fra apenas um mestre;talvez ele possa ser entendido como um “profeta™. Para uima discussio mais aprofundada, ver: FRHMAN, Bart D. Jesus: apocalyptic prophet of the new millenniuon. Nova lorque: Oxford University Press, 1999, 2 A OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS | EL? aa O CRISTIANISMO, UMA RELIGIAO DO LIVRO Como veremos dentro em pouco, a importéncia dos livros para o cristia- nismo primitivo ndo significa que todos os cristios pudessem ler. Bem a0 contrério, a maioria dos cristaas, assim como a.maior parte.da popula so do império (incluind os judeus!), cra analfabeta. Mas isso nio sig- nifica que os livros desempenhassem um papel menor na religido. De fato, eles eram centralmente importantes e, em muitos aspectos, funda- ‘mentais para a vida dos cristos em suas comunidades. As primeiras Cartas cristas ‘A primeira coisa a notar é que muitos diferentes tipos de escritos eram importantes pars as florescentes comunidades cristas do século I depois, da morte de Jesus, Os primeiros indicios das comunidades que temos nos vvém das cartas que os lideres cristaos escreveram. © apéstolo Paulo é nosso mais antigo e melhor exemplo. Paulo fundou igrejas por todo 0 Mediterraneo oriental, principalmente em centros urbanos, evidentemen- te convencendo pagios (isto é, adeptos de algumas religides politeistas do império) de que o Deus judeu era o tinico que merecia ser adorado, ¢ de que Jesus era seu Filho, que morrera pelos pecados do mundo € que em breve voltaria pra fazer o julgamento da Terra (1 Tessalonicenses 1,9- * 10), be exatamente em que medida Paulo usou as Escritur (isto é, 0s escritos da Biblia judaica) para tentar persuadir seus potenciais convertidos da verdade de sua mensagem, mas em vim dos resumos-cha- ve de sua pregacio, ele indica que o que ele pregava era que “Cristo mor- reu, segundo as escrituras... € que ele ressuscitou, segundo as escrituras” (1 Corintios 15,3-4). Claro que Paulo correlacionava os fatos da morte ¢ da ressurreigao de Cristo com sua interpretagao das passagens-chave da Biblia judaica, que ele, como um judeu erudito, obviamente podia ler por si mesmo e que interpretava para seus ouvintes numa tentativa, freqiien- temente bem-sucedida, de converté-los. Depois de Paulo ter convertido determinado nimero de pessoas em dada localidade, ele ia para outro lugar tentar, geralmente com sucesso, converter mais pessoas. Mas As vezes (freqiientemente, talvez?) chegavam 0s ouvidos dele noticias de uma ou outra das comunidades de crentes que ele estabelecera e, as veres (Freqiientemente, talvez?), essas noticias, { a © QUE JESUS DISSE? nfo eram nada boas: membros da comunidade que tinham comegado a se comportar mal, problemas de imoralidade que surgiam, “falsos mes- tres” que apareciam ensinando nogdes contrarias 4s dele, alguns mem- bros da comunidade que se alinhavam a falsas doutrinas, e assim por diante. Ao se inteirar dessas noticias, Paulo escrevia uma carta para a co- munidade, na qual abordava esses problemas. Tais cartas eram muito im- portantes para a vida da comunidade e algumas delas, por fim, passaram a ter o status de Escrituras{ Tred las cartas escritas sob o nome de Pau- ok, iq lo esto incluidas no Novo ‘Testamento! Podemos fazer idéia de quo imporcantes eram essas cartas nos estgios iniciais do movimento cristo a partir do primeiro escgito cristio que pos- 10s, 4 primeira carta de Paulo aos Tessalonicense¢ geralmente datada de 49 £.c' cerca de vinte anos apés a morte de Jesus e vinte anos antes dos re- latos evangélicos sobre sua vida. Paulo conclui essa sua carta dizendo: “Sau- dai todos os irmios ¢ irmas com 9 ésculo santo. Eu vos conjuro insistentemente em nome do Senhor: que esta carta seja lida por todos os ir- ios e irmas” (1 Tessalonicenses 5,26-27). Nao se trata de uma carta cir- ccunstancial, a ser lida simplesmente por quem quer que estivesse mais ou ‘menos interessado. © apéstolo insiste em que ela deve ser lida e aceita como uma declaragio de autoridade da parte dele, 0 fundador da comunidade. ‘As cartas circularam pelas comunidades cristas desde os tempos mais antigos. Elas uniam comunidades que viviam em diferentes paises; indica ‘vam em qué os cristaos deviam crer e como se esperava que se comportas- sem, Eram para ser lidas para a comunidade, em vor alta, por ocasidio das reunides comunitérias — visto que, como jd se disse, a maioria dos cris ‘Hos, como muitos outros, nao seria capaz de ler as cartas por si mesma Algumas dessas cartas vieram a ser incluidas no Novo Testamento. De fato, o Novo Testamento se constitui, em grande parte, de cartas escritas por Paulo ¢ outros lideres cristios As comunidades cristas (por exemplo, os corintios, os galatas) e mesmo para alguns individuos (por exemplo, Filé- mon). Além disso, as cartas que sobreviveram — hé vinte e uma delas no Novo Testamento — sio apenas uma pequena fragio das que foram escri- tas. No que diz respeito exclusivamente «Paul, podemos afirmar que cle escreveu muito mais cartas do que as que ihe: 4, Para essa abroviatura ver nota I (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS. mento. Fm certa ocasido, ele menciona outras cartas que nao sobreviveram. Em 1 Corintios 5,8, por exemplo, ele menciona uma carta que escrevera an- teriormente aos corintios (algum tempo antes da Primeira Carta aos Cori tos). E menciona outra carta que alguns corintios enviaram para ele (1 Corintios 7,1). Em algum outro ponto, ele faz referéncia a cartas que alguns de seus oponentes possuiam (2 Corintios 3,1). Nenhuma delas sobreviveu. Por muito tempo, os pesquisadores suspeitaram que as cartas encon- tradas no Novo Testamento sob o nome de Paulo tinham sido, de fato, escritas mais tarde por seguidores dele, sob pscudénimo.' Se essa suspei- ta tiver fundamento, ela confere ainda mais fundamento & importancia das cartas para o movimento cristao primitivo: a fim de ganhar a aten- do para determinado ponto de vista, alguém escreveria uma carta em nome do apéstolo, na convicgdo de que isso conferiria ao escrito toda a autoridade, Uma dessas cartas pretensamente pseudonimicas ¢ Colosse ses, que ressalta a importancia das cartas e menciona uma outra, que no sobreviveu: “E quando tiverdes lido esta epistola, vos assegureis de que cla seja lida na igreja dos Laodicenses e que vés Ieiais a carta escrita a Laodicéia” (Colossenses 4,16). Evidentemente, Paulo — em pessoa ou al guém escrevendo em seu nome — escreveu uma carta a cidade proxima de Laodicéia. Essa carta também se perdeu.* Afirmo que as cartas eram muito importantes para a vida das pri- meiras comunidades cristas. Elas eram documentos escritos que orien- tavam tais comunidades tanto em sua f€ como em sua pratica. Uniam 4s igrejas. Ajudavam a distinguir o cristianismo das outras muitas rel gides espalhadas pelo império, dado que as varias comunidades c 5. Blas incluciam as tés cartas “déurero-pavlinas” aos Colossenses, aos Efésios, 2 Tessalonicenses ¢, especialmente, as t@s cartas “pastorais"/de 1 ¢ 2 Timéteo e Tito, Para entender as divdas dos pesquisadotes sobre se essas cartas eram realmente de Paulo, ver: EHRMAN, Bart D. The New Testaments a historical introduction to the carly Christian writings. 3. ed. Nova Torque: Oxford University Press, 2004. cap. 23. 6. Posteriormente, suegiram virias cartas forjadas reivindicando ser a carta aos Laodicenses. Ainda possuimos uma delas, geralmente incluida naquele que se chama © Novo Testamento Apécrifo. Teata-se de uma espécie de pastiche de frases paulinas de cléusulas reunidas para soar como uma das cartas de Paulo, Outra carta inttulada Aos Laodicenses foi evidentemente forjada por Marcio, wim “herege” do século I. Ela no subsist, SUE eae 44 (0 QUE JESUS DISSE? unificadas por essa literatura comum que circulava entre elas (Colos- senses 4,16), estavam aderindo as instrucdes que se encontravam em. documentos escritos ou “livros”. E nao eram s6 as cartas que eram importantes para essas comunida- des. De fato, havia um espectro extraordinariamente amplo de literatura sendo produzido, disseminado, lido e seguido pelos primeiros cristaos, algo bem distinto de tudo 0 que o mundo romano pagio havia visto até entio, Em vez de descrever aqui pormenorizadamente toda essa literatu- +a, vou simplesmente mencionar alguns exemplos dos géneros de livros, que estavam sendo escritos e distribuidos. Os primeiros Evangelbos Os cristios estavam, naturalmente, interessados em saber mais sobre a vida, os ensinamentos, a morte e a ressurreigdo de seu Senhor. Por isso, ‘numerosos Evangelhos foram escritos para registrar as tradicdes associa- das a vida de Jesus. Quatro desses Evangelhos passaram a ser mais am- plamente_usados — os de Mateus, Marcos, Lucas e Joao no Novo ‘Testamento —, mas muitos qutros foram escritas. Ainda temos alguns: desses outros: por exemplo, Evangelhos supostamente escritos por Filipe, discipulo de Jesus; por seu irmio, Judas Tomé; e por sua companheira, Maria Madalena. Outros Evangelhos, inclusive alguns dos mais primit: vos, se perderam. Sabemos disso, por exemplo, por meio do Evangelho de Lucas, cujo autor indica que, para escrever 0 proprio relato, ele con- sultou “muitos” escritos precedentes (Lucas 1,1) que, obviamente, no sobreviveram. Um desses relatos primitivos pode ter sido a fonte que os pesquisadores designaram como Q, provavelmente um relato escrito, principalmente dos ditos de Jesus, usado tanto por Lucas como por Ma- teus para muitos dos scus caracterfsticos ensinamentos de Jesus (por exemplo, a Oragio do Senhor e as Bem-aventurangas)” 7. Embora © obviamente nio mais exista, ha boas razées para pensar que se trata de tum documento real — mesmo que no possamos conhecer com toda a certeza 0 Seu cconteiido completo. Ver: EHRMAN, Bart D. The New Testament, op. cit, cap. 6. 0 rome Q é uma abreviatura da palavra alema Quelle, que significa “fonte” (ou sei a fonte para a maior parte do material dos ditos de Jesus presente em Mateus e em Lucas) PTT OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS Snew A vida de Jesus, como vimos, foi interpretada por Paulo e outros mais, luz das Escrituras judaicas. Esses livros também — tanto o Pentateuco como outros escritos judeus, como os Profetas ¢ 0s Salmos — eram de amplo uso entre as cristios, que os examinavam para ver o que revela- vam sobre o designio de Deus, especialmente no modo como ele se cum- priu em Cristo. Copias da Biblia judaica, geralmente em tradueo para.o| grezo (a chamada Septuaginta), cram entdo de facil acesso nas primeiras| comunidades cristis como fontes de estudo ¢ de reflexio. Os primeiros Atos dos Apéstolos Nao s6 a vida de Jesus, mas também a vida de seus primeiros seguidores era do interesse das crescentes comunidades cristas dos séculos I ¢ I. Diante disso, nao surpreende ver que relatos dos apdstolos — suas aven- turas e faganhas missiondrias especialmente apés a morte e ressurreiga0 de Jesus — ocuparam um lugar de destaque para os cristéios interessados tem saber mais sobre sua religiao, Por fim, um desses relatos, os Atos dos. Apéstolos, veio a ser incorporado ao Novo Testamento. Mas muitos ou- tos relatos foram escritos, principalmente sobre apdstolos individuais, como os que se encontram nos Atos de Paulo, nos Atos de Pedro e nos Atos de Tomé. Outros Atos s6 sobreviveram sob a forma de fragmentos ou foram completamente perdidos. Apocalipses cristéios Como ja mencionei, Pauls'(juntamente com outros apéstolos) ensinava aque Jesus estava perto de voltar dos céus para fazer o julgamento da Ter- 1a. O fim iminente de todas as coisas era uma fonte de fascins tante para os primeiros cristaos, que de modo geral esperavam que Deus logo interviria nos assuntos do mundo para destruir as forgas do mal € estabelecer seu reino, com Jesus & frente, aqui na Terra. Alguns autores cristéos produziram relatos do que se passaria por ocasiao desse fim taclismico do mundo, tal como o conhecemos. Havia precedentes judeus desse tipo de literatura “apocaliptica”. Por exemplo, o livro de Daniel, na Biblia judaica, ou o livro de I Henoc, nos Apécrifos judeus. Por fim, Adentre todos os apocalipses cristos, um veio a ser incluida na Nava Tes- tamento: o Apocalipse de Joao. Outros, inclusive © Apocalipse de Pedro 4—~ cons- ve {© QUE [SUS DISSE? © 0 pastor, de Hermas, foram leituras muito populares em varias comu nvidades cristas nos primeiros séculos da Igccja. Regras eclesidsticas [As primeiras comunidades cristis eresciam e se multiplicavam, a comegar dda época de Paulo e continuando pelas geragdes depois dele. Originalmen- sigrjas exists, ao menos as que foram estabelecidas pelo proprio pois acreditavam que todo membro da comynidade havia recebido um “dam” (em grego: charisma) do Espirito de em su continua: por exemplo, havia dons de ensino, administragio, caridade, cura e profecia. No fim, contudo, a medida que a expectativa do fim imi- \nente do mundo comecou a enfraquecer, tornou-se clara a necessidade de eclesial mais rigida, especialmente se a igreja fosse [durar por um longo tem, te, Paulo, eram 0 que podemos chamar.de comunidades carism para ajudar a ¢ instituir uma Corintios 11; Mateus 16,18). As igrejas a0 redor do Mediterrinco, inclusive as que tinham sido fundadas por Paulo, comegaram a indicat lideres para dirigi-las e tomar decis6es (deixando de tonsa “igualmente” dotados pelo Espirito). Co- megaram a ser formuladas iregragy Aerca de como a comunidade devia conuiver, praticar seus rtos sagrads (por exemplo, o batismo e a eucars- produzidos documentos que apontavam cono as igrejas deviam ser orga- nizadas-e estruturadas. As assim chamadas regras eclesidsticas foram se tornando cada vez mais importantes nos séculos II Ill, mas jé por volta za primeira regra{pelo que sabemos) jé fora escrita ¢ ampla- a: um livro chamado A Didaché [Ensinamento] dos Logo, logo, ele teria numerosas seqiiéncias. ‘treinaf novos membre Apologias cristas A medida que se estabeleciam, as vezes as comunidades cristas enfrenta vam oposicéo da parte de judeus e pagios, que viam a nova fé como ameaga e suspeitavam que scus adeptos estavam comprometidos com praticas imorais e socialmente destrutivas (do mesmo modo como hoje novos movimentos religiosos sio freqiientemente encarados com suspei- ta), Essa oposigao, por vezes, levou a perseguigdes locais aos cristios; por Prion gp wechen, bd Aer, Meta. OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS fim, as perseguigdes se tornaram “oficiais”, conforme os administrado- res romanos passaram a intervir para prender cristdos ¢ tentar obrigé-los a retomar os velhcs habitos do paganismo. A medida que se difundia, cristianismo, por fim, passou a converter intelectuais &.sua fe, ¢ estes es- savam habilitados a discutir ea tevidar-as acusagies geralmente langadas contra_os cristios. Os escritos desses intelectuais as vezes so chamados, de apologias, palavra que vem do gregozpologia¢ signifigal™defesa?. Os apologistas escreveram defesas intelectuais da nova fé, tentando mostrar ue, Jonge de constituir uma ameaga 8 es era_uma religido que pregava um comportamento moral; e que longe de ser uma superstigao perigosa, representava a verdade tiltima em sua ado- ragio do verdadeiro Deus uno. As apologias foram importantes para os leitores cristaos primitivos, visto que os proviam com os argumentos de que necessitavam quando cles mesmos tinham de encarar a perseguicio. Esse tipo de defese j4 podia ser encontrado no periodo do Novo Testa mento: por exemplo, em 1 Pedro (3,15: “Estejais preparados para fazer a defesa diante de do aquele que vos pede para prestar contas da espe ranga que hé em vis”) e no livro dos Atos dos Apéstolos, no qual Paulo, © outros apéstolos se defendem de acusagées levantadas contra si. Por volta da segunda metade do século I, as apologias comegaram a se tor- nar uma forma popular de literatura crista Martirologios cristaos Mais ou menos na mesma época em que as apologias comegaram a ser es- critas, 0s cristios comegaram a produzir relatos das perseguigdes que so- friam e dos martirios que ocorriam em decorréncia delas. Existem algumas representagdes de ambos 0s tipos j4 no livro neotestamentario dos Atos dos Apéstolos, no qual a oposi¢ao ao movimento cristo, a prisio de lide- res cristios ¢ a execugdo de a0 menos um deles (Es parte significativa da narrativa (Atos dos Apéstolos 7). Posteriormente, no século II, os martirolégios (relatos dos martirios) comegam a surgir. O pri- meiro deles é © Martirio de Policarpo, um destacado lider cristo que ser~ viu como bispo a igreja de Esmirna, na Asia Menor, durante quase toda a primeira metade do século Il. O relato da morte de Policarpo encontra-se em uma carta produzida por membros de sua igeeja escrita para outra co- munidade, Logo depois, relatos de outros mértires comegaram a aparecer. vio) constituem uma Sut aaa 1H (0 QUE JESUS DISSE? Hes eram muito populares entre os cristdos, porque infundiam coragem naqueles que também eram perseguidos por causa da fé e orientavam so- bre como enfrentar as ameagas extremas de prisio, tortura e morte. Tratados anti-heréticos Os problemas que os cristios deparavam nao se limitavam a ameagas ex- ternas de perseguicao. Desde os primeiros tempos, eles estavam conscien- tes de que uma variedade de interpretagdes da “verdade” da religido existia dentro de suas préprias fileiras. © apéstolo Paulo ja se levantava contra os “falsos mestres” — por exemplo, em sua carta aos Galatas. Ao ler 0s relatos que subsistiram, podemos ver claramente que esses oponen: tes nao eram 56 de fora. Eram cristaos que entendiam a religido de modo completamente diferente. Para enfrentar esse problema, os lideres cris- tos comecaram a escrever tratados que opunham aos “hereges” (aque- les que escolhiam o caminho errado de entender a fé); em certo sentido, algumas das cartas de Paulo sio as primeiras manifestagies desse tipo de tratado, Finalmente, cristdos de todas as conviccdes comecaram a se en- erdadeiro” (esse € 0 sentido literal de “ortodoxia”) e a se opor aos que defendiam falsos ensinamen- tos. Tais tratados anti-heréticos tornaram-se um trago fundamental do panorama da literatura crista primitiva. Notavel & que até mesmo grupos, chamados de “falsos mestres” escreveram tratados contra “falsos mes- tres", de modo que grupo que estabeleceu, de uma vez por todas, aq) Jo em que os cristéos deviam acreditar (os responsiveis, por exemplo, pelos credos que chegaram até nds}, as vezes é desautorizado por cristaos que defendiam posigdes no fim decretadas como falsas. Isso é 0 que aprendemos com descobertas relativamente recentes da literatura “heré- tica”, na qual os chamados hereges defendem que sua visio é a correta, € que a visio dos lideres eclesidsticos “ortodoxos” é que é a falsa.* volver na tentativa de estabelecer 0 “ensino. 8. Por exemplo, nos tratados conhecidos como Apocalipse de Pedro e Segundo tratado do grande Seth, descobertos ambos em 1945 num esconderijo de documentos “gndsticos” proximo a aldeia de Nag Hammadi, no Egito, Para as tradugdes, ver: ROBINSON, James M. (Org). The Nag Hammadi library in English. 3. ed. Si0 Francisco: HarperSanFrancisco, 1988, p, 362-378, Oe OLY & “angina Habe © oP SUES aa 9 (0S INICIOS DAS FSCRITURAS CRISTAS’ Os primeiros comentarios cristdos Grande parte do debate sobre a reta e a falsa crenga implica a interpr ao dos textos cxistdos, inclusive do Antigo Testamento, que 0s cristios reivindicavam como parte de sua propria Biblia. Mais uma vez, isso mos- tra a centralidade dos textos para a vida das primeiras comunidades cris- tas, Mais tarde, os autores cristdos comegaram a escrever interpretagdes desses textos, nao necessariamente com o propésito declarado de refutar falsas interpretazées (apesar de que isso quase sempre estava em mira também), mas as vezes simplesmente para desvelar o sentido desses tex- tos e mostrar sua relevancia para a vida e a pritica cristas. F interessan te que o primeiro comentirio cristo sobre cada texto das Escrituras de| que temos_conhecimento proveio de um_assim chamado_herege. gnéstico do século Il que se chamava Heraclido e que escreveu um co- mentario ao Evangelho de Joao.” Por fim, comentarios, glosas inverpreta-| tivas, exposigdes préticas e |homiliag aos textos passaram a ser comuns entre as comunidades cristas dos séculos IIe 1V. Sincetizei os diferentes tipos de escritos que foram importantes para a vida das primeiras igrejas cristds. Espero que assim se possa ver que o fe- rnémeno da escrita foi da maior importéncia para essas igrejas € 08 ctis tos a elas ligados. Os'livros|foram, desde 0 principio, 0 coragdo da’ religito cristi — diferentemente de outras religides do impésio. Os livros voltavam a narrar as histérias de Jesus e de seus apéstolos, que os cris~ tos contavam e recontavam; proviam aos cristios orientagao sobre em que crer e como viver suas vidas; uniam comunidades geograficamente apartadas em uma igreja un davam forgas a0s cristios nos tempos de perseguigio ¢ Ihes forneciam modelos de fidelidade a imitar em face da tortura e da morte; transmitiam ndo apenas bons conselhos, mas a reta doutrina, exortando contra os falsos ensinamentos de outros € ur- gindo & aceitacdo das crencas ortodoxas; permitiam aos cristios conhe- 9, A palavra “gndsico” vem do termo grego gnosis, que significa *conbecimenta”. O nostcismo se aplica a um grupo de relgibes surgidas do século Il em diante que enfatzava a importncia de receber 0 conhecimento secreto para savarse do mal: 0 mundo material. 40 (© QUE JESUS DISSE? cer 0 verdadeiro sentido de outros escritos, orientando 0 pensar, 0 ado- rar, 0 comportar-se. Os livros foram absolutamente centrais para a vida dos primeiros cristaos. A FORMAGAO DO CANON CRISTAO Por fim, alguns dos livros cristdos passaram a ser considerados nao ape- nas leitura importante, mas posigio oficial para as crengas e as praticas dos cristaos. Eles vieram a configurar as Escrituras. Os inicios de um canon cristao A formagio do canon cristo das Escrituras foi um longo e intricado pro- cesso. Nao precisamos descer a todos os detalhes aqui." Como jé men- cionei, de algum modo, os eristaos comegaram com um c4non no qual 0 fundador de sua religiao era um mestre judew que aceitava a Torah como eseritura autorizada vinda de Deus ¢ que ensinava a seus seguidores a in- terpretagio dessa mesma Torah. Os primeios cristdos eram seguidores de Jests que aceitavam os livros da Biblia judaica (que ainda nao fora es- tabelecida, de uma vez por todas, como um “canon”) como sua propria escritura. Para os escritores do Novo Testamento, incluindo nosso mais antigo autor, Paulo, as “escrituras” apontavam para a Biblia judaica, a coletanea de livros que Deus dera a seu povo e que predizia a vinda do Messias, Jesus. Contudo, logo depois, os cristdos passaram a aceitar outros escritos a0 lado das Escrituras judaicas. Essa aceitacdo pode ter tido origem no ensino autorizado do préprio Jesus, & medida que seus seguidores toma- 10. Para uma diseussio completa, ver: ERMAN, Bart D. Lost christanities: the batles {or scripture and the faiths we never knew. Nova lorque: Oxford University Press, 203. cap. 2, Mais informagies sobre todo © processo, ver: GAMBLE, Harry. The New Testament canon: its making and meaning. Filsdélia: Fortress Press 1985, Para 0 relato- ppadrio academicamente autorizado, ver: METZGER, Bruce M. The canton of the New Testament: its origin, development and significance. Oxford: Clarendon Press, 1987. ‘OS INICIOS DAS FSCRITURAS CRISTAS. ram a sua interpretagao das escrituras como dotada da mesma autorida- de conferida as palavras das proprias escrituras. Jesus pode ter estimula- do essa compreensio pelo modo como parafraseava alguns de seus censinamentos. No Sermao da Montanha, por exemplo, vé-s¢ Jesus eX: pondo leis dadas por Deus a Moisés ¢ depois dando sua prépri ‘radical interpretacao delas, indicando que a sua interpretagio ¢ a autoriza- da. Isso fica patente nas assim chamadas Antiteses registradas em Mateus, capitulo 5. Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: ‘Nao cometereis homicidio" [um dos Dez Mandamentos}, eu, porémt, vos digo: todo aquele que se en- colerizar contra seu irmao ou irma esta sujeito a juizo”. O que Jesus diz, em sua interpretagio da lei, surge como tao autorizado quanto a propria lei, Ora, Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: ‘Nao cometerds adultério’ [ou- tro entre os Dez Mandamentos]. Mas ex vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com pensamento de luxtiria em seu coragio ja cometeu adultério com ela”. Em algumas ocasides, com efeito, essas interpretagoes autorizadas das 'crituras contrariam as proprias leis das Escrituras. Por exemplo, Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: ‘todo aquele que se divorciar de sua mulher deve dar-lhe um ztestado de divércio’ [um preceito expresso em Deutero- némio 24,1], mas eu vos digo: todo aquele que se divorcia de sua mulher por algum motivo além de imoralidade sexual leva-a a cometer adultério, e todo aquele que se casa com uma mulher divorciada comete adultério”, dificil distinguir como se pode seguir 0 mandamento de Moisés de dar um atestado de divércio se, de fato, 0 divércio nao é uma opsao. Em todo caso, os ensinamentos de Jesus deviam ser considerados to autorizados quanto os pronunciamentos de Moisés — ou seja, tanto quan~ 10 08 ensinamentos da prépria Torah. Posteriormente, isso vai se tornando cada vez mais claro no perfodo do Novo Testamento, no livro de 1 Timé- tc0, atribuido a Paulo, mas freqiientemente considerado pelos especialistas, como tendo sido escrito, em nome de Paulo, por um seguidor tardio. Em 1 Timéteo 5,18, 0 autor urge seus leitores a pagar aqueles que servem de mi! nistros no meio deles e fundamenea sua exortacio citando “as escrituras”. (0 que se deve nocar é que ele cita, ento, duas passagens, uma que se en- contra na Torah {Nao amordagaras o boi que pisoteia”, Deuterondmio 25,4) e outra quese encontra nos lébios de Jesus (“Um operirio é digno de seu salério”, Lucas 10,7). Dé a impressio de que, para esse autor, as pala- vras de Jesus jé esto no mesmo nivel das Fscrituras. a (© QUE JESUS DISSE? E nao 56 os ensinamentos de Jesus so considerados escrituristicos por essa segunda ou terceira geracio de cristdos. Os escritos dos seus apéstolos também o eram. Temos demonstragio disso no dltimo livro do Novo Testamento a ser escrito, 2 Pedro, um livro que muitos criticos es- pecializados acreditam nao ter sido realmente escrito por Pedro, mas sob pseuddnimo, por um de seus seguidores. Em 2 Pedro 3, 0 autor faz refe- réncia a falsos mestres que deturpam o sentido das cartas de Paulo para levé-las a dizer 0 que elas nao querem dizer: “assim como o fazem com o restante das escrituras” (2 Pedro 3,16). Conelui-se que, aqui, as cartas de Paulo esto sendo consideradas escrituras, Logo depois do periodo neotestamentério, alguns escritos cristos pas- sam a ser citados como textos dotados de autoridade sobre a vida ¢ as crengas da Igreja. Um exemplo excelente é a carta escrita porPolicarpdj 0 supramencionado bispo de Esmirna, no inicio do século IL. A igreja de Fi- lipos solicitou a Policarpo conselhos, particularmente quanto a um caso envolvendo um dos lideres manifestamente implicado em alguma espécie de ma gestfo financeira dentro da Igreja (possivelmente desvio de dinhei- ro). A carta de Policarpo aos Filipenses, que ainda sobrevive, é intrigante por uma série de raz6es, especialmente por sua propensao a citar antigos escritos dos cristaos. Em apenas catarze breves capftulos, Policarpo cita mais de cem passagens retiradas desses escritos antigos, declarando sua. autoridade sobre a situaco que os filipenses estavam enfrentanda (em contraste com apenas doze citagdes.das escrituras judaicas), A determina- da altura, ele parece classificar a Epistola de Paulo aos Efésios como escri- tura. Mais freqientemente, ele simplesmente cita ou alude a escritos anteriores, declarando sua posigio de autoridade sobre a comunidade."* O papel da liturgia crista na formagao do céinon Sabemos que, algum tempo antes da carta de Policarpo, os cristdos ou- viam as Escrituras judaicas serem lidas durante seus cultos de adoracio. © autor de 1 Timéteo, por exemplo, exorta a que o destinatirio da car- 11, Para uma tradugdo recente da carta de Policarpo, ver: FHRMAN, Bact D, The Apostolic Fathers. Cambridge: Harvard University Press, 2003. v. 1, (Loch Classical Library) (0S INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS ta “preste muita atengio 4 leitura [publica], 4 exortagdo e ao ensino” (4,13). Como vimes, no caso da carta aos Colossenses, parece que as car- tas escritas por cristias também eram Jidas para as comunidades reuni- das. E também sabemos que, em.meados.do século Il, grande parte dos, cultos ctistios de adoragio implicavam a leitura publica das Escrituras. Por exemplo, em uma muito discutida passagem dos escritos do apologe- ta ¢ intelectual cristio Jus 4 to da Igreja implicava em sua cidade natal, Roma: No dia chamado do sol [Domingo], todos aqueles que vivem nas ci- dades ou no campo retinem-se em um s6 lugar e lem as memorias dos apéstolos ou os escritos dos profetas, tanto quanto o permita o tempo: trazem pao e vinho: depois, quando o leitor para, "9 presides oralmente e exorta & imitacao dessas boas coisas {1 Apol., 67). femos um vislumbre do que o cul- ‘Tem-se a impressio de que 0 uso litirgico de alguns textos cristiios — por exemplo, “as memérias dos apéstolos”, que eram geralmente enten- nte da maioria dos cristios, de modo que passaram a ser considerados, tanto didas como os Evangelhos — conferiu-Ihes mais alta posigao di quanto as Escrituras judaicas (“os escritos ¢ os profetas”), textos dota- dos de autoridade. O papel de Marciao na formagio do cénon Podemos tragar a formagao do canon cristo das Escrituras ainda com mais precisio a partir das provas subsistentes. Ao mesmo tempo que Jus- tino escrevia em meados do século II, outro cristéo proeminente também estava ativo em Roma: o fildsofo-mestre Marcio, posteriormente decla- rado herege.” Marcio é uma figura, sob muitos aspectos, intrigante. Ele viera da Asia Menor para Roma depois de ter feito fortuna, certamente, no ramo da constcugao naval. Depois de ter chegado a Roma, fez uma enorme doacio a Igreja romana, provavelmente, em parte, para obter © seu favor, Durantecinco anos permaneceui em Roma, empenhando muito de seu tempo na busca da compreensio da fé crista e desenvolvendo mui- tos dos pormenores dela em seus muitos escritos. Mas, como veremos, a 12, Para maioresinformagies sobre Matcifo ¢ seus escritos, ve: EHRMAN, Bart D. Lost christianities, op. cit.,p. 103-108. a Sut aaa 44 (© QUE JESUS DISSE? parte mais influente de sua produgao literaria nao foi o que ele escreveu, ¢ sim 0 que editou. Marcio foi o primeiro cristo que |produzido um " real das Escrituras — ou seja, uma selegao de li- Wwros que, segundo ele, constituiam a lista dos textos sagrados da fel, Para compreender bem essa tentativa inicial de estabelecer 0 canon, precisamos conhecer um pouco 0 ensinamento proprio de Marciao. Ele se dedicara completamente 8 vida e aos ensinamentos do apdstolo Paulo, a quem considerava 0 jinico “verdadeiro” apéstolo desde os primérdios da igreja. Em algumas de suas cartas, tais como a carta aos Romanos e a car- ta aos Gélatas, Paulo ensinara que s6 se mantém de pé diante de Deus quem recebeu a fé em Cristo, nfo quem cumpre qualquer das obras pres critas pela lei judaica, Marcio apropriou-se dessa diferenciagao entre a lei dos judeus ea fé em Cristo para chegar Aquilo que considerava sua conchi- so légica: a de que \MistingSabsoluca entre a lei, de um lado, € _o evangelho, de outro, De fato, a lei e 0 evangelho eram tio distintos que tos dois seguramente nio poderiam provir do mesmo Deus,/Marcitio che- gou entlo A conclusao de que o Deus de Jesus (¢ de Paulo) nao era, portan- 10,0 \ntigo Testamento, Para ele, de fato, havia dois deuses distintos: o_Deus dos judeus, que criou o mundo, escolheu Israel para set seu povo ¢ Ihe deu sua severa lei; © 0 Deus de Jesus, que enviou Cristo ao mundo para salvar o povo da colérica vinganga do Deus judeu eriador. Marcio acreditava que essa era a autocompreensio de Jesus, ensina- da pelo préprio Paulo e, portanto, naturalmente, seu cdnon incluia as dez cartas de Paulo as quais teve acesso (todas as que figuram no Novo Tes- tamento, exceto as epistolas pastorais de 1 e 2 Timéteo e Tito}; ¢ visto que Paulo as vezes se referia a um “Evangelho”, Marciao incluiu um Evangelho em seu canon, uma versio do que hoje é 0 Evangelho de 1 cas. F isso era tudo. O cénon de Marcio consistia em onze livros: no havia nele o Antigo Testamento, apenas um Evangelho e as dez Episto- las. Mas nao s6 isso: Marcio estava convicto de que falsos crentes, que nao tinham a sua mesma compreensio da fé, tinham transmitido esses onze livros por meio de cépias, acrescentando aqui trechos e partes em vista de acomodar as suas proprias crengas, inclusive a *falsa” nogdo de que © Deus do Antigo Testamento era também 0 Deus de Jesus. Por isso, Marciao “corrigiu” os onze livros de seu canon editando as referéncias a0 Deus do Antigo Testamento, ou a criagio como obra do verdadeiro Deus, ou a Lei como algo que devesse ser seguido. ec itecedin. Brilieds Apes a LE aaa a5 (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS) ‘Como veremos, a tentativa de Marcio de fazer com que aqueles textos aque considerava sagrados se tornassem mais conformes a0 seu ensino por meio de mudangas ndo era sem precedentes, Tanto antes como depois dele,| _9s.copistas dos primérdios do cristianismo, de vex em quando, rnudavam { fergé-los a dizer o que eles achavam que tinham de dizer. O canon “ortodoxo” depois de Marcio Muitos pesquisadores esto convietos de que exatamente em oposigio 1a Marciao que outros cristios passaram a se dedicar mais 3 definigio dos contornos do qce viria a se tornar o canon do Novo Testamento. F de se notar que na época de Marcio propriamente dita, Justino poderia falar muito vagamente da “memé em indicar quais desses livros (provavelmente os Evangelhos) eram aceitos nas igrejas ou por ia dos apéstolo: qué, 20 passo que cerca de trinta anos depois, outro escritor cristo, tam- bem em oposi¢ao a Marcio, assumiu uma atitude de muito maior auto- ridade, Era Jzeney, 0 bispo de Lido da Gélia (a Franga moderna), que escreve uma obra em cinco tomos contra hereges como Marcio ¢ os gnésticos ¢ que mantinha idéias muito claras sobre quais livros deviam. ser listados entre os Evangelhos canénicos. Numa passagem freqiientemente citada de sua obra Contra a: .sias [Adversus haereses|, Ireneu diz que no sé Matcido, mas também tros “hereges” tinham concluido equivocadamente que s6 um au.au- tro dos Evangelhas devia ser aceite como.escritura: os cristéos judeus, que defendiam a validade continua da lei, usavam apenas Mateus; al- guns grupos que sustentavam que Jesus ndo era realmente o Cristo s6 accitavam 0 Evangelho de Marcos; Marcido e seus seguidores aceitavam apenas (uma versio de) Lucas ¢ um grupo de gnésticos chamados valen- tinianos s6 aceicava Jodo. Todos esses grupos labutavam em erro, con- tudo, porque nao é possivel que os Evangelhos possam ser mais nem menos em niime- 70 do que sao. Pois, dado que hd quatro regides do mundo em que vive mos, quatro ventos principais, enquanto a Igreja esté dispersa pelo mundo e 0 fundamento ea base da Igreja é 0 Evangelho... é adequado que ela deva ter quatro colunas (Contra as heresias, 3.11.7), Em outras pelavras, quatro cantos da terra, quatro ventos, quatro co- unas e, necessariamente, portanto, quatro Evangelhos. Alena by fee tc Bom cee MOC AN Rane 20° 2 46 (© QUE: JESUS DISSE? Por isso, perto do final do século Il, havia cristios que insistiam que Mateus, Marcos, Lucas e Joao eram os Evangelhos; nem mais, Os debates acerca dos contornos do canon persistiram por vérios sécu- los, Parece que 0s cristos em geral estavam interessados em saber que li- vyros aceitar como autorizados, de modo a poderem saber que livros deviam ser lidos em seus cultos de adoragao e, relativamente a isso, em que livros se poderia confiar como orientagao do que crer e de como proceder. IAs decisdes sobre quais livros deviam, em iitima instancia, ser considera~ [dos canénicos nao eram automaticas ou isentas de problema; 05 debates {cram longos e exaustivos, por vezes, asperos. Hoje, muitos cristios podem Jachar que o cinon do Novo Testamento simplesmente surgiu um dia, logo ‘apés a morte de Jesus... nada mais distante da verdadg) Tendo isso claro, podemos identificar a primeira vez em que um cristao listou os vinte ¢ sete livros de nosso Novo Testamento — nem mais, nem menos. Por mais sur- preendente que possa parecer, esse cristo escrevia na segunda metade do ‘éulo IV] mais ou menos trezentos anos depois que os livros do Novo Tes- tamento tinham sido escritos. © autor foi um poderoso bispo de Alexan- dria chamado Atandsio. No fan 367°¥.c], Ata sastoral anual as igrejas egipcias sob sua jurisdico ¢, nela, incluiu um con- [selho acerca de quais imser Jidos como escritura nas igrejas. Fle relaciona nossos vinte e sete livros, com exclusio de todos os demais. Essa € a primeira instancia que chegou ao nosso conhecimento de alguém decla- rando que esse nosso conjunto de livros era 0 Novo Testamento, Mas nem ¥opr6prio Atané por todas. Os debates |somtinuaram durante décadas, durante séculos até. Qs livros que hoie cha |jmamos de Novo Testam sm reunidos em_um cénon ¢ declara~ “dos Escrituras, em instincia dltima e final, sem que se passassem c | de anos depois que.os textos em si tinham sido produz ee su sua carta sio resolveu a questo de Os LEITORES DOS ESCRITOS CRISTAOS Na segio anterior, nossa discussio se concentrou na canonizacao das ¢s- crituras. Mas, como vimos, muitos tipos de livros estavam sendo escritos ¢ lidos por cristios nos primeiros séculos, e no apenas os livros acolhi- dos no Novo Testamento. Havia outros evangelhos, epistolas e apocalip- Ff er pn BLES aad OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS ses; havia registros de perseguigdes, atas de martirio, apologias da fé, ins- trugdes eclesiais, ataques aos hereges, cartas de exortago ¢ ensino, expo- sigdes das escrituras — toda uma gama de literatura que ajudava a definir o cristianismo, levando-o a se tornar a religido que veio a ser. Se- ria de grande valia, a essa altura de nossa discussao, fazer uma pergunta basica sobre toda essa literatura: quem realmente, os seus leitores?” No mundo moderno, essa pareceria uma pergunta muito esquisita. Se cettos autores estio escrevendo livros para os cristdos, entdo os que | riam esses livros seriam, é 0 que se depreende, os cristdios. Mas quando a pergunta se aplica 20 mundo antigo, ela tem um alcance especial porque, zno.mundo antigo, a maioria das pessoas nao sabia Jer. © letramento é parte integrante da vida para nds que vivemos noe?) _dente moderno, Lemos o tempo todo, todo dia. Lemos jornais e revistas, livros de todos os tipos — biografias, romances, textos praticos, auto- ajuda, livros de dieta, religiosos, filoséficos, histéria, memoria, e por ai vai. Mas nossa atual intimidade com a linguagem escrita tem muito pou- co a ver com as praticas de leitura ¢ as realidades da Antigitidade. Estudos sobre 0 letramento demanstraram que aquilo que hoje co nhecemos por letramento universal é um fenémeno moderno que sé sur- giu com a adventoda Revolugdo Industrial." Foi apenas quando as .\ nagées divisaram beneficio econdmico na habilidade de leitura de todos e de cada um que se decidiram a investir recursos macigos — especial: © ‘mente tempo, dinheiro e recursos humanos — requeridos para assegurar que todos recebessem alfabetizagao be triais, os recursos eram prioritariamente alocados para outras coisas, € alfabetizacao nio teria auxiliado nem a economia nem o bem-estar da sociedade como um todo. Como conseqiiéncia disso, até o perioda mo- ,/ derno, quase tocas.as socieddadles apresentavam apenas uma pequena mi- noria da populacdo capaz de ler e escrever. Isso se aplica até mesmo as sociedades antigas que estimulavam a lei- tura € a escrita — por exemplo, a Roma dos primeiros séculos cristaos, ou até mesmg a Grécia do periodoclissiea, © melhor ¢ mais inluentees-» Ueno Gente eu 9 adbnulo sh Psa Seshnrtoel jca. Nas sociedades nao-indus- 13, Ver especialmente: HARRIS, William V, Ancient literacy. Cambridge: Harvard University Press, 1989, Reon tS 48 (0 QUE JESUS DISSE? tudo sobre o letcamento nos tempos antigos, feito pelo professor da Uni- versidade de Columbia, William Harris, indica que nos tempos e lugares mais propicios — por exemplo, Atenas altura do periodo clissico do século V A.8.c, —, as taxas de alfabetizacio raramente atingiam de 10 a populagdo. Transpondo os mimeros, isso significa que, nas me- lores condigées, de 85 a 90% da populacio nao podia ler ou escrever. No século I cristo, na época do Império Romano, as taxas de alfabeti- zasio podem ter sido mais irtisorias ainda."* ‘Conseqiientemente, mesmo definir 0 que significa ler e escrever se tor- ‘na uma questo complicada. Muitas pessoas que podem ler sao incapa- zes de redigit uma sentenga, por exemplo. Eo que significa ler? As pessoas podem ser consideradas alfabetizadas se ente ‘ sentido das tirinhas humoristicas, mas nao 0 do editorial de um jornal? As pessoas podem afirmar que s4o capazes de escrever se sabem assinar 0 nome, ‘mas ndo conseguem copiar uma pagina de texto? problema da definicao do que é letramento se torna ainda mais pronunciado quando voltamos ao mundo antigo, onde os proprios an- tigos tinham dificuldade de definir o que significa ser_alfabetizado. Um dos exemplos mais famosos vem do Egito, no século Il cristo. Em qua- se toda a Antigitidade, mesmo que a maioria das pessoas fosse incapaz de escrever, havia “leitores” e “escritores” locais que ofereciam seus ser: vigos e eram contratados por pessoas que precisavam fechar negécios que exigiam lidar com textos escritos: recibos de impostos, contratos le- ais, licengas, cartas pessoais e assim por diante. No Egito, havia funcio- nirios piblicos locais aos quais se confiava a rarefa de supervisionar algumas rotinas governamentais que exigiam a escrita. Essas nomeagdes para escribas locais (ou das aldeias) geralmente ndo eram disputadas: assim como para tantos postos administrativos “oficiais”, as pessoas que os assumiam tinham de pagar pela nomea esses empregos eram ocupados pelos mais ricos da sociedade porque granjeavam uma espécie de status, mas pressupunham o dispéndio de fundos pessoais para poder ser ocupados. Jo. Dito de outro modo, 14, Para as raxas de alfabetizagdo entre os judeus na Antighidade, ver: HEZSER, Catherine. Jewish literacy in Roma Palestine. Tubingen: MobefSiebeck, 2001. SUES liao (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS (O exemplo que ilustra a dificuldade de definir letramento envolve um escriba egipcio chamado Petaus, proveniente da aldeia de Karanis no ‘Alto Egito. Como geralmente ocorria, Petaus foi designado para devem penhar fungdes administrativas em outra aldeia, Prolemais Hormou, onde lhe apresentaram um panorama das questdes financeiras e agrarias. No ano 184 £.c., Petaus precisou dar resposta a algumas queixas contra outro escriba local, origindrio de Ptolemais Hormou, um homem chama- do Ischyrion, que fora nomeado para assumir em outra localidade as fungdes de escriba. Os aldedes sob a jurisdigao de Ischyrion estavam irri- tados pelo fato de ele nao poder cumprir suas fungdes, visto que, acusa- vam eles, era “analfabeto”. Para dirimir a disputa, Petaus argumentou que Ischyrion nio era de todo analfabeto, porque realmente assinara 0 . Em outros termos, proprio nome numa série de documentos oficia para Petaus, “letramento” significava simplesmente a capacidade de al- guém assinar 0 proprio nome. © proprio Petaus teve alguma dificuldade para fazer um pouco mais ‘que assinar 0 nome. Ao que tudo indica, temos o rascunho de um papi- ro no qual cle teria praticado a sua escrita, no qual escreveu, doze vezes, as palavras {em grego) que tinha de escrever na assinatura de documen- tos oficiais: “Eu, Petaus, copista do lugar, examinei isso”. estranho & que ele copiou as palavras corretamente nas primeiras quatro vezes, mas, na quinta, deixcu de fora a primeira letra da palavra final e nas sete ve- zes subseqiientes continuou a deixar a letra de fora, 0 que demonstra que cle nao estava escrevendo palavras que sabia como escrever, mas que es- tava simplesmente copiando a linha anterior. Evidentemente, no conse- guia ler palavras to simples que estava inscrevendo na pagina. E olhem que era ele o escriba oficial local!" Se nés inscrevemos Petaus no rol das pessoas “etradas” da Antigi dade, quantas pessoas podiam realmente ler textos ¢ entender o que eles diziam? impossivel chegar a um niimero exato, mas parece que a por- centagem nao seria muito alta, Ha razbes para pensar que, nas comuni- 15, Ver discussdo em: HAINES-EITZEN, Kim. Guardians of letters: Iteracy, power, and the transmitters of early Christian literature. Nova lorque: Oxford University Press, 2000. p. 27-28. Ver também os artigos de H. C. Youtie que ela cita ali 50 (0 QUE JESUS DISSE? dades cristas, as taxas podiam ser_ainda mais baixas do que na papula- gio geral. Isso porque se constata que 0s cristios, especialmente nos pri mérdios do movimento, provinham em sua maioria das classes menos letradas e mais baixas. Naturalmente, houve excecdes como 0 apéstolo Paulo e 0s outros autores cujas obras constituiram o Novo Testamento e que eram, obviamente, escritores habilidosos; mas em sua maioria, os intes das fileiras dos analfabetos. Isso € seguramente verdade para os cristos da primeira hora, que te- riam sido os apéstolos de Jesus. Nos relatos dos Evangelhos, descobri- mos que a maioria dos discipulos de Jesus eram simples pessoas nisticas da Galiléia — pescadores pouco instruidos, por exemplo. Dois deles, Pe- dro ¢ Jodo, sio clacamente chamados de “analfabetos” no livro dos Atos dos Apéstolos (4,13). O apéstolo Paulo indica a sua congregagio corin- tia que “nao muitos de vocés eram sabios segundo os padres humanos” (ac instruidos, no muitos. A medida que adentramos o século Il cristéo, as, ristos eram prove intios 1,27) — o que deve significar que bem poucos eram bem coisas nao parecem sofrer grandes mudangas. Como jé apontei, alguns intelectuais se converteram a fé, mas a maioria dos cristaos vinha das classes mais baixas, nao instruidas. Provas disso vém de varias fontes. Uma das mais interessantes vem de um adversario pagio do cristianismo chamado Celso, que viveu no final do século II, Celso escreveu um livro chamado A palavra verdadeira, no qual atacava 0 cristianismo em varias frentes, afirmando set uma teligito insensata e perigosa que devia ser varrida da face da Terra. Infelizmente, nao possuimos A palavra verdadeira na integra; tudo 0 que temos sio ci- tages dela em escritos do famoso padre da igreja,[Origeneg, que viveu cerca de setenta anos depois de Celso ¢ a quem se pediu que produzisse uma réplica as acusagées que ele fizera. O livro de Origenes, Contra Cel- so, chegou até nds na integra é nossa principal fonte de informagao so- bre 0 que 0 erudito critico Celso dizia em seu livro diretamente contra os cristios."* Uma das principais caracteristicas do livro de Origenes € que cle cita extensamente a obra anterior de Celso, linha por linha, antes de 16. Vera tradusdo-padrlo para o inglés que sigo aqui: CHADWICK, Henry. Origen’s: “Contra Celsun:". Cambridge: The Cambridge University Press, 1953. (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS apresentar a refutagao propriamente dita. Isso nos permite reconsteuir com exatidao expressiva as imputagdes de Celso, Uma dessas impuracies era que os cristdos so pessoas ignorantes, de baixa extracdo. O que ¢ impressionante é que, em sua réplica, Origenes nao nega isso. Atentemos para as seguintes acusagdes langadas por Celso: Peal isa palavra de ordem deles: para trds quenn tem cultuzal quer tem sabedoria, quem tem discernimento! Quantas recomendagdes perversas para nés! Mas se houver algum ignorante, insensato. iucslta, uma .crian- (a, que se aproxime.com coragem! (Contra Celso, 3.44). Mas eis nas pracas piblicas, suponho eu, aqueles que divulgam seus se- gredos e pedem esmolas. Jamais se aproximariam de uma assembléia de homens prudentes com a audacia de nela revelar seus belos mistérios. logo que percebem a presenca de adolescentes, um bando de escravos, wm. juntamtento de idiotas, para lé correm.a se gxibir! (Contra Celso, 3.50). Eis nas casas particulares, cardadores, sapateiros, pisoeiros, pessoas das mais incultas e rudes. Diante de mestres cheios de exberiéncia e dis- cernimento nao ousam abrir. boca. Mas é 56 surpreenderem seus filhos acompanhados de mulheres incultas ¢ idiotas, comecam a falar coisas es- tranhas, sent corsideracao com o pai ou com os preceptores. nao passam de impertinentes estiipidos... Se quiserem, basta deixarem la © pai e os preceptores, vir com as mulheres incultas ¢ os companheiros de brinquedos @ ofiina do teceldo, & tenda do sapateiro ou & banca do pi- soeiro para atingirem a perfeicao. Eis ai com que palavras os persuadem! (Contea Celso, 3.55). Origenes retruca que.os verdadeiros crentes cristios sio, de fato, si- bios (e alguns sao, de fato, muito bem educados}, mas sio sibios no que se refere a Deus, no no.que-se-refere as coisas deste mundo. Em outros termos, ele no nega que a comunidade cristl seja amplamente constitu- da de classes de baixa extracio, insteuidas. <— 1§ Outros A LEITURA PUBLICA NA ANTIGUIDADE CRISTA Endo, paréce que temos uma situacio paradoxal no cristianismo dos ptimérdios. Ele era uma religido do livro, com escritos de todos 0s tipos que se demonstravam como da mais alta importincia para quase todos on (© QUE: JESUS DISSE? ‘os aspectos da fé. Mesmo assim, a maioria das pessoas nao podia ler es- ses escritos. Como podemos compreender esse paradoxo? De fato, a situagao nao é de todo estranha, se lembrarmos 0 que ja se explicou antes, que por toda a Antigiiidade comunidades de todos 08 ti pos usavam os servigos dos letrados em favor dos iletrados. Porque, no undo antigo, “lee” um ly ” dividualmentes significava lé-lo em voz alta, para os demais. Alguém po- deria afirmar ter lido um livro quando, na realidade, 0 ouvira ser lido por outros. Aparentemente, s6 podemos concluir que livros —importan- tes como eram para o movimento cristo dos primérdios — eram quase sempre proclamados em situagGes sociais, como, por exemplo, na situa- Gio de culto. Aqui, precisamos recordar que Paulo informa seus ouvintes tessaloni- ses que sua “carta deve ser lida para todos os irmaos ¢ irmas” (1 Tes- salonicenses 5,27). E essa leitura era feita em voz alta, em comunidade. E 0 autor de Colossenses escreveu: “E quando vocés tiverem lido esta epistola, assegurem-se de que ela seja lida na igreja dos laodicenses e que vocés leiam a carta escrita a Laodicéia” (Colossenses 4,16). Lembremos o relato de Justino Marti, segundo 0 qual “no dia chamado Do- mingo, todos os que viver na s6 lugar e que as memérias dos apdstolos ou os escritos dos profetas se- jam lidos, tanto quanto 0 tempo o permita” (I Apol. 67). O mesmo pon- to 6 enfatizado em outros escritos cristaios dos primérdios. Por exemplo, no livro do Apocalipse, “Bem-aventurado é aquele que Ié as, palavras da profecia e bem-aventurados so aqueles que ouvem essas pa- Javras” (Apocalipse 1,3) — obviamente referindo-se & leitura pablica do texto, Num livro bem menos conhecido chamado 2 Clemente, datado de meados do século II, 0 autor indica, referindo-se a suas palavras de exor- taco: “Estou lendo para vocés uma solicitagio de prestar atengao a0 tambéi cidades ou nos campos retinam-se em um nos dit que foi escrito, de modo a poderem salvar a si mesmos e aquele que é © seu leitor” (2 Clemente, 19.1). Em suma, 0s livros que aleangaram o vértice de importancia no cris- tianismo dos inicios eram, em sua maioria, lidos em voz alta por aqueles que sabiam les, para que os analfabetos os pudessem ouvir, entender e, ‘até mesmo, estudi-los. A despeito do fato de o cristianismo dos primér- dios se constituir amplamente de crentes analfabetos, ele sempre foi uma religido altamente literdria. (OS INICIOS DAS ESCRITURAS CRISTAS 53 Contudo, hé outras questdes fundamentais que necessitam ser discu- tidas. Se os livros eram de tao fundamental importéncia para o eristianis- mo dos primérdios, se foram lidos pelas comunidades cristas localizadas ao redor do Mediterraneo, como € que as comunidades os adquiriam? Como eles eram postos em circulagio? Lembremos que isso acontecia numa época em que ainda nao existiam a editoragio eletrdnica, os meios eletrOnicos de reprodugio e nem mesmo o tipo mével. Se as comunida- des dos crentes abtinham c6pias dos varios livros cristaos em circulagao, como as adquiriam? Quem as fazia? E, 0 mais importante para o tema maximo de nossa pesquisa, como podemos (ou como podiam ele: ‘que as cépias objidas cram exatas, que naa tinham sido modificadas no processo de reproducio? Fy porta ease, yleeaer it se BP Aoabal pecs Say obdecesccn sachin rg rs ihn “oye. ae oe Be be pene wat lira etary Uma pagina do Cédice Vaticano, do século IV, com wna nota marginal (entre as colunas 1 2), na qual wn copista medieval critica acerbamente wm predecessor por ter alterado o texto: “Insensato e desonesto, deiee 0 texto antigo, nao o altere!” 2 OS COPISTAS DOS ESCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS mo vimos no capitulo 1, desde 0 seu inicio, 0 cristianismo foi uma religido literdria, com livros de todos os tipos desempenhando um papel fundamental na vida e na fé das comunidades cristas que flores- ciam em torno do Mediterréneo. A pergunta é como essa literatura cris- 1H era posta emcirculagao e distribuida? A resposta, naturalmente, é que para.um livco ser amplamente distribuido, ele tinha de ser copiado. A COPIA NO MUNDO GRECO-ROMANO No mundo antigo, a ‘inica maneira de copiar um livro era fazé-lo letra a letra, uma palavra'por vee 1m process ia alternativa. Acostumados como somos hoje a ver ta :iltiplas c6pias de um livro expostas nas prateleiras das mais importan- tes livearias do pais poucos dias depois de ele ter sido lancado, simples- ‘mente aceitamos que uma cépia de, digamos, O eddigo da Vinci sera cexatamente igual a qualquer outra c6pia. Nem uma s6 palavra sofrerd variagio — ele serd exatamente 0 mesmo livro, nao importa que c6pia leiamos. No mundo antigo nao era bem assim. Assim como nao podiam Porter vine oun bo mt he Nes gor me ge on pe babi be! an pBpen ele k Mem yarn sere 56 (© QUE JFSUS DISSE? ser facilmente distribuidos em massa (no havia caminhées, avi6es ou li- nhas de trem), os livros no podiam ser produzidos em série (no havia imprensa). E visto que tinham de ser copiados & mao, um por vez, deva- gar, em seus minimos pormenores, a maior parte dos livros no era pro~ duzida em massa, Os poucos livros eram produzidos em cépias miiltiplas, que diferiam entre si, porque os copistas que copiavam textos inevitavel- mente faziam alteracdes neles — mudando as palavras que copiavam, tanto por acidente (por causa de um escorregio da pena ou por alguma outra falta de cuidado) como por decisio consciente (quando 0 copista alterava propositadamente as palavras que copiava). Quem quer que les se um livro na Antigisidade nunca estava cem por cento seguro de que ele ‘ow ela estavam lendo o que 0 autor escrevera. Palavras podiam ter sido trocadas. E, de fato, podiam mesmo, mesmo que s6 um pouco. Hoje, um editor langa determinada tiragem de um livro para determi- nado piblico distribuindo-a por meio das redes de livrarias. No mundo antigo, dado que os livros nao eram produzidos em massa ¢ que nao ha- via editoras ou livrarias, as coisas eram bem distintas.' Geralmente, um autor escreveria um livro e, possivelmente, teria um grupo de amigos para Jé-lo ou ouvi-lo ser lido em vor alta. Isso poderia provocar mudangas no contedido do livro. Depois, quando 0 autor tivesse concluido 0 livro, ele ou ela mandariam fazer algumas cépias para uns poucos amigos conhe- cidos. Era esse 0 ato de publicac4o, quando o livro deixava de estar sob controle exclusivo do autor e passava para as mios de outros. Se esses ou- ‘ros quisessem mais c6pias — possivelmente para presented-las a outros membros da familia ou a amigos —, teriam de mandar, digamos, um co- pista local que vivia de fazer cépias produzir mais, ou um escravo letrado que copiasse textos como parte de seus afazeres domésticos. Sabemos que esse proceso podia ser enlouquecedoramente lento e im- preciso, que as cépias produzidas desse modo podiam acabar se tornando muito diferentes dos originais. Os prdprios escritores antigos nos dio tes- temunho disso. Aqui, mencionarei apenas dois interessantes exemplos do ss mano Séneca indica que havia uma diferenca entre a ira voltada contra ulo I z.c, Num famoso ensaio sobre o problema da ira, 0 filésofo ro- 1. Para aprofunday, ver: GAMBLE, Harry Y, Books and readers in the early Church: a history of early Christan texts. New Haven: Yale University Press, 1995. cap. 3 (05 COPISTAS DOS ESCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS aquilo que nos causou mal e a ira contra aquilo que nao nos faz mal al gum, Para dar um exemplo da iiltima categoria de ira, ele menciona “al- gumas coisas inanimadas, como 0 manuscrito que geralmente afastamos. de nds por estar escrito em letras muito pequenas ou que rasgamos por: que esta cheio de e:ros”* Devia ser uma experincia muito frustrante ler uum texto chocantemente semeado de “erros de imprensa” (isto & de erros dos copistas), tantes que desviavam a atengdo de qualquer um. Um exemplo engracado nos ver dos epigramas do mordaz poeta ro- mano Marcial, que em um poema dizia a seus leitores: Leitor, se algum poema nessas folhas the parecer muito obscuro ou vazado em defeituoso latim, 0 erro nado & meu: 0 copista os corrompe em sua pressa de completar para voce a sua narrativa de versiculos. Mas se voce acha que nao é ele, mas eu que estou em falta, passarei a acreditar que vocé nao tem compreensao. “Olhe ali, veja, aqueles é que sao péssi- mos.” Como se ex tivesse renegado 0 que é simples. Eles sao péssimos, mas voce nao consegue fazer melhor. Copiar textos favorecia as chances de eros manuais; e 0 problema era amplamente reconhecido em toda a Antigiiidade. A COPIA NOS CIRCULOS CRISTAOS PRIMITIVOS Dispomos de uma série de referéncias a prética da c6pia nos textos cristios primitivos.* Uma das mais interessantes provém de um texto popular do io do século I, chamado O pastor de Hermas. Esse livro foi muito lido do século Il 20 século IV cristios, alguns cristéos acreditavam que ele devia ser integrado ao canon das Escrituras. Ele esté incluido como um dos livros do Novo Testamento, por exemplo, em um dos mais antigos manuscritos ain- da subsistentes, o famoso Cédive Sinaitico, do século IV. No livro, um pro~ 2, SENECA, Moral essays. Oxganizaglo e radugio de John W. Basore, Londres: Heine- ‘mann, 1925. p, 221, (Loeb Classical Library. 3. MARCIAL. Epigrams. Organizacdo e tradugio de Walter C. A. Ker. Cambridge: Harvard University Press, 1968. v, 1. p. 115, (Loeb Classical Library) 4. Ver diseussdo completa em: HAINES-EITZEN, Kim. Guardians of letters, op. cit. SUES Tia 37 se (© QUE JFSUS DISSE? feta cristo chamado Hermas recebe uma série de revelagdes, algumas delas a respeito do que esti por vir, outras acerca da vida pessoal comunitéria dos cristios da época. Num trecho inicial do livro (é um livro extenso, maior do que qualquer um dos livros incluidos no Novo ‘Testamento), Her- ‘mas tem uma visio de uma ancia, uma espécie de figura angélica que sim- boliza a Igreja crista e que estd lendo em voz alta um livrinho. Ela pergunta a Hermas se ele pode anunciar as coisas que ouviu a seus companheiros ctistios. Ele replica que nao consegue se lembrar de tudo o que ela leu e the pede “me dé o livro para fazer uma c6pia”. Ela 0 da, e depois ele reporta: Eu o tomei e fui para outra parte do campo, onde copiei todo 0 con- junto, letra por letra, mesmo nao sabendo distinguir as silabas. F, ao fi- nal, quando completei as letras do livro, ele foi de repente arrebatado de ‘minha mao; mas nao vi por quem (O pastor, 5,4). Mesmo sendo um livro pequeno, teve ter sido um processo dificil co- pid-lo letra por letra. Quando Hermas se diz incapaz de “distinguir as si- labas”, pode estar indicando que nao era habilitado para ler — ou seja, que nio era treinado como um copista profissional, como alguém que pu- desse ler textos fluentemente, Um dos problemas com textos gregos anti- 05 (o que incluiria todos os escritos cristios mais primitivas, incluindo.as |do Novo Testamento) é que, quando eram copiados, nao se.usavam mar- /cas de pontuagao, néo se fazia distingao entre miniisculas ¢ maitisculas ¢, o que € ainda mais estranho para leitores modernos, nto havia espagos de ‘separagio entre as palavsas. Esse tipo de escrito seqiiencial é chamado de | scriptuo continua e, € claro, muitas vezes, podia dificultar ler (nem fale- ‘mos em entender) um texto. As palavras godisnowhere poderia significar algo completamente distinto para um crente (God is now here = Deus esta aqui agora) e para um ateu (God is nowhere = Deus nao esté em parte al- ‘guma)* © 0 que significaria dizer nojantardanoitepassadaamesaestavaa- bundante? Isso seria um acontecimento normal ou extraordindrio? Quando Hermas se declara incapaz de distinguir as silabas, esté evi- dentemente querendo dizer que nao podia ler o texto fluentemente, mas que podia reconhecer as letras e, desse modo, copié-las uma a uma. Ob- 5. Tome esse exemplo de empréstimo a Bruce M. Metaget. Ver: METZGER, Bruce Ms EHRMAN, Bart D. The text of the New Testament: its transmission, corruption, and restoration. 4, ed. Nova lorque: Oxford University Press, 2005. p. 22-23. (05 COPISTAS DOS ESCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS viamente, se voce no sabe 0 que est lendo, as possibilidades de com ter erros de transcrigao se multiplicam, Hermas, um pouco mais adiante em sua visio, volta a se referir ao fate de copiar. A anc vem outra vez.a seu encontro e Ihe pergunta se ja entre gou 0 livro que copiou aos lideres da Igreja. Ele responde que ainda nio entregara, ¢ ela the diz: Vocé fez muito bem, pois tenho algumas palavras a acrescentar. Quando eu completar todas as palavras, elas serdo dadas a conhecer por ‘meio de voce a todos os escolhidos. Desse modo, voce escreverd dois li- urinhos e enviard um a Clemente e 0 outro a Grapte. Clemente enviard 0 dele as cidades estrangeiras, porque essa é sua incumbéncia. Mas Grapte admoestaré as vitivas e os drfios. E voce lerd o seu nesta cidade, com os presbiteros que guiam a igreja (Pastor, 8.3). Desse modo, 0 texto que ele copiara tio vagarosamente tem ainda al- guns acréscimos que ele tinha de fazer; e precisava fazer mais duas cépias.. Uma delasiria para um homem chamado Clemente, que pode ter sido uma pessoa conhecida de outros textos como aquele que foi o terceiro bispo da cidade de Roma. Possivelmente isso se deu antes de ele ter-se tornado 0 ca" bbega da Igreia, pois se depreende daqui que ele é um correspondente estra- rnho & comunidade crista de Roma. Seria ele um tipo de copista oficial que copiava os textos dela? A outra cépia devia ir para um mulher chamada Grapte, possivelmente também uma copista, talver alguém que fizesse c6- pias de textos para alguns membros da Igreja em Roma, O proprio Her- mas devia ler a sua c6pia do livro para os cristaos da comunidade (muitos dos quais seriam analfabetos, logo, incapazes de ler 0 texto por si mesmos) — embora seja ce se perguntar como se podia esperar que Hermas fizesse isso se 0 fato de ele ndo poder nem mesmo distinguir as silabas uma das outras nunca ficou esclarecido. Temos aqui, portanto, uma nogao real do que eram as praticas de ¢6- pia na Igreja dos primérdios. A situagao devia ser semelhante nas varias igtejas espalhadas por toda a regio do Mediterrineo, embora nenhuma outra Igreja fosse (provavelmente) tio difundida quanto a de Roma. Poucos membros selecionados atuavam como copistas na Igreja. Alguns dentre eles eram mais habilitados que outros: parece que Clemente tinha como uma de suas atribuigdes a disseminagao da literatura erista; Her- mas desempenha a tarefa simplesmente porque naquela ocasido ela the foi atribuida. As cépias dos textos que eram reproduzidas por esses Snswoo 60 (0 QUE JESUS DISSE? membros letrados da assembléia (sendo alguns deles mais letrados que outros) depois eram lidas para toda a comunidade. (© que mais podemos dizer sobre esses copistas nas comunidades cri ts? Nao sabemos exatamente quem foram Clemente ¢ Grapte, embora tenhamos informagées adicionais sobre Hermas. Ele fala de si mesmo ‘como um ex-escravo (Pastor 1.1). Obviamente, ele era letrado e compa- rativamente muito bem educado. Nao foi um dos lideres da Igeeja em Roma (ndo esta incluido entre os “presbiteros”), embora uma tradigao posterior afirme que seu irmao era um homem chamado Pio, que se tor nou bispo da Igreja em meados do século IL’ Se assim foi, provavelmen- te a familia atingira uma posicao de prestigio na comunidade crista — mesmo Hermas tendo sido outrora um escravo. Visto que, obviamente, apenas pessoas instruidas podiam ser letradas ¢ dado que alguém se ins- truir normalmente significava ter 0 tempo livre eo dinheiro necessirios para fazé-lo (menos aqueles que eram alfabetizados como escravos), pode-se depreender que 0s primeiros copistas cristaos eram os membros mais altamente educados ¢ ricos das comunidades cristis em que viviam. Como vimos, externamente as comunidades cristis, na vastidao do mundo romano, os.textos eram_tipicamente copiados tanto por copistas profissionais como por escravos lercados, aos quais tais trabalhos cram de- “signados dentro de uma casa. Isso significa, entre outras coisas, que as pes soas que reproduziam textos por todo o império nao eram, normalmente, _aguelas que queriam os textos, Os copistas, em geral, reproduziam 08 tex- tos para outros. Uma das mais importantes descobertas recentes dos pes- quisadores que estudam os primeiros copistas cristdos, por outro lado, € {que com eles se dava justamente o oposto. Depreende-se que os cristios ue copiavam os textos eram aqueles que os queriagi— isto €, eles copia- 1 para.uso pessoal efou comunitério ou 0 faziam pata be- neficio de outros em sua comunidade.” Em suma, as pessoas que copiavam (5 primitivos textos cristiios nao eram, em sua maioria, profissionais que copiavam textos em troca de pagamento (cf. Hermas, acima); exam sim- 6. sso se afirma no famoso cinon de Muratori, a mais antiga lista dos livros accitos ‘como “canénicos” por seu autor andnimo, Ver: ERMAN, Bare D. Lost chrstianites, op. cit, p. 240-243, 7. Bssa & uma das conclusbes fundamentais de HAINES-EITZ1 letters, op. gt Jo? 9. Mig ta. ina Orn A hic dae ne Ae nai, Kim. Guardians of YA, eertinn.» Hemipilan eb ptodtes | BOC Is Cal Ces unos BALL a -plesmente pessoas letradas da comunidade cristi que podiam fazer cdpias¢~ (visto que eram alfabetizadas) e queriam fazé-lo. ‘Algumas desses pessoas — ou a maior parte delas? — podem ter sido iderés(das comunidades. Temos motivos para pensar que os lideres cris- © ios dos primérdios estavam entre os membros mais abastados.da ipsa, uma vez que as igrejas geralmente se reuniam nas casas de seus membros Jo havia igrejas edificadas, pelo que sabemos, no decorrer dos dois pri- ‘Imeiros séculos ds Igreja) e $6 as casas dos membros mais abastadas de~ iam ser suficientemente grandes para acomodar tantas pessoas, pois é certo que a maioria das pessoas nos antigos centros urbanos viviam em sculas, Nao é sem sentido concluir que a pessoa que administrava a casa também desempenhava a lideranca da igeeja, como se afirma em varias das cartas cristas que chegaram até nés,/nas quais um autor saudard fulano.de tale “a igreia que sua casa”/ Tais propr acomodagoes mint em sua ietirios abastados provavelmente deviam ser mais educados. Por isso nao é surpresa que cles, is vezes, fossem exortados a “ler” a literatu- ra crist para suas assembléias, como vimos, por exemplo, em 1 Timéteo 4,13: “Até minha chegada, déem especial atengao a leitura [pablical, & exortagio e ao ensino”. E possivel, entao, que os lideres eclesidsticos fos- sem os responsdvcis, ao menos em grande parte do tempo, pela eépia da literatura cristd a ser lida para a assembléia? PROBLEMAS COM A COPIA DOS PRIMITIVOS TEXTOS CRISTAOS Pelo fato de os textos cristaos primitivos nao terem sido copiados por co- pistas profissionais,* pelo menos nos dois ou trés primeiros séculos da igeeja, mas simplesmente pelos membros instruidos das assembléias cris- ‘ts, que podiam e queriam desempenhar essa fungao, podemos esperar es- 48. Por “profissionais" refiro-me a copistas especialmente trcinados e/ow pagos para co piar textos como patte de sua ocupacio. Num periode posterior, os monges nos mos teiros eram especificamente treinados, mas nde eram pagos. Eu os ineluiria no rol dos copistas profissionai 4 prltao qin dus eahiolls ~ pe ees a Ne ovebiee Iyjrnie on (© QUE JESUS DISSE? pecialmente nessas cépias primevas erros comuns em transcrigdes. Sem. tivida, temos fortes evidéncias de que esse era o caso, dado que elas eram motivo ocasional de queixas por parte de cristios que liam essas transc ges e tentavam recuperar as palavras originais dos que os escreveram. Por exemplo, [Origenés) um padre da Igceja do século III, uma ver. regi trou a seguinte queixa acerca das c6pias dos Evangelhos de que dispunh: As diferencas entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela ne- sgligéncia de algum copista ou pela audicia perversa de outros; ou eles |descuidam de verificar 0 que transcreveram ou, no processo de verifica- Gio, acrescentam ou apagam trechos, como mais thes agrade? Origenes nao foi o Gnico a perceber o problema. Seu adversirio pagio, Celso, também 0 notara mais ou menos setenta anos antes, Em sua inves- tida contra o cristianismo e sua literatura, Celso crit copistas cristios pelas transgressSes cometidas em shas préticas de cépia: Alguns figis, como pessoas emibriagadas que se agridem a si mesmas, manipularam o texto original dos evangelhos trés ou quatro vezes, ou até mais, e 0 alteraram para poderem opor negacdes as eriticas (Contra Celso, 2.27). (© que é impressionante nesse caso particular é que Origenes, quando confrontado com uma acusagao externa de uma pritica de eGpia defi- idade nega que os cristaos tenham muda _asperamente os ciente entre 0s cristios, na rea do o texto, a despeito do fato de ele mesmo ter deplorado a circunstancia em outros escritos de sua autoria. A tinica excegao que ele nomeia em sua réplica a Celso envolve varios grupos de hereges, os quais, afirma ‘Otigenes, alteram maliciosamente os textos sagrados."" Ja vimos essa acusacio contra os hereges que, as vezes, modificavam ‘8 textos que copiavam, em vista de torné-los mais de acordo com suas proprias perspectivas, por isso a acusagio foi dirigida contra 0 filésofo- tedlogo do século Il, Marciao, que apresentou seu canon escrituristico de onze livros depois de extirpar os trechos que contradiziam a sua nogdo 9. Comentirio a Mateus 15.14, apud METZER, Bruce M. “Explicit references in the ‘works of Origen to variant readings in New Testament manuscripts”. In: NEVILLE, J THOMSON, Robert W. (Orgs.). Biblical and patristic studies in memory of Robert Pierce Casey. Freiburg: Herdet, 1968, p. 78-79. 10, Contra Celso, 2.27. SUE iia ‘OS COMITAS DOS ESCRETOS CRISTKOS PRIMITIVOS de que, para Paulo, o Deus do Antigo Testamento nao era o Deus verda- deiro [rene] 6 adversirio “ortodoxo” de Marcio, alegava que Marcio fizera o seguinte: Mutilou as epistolas de Paulo, liminando tudo.o que.o apéstalo dis- sera acerca do Deus que criou.o mundo, no sentido de que Ele é 0 Pai de nosso Senbor Jesus Cristo, ainda as passagens dos escritos proféticas.ci- tadas pelo apéstolo com vistas a.nas-ensinar aquilo que cles anunciaram antes da vinda.do Senhor (Contra as heresias, 1.27.2) Marcio nao ers o tinico acusado. Tendo vivido aproximadamente na mesma época de Ireneu, um bispo ortodoxo de Corinto chamado [Dionisig]se lamentava de que falsos crentes tivessem modificado ines- crupulosamente escritos de sua autoria, assim como tinham feito com muitos textos sacros. Quando meus companbeiros cristios me convidaram a escrever car- tas para eles, eu o fiz. Mas esses apdstolos do deménio as encheram de vicios, eliminando algumas coisas e acrescentando outras. Sejam eles amaldicoados! Nao é, pois, de admirar que alguns dentre eles tenham ousado adulterar a palavra do proprio Senhor, quando conspiraram para mutilar meus tao humildes esforcos. Acusagées desse tipo contra “hereges” — de que eles alteracam os textos das Escrituras para levé-los a dizer 0 que queriam fazé-los dizer — so muito freqiientes entre os primeiros escritores cristios. Digna de atengio, contudo, éque estudos recentes mostraram que todas.as evidén- cias dos manuscritos remanescentes apontam na direcao oposta.[Copis-'\"" tas associados & tradig4o ortodoxa muito freqiientemente alteravam os, ' textos, as vezes, para eliminar a possibilidade de serem “mal usados” por; cristos que afirmavam crencas heréticas, outras, para torné-los mais. adequados As doutrinas esposadas pelos cristaos de seu préprio grupd." O verdadeiro petigo de os textos serem modificados, a bel-prazer, por copistas que nao aprovassem seu encadeamento também é evidente por outros meios. Temos de lembrar sempre que os copistas dos primeiros es- critos cristdos reproduziam seus textos em um mundo no qual nao havia 11, Ver: EHRMAN, Bate D, The orthodox corruption of Scriptures the effects of early christological controversies on the text of the New Testament. Nova Torque: Oxford University Press, 1993. 64 (© QUE JESUS DISSE? no s6 grificas ou editoras, como também nao havia a lei de protecio tos direitos autorais. Como podiam os autores garantir que seus textos indo fosse modificados, uma vez postos em circulagao? A resposta curta grossa é: no podiam. Isso explica por que os autores, por vezes, lance ‘yam maldigdes sobre alguns copistas que modificavam.seus textos sem “permissio. Enconteamos esse tipo de imprecacio jé em um escrito cris tio primitivo, incluido no Novo Testamento, 0 livro do Apocalipse, cujo ‘autor, ali pelo fim do texto, profere uma exortagao ameagadora: |. Ewatesto a todo o que ouvir as palavras da profecia deste iro: e al- |euéma les fier qualquer acréscimo, Deus Ihe acrescentard as pragas des- crits neste Tro, Be alguém tar qualquer coisa das palavras do livro [essa profecia, Deus the retirard a sua pate da drvore da vida e da cida- | de santa, descritas neste livro (Apocalipse 22,18-19). Nao se trata de uma ameaga na qual o leitor tem de aceitar, nem cle tem de acreditar em tudo o que esta escrito nesse livro de profecia, como sc imerpreta as vezes. Trata-se muito mais de wma ameasa tipisa.a0s-c2° pistas do livro; eles € que nai devem acrescentar ou remover nenhuma de suas palavras. Imprecagées semelhantes podem ser encontradas difusas por toda a série de escritos eristos primitivos. Vejamos as severas amea- {2s enunciadas pelo pesquisador cristio latino, Rufino, em referéncia 2 sua tradugdo de uma das obras de Origenes: ‘Na presenga de Deus Pai, de seu Filho e do Espirito Santo, conjuro e suplico a todo aquele que vé transcrever ou ler esses livros, por sua cren- fa no reino que hi de vir, pelo mistério da ressurreigao dos mortos¢ pelo foo perpétuo preparado para o demanio e seus anjos, que, assim como cle ndo possuiria por heranca eterna 0 lugar onde ha choro e ranger de entes ¢ onde seu fogo nao se apaga e seu espirito ndo morre, nada acres- vente ao que esté escrito e dele nada exclua, que nao faca insereao ow al- teragao alguma, antes compare sua prépria transcrigao com as cépias @ partir das quais a fez.” esas ameacas so medonhas — fogo do inferno ¢ enxofre — por sim plesmente trocar algumas palavras de um texto. Nao obstante, alguns ‘Tutores estavam absolutamente decididos a assegurar que suas palavras com preficio de Rufino, apud GAMBLE, Harry nes, On first principe Books and readers, op. citm p. 124 AC Oe eee 7 Os coms nos ssceros cxistéos umvos ESL fo fossem transmitidas intactas, e nenhuma ameaga podia ser séria «has tante quando se :ratava de copistas que podiam mudar textos arbitrarin ‘mente, num mundo ainda sem leis de protegio ao direito autoral MUDANGAS NOS TEXTOS Mesmo assim, seria um equivoco concluir que as Gnicas mudangas feitas ceram provocadas por copistas com interesses pessoais na disposicao lexical do texto, De fato, muitas das mudangas encontradas nos primeitos manus- critos cristaos nada tinham a ver com teologia ou ideologia. A das mudancas é de longe, resultado puro e simples de erros — escorregées da pena, omissdes acidentais, acréscimos despercebidos, palavras mal grafa- das, bobagens desse tipo. Os copistas podiam ser incomperentes: tante lembrar que a maioria dos copistas nos primeiros séculos nao eram impor- treinados para esse tipo de trabalho, porque eram simplesmente os mem- bros letrados das assembléias que eram (mais ou menos) capazes e que se dispunham a fazé-lo. Mesmo mais tarde, a comecar dos séculos IV e V, quando os copistas cristos emergiram como classe profissional dentro da Igreja,! e mais posteriormente ainda, quando a maioria dos manuscritos era copiada por monges dedicados a esse tipo de trabalho em mosteiros — ‘mesmo nessa época, havia copistas menos experimentados que outros. Em. todas as épocas, a fungio podia ser penosa, como o indicam notas vez por ‘outra acrescentadas a manuscritos nos quais um copista poderia registrar uma espécie de suspiro de alivio, como “O Fim do Manuscrito. Gragas Se- jam Dadas a Deust”." Por vezes, os copistas simplesmente se distraiam; outras vezes, tinham sono ou fome; outras ainda, compreensivelmente, no podiam mais dar o melhor de si ‘Até mesmo copistas competentes, treinados ¢ alertas, de vez em quan- do podiam cometer erros. Nao obstante, em certas ocasides, como vi- 13. Ch nota 8. 14 Para mais nota acrescentadas a manuscritos por copistascansados ou entediados, ver os exemplos ctados em: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op cit. cap. 1, segio 3. 66 (0 QUE JESUS DISSE? nos, eles mudavam 0 texto porque achavam que ele tinha de ser muda~ do. E isso, note-se, nao apenas por razdes teolégicas. Havia outras razdes pelas quais os copistas introduziam uma mudanca_proposital — por cexemplo, quando chegavam a uma passagem que parecia incorporar um erro que precisava ser corrigido, provavelmente uma contradigao encon- trada no texto, ou uma referéncia geogréfica errada, ou uma mengdo ¢s- crituristica deslocada, Desse modo, quando os copistas faziam mudangas intencionais, por vezes, 0s seus motivos eram tao cristalinos quanto a gua de fonte pura. Mas, seja como for, tratava-se de mudangas que fa- ziam com que as palavras originais do autor fossem alteradas e, em iilti- ma instancia, perdidas. ‘Um exemplo bastante expressivo da mudanga intencional de um tex- to pode ser encontrado em um de nossos mais excelentes manuscritos an- tigos, 0 Cédice Vaticano (assim intitulado porque foi encontrado na Biblioteca Vaticana), feito no século IV, Na abertura do livro de Hebreus, hha uma passagem na qual, de acordo com a maioria dos manuscritos, € nos dito que “Cristo sustém [grego: pherdn} todas as coisas pela palavra de seu poder” (Hebreus 1,3). Contudo, no Cédice Vaticano, o copista original produziu um texto ligeicamente diferente, com um verbo que soa parecido em grego; ali, o texto diz, por sua vez: “Cristo manifesta [gre- {g0: phaneron| todas as coisas pela palavra de seu poder”. Alguns séculos mais tarde, um segundo copista leu esta passagem no manuscrito ¢ deci- diu mudar a palavra manifesta, um tanto incomum, por uma leitura mais ‘comum, sustém — apagando uma palayra e escrevendo a outra. Poste- riormente, alguns séculos mais tarde, um terceiro copista leu o manuse toe se deu conta da alteragao que seu predecessor perpetrara. Ele, entao, por sua ver, apagou a palavra sustém e reescreveu a palavra manifesta. E depois acrescentou uma nota de copista 4 margem para indicar o que ele achava do primeiro e do segundo copistas, Diz.a nora: “Insensato ¢ de- sonesto, deixe 0 texto antigo, ndo 0 altere!”. ‘Mantenho uma c6pia da pagina emoldurada na parede de meu e t6rio como uma constante adverténcia sobre os copistas ¢ suas propen~ ses a mudar e a voltar a mudar seus textos, Claro que estamos falando da mudanga de uma 56 palavea: que relevancia tem isso? A relevncia ¢ que o ‘nico modo de.entender.o que um autor quer dizer €conhecer 0 “que suas palavras — tod: -palaveas — realmente querem dizer. {Pense em quantos sermées sio feitos com base em uma tinica palavra de ee NE IS NIE OIE tum texto: ¢ se essa pala yeu?) Dizer que Cristo revela todas as coisas por sua palavra de poder é completamente diferente de dizer que ele mantém o universo unido por meio de sua palavra! DIFICULDADES PARA SABER QUAL E O TEXTO ORIGINAL Mudangas de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que 0s copiaram., Examinaremos com mais pormenores os tipos de mu- dangas num capitulo posterior. De momento, basta-nos saber que real- mente foram introduzidas mudangas ¢ que elas cram generalizadas, especialmente nos primeiros duzentos anos em que os textos foram co- piados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma das principais questées com que a critica textual precisa se haver & como re cont exto origin autor yeu =, dian- te da circunstancia.de queos nossos manuscritos sia tao coalhados de erros. O problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, 0 erro pode se encaixar firmemente na tradigdo textual, muito mais firme- mente que o original. G I —o texto tal qu: ym isso se quer dizer que, uma vez que um copista muda um texto — acidental ou intencionalmente —, essas mudangas se tornam permanentes em seu manuscrito (a menos, claro, que outro copista venha a corrigir 0 erro}. O proximo copista que copia aquele manuscrito copia aqueles er- ros (pensando serem eles a genuina expresso do texto) e ainda pode acrescentar erros de sua propria lavra. Depois disso, 0 proximo copista que copia aquele manuscrito copia os erros de todos os seus predecesso- res € acrescenta erros de sua propria lavra, e assim vai. A Gnica for le) os erros serem corrigidos é quando um copista reconhece que um prede- cessor comereu um erro e renta canserté-lo, Mas nio hii garantia, porém, de-que um copista que tenta corrigir unerta corrija-o.cotretamente. Isto €,a0 mudar 0 que Ihe parece um erto, ele pode, de faro, mudé-lo incorre- tamente, de modo que se passa a ter trés formas do texto: 0 original, versao errada ¢ a tentativa incorreta de resolver o erro, Os erros se multi- plicam e se repetem; algumas vezes, siio cortigidos, outras sio ampliados. F assim por diante, durante séculos. OS COPISTAS DOS ESCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS BIE a vra ndo for aquela que o autor realmente evere#~ of (© QUE JESUS DISSE As veres, é claro, um copista pode dispor de mais um manuscrito © pode corrigir os erros em um manuscrito pela leitura correta do outro manuscrito. E isso melhora a situac3o significativamente. Por outro lado, também é possivel que um copista corrija o manuscrito correo 4 luz da seqiiéncia textual do manuscrito incorreto. As possibilidades sio infinitas. Diante desses problemas, como podemos esperar retornar a algo como 6 texto original que um autor tenha realmente escrito? E um problema enorme, tao grande que muitos criticos textuais comegaram a defender {que devemos suspender todas as discusses sobre o texto “original”, por- {que ele nos é inacessivel. Isso pode estar indo longe demais, mas um ou dois exemplos concretos extraidos dos escritos neotestamentarios podem demonstrar os problemas, EXEMPLOS DOS PROBLEMAS Como primeiro exemplo, tomemos a carta de Paulo aos Galatas. Mesmo no nivel da redacio original da carta, temos varias dificuldades a consi- derar, que podem nos levar a nutrir simpatia por aqueles que querem de- sistir da possibilidade de saber o que era o texto “original”. A Galicia Jo era apenas uma cidadezinba com uma iinica igreja; era uma regio da Asia Menor (na atual Turquia), onde Paulo estabelecera_igzejas. Quando ele-escreve aos gélatas, est escrevendo a. uma das iareias ows “todas elas? Visto que no menciona explicitamente determinada cidade, presume-se que esteja enviando a carta a todas elas. Significa isso que ele fez varias cépias da mesma carta ou que pretendia que uma carta cireu- lasse por todas as igrejas da regido? Nao sabemos Suponhamos que ele tenha feito c6pias méhiplas. Como o tera feito? $6 para comegar, parece que essa carta, como outras de Paulo, nao foies crita de préprio_punho, mas ditada a um copista-secretirio. A prova dis- so vem no fim da carta, onde Paulo acrescentou tum pds-escrito de proprio punho, para que os destinatarios pudessem saber que ele era o responsi vel pela carta (uma técnica comum em cartas ditadas na Antigitidade): “Vejam por essas letras grandes que cu estou escrevendo a voe8s de pro- prio punho® (Galatas 6,11}. Em outras palavras, sua escrita de proprio (05 COPISTAS DOS ESCRITOS CRISTAOS PRIMETIVOS punho era maior ¢ provavelmente de aparé do copista a quem ele ditara a carta." Assim sendo, se ditou a carta, Paulo a teria ditado palavra por pala ra? Ou teria exposto os pontos bisicos e permitido ao copista preench 163ta? Ambos os métodos eram comumente usados por aqueles que es creviam cartas na Antigiidade." Se o copista preenchia o restante, como podemos ter certeza de que o fazia exatamente como Paulo queria? Se do, temos realmente as palavras de Paulo, ou serao elas palavras de um copista desconhecido? Mas, suponhamos que Paulo ditasse a carta pala- vra por palavra. E possivel que em algumas passagens 0 copista tenha es- ctito palavras erradas? As coisas mais estranhas podem ter acontecido. Se foi assim que se deu, entdo 0 autégrafo da carta (isto é, 0 original) jé teria um “erro” em si, de modo que todas as c6pias subseqiientes nao se- cia menos profissional que a riam cépias das palavras de Paulo (nos lugares onde seu copista comete- 1a 08 erros). Suponhamos, contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se maltiplas c6pias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as cépias so também 100% corretas? E, no minimo, possivel cue mesmo que tivessem sido todas copiadas na presen- a de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali pudessem ser alteradas em uma ou outra das cOpias. Se fosse esse 0 caso, 0 que ocorreria se apenas uma das cOpias tivesse servido como cépia da qual todas as cépias sub- seqiientes fossem feitas — depois, no século I, no século Il, no século II © assim por diant 50, a cOpia mais antiga que constituira a base de todas as cépias subseqiientes da carta ndo era exatamente o que Nesse ¢: Paulo escre era, ou quisera escrever. Uma vez em circulagio — ou seja, uma vez chegada a seu destino em uma das cidades da Galicia —, claro que a c6pia é copiada, e erros po- dem ocorrer. Algumas ve7es, os copistas deviam mudar o texto intencio- nalmente; noutra, a identes aconteciam, Essas c6pias com erros eram 15, Em apenas uma ocasiio um dos copistas secretitios de Paulo se identifica: era um hhomem chamado Térsio, a quem Paulo ditou a sua carta aos Romanos. Ve nos 16,22, 16, Ver, especialmente: RICHARDS, E, Randolph. The secretary inthe letters of Paul, Tubingen: Mohr/Siebeck, 1991 : Roma. SUES Tait 69 70 (© QUE JESUS DISSE? copiadas, e cépias das cépias com erros eram feitas, e assim por diante, a perder de vista (ou cada uma das c6pias originais) acabava perdida, desgastada ou des- Em algum ponto em meio a tudo isso, a cépia original _ftuidagdA partir de determinado ponto, jé nao € mais possivel comparar Spia com o original para se assegurar de que ela é “correta ‘mo que alguém tenha a brilhante idéia de fazé-lge |Portanto, o que sobrevive hoje nao é a e6pia original da carta, nem uma ddas primeiras e6pias que o pr6prio Paulo fez, nem ainda alguma das c6pias produzidas em alguma das cidades da Gali nem mesmo uma das c6pias dessas c6pias. A primeira cOpia razoavelmente e ‘laras (0 manuscrito é fragmentirio, isto & rem um certo ntimero de partes incompletas) é um papiro chamadafP\as- sim chamado porque foi 0 quadragésimo sexto papiro do Novo Testamen- toa ser catalogado), datado por volta de 200 £.c." Isto €, aproximadamente cento e cingiienta anos depois de Paulo ter eserito a carta, Durante todo esse tempo, ela esteve em circulaglo, sendo copiada, varias vezes corretamente, outras incorretamente durante quinze décadas antes de alguma cépia que tena sido feta sobreviver até a atvalidade. Nao podemos reconstrui.cé- pia.a partir da qual o P* foi feito, Tratava-se de uma cépia precisa? Em caso positivo, qual o seu grau de preciso? Ela certamente teria erros de algum tipo, assim como os teria a c6pia de que fora copiada e a c6pia da qual essa cépia foi copiada, ¢ assim por diante. Em suma, ¢unnegdcio mein complicada falar de texta“original” de Gélatas. Porque simplesmente fo temd3] O maximo que podemos fa- er € remontar a um estégio primitivo de sua transmissao, simplesmente ',mes- & qual a carta foi enviada, mpleta que nds temos de esperando que aquilo que conseguirmos refazer das cépias feitas nesse es- tagio — baseados nas edpias que sobreviveram (gm miimero crescente & 2 a a oa Gopese 17.0 proprio Novo Testamento indica que os eseritos dos Evangelhos tinham “fontes” pata a redacdo de seus relatos. Fm Lucas 1,1-4, por exemplo, o autor afiema que “mui 08" predecessores esereveram um relato das coisas que Jesus diss e fez e que, depois de té-los lido e consultado “testemunhas oculares ¢ ministros da palavra”, ele decidiu produzir seu proprio relato, que 6, segundo cle, em comparagio com 0s outros, “pre iso”. Em outros termos, Lucas teve acesso a fontes oraise escritas para fazer o relato dos acontecimentos que cle narra — ele préprio no acompankow a vida terrena de Je sus, Provavelmente se possa dizer o mesmo de outros escritores de Evangelhos. Para as fontes de Jodo, ver: EHRMAN, Bart D. The New Testament, op. city p. 164-167. 7 (05 COPISTAS DOS FSCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS medida que avancamos para a Idade Média) — reflita razoavelmente 0 que 0 proprio Paulo realmente escreveu, ou a0 menos 0 que ele preten- deu escrever quando ditou a carta. ‘Como um segundo exemplo dos problemas, tomemos o Evangelho de Joao, Esse Evangelho é bastante diferente dos outros trés Evangelhos, do Novo Testamento, porque narra uma série de historias que diferem das deles ¢ se expressa num estilo de escrita muito diverso. Em Joao, os ditos de Jesus sao longos discursos, em vez de ditos diretos ¢ incisivos; Jesus, por exemplo, nunca conta uma parébola em Jodo, diferentemen- te dos outros trés Evangelhas. Além disso, os acontecimentos narrados em Jodo geralmente se encontram apenas nesse Evangelho: por exem- plo, 0 didlogo de Jesus com Nicodemos (no capitulo 3) com a samari- tana (capitulo 4), ou os seus milagres de transformar a 4gua em vinho (capitulo 2) e de ressuscitar Lazaro dos mortos (capitulo 10). O perfil que faz de Jesus também é muito diferente. A diferenga dos ou- tros trés Evangelhos, Jesus aplica muito de seu tempo a explicar quem ele € (0 enviado dos céus) e a fazer “sinais” para provar que o que cle diz acerca de si mesmo é verdade. Nao ha davida de que Jodo terd recorrido a fontes para seus relatos — provavelmente uma fonte que narrava os sinais de Jesus, por exemplo, e fontes que descreviam seus discursos. Ble junta essas fontes em seu préprio fluxo narativo d vida, minstério, morte e ressurregio de Jesus: Conta- / do, também € possivel que Jodo tenha realmente produzido varias distintas verses de seu Evangelho. Os leitores muitas vezes notaram, por exemplo, que o capitulo 21 parece ser um acréscimo tardio. O Evangelho certamen- te parece se concluir em 20,30-315 € os acontecimentos do capitulo 21 pa- recem ser uma espécie de meditago posterior, acrescentada provavelmente para completar as histérias das apariges de Jesus ressuscitado e para ex- plicar que quando 0 “discipulo amado” responsével pela narragao das tra digdes no Evangelho morreu, isso nao era imprevisto (cf. 21,22-23). Oucras passagens do Evangelho também nao sao perfeitamente coe- rentes com 0 resio. Mesmo os versiculos de abertura, 1,1-18, que for- mam uma espécie de prélogo ao Evangelho, parecem bastante diferentes do restante. O tantas vezes celebrado poema fala do “Verbo” de Deus, que existiu com Deus desde o principio e sempre foi Deus e se “fez car- ne” em Jesus Cristo. A passagem foi vazada em um estilo de alto teor Poético que nao se encontra no resto do Evangelho; além disso, a medi- 7 (0 QUE JESUS DISSE? da que os temas centrais sio repetidos no resto da narrativa, alguns dos seus mais importantes vocabulos nao so. Desse modo, Jesus ¢ retratado durante a narrativa como aquele que veio do alto, mas nunca é chamado de o Verbo em outra passagem desse mesmo Evangelho. E possivel que essa abertura do Evangelho tenha provindo de uma fonte diferente do restante do relato e que tenha sido acrescentada como um inicio apro~ priado pelo autor depois de o livro ter sido anteriormente publicado? [Aceitemos, por um momento, apenas para manter o argumento, que © capitulo 21 € 11-18 nao fossem componentes originais do Evangelho. O que isso representaria para a critica textual que pretende reconstruir 0 tex- to “original”? Qual original esta sendo reconstruido? Todos os nossos ma- nuscritos gregos contém as passagens em questo. Dessa forma, a critica textual pode reconstruir aquilo que originalmente cles continham? Nao de- veriamos considerar que a forma “original” é uma versio primitiva, ausen- te deles? E se alguém quiser reconstruir essa forma primitiva é justo ter de parar aqui, contentando-se com reconstruit, digamos, a primeira edigio do Evangelho de Jodo? Por que nio ir mais longe e tentar reconstruir as fon- tes subjacentes ao Evangelho, como as fontes dos sinais ¢ as fontes dos dis- cursos, ou até mesmo as tradigdes orais que subjazem a elas? Essas sio questdes que inguietam a critica textual e que levaram alguns a indagar se devemos abandonar toda busca do texto original — visto que io chegamos nem mesmo a um acordo sobre o que deve significar falar do original de, digamos, Galatas ou Joio.[Nao obstante, de minha parte, |continuo achando que mesmo que no possamos estar cem por cento se- | guros do que podemos alcancar, pademos ao menos estar-seguros de que Jrodos os manuscritos subsistentes foram copiados de outros manuscritos, \que jd eram cépia de outros manuscritos ¢ de que é possivel, quando me: ‘nos, remontar a0 mais antigo © mais primitivo estigio da tradicao manus: ‘crita de cada um dos livros do Novo Testamento/ Todos os nossos manuscritos de Gélatas, por exemplo, evidentemente remontam a algut texto que foi copiados todos os nossos manuscritos de Joo evidentemen- te remontam a uma versio de Joao que incluia o prologo ¢ 0 capitulo 21, so que se possa aleancar & nao ao texto “original”. Essa forma mais antiga do texto esta sem diivida ‘proximamente (muito proximamente) vinculada ao que 0 autor escreveu originalmente e por isso é a base para a nossa interpretacio de seu ensino. OS COPISTAS DOS FSCRITOS CRISTAOS PRIMITIVOS BUTS aad RECONSTRUINDO OS TEXTOS DO Novo TESTAMENTO Problemas similares, naturalmente, ocorrem com todos 05 nossos manus- ctitos cristios primitivos, tanto os que figuram no Novo Testamento como, (8 que estao fora dele, sejam evangelhos, atos, epistolas, apocalipses ou qualquer um dos outros géneros de escritos cristaos primitivos. A tarefa da critica textual é dererminar qual é.a forma mais primitiva do texto de to- dos esses escritos. Como veremos, ha prinefpios ja estabelecidos para fazer essa determinagio, meios de decidir que diferengas em nossos manuscritos, so err0s, quais so mudangas intencionais e quais parecem capazes de fa zet remontat ao autor original. Mas nao se trata de tarefa facil Por outro lado, os resultados podem ser extremamente esclarecedores, interessantes ¢ até estimulantes. Os criticos rextuais foram capazes de deter- rminar com relativa cerreza um nimero de lugares.em aus aque sobs Para aqueles que nio tém familiaridade com 0 campo, mas conhecem bem ‘0 Novo Testamento (digamos, em versio vernacula), alguns dos resultados podem ser surpreendentes. Para concluir este capitulo, discutirei duas des- sas passagens — possagens dos Evangelhos, no caso, que, agara estamos sey quros,_certamente ndo_pertencem originalmente a0 Novo ‘Testamento, mesmo que tenham vindo a se tornar para os cristios partes populares da Biblia no decorrer dos séculos e assim permanecem até hoje. A mulher flagrada em adultério A historia de Jesus com a mulher flagrada em adultério € provavelmente a mais célebre historia sobre Jesus na Biblia; desde sempre, ela foi também certamente destaque nas versdes hollywoodianas da vida dele. Também teve destaque em A paixao de Cristo, de Mel Gibson, embora o filme se cconcentre apenas nas tiltimas horas de Jesus (a historia € tratada em um dos raros flashbacks do filme). Apesar de toda essa sua popularidade, 0 relato se baseia em apenas uma passagem do Novo Testamento, Jodo 8.12, ¢ nem mesmo ali parece fazer parte do contexto original. (© quadro da historia é familiar. Jesus esté ensinando no templo, € um grupo de escribas = fariseus, scus inimigos jurados, aproxima-se dele tra- zendo consigo uma mulher “que fora pega em flagrante ato de adulté- rio”. Eles a trazem & presenga de Jesus porque querem pé-lo a prova. A 7 (0 QUE JESUS DISSE? Lei de Moisés, seja apedrejada até a morte; mas eles querem saber o que ele tem a dizer sobre o caso. Devem apedrejé-ta ou mostrar misericérdia para com ela? ‘© que dizem a Jesus, prescreve que uma mulher dessas Naturalmente, trata-se de uma armadilha. Se Jesus Ihes disser para liber- tar a mulher, scré acusado de violar a Lei de Deus; se Ihes disser para apedrejé-la, sera acusado de negligéncia para com seus préprios ensina- ‘mentos de amor, misericérdia e perdio. ‘Jesus nao responde de imediato. Em ver. disso, abaixa-se para escre- ver na areia. Quando eles dao seguimento a seu questionamento, ele Ihes diz: “Aquele que nao tem pecado seja 0 primeiro a The atirar uma pe dra®. E volta a escrever na arcia, enquanto aqueles que tinham trazido a mulher comegam a sair de cena — evidentemente convictos de seu pré- prio malfeito —até que ninguém restou, além da mulher. Levantando os colhos, Jesus diz: “Mulher, onde esto todos? Ninguém te condenou2” Ao que ela replica: “Ninguém, Senhor”. Ele entio responde: “Nem eu te condeno. Vai e ndo peques mais £ uma historia brilhante, plena de sentimento e com uma guinada en- genhosa na qual Jesus usa sua viva inteligén« falar da pobre mulher — da armadilha. C a historia suscita varias perguntas. Se essa mulher foi pega em flagrante de adultério, por exemplo, onde esta.o hamem com quem ¢la foi pega? ‘Ambos devem ser apedrejados, de acordo com a Lei de Moisés (ver: Le- vitico 20,10). Além de tudo, o que exatamente Jesus escteveu na arcia? (Segundo uma tradigio antiga, ele estava escrevendo os pecados dos acu- “adores, que, ao verem que suas prdprias transgressdes eram conhecidas, ficaram completamente embaracados!) E mesmo que Jesus tenha ensina- do uma mensagem de amor, pensava realmente que a Lei de Deus dada por Moisés deixara de vigorar ¢ que nao precisava mais ser obedecida? ‘Achava que os pecados nao deviam mais ser punidos? | Apesar do brilhantismo da histéria, de sua cativante qualidade ¢ de seu |enredo proprio, cla suscita um outro problema enorme. Ao que tudo indi: ~ ‘ca, ela nao é parte original do Evangelho de Jodo. De fato, nao € parte ori Teinal de nenhum dos Evangelhos. Foi acrescentada por copistas postriotss. ‘Como sabemos disso? Na realidade, pesquisadores que estudam a tra- digo manuscrita nia tém diividas sobre esse caso particular. Mais adiante neste livro examinaremos com maior profundidade os tipos de evidéneia que os os psauadores = aprsera pa fazer avaliagdes dese tipo, De mo- coseayg ole onblis. welulison * OO hy Ince lind ante fe para se livrar — para nao ro que para um leitor atento TE pe tafe rp frase A prelate De ee WR TONS Wf rrr Lee mento, posso simplesmente indicar uns poucos fatos bisicos que se de- ‘monstraram convincentes para quase todos os pesquisadores de tendéncias: a his:éria no se encontra em nossos mais antigos ¢ melhores manuscritos do Evangelho 2é mu daquele que é encontrado no restante de Joao (incluindo os relatos que vém imediatameate antes e depois); ¢ ela inclu um grande ndimero de te nos e frases.que so, por outro lado, estranhas.ao Evangelha, A conclusio € inevitvel essa passagem originalmente nio faz parte doJEvangelha) mo, cntaa, ela foj acrescentada? Ha numerosas teorias acerca dis- ee pesquisadores pensam que provavelmente se tratava de um relato bem conhecido que circulava na tradigio oral sobre Jesus, que a certa altura foi acrescentado a margem de algum manuscrito. A partir dai, algum copista ou alguém achou que a nota marginal devia ser parte do texto ¢ a inserit: imediatamente depois da narrativa que acaba em Jodo 7,52. Deve-se notar que outros copistas inseriram o relato em dife- rentes pontos do Novo Testamento — alguns deles depois de Joao 21,25, por exemplo, e outros, o que é bem interessante, depois de Lucas 21,38. Em todo caso, quem quer que tenha escrito o relato, ndo foi Joa E isso naturalmente deixa os leitores em um dilema: se essa historia,“ no fazia originalmente parte de Jodo, pode ser considerada parte da Be 2 Nem todos responder a essa pergunta do mesmo modo, mas para riadas ‘a maioria dos criticos textuais a resposta é[h40) Os doze tiltimos versiculos de Marcos O segundo exemplo que examinaremos pode no ser tio familiar para 0 leitor epis6dico da Biblia, mas teve grande influéncia na historia da inter- pretagio biblica e suscita problemas semelhantes para o especialista em tradicZo textual do Novo Testamento, Nosso exemplo provém do Evan- gelho de Marcos e se refere a seu término. No relato de Marcos, é-nos dito que Jesus € crucificado e depois sepul- tado por José de Arimatéia na véspera do Sabado (15,42-47). No dia pos- terior ao Sébaco, Maria Madalena ¢ duas outras mulheres voltaram a0 18, Posteriormente veremos como alguns manuscritos podem ser definidos como “melhores” que outros. (© QUE JESUS DISSE? ‘timulo para ungir 0 corpo (16,1-2). Ao chegar, descobrem que a pedra foi rolada da boca do tiimulo, Ao entrar no tiimulo, véem um jovem vestido com uma tinica branca, que Ihes diz: “Nao se assustem! Vocés esto bus- cando Jesus Nazareno, que foi crucificado, Ele foi ressuscitado e naio esta cm o lugar onde o depuseram?”. Entao ele instrui as mulheres a dizerem aos disefpulos que Jesus os precede na Galilgia e que eles 0 ve- ro li, “como Ihes tinha dito”. Mas as mulheres fogem do dizem a ninguém, “pois estavam amedrontadas” (16,4-8). Depois disso, vém os iiltimos doze versiculos de Marcos em muitas aqui — vi aloe nada tradugées biblicas modernas, versiculos que dio seqiiéncia & historia Diz-se que o préprio Jesus aparece a Maria Madalena, que vai e conta aos discipulos, mas eles ndo acreditam nela (versiculos 9-11). Ele, enti, aparece a dois outros (versiculos 12-14) e, por fim, aos onze discfpulos (0s Doze, excluindo Judas Iscariotes) que estavam reunidos & mesa. Jesus 0s repreende por nao terem acreditado e thes ordena irem pelo mundo proclamar seu evangelho “a toda a criagio”. Aqueles que acreditarem e forem batizados “serdo salvos”, mas aqueles que nao acreditarem € no forem batizados “serdo condenados”. E quando vém, enti, os dois mais intrigantes versiculos dessa passagem: E esses sao 0s sinais que acompanhardo aqueles que créem: expuilsa- rao deménios em mex nome; falardo novas linguas; pegario serpentes com as maos e, se beberem algum veneno, ele nao Ihes causard mal; int- porto as maos aos doentes e os curardo (versiculos 17-18). Depois disso, Jesus éelevado aos céus e sentado a direita de Deus. Eos discipulos vao pelo mundo proclamando o evangelho, com suas palavras senido confirmadas pelos sinais que as acompanhavam (versiculos 19-20). “EB uma passagem magnifica, misteriosa, tocante e poderosa. f uma das ios pentecostais para mostrar que os seguido- res de Jesus serao capazes de falar em Flinguas% desconhecidas, como ocor- assagens usadas pelos ct re em seus cultos de adoragio; ¢ € a principal passagem usada pelos grupos de “manipuladores apalaches de cobras”, que até hoje pegam cobras vene- | nosas com as préprias mios para provar sua f6 nas palavras de Jesus, para demonstrar que fazendo isso nao serio atingidos por nenhum mal. Mas ha um problema, Mais uma ver, a passagem nao é parte original ~do Evangelho de Marco Foi acrescentada por um copista tardio. De certo modo, esse problema textual é mais disputado que a passa- gem da mulher flagrada em adultério, porque sem esses versiculos finaig Mfoangrns ands e fact originn flo bv olln > b Tord ve wcr ita toe Neate TEED Ti oh ctevbes o. ovteras pos escrrros cristaosmumerivos, ELLE 4 oa Fed eer dee . copsras pos sscriroscaistaos unmivos SLLk dy LOS Marcos tem_um fim muito diferente e dificil de entender. O que nio signi: fica que os pesquisadores se inclinem a aceitar esses versiculos, como logo veremos,Os motivos para considers-los como um gcréscimo sio sdlidos, qua: iVEi] Mas os pesquisadores debatem qual era realmente 0 fim genuiino de Marcos, diante do fato de que o fim que se encontra em muitas tradugées yernaculas (embora geralmente marcadas como inautén ticas) ¢ nos manuscritos gregos tardios nao € 0 original. A provade-que esses vers jo estava iginal de Marcos é s melhante em géneso A prova para a passagem da mulher flagrada em adul rério,e mais uma w7 nao necessito descer a parmenoses aqui,jOs versiculos estio ausentes de dois de nossos mais antigos € melhores manuscritos do Evangelho de Marcos, além de ausente de outros importantes testemunhos; estilo de escrita ¢ diferente do estilo que encontramos em todo o restante cos; a transico entre essa passagem e a anterior & de dificil entendi- ‘mento (por exemplo, Maria Madalena é apresentada no versiculo 9 como se ainda nao tivesce sido mencionada, mesmo tendo cla sido discutida nos versiculos anteriores; ha mais um problema com o grego que faz a transigio ainda mais complicada),. hd um grande nimero de palavras e frases na. passagem que ndo so encontragas em nenhum outro lugar em Marcas, Fm suma, as evidéncias sfo suficientes para. convencer quase todos.os pesquisa ores textuais de cue esses versiculas sia um acréscimo a Marcos,, Sem eles, porém, 0 relato acaba muito abruptamente. Atengao a0 que acontece quando esses versiculos so exclufdos: diz-se as mulheres para informar os discipulos que Jesus os precedera na Galiléia e lé os encon- trard; mas elas, as mulheres, desertam do tiimulo e nada dizem a nin- guém, “pois estavam amedrontadas”. £ aqui onde o Evangelho acaba. ‘Obviamente, os copistas pensavam que o fim era abrupto demai As mulheres ndo dizerem nada a ninguém? Entio, os diseipulos nunca souberam da ressurreicgao? E nem mesmo Jesus apareceu a eles? Como ra resolver o problema, os copistas acr poderia ser esse o fin saram_um fim.” 19. Na verdade, havia diferentes fins actescentads por diferentes capistas — no ape~ nas os doze versiculos finais familiares aos eitores da Biblia arual. Para um panorama de todos esse fins, ver: METZGER, Bruce M. A textual commentary on the Greek New ‘Testament. 2, ed. Nova lorque: United Bible Society, 1994. p. 102-106. 0 QUE JESUS DISSE? Alguns pesquisadores concordam com os copistas e consideram que Marcos 16,8 & muito abrupto para ser um final de evangelho. Como j mencionei, nao & que esses pesquisadores acreditem que os doze éiltimos versiculos de nossos manuscritos tardios fossem o fim original — bem que nao € 0 caso—ymas acham que, provavelmente, a tiltima pagina |do Evangelho de Marcos, uma em que Jesus realmente encontrava os dis- pulos na Galiléia, de algum modo se perdeu e que todas as nossas cépias cdo Evangelho remontam a esse manuscrito truncado, sem a tltima Essa explicagio € plenamente possivel. Assim como é possivel, na opi- nido de outros pesquisadores, que Marcos tenha decidido concluir seu Evangelho em 16,18, que é certamente um fim chocante. Os discfpulos nunca saberiam a verdade sobre a ressurreigio de Jesus porque as mulhe- res nada Ihes teriam contado. Uma razio para considerar que era desse ‘modo que Marcos fechava seu Evangelho € que esse fim esta em concor- dancia com outros motivos espalhados pelo texto. Estudiosos de Marcos sempre perceberam que, nesse Evangelho, os disefpulos nunca “se ligam” (diferentemente do qu se diz que eles no entendem Jesus (6,51-52; 8,21), e quando Jesus thes diz, em virias ocasides, que deve sofrer e morrer, eles claramente nao che- gam a compreender stas palaveas (8,31-33; 9,30-325 10,33-40). Talver, de fato, eles nunca tenham chegado a entender (a diferenga dos leitores de Marcos, que podem entender quem Jesus realmente é desde o principio). es sa .e passa em outros Evangelhos). Repetidas vezes “Também é interessante notar que em todo o Marcos, quando alguém vem a entender algo sobre Jesus, o proprio Jesus ordena que essa pessoa silen: cie — mesmo que freqiientemente a pessoa ignore a ordem ¢ espalhe a boa nova (por exemplo, 1,43-45). Suprema ironia é que, quando se diz as mu- Iheres que foram ao tmulo que nao se calem, mas falem, elas também ig noram a ordem—e silenciam! Em suma, Marcos pode muito bem ter tido a intengao de instruir seus leitores com esse fim abrupto — um modo habil de fazer o leitor parat, tomar folego e perguntar: 0 qué?! Como assim?! 120, Ver: FARMAN, Bart D. The New Testament, op. cit, cap. 5, especialmente p. 79-80. osconstas pos scatroscusthos pnmvoy ELL pa CONCLUSAO, [As passagens acima discutidas representam apenas dois dentre mithares de lugares nos quais os manuscritos do Novo Testamento foram muda dos por copistas. Em ambos os exemplos, estamos lidando com acrései- mos feitos por copistas ao texto, acréscimos de extenstio considersvel Embora a maioria das passagens nao seja da mesma magnitude, ha mui tas mudangas significativas (e muitas mais insignificantes) em nossos ma- nuscritos do Nevo Testamento. Nos capitulos seguintes, veremos como (08 pesquisadores comegaram a descobrir essas mudangas e como desen- volveram métodos para definir qual é a forma mais antiga do texto (ou 6 texto “original”; veremos especialmente mais exemplos de onde esse texto foi alterado — e de como essas alteragGes afetaram as nossas tra- dugées vernéculas da Biblia, Eu gostaria de encerrar este capitulo simplesmente com uma observa~ io sobre uma ironia particularmente acentuada que, parece, descobri- mos. Como vimos no capitulo 1, desde o prinefpio, o cristianismo é uma religido do livro que enfatizou alguns textos como escritura autorizada. Contudo, como vimos neste capitulo, na verdade, nao temos tais textos autorizados. (Quer dizer, 0 cristianismo € uma religido textualmente orientada cujos textos fundamentais foram mudados e que s6 sobrevi- vem em e6pias que diferem de uma para outra, em certos momentos, de um modo altamente significativa A tarefa da critica textual é tentarre- “cuperar a forma mais antiga desses textos, ‘Obviamente, trata-se de uma tarefa crucialj-dado que nao podemos interpretar as palavras do Novo Testamento se no sabemos que pala- vras eram, Acima de tudo, como espero ter deixado claro, conhecer as palavras é importante nao apenas para aqueles que consideram as pala- ‘yras divinamente inspiradas. £ importante para todo aquele que conside- rao Novo Testamento um livro importante. E seguramente todo aquele {que se interessa pela historia, sociedade e cultura da civilizagao ocidental acha isso, porque 0 Novo Testamento &, quando menos, um grandioso artefato cultural, um livro reverenciado por milhdes ¢ que constitui 0 fundamento da maior religido do mundo hoje. (AGO. RASMEROTER ODA. SS AtbERTO “v1 OR BEES BELA: (MATA: AIZEL ‘MD x XMS ane . it oilizan)S Gravura de Albert Diirer, do séeulo XVI, representando Desidério Erasmo, 0 célebre bumanista de Rotterdam que produsiu a prime Novo Testamento srego. 3 TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO Edigées, manuscritos e diferencas xaminamos até agora as praticas de cépia comuns aos primeiros trés séculos do cristianismo, quando a maioria dos copistas dos textos cristaos no era formada de profissionais treinados para a fun- io, mas simplesmente de cristaos cultos dessa ou daquela comunida- de, capazes de ler ¢ de escrever € que, por isso, eram convocados a reproduzir os textos da comunidade em seu tempo livre.' Pelo fato de, nao terem sido. bem treinados para desempenhar esse tipo de funcao, eram mais propensos a cometer erros do que os copistas profi Isso explica por que nossas cépias mais antigas dos escritos cristaos primitivos tendem a variar mais freqiientemente uma da outra e das c6- pias posteriores do que as cépias posteriores (vamos dizer, da Alta Ida- de Média) diferem umas das outras. F. que, po de classe de copistas profissionais passou a fazer parte do panorama inte: lectual cristo e, com. advento dos copistas profissionais, praticas de cGpia mais controladas foram estabelecidas. Com isso, 05 ertos se tor naram bem menos fregiientes, |. Para minha acepyio do termo copista profissional, ver nota 8 do capitulo 2. Ne (© QUE J#SUS DISSE? Antes que isso ocorresse, no decorrer dos primeiros séculos do cristia- nnismo, 05 textos cristios eram copiados em qualquer situagio onde tives- sem sido escritos ou encontrados. E visto que 0s textos eram copiados Iocalmente, nao é de surpreender que localidades diferentes desenvolves- sem diferentes tipos de tradigao textual. Iso significa que os manuscritos ‘em Roma apresentavam muitos dos mesmos erros, porque eram em sua maioria documentos “internos”, copiados um do outro; nao eram muito influenciados pelos manuscritos que estavam sendo copiados na Palesti na; os textos da Palestina tinham caracteristicas prOprias, que eram dis. tintas das que se encontravam em um lugar como Alexandria do Egito. Além do mais, nos primeiros séculos da Igreia, alguns lo pistas melhores que outros. Pesquisadores modernos até reconheceram que os copistas de Alexandria — que era 0 maior centro intelectual do mundo antigo — eram particularmente escrupulosos, mesmo nos primei- ros séculos, e que em Alexandria uma forma muito pura do texto dos primitivos escritos cristaos foi preservada, década apés década, por co- pistas cristdos dedicados e relativamente capazes. COPISTAS CRISTAOS PROFISSIONAIS Quando foi que a igreja langou mio de copistas profissionais para copiar seus textos? Hé bons motivos para achar que isso deve ter ocorrido em algum momento perto do inicio do século IV. Até entdo, o cristianismo cera uma religido pequena, minoritiria no Império Romano, freqtiente- mente antagonizada, algumas vezes perseguida, Mas ima mudanca cata~ -lismica se deu quando.o imperador de Roma, Constantin, converteu-se f€ por volta de{$12 v.c] De uma hora para outra, o cristianisme deixou de ser uma religido de_périas sociais, perseguida tanto pela plehe loca} como pelas autoridadles imperiais, para desempenhar um papel de des _que na cena religiosa do império. Nao s6 as perseguigées foram suspen- ‘sas, como favorecimentos comecaram a verter sobre a igreja,estimulad. pelo poder maximo do mundo acidental. 0 resultado foram/conversbes tem massa medida que se tornava uma coisa normal serum seeuidar de cristo num tempo em que 0 préprio imperador proclamava publicamen- te sua adesio ao cristianismo. BY ea co. pen sine | a REDE pe mpyca> pe CPEUMN YO. ee € mais pessoas de alto nivel de formagio intelectual se converte- ram a fé. Naturalmente, elas eram mais capacitadas a copiar os textos da tradigao crista. Ha razdes para supor que, por essa época, brotaram * cristaos nas grandes dreas urbanas.* Um scriptoritam & um lu gar dedicado & cépia profissional de manuscritos. Temos informagio de scriptoria cristaos funcionando nos inicios do século TV. Em. imperador Constantino, querendo que Biblias magnificas fosse! 1 dispo- nibilizadas para as grandes igrejas que mandara consteuir, escreveu uma requisicgdo ao bispo ia, Eusébio,' para que ele produzisse ci agiienta Biblias as expensas impcriais. Eusébio tratou essa requisigao com toda a pompa e respeito que ela merecia e se empenhou em atendé-la, E, claro que um empreendimento dessa magnitude exigia um scriptorium profissional, sem falar nos materiais necessarios para fazer c6pias exube- rantes das escrituras cristas. Estamos ja em um tempo completamente distinto de apenas um século ou dois antes, quando as igrejas locais sim- plesmente solicitariam que um de seus membros arrumasse tempo sufi- ciente para fazer uma c6pia do texto. A partir do século IV, tas por profission: nniimero de erros que se aninhavam nos textos. Por fim, a medida que as décadas viravem séculos, a c6pia das escrituras gregas se tornou en- cargo de monges que trabalhavam em reas especificas dos mosteiros, que dedicavam seu cientemente, Essa pratica continuou durante a [dade Média, até a épo- as c6pias das escrituras comegaram a sei s. Isso naturalmente reduziu significativamente dias a copiar os textos sagrados cuidadosa e cons- + Em uma abaclia ou mosteiro, uma sala destinada & eseeita ou a c6pia de manuseritos. Um seriptoriu: (plural seriptoria) & uma sala onde se fazem cépias 8 mio de manus critos, gealmente ao lado de uma biblioteca. Os scriptovia si uma instinuigdie tipica- mente cristi, Nos mosteiros, © scriptorivn era uma s raramente um edificio, uclizado para a c6pia profissional de manuserits. O diretor de um scriporium monds- tico era o armarius, que providenciava material de trabalho para os copistas e coorde~ ava o processo, Rubricas iluminuras eram acrescentadas 3s e6pias por outro tipo de IN. do] 2, Pata uma discussdo sobre a inexisténcia de indicios de sriptoria nos primeiros séet~ los, ver: HAINES-EITZEN, Kim, Guardians of letters, op. cit, p. 89-91 specials 3. Hoje, Eusébio ¢ lagamente conhecido como o padre da historia eclesstica por eau sa de seu relato em dez volumes dos primeiros erezentos anos da igreja rresnosove rsia sto Led ES Ky (0 QUE JESUS DISSE ca da invencdo da imprensa de tipos méveis no século XV, O grande montante de nossos textos gregos subsistentes provém das penas desses copistas cristiios medievais que viveram e trabalharam no Oriente (por exemplo, em reas que atualmente sio Turquia € Grécia) conhecido como 0 Império B >. Por esse motivo, os manuscritos gregos, do século XVII em diante, as vezes so classificados como manuscritos “bizantinos”. Como jé falamos, todo aquele que tenha familiaridade com a tradi- go manuscrita do Novo Testamento sabe que essas c6pias bizantinas do texto tendem a ser muito semethantes umas As outras, mesmo que as cépias mais antigas variem significativamente entre si e em relagao a forma do texto encontravel nessas c6pias tardias. A essa altura, os mo- tivos para isso j4 devem estar claros: isso tem a ver com quem copiava 08 textos (profissionais) e onde trabalhavam (numa érea relativamente limiada). ro pensar que porque os ma- nuscritos tardios concordam to extensamente um com o outro, tor- nam-se doravante testemunbos superiores aos, textos “originaigy do Novo Testamento. Alguém sempre ha de perguntar: onde esses copistas medievais conseguiam os textos que copiavam de modo to profissio- nal? Eles 05 conseguiam dos textos antigos, cépia de textos ainda mais primitivos. Portanto, os textos que esto mais proximos, em tesmos de forma, dos originais talvez sejam, muito inesperadamente, as_c6pias mais variantes e amadoristicas endo as.c6pias profi das dos tempos posteriores. Sontudo, configuearia gra A VULGATA LATINA As praticas de copia que venho sintetizando dizem respeito principal: mente a parte oriental do Império Romano, onde 0 grego era, ¢ conti: nua sendo, a lingua principal. Contudo, no demorou muito ¢ cristdos das regides nao-falantes do grego passaram a querer ter 05 textos sa- gtados em suas préprias linguas locais. Naturalmente, eta o latim a lin- gua de grande porgio da area ocidental do Império Romano; o siriaco era falado na Siria; o copta, no Egito. Em cada uma dessas regides, os livros do Novo Testamento vieram a ser traduzidos para as linguas ver- SUES Tata TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO! . naculas, em determinado momento do final do século II. Posteriormen- te, esses textos traduzidos foram, por sua vez, copiados por copistas em suas regides.* Foram particularmente importantes para a hist6ria do texto as tra- dugoes para o latim, porque grande parte dos cristéos no Ocidente tinha 6 latim como sus lingua principal, Mas logo comecaram a surgir proble- -mas.com as tradugées.latin escrituras, porque havia muitas delas_ © essas traducdes destoavam abertamente uma da outra. O problema se tornou crucial no fim do século IV eristao, quando o papa Damaso en- comendou.ao maior especialista daquele tempo, Jerénimo, a producio de uma tradugio latina “oficial”, que pudesse ser aceita p 18 0s latino-felantes, em Roma e alhures, como um texto oficial. O préprio Jerénimo fala da pletora de traducdes disponiveis e se dispoe a resolver pessoalmtente 0 problema. Ao escolher uma das melhores tradu- ‘Goes latinas disponiveis e ao comparar seu texto com manuscritos gre- {gos superiores aos quais tinha acesso, Jerdnimo criou uma nova edigao dos Evangelhos em lati discipulos, seja também responsével pela nova edigdo dos outros livros do Novo Testamento em latim. m. Pode ser que ele, ou algum de se Essa forma da Biblia em latim —a tradugao de Jerdnimo — se tornou conhecida como a Biblia Vulgata (= comum) da cristandade latino-falan- te, Fla foi a Biblia.da Igreia ocidental, ela mesma copiada e recopiada intimeras vezes. Foi o livro que 0s cristaos leram, os pesquisadores pes: quisatam ¢ os teGlogos usaram durante séculos, até o period moderno. Hoje hé aproximadamente duas vezes mais cépias da Vulgata latin. ‘que manuscritos gregos do Novo Testamento, 4, Para um panorama dessas antigas “verses” (sto &,tradugGes) do Novo Testamen- «0, vet: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bare D. Text of the New Testament, op. cit, cap. 2, sega 2. 5. Para as versdes latinas do Novo Testamento, incluinde a obra de Jeronimo, ver Bruce M.; FHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit cap. No (© QUE JESUS DISSE? ‘A PRIMEIRA EDIGAO IMPRESSA DO Novo TESTAMENTO GREGO Como jé foi dito aqui, o texto do Novo Testamento foi copiado de for- ma razoavelmente padronizada no decorrer da Idade Média, tanto no Oriente (o texto bizantino) como no Ocidente (a Vulgata latina). $6 a invengio da imprensa no século XV, com Johannes Gutenberg {1400- 1468) é que tudo mudou em termos de reprodugio de livras em geral e dos livros da Biblia em particular, Ao imprimir livros com tipos méveis, podia-se garantir que toda pagina seria completamente semelhante a toda outra pagina, sem variacdo de espécie alguma na seqiiéneia das pa- lavras. Foi-se a época em que cada copista poderia produzic diferentes cépias do mesmo texto por meio de alreragdes acidentais ¢ intencionais. Estar impresso era como ser gravado em pedra. Além disso, podiam-se ,, fazer livros mais rapidamente: nao havia mais necessidade de copia le tra porlerra. Como conseqiiéncia disso, 0s livros passaram a ser mais ba ratos. Poucos acontecimentos tiveram um impacto tao revolucionario no mundo moderno quanto a invengao da imprensa. © outro acontecimen- to que se aproxima dessa invengao (e que pode vir a ultrapassé-la em im- portancia) é o advento do computador pessoal. [A primeira grande obra a ser impressa na maquina de imprimir de Gutenberg foi uma magnifica edigdo da [Biblia (Vulgata) latinaj que de- ‘morou de 1450 a 1456 para ser produzidal* Na metade do século segui ‘te, cerca de cingiienta edigdes da Vulgata foram produzidas por varias casas impressoras da Europa. Pode causar estranheza a auséncia de im- pulso para produzir uma c6pia do Novo Testamento grego nesses primei- ros anos da imprensa. Mas 0 motivo disso nao é dificil de ser descoberto: 6 aquele que jé mencionamos. Pesquisadores em toda a Europa — in- cluindo pesquisadores da Biblia — estavam, 1 ‘anos a pensar que a Vulgata de Jerdnimo era a Biblia, da Igecja {assim como algumas igeejas modernas de fala inglesa considera que.a King James Version éa “verdadeira” Biblia). A Biblia geega era tida como es- 6, Para maioresinformagises sobre essa e outras edigBes impressas discutidas nas pagi- nas seguintes, ver: METZGER, Bruce M.; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testa- ment op. cit. cap. 3. ‘| tranha a teologia ¢ a0 aprendizado; no Ocidente latino, ela era conside rada como propria dos cristdos ortodoxos gregos, considerados cismat cos que tinham desertado da verdadeira igreja, Poucos pesquisadore Europa Ocidental eram capazes de ler grego. Desse modo, 8 primeira vis ta, ninguém tinha interess greza. primeiro pesquisador ocidental a conceber a idéia de produzir uma versio do Novo Testamento grego foi um cardeal espanhol chamado Xi- menes de Cisneros (1437-1517). Sob sua lideranga, um grupo de pesquisa- dores, inclusive um que se chamava Diego Lopez de Zuitiga (Stunica), assumiu uma edigio da Biblia em varios tomos. Tratava-se de uma edigio poliglota, isto é, que reproduzia o texto da Biblia em varias linguas. Desse modo, 0 Antigo Testamento estava representado pelo original hebraico, a Vulgata latina e a Septuaginta grega lado a lado, dispostos em colunas. (A. posicio de privilégio atribuida por esses editores & Vulgata pode ser vista «em seus comentirios sobre essa organizagio do texto ja no prefac comparavam a Cristo — representado pela Vulgata — sendo crucificado entre dois criminosos, com os falsos judeus representados pelo texto he- braico e os gregos cismaticos representados pela Septuaginta.) A obra foi imp-essa em uma cidade chamada Alcald, cujo nome lati- no é Complutum. Por esse motivo, a edigdo de Ximenes € conhecida como a Poliglota Complutense. O volume do Novo Testamento foi o pri meiro a ser impresso (volume 5, completado em 1514). Ele continha 0 texto grego € incluia um glossario grego com equivalentes latinos. Mas nao havia plano de publicar esse volume separadamente — todos os seis, volumes (0 sexto inclu‘a uma gramética hebraica e um dicionério, para auxiliar na leitura dos volumes 1-4) deviam ser publicados conjuntamen- te, € isso levou um tempo consideravel. A obra toda foi coneluida, a0 que parece, por volta de 1517; mas como era uma produgio catélica, neces- sitava da aprovagio do papa, Ledo X, antes de poder ser publicada. A aprovagio foi finalmente obtida em 1520, mas por conta de outras com- plicagies, 0 livro nao foi distribuido até 0 ano de 1522, cerca de cinco anos depois da morte do proprio Ximenes de Cisneros. Como vimos, nessa época, havia centenas de manuscritos gregos (isto 6, c6pias feitas 4 mio) disponiveis para as igrejas cristas e os pesquisado- no foi, entio, que Stunica e seus cormpanheiros edito- res decidiram quais desses manuscritas usar ¢, antes disso, quais eram_os manuscritos que realmente eram acessiveis a eles? Infelizmente, essas s0 res no Oriente. Couns soem cobeés toe wre “0 eeRESSSESSERTESESSESESESESEEETSECESESESESEESESTSELESESEAESTSESEISIEES y BUTS iia ‘EXTOS DO NOVO TESTAMENTO a8 (© QUE JESUS DISSE? perguntas que os pesquisadores nunca foram capazes de responder com seguranga. Na dedicatoria da obra, Ximenes de Cisneros exprime sua gratidio ao papa Leao X pelas c6pias gregas “da Biblioteca Apostélica” que o papa Ihe teria emprestado. Desse modo, os manusctitos que servi ram para a edigao podem ter provindo do acerva vaticano. Contudo, al- ‘guns especialistas suspeitam que foram usados manuscritos localmente disponiveis. Cerca de duzentos ¢ cingiienta anos depois da produgio da Complutum, um erudito dinamarqués chamado[Moldenhawa visitou Alcali para vistoriar seus recursos biblioteconémicos e para tentar eluci- dar essa questo, mas cguiu encontrar nenhum manuscrito do ~ Novo Testamento grego. Como continuou a suspeitar de que a bibliote- ca tinha de ter tido alguns manuscritos em algum momento, ele insistiu nas investigagdes, até que um bibliotecério ao final Ihe disse que a biblio- teca realmente tivera antigos manuscritos gregos do Novo Testamento, ‘mas que em 1749 todos tinham sido vendidos a um fabricante de rojées, chamado Toryo “como pergaminhos intiteis” (mas adequados para fa~ bricar fogos de artificio), studiosos posteriores tentaram desacreditar esse relato.’ Mas ele de- ‘monstra, pelo menos, que o estudo dos manuscritos gregos do Novo Tes- tamento nao esta reservado apenas a génios, A PRIMEIRA EDICAO PUBLICADA DO Novo TESTAMENTO GREGO Embora a Poliglota Complutense tenha sido a primeira edigéo impressa do Novo Testamento grego, ela no foi a primeira, versio publicada, Como vimos, a Complutum foi impressa por volta de 1514, mas s6 veio a lume realmente em 1522. Entre essas duas datas, um pesquisador ho- landés empreendedor, o intelectual humanista[Desidério Frasmo] produ- ziu e publicou uma edigio. do. Novo Testamento, grego, passando a 7. Ver especialmente, o relatoinformativo ems TREGELLES, Samuel P. Am account of the printed text ofthe Greek New Testament. Londres: Samuel Bagster 8¢ Sons, 1854 peu. agen © pon bbe Yo / Dptetan Ge yarn gam trattagee © prieEta Yr o StS iia TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO merecer a honra de ter editado a assim chamada editio princeps (= pri- meira edi¢ao publicada). Erasmo estudou o Novo Testamento, juntamen- te com outras grandes obras da Antigiiidade, sem regularidade, durante muitos anos ¢, a certo ponto, pensou em juntar tudo e imprimir uma edi- 40, Mas s6 quando visitou Basiléia, em agosto de 1514, foi convencido por um editor chamado Johann Froben a seguir em frente. Tanto Erasmo como Froben sabiam que a Poliglota Complutense es- tava em preparagdo e por isso se apressaram a publicar um texto grego 0 mais rapidamente possivel, embora outras obrigacdes impedissem Eras- mo de assumir para valer a tarefa antes de julho de 1515. Nessa época, cle foi a Basiléia em busca de manuscritos utilizaveis, que pudesse usar como base para sea texto. Nao descobriu uma grande fartura de manus- ctitos, mas o que encontrou foi o suficiente para a tarefa. No mais das vezes, ele se fiou em um punhado de manuscritos medievais tardios, que rabiscou como se estivesse editando e corrigindo uma cépia manuscrita para o impressor; o impressor tomou os manuscritos com essas emendas e fez a matriz diretamente deles. ‘Tado indica que Erasmo baseou-se principalmente em apenas um ma- anuscrito do século XII para os Evangelhos ¢ em outro, também do lo XIL, para_o livro dos Atos_¢ as Epistolas — embora pudesse ter consultado virios outros manuscritos ¢ feito correcdes a partir de suas leituras. Para 0 livro do Apocalipse, teve de tomar emprestado um ma- nuscrito de seu amigo, o humanista alemao Johannes Reuchlin. Infeliz- mente, esse manuscrite apresentava passagens quase impossiveis de ler e, ainda por cima, ngo tinha a diltima pagina, que devia conter os seis ver~ siculos finais do livro. Em sua pressa de concluir o trabalho, nessas pas- sagens, Erasmo simplesmente langou mao da Vulgata latina ¢ retraduziu © texto latina para o grego, gerando com essa atitude a losas tex- tuais que hoje nfo se encontram em nenhum manuscrito grego subsisten- te. Eadeldé, como veremos, a edigo do Novo Testamento grego que, para todos os propésitos praticos, foi usada pelos tradutores da Biblia King James quase um século mais tarde, A impressio da edi¢ao de Erasmo teve inicio em outubro de 1515 € foi concluida apenas cinco meses depois. A edigio inclui, lado a lado, 0 texto grego coligido As pressas e uma versio revisada da Vulgata latina (a partir da segunda edigo, em todas as edigdes posteriores, Erasmo in- cluiu sua propria tradugao latina do texto em lugar da Vulgata, para 90 (© QUE JESUS DISSE? grande consternagio de muitos tedlogos da época, que ainda consideravam a Vulgata “a” Biblia da Igreja). O livro era bastante volumoso, com quase mil paginas. Mesmo assim, como o proprio Erasmo disse mais tarde, ele, “em ver de ser editado, saiu precipitadamente” (sua frase em latim & prae- cipitatum verius quam editur) £ importante reconhecer que a edigdo de Erasmo foi a editio princeps do Novo Testamento grego nao apenas porque representa um ponto hi t6rico importante, mas acima de tudo porque, @ medida que a hist6ria do texto se desenvolveu, as ediies de Erasmo (ele fez cinco, todas ba- seadas, em siltima instancia, na primeira edicdo feita as pressas) corna- ram-se a forma-padrdo do texto grego que passou a ser publicado pelos impressores europeus ocidentais durante mais de trezentos anos. Segui- ram-se numerosas edigdes gregas, produzidas por impressores cujos no- mes so bem conhecidos pelos pesquisadores do assunto: Stephanus (Robert Estienne), Teodoro Beza, Boaventura ¢ Abraio Elzevir. Contu- do, todos esses textos, de um modo ou de outro baseados nos textos de seus predecessores, remontam ao texto de Erasmo, com todas as suas fa Ihas, por ter sido feito a partir de uns poucos manuscritos (por vezes, dois ow até mesmo um — ou, em partes do Apocalipse, nenhum!) que foram produzidos relativamente tarde no periodo medieval, Os impressores, em sua maioria, nao foram atras de novos manuscritos que pudesscm ser $s, para estabelecer seus textas. Em vez. disso, sim- plesmente imprimiram e reimprimiram 0 mesmo texto, fazendo apenas ajustes menores. Algumas dessas ediges so, seguramente, importantes. Por exemplo, ‘a terceira edigdo de Stephanus, de 1550, se destaca por ser a primeira edicio a incluir notas para documentar diferengas entre alguns dos ma- uuscritos consultados; sua quarta edi¢ao (1551) pode ser considerada ainda mais importante, por sera primeira edigo do Novo Testamento .«-Brego a dividie o texto.em versiculos. Até ent3o, fora impresso “todo junta, sem nenhuma. x versiculos. Ha uma “* “anedota divertida associada ao modo como Stephanus fez 0 seu trabalho nessa edigdo. Seu filho contou mais tarde que ele se decidira pela divisaio em versiculos (em grande parte scguida pelas tradugdes modernas) en- quanto viajava a cavalo. Sem diivida, ele quis dizer que seu pai “traba- thava durante o trajeto” — ou seja, que cle introduzia no texto os ntimeros de versiculos & noite, nas hospedarias em que parava. Mas vis- Yetinds, Dh ten ded do hn guton a hipch 0 dex RIES OTE AKG A COPPLE ( SUABEO UMA ) TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO to que o filho de Stephanus diz literalmente que o pai fez essas mudangas “no lombo do cavalo”, alguns observadores tendenciosos sugeriram que cle realmente fez sua obra em transito, de modo que a cada vez que sev cavalo dava um solavanca, a.pena de Stephanus pulava, senda esse o.mo fivo da seqiiéncia tipica dos versiculos-que hoje encontramos em_nassas tradugdes do Novo Testamento. © ponto mais abrangente a que me refiro, contudo, € que todas essas edigdes posteriores — inclusive a de Stephanus — remontam, em dltima instincia, 4 editio princeps de Erasmo, por sua ver baseada em alguns 'manuscritos gregos mais ou menos tardios e nao necessariamente confi- veis — aqueles que ele por acaso encontrou em Basiléia e um que tomou emprestado de sea amigo Reuchlin, Nao h4 motivo para pensar que ¢5- ses manuscritos, particularmente, apresentassem um alto nivel de quali- dade, Tratava-se simplesmente daqueles de que ele pode langar mao. isso tudo se depreende que esses manuscritona@eram de qualida- de superior, porque,.em iltima insrincia, foram produzides maisou me- nos cem anos depois dos.originais! Por exemplo, o principal ‘manuuscrito que Erasmo usou para os Evangethos continha tanto a nar~ rativa da mulher flagrada em adultério quanto os diltimos doze versfcu- los de Marcos, passagens que originalmente no faziam parte dos Evangelhos, como aprendemos no capitulo anterior. Havia, contudo, uma passagem-chave das Esctituras que-os manuscti- tos-fonte de Erasmo no continham: trata-se do relato det Joao 5,7-8, que os pesquisadores chamaram de o paréntese joanino, encontrado nos manuscritos da Valgata latina, mas nao na vasta maioria dos manuscritos sgregos, uma passegem que foi, por muito tempo, a predileta entre os te6- logos cristdos, dado que € a tinica passagem na Biblia inteira que delineia explicitamente a doutrina da Trindade, segundo a qual ha trés pessoas na divindade, com todas as trés constituindo um s6 Deus. Na Vulgata, a pas sagem é lida assim: Ha trés que conduzem o testemunbo nos céus: 0 Pai, o Verbo e 0 Es- Dirito e esses trés sd0 um; e hd trés que conduzem o testemunho na terra, 0 Espirito, a dgua e 0 sangue, ¢ esses trés so um. Trata-se de uma passagem misteriosa, mas inequivoca em seu apoio 0s ensinamentos tradicionais da igreja sobre 0 “Deus tino que é um”. Sem esse versiculo, a doutrina da Trindade deve ser inferida de uma série de passagens combinadas para mostrar que Cristo é Deus, assim como 0 SUE ee oe 0 QUE JESUS DISSE? Espirito € 0 Pai, sett turno, afirma a doutrina direta e sucintamente. Mas Erasmo no a achou em seus manuscritos gregos, os quais sim- Plesmente sel: "Poi hé tes que dio testemunho: 0 Espirito agua e 0 sangue, e esses trés sio um”. Para onde foram “6 Paiyo Verbo 9 0 E ito”? Eles nao figuravam no manuscrito primario de Erasmo, nem em nenhum dos demais que ele consultou, Por isso, naturalmente, ele 0s dei- xou de fora de sua primeira edigo do texto grego. Foi isso, mais do que qualquer outra coisa, que tirou do sério-os te6- Jogos de seu. tempo, que acusaram Erasmo de adulteraro texto, numa tentativa de eliminar a. doutrina da Trindade ¢ de desvalorizar o seu cox rolétia, a doutrina da divindade plena de Cristo. Particularmente Stuni: ca, um dos editores-chefes da Poliglota Complutense, veio a pablico dlesacreditar Erasmo ¢ insistir em que, em edigGes futuras, ele restituisse que ha, nao obstante, um s6 Deus. Essa passagem, por 0 versiculo a seu lugar correto. Com o desenrolar dos fatos, Erasmo — provavelmente em um mo- mento de descuido — concordou em inserir 0 versiculo em uma futura jue seus ad- versarios produzissem um manuscrito grego no qual 0 verso pudesse ser -a 0 bastante). Dessa forma, produzit-se um manuscrito grego. Na realidade, ele foi produzi- do nessa ocasido. Parece que alguém copiou o texto grego das epistolas €, quando chegou a passagem em questo, traduziu o texto latino para o sgrego, dando o paréntese joanino em sua forma teologicamente aprovei tavel, familiar. ©. manuscrito providenciado para Erasmo era, em ourras palavras, uma produgio do século. XVI, feita sob encomenda. fo obstante suas apreensées, Erasmo manteve a palavra e incluiu 0 paréntese joanino na proxima e em todas as edigdes de seu Novo Testa mento grego a partir de entao, Tais edicdes, como jd ressaltei, romaram- se a base paca.as edigies do Novo Testamento gzega.que cram, 2 épo reproduzidas de tempos em tempos segunda as preferéncias de Stepha: us, Beza ¢ dos Elzevirs, sas edigdes estabeleceram,a forma do texto {que os tradurores da Biblia King James por fim usarany E passagens tio familiares aos leitores da Biblia — da King James, de 1622 em diante, até as modernas edigdes do século XX — incluem a mulher flagrada em adultério, 08 tiltimos doze versiculos de Marcos ¢ 0 paréntese joanino, mesmo que nenhuma delas possa ser encontrada nos manuscritos supe- edicdo de seu Novo Testamento grego, sob uma condigi encontrado (aché-lo nos manuscritos latinos nao "AAI FE Oe eee Pare riores ¢ mais antigos do Novo Testamento grego. Flas rente de consciéncia dos leitores da Biblia por mero acaso dla historia, por causa dos manuscrivos a que Erasmo por acaso teve acesso «em. que foi rita. sob encomenda para ele ‘As varias edigdes gregas dos séculos XVI ¢ XVII eram tio semelhantes que, por fim, os impressores comecaram a afirmar que elas eram texto universalmente aceito por todos os pesquisadores¢ leitores do Novo Testa- mento grego —¢ realmente eram, dado que no havia discordincia! A mais citada constatagao encontea-se em uma edigo produzida em 1633 por [Abraao ¢ Boaventura Elzevir (que eram tio e sobrinho), na qual eles dizem 4 seus leitores, em tormos que desde entio se tornaram oélebres entre pes- quisadores, que “vocés agora tém_o texto que é aceito por todos, no qual nada alteramos n 10s". O fraseado desta afirmagio, especial- ‘mente as palavras “texto.que éaceita nar rodos”, gerou a expressio comum “Textus Receptus (abreviadamente TR), usada pela critica textual para se re ferir a forma do texto grego baseada, nfo nos manuscritos mais antigos e melhores, mas na forma do texto originalmente publicado por Erasmo e di fundido pelos impressores durante mais de trezentos anos, enquanto 0s pes- ntraram quisadores do texto biblico ndo comecassem a insistir em que 0 Novo ‘Testamento grego devia ser estabelecido a partir de principios cientificos ba- seados em nossos mais antigos ¢ melhores manuscritos, nao simplesmente reimpresso segundo o costume. Foi a forma textual inferior do Textus Re: ceppus que se tornou-a base das traducées inglesas mais antigas, incluindo a Biblia King James ¢ outeas edigdes aré quase-o final da sécula XIX. O APARATO CRITICO DE MILL PARA oO Novo TESTAMENTO GREGO Para muitos pesquisadores que tinham acesso as edigdes impressas du- rante 0s séculos XVI ¢ XVII, 0 texto do Novo Testamento grego, entio, parecia estar em posigdo segura. Afinal de contas, quase todas as edigdes, 8, Em latims “Textum ergo habes, nunc ab omnibus receprum: in quo nihil imutatum aut corruptum damus". TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO- BLE aad 4 (© QUE JESUS DISSE? tinham praticamente o mesmo texto. De quando em vez, porém,.os pes: quisadores se dedicavam a descobrir e a divulgar que os manuscritos gre- {gos apresentavam variagio em celagdo ao texto habitualmente impresso. Vimos que Stephanus, em sua edigio de 1550, incluiu notas & margem para identificar lngares de variag: nara (catorze ao todo). Algum tempo depois, no s centre varios manuscritos que exami sculo XVII, pesquisa dores ingleses, como Brian Walton ¢ John Fell, publicaram edig6es nas quais se levavam mais a sério as variagdes entre os manuscritos subsis- tentes aos quais se tinha acesso. Mas quase ninguém se deu conta da enormidade do problema da variagio textual, até a publicacao pioneia, ‘em[1707] de um dos cldssicos no campo da critica textual do Novo Tes- tamento, um livro que teve o efeito de um cataclismo sobre o estudo da transmissio do Novo Testamento grego, abrindo as comportas que for- ‘garam 08 pesquisadores a encarar com mais seriedade a situagao textual dos manuscritos do Novo Testamento,’ Trata-se da edigao do Novo Testamento grego de John Mill, membro do Queens College, Oxford. Mill investiu trinta anos de trabalho arduo para reunir os materiais para sua edi¢ao. O texto que ele imprimiu foi simplesmente a edigao de 1550 de Stephanus. Mas 0 que.chamou a.aten- sao na publicagao de Mill nao foi o texto. que ele usou, mas as glosas va- es desse texto que ele citava no aparato critico. Mill reve acesso as ‘glosas de cerca defeem manuscritos gregos do Novo Testament} Além disso, examinou cuidadosamente os escritos dos padres da Igreja primi- tiva para ver como eles citavam o texto — na hipétese de alguém poder reconstruir 0s manuscritos utilizados por esses padres pelo exame de suas citagdes. Além do mais, mesmo ndo podendo ler muitas das outras lin- guas antigas, a excegao do latim, ele uso uma edigao antiga publicada por Walton para ver onde as antigas versGes em linguas como o siriaco e © copta diferiam do grego. ‘Com base nesse intenso esforgo de trinta anos para acumular mate- riais, Mill publicou seu texto com aparato eritico, no qual indicava luga- res de variagio entre todos os materiais subsistentes a que teve acesso. Para abalo ¢ assombro de muitos de seus leitores, 0 aparato critico de 9, Ver: METZGER, Bruce M; EHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. it cap, 3, sega 2. mae’ Mill isolava cerca de trinta mil lugares de variagdo entre os testemunhos subsistentes, trints mil lugares onde manuscritos diversos, citagdes pa tristicas (= dos pacres da Igreja) e versdes liam de modo diferente passa~ gens do Novo Testamento. Mill nao foi excustivo em sua apresentacao dos dados que coligiv. Na verdade, encontrara muito mais que trinta mil lugares de variasdo. Fle no citou tudo o que descobrira, deixando de lado variagdes como as {que envolvem mucangas da ordem dos termos na frase. Também deixou de lado os lugares que notou serem capazes de afastat 0 pablico leitor da complacéncia na qual se encontrava, baseada na constante republicacéo do Textus Receptus e na suposigao de que se tinha no TR o grego “origi- nal” do Novo Testamento. Atualmente, o status de texto original foi lan- cado em aberta disputa. Se alguém nao sabe quais so as palavras originais do Novo Testamento grego, como pode usar tais palavras para decidir qual 0 ensinamento € doutrina cristaos corretos? A CONTROVERSIA CRIADA PELO APARATO CRITICO DE MILL (© impacto da publicagdo de Mill foi imediatamente sentido, embora ele mesmo nao tenha vivido para ver o drama se desenrolar. Ele morrey, vi- tima de derrame, apenas a duas semanas de sua grande obra ser publica- da, Apesar disso, sua morte repentina (atribuida por um observador 20 fato de Mill “ter bebido café demais"!) nao impediu os detratores de par- tirem para o ataque. O ataque mais mordaz veio trés anos mais tarde, em um volume bastante erudito de um controversista chamado Daniel ‘Whitby, que, em 1770, publicou um conjunto de notas sobre a interpre tagdo do Novo Testamento, ao qual acrescentou um apéndice de cem pa- ‘ginas, no qual examinava, em pormenor, as variantes citadas por Mill em sett aparato, Whitby era um re6logo protestanse conservador, cuja visio bésica era a de que ainda que Deus nao tivesse evitada que os erros gras- sassem nas c6pias que-os copistas fizeramdo Nove Testamento, ele nun: ‘ca permitiria que 0 texto se tornasse to corrompido (isto é, alterado)a ponto de nao poder atingir adequadamente sua intengdo ¢ designio divi- nos. Por isso, ele amenta: “Portanto, OFENDE-ME me aborrece ter en- rexrospo xovorestanento RSLS 4 LOS 96 (0 QUE JESUS DISSE? contrado tanta coisa nos prolegémenos de Mill que parece capaz de tra- zer inseguranga ao padrao da fé, on pelo menos dar a outros muitos bons, motivos para duvidar”."” Whitby chega a sugerie que os pesquisadores catélicos romanos — ‘aos quais chama “os papistas” — ficariam todos muito felizes se passas sem a poder provar, com base na inseguranga dos fundamentos do texto grego do Novo Testamento, que as escrituras nao eram autoridade sufi ciente para a fé — isto é que a autoridade da igreja é superior. Nas pala- vas dele: “Morinus [um pesquisador catélico] defende a depreciagao do ‘Texto Grego, o que tornaria a autoridade do Texto Grego incerta a par- tir da multiplicidade de variantes que ele encontrou no Testamento gre- go de R. Stephens papistas sobre o mesmo texto quando virem as variantes quadruplicadas por Mill, depois do tanto que ele suou em trinta anos de trabalho?” Whitby segue argumentando que, de fato, 0 texto do Novo Testamento é seguro, dado que raramente alguma variante citada por Mill diz respei- to a um artigo de fé ou a uma questao de conduta e afirma que a grande maioria das variantes de Mill ndo tem declaragdo de autenticidade. Whitby parecia querer que sua refutagao provocasse efeito sem que ninguém realmente a lesse, porque se tratava de cem paginas irgidas, densas, desagradaveis, de argumentacao cerrada, que tenta chegar ao ob- jetivo simplesmente pela massa acumulada de sua refutagao, A defesa de Whitby bem que poderia ter atingido 0 alvo se nao tives- se passado a ser usada por aqueles que usavam as trinta mil passagens de variagdo de Mill exatamente para o propésito que Whitby temia, para defender que nao se podia confiar no texto da escritura porque ele era, em si, muito incerto. Destaque entre aqueles que defendiam essa posigio teve o defsta inglés Anthony Collins, amigo ¢ seguidor de John Locke, que, em 1713, escreveu um panfleto intitulado Discurso sobre o livre- pensamento. A obra era um produto tipico do pensamento deista de ini cios do século XVII: defendia a primazia da logica ¢ da demonstragao tephanus]; que vit6ria nao alcangardo entdo os 10, Enfase de Whitby, apud FOX, Adam, fohn Mill and Richard Bentley: a study of textual erticism ofthe New Testament, 1675-1729. Oxford: Blackwell, 1954, p. 106 11, Ibidem, p. 106. rrxrosponovorsstantnro, SLES Talal sobre a revelacio (presente, por exemplo, na Biblia) e a possibilidade do milagre. Na secdo 2 da obra, que trata de “questées religiosas”, Collins observa, em meio a muitas outras coisas, que até mesmo o clero cristo (isto é, Mill) “reconheceu e trabalhou para provar que o Texto da Escri- tura é precério”, fazendo referéncia as trinta mil variantes de Mill (© panfleto de Collins, que se tornou muito lido e exerceu geande in- fluéncia, provocou certo niimero de respostas pontuais, muitas delas obtu- sas e penosas, algumas outras eruditas indignadas. Compreensivelmente, seu mais significativo resultado foi ter envolvido na disputa um especialis- ta de grande.reputavdo internacional, o mestee do Trinity College, de Cam- bridge, Richard Beatley.)Bentley é renomado por sua obra sobre autores classicos como Homero, Horacio e Teréncio. Em uma réplica tanto a Whitby como a Collins, escrita sob 0 pseudénimo de Fileléutero Lipsiense (que significa algo como “o amante da liberdade que vem de Leipzig [Lip- sia” — uma alusio ébvia a0 apelo de Collins ao “livre-pensamento”), Bentley chama a atencio para 0 ponto dbvio de que as variantes que Mill acumulou nao tornariam inseguros os fundamentos da fé protestante, vis- to que tais variantes existiam mesmo antes de Mill té-as notado. Ele no as inventou; apenas chamou a atengdo sobre clas. (Sle formos dar crédito ndo apenas a esse douto Autor (Collins), mas a um Doutor, por prépria conta, ainda mais douto {Whitby}, Ele [Mill] a- butou todo esse tempo, para provar que o Texto das Escrituras é preca- rio... Mas exatamente contra que seu Whitbyus tanto ataca e grita? A Labuta do Doutor, diz ele, torna todo o texto precério; e expde tanto a Re~ forma aos Papistas, como a propria Religido aos Ateistas. Deus nos livre! Esperamos coisas melhores, Certamente essas Leituras Variantes existiant antes em vérios Exemplares; Dr. Mill no as fez e cunbou, apenas as exi- biu a nossa Visio. Se, portanto, a Religido era verdadeira antes, mesmo com qssistincia detais Leituras Variants. ela continuand a ser uerdadeica , conseqiientemente. ainda estard a salvo, embora.todas as veiam. Conte- ‘mos com isso; nenbuma Verdade, nenhuma matéria de Costume conve- nientemente exposts pode chegar a subverter a verdadeira Religido.* 12. urstexsis, Phileleutherus. Remarks upon a late discourse of free thinking. 7. ed Londres: W. Thurbourn, 1737. p. 93-94, ow 6 Gi fsb ESE Bentley, um especialista nas tradigdes textuais dos classicos, continua, explicando que é claro que se pode esperar encontrar uma multiplicida~ de de variantes textuais sempre que se descobre um grande niimero de manuscritos. Se houvesse apenas um manuscrito de uma obra, nao have- ntudo, assim que um segundo manuscrito €o- calizado, ele diferira do primeiro em varias passagens. Isso, porém, nao é ruim, visto que as verses variantes mostrario onde o primeira manus- “sfito preservou um erro. Acrescente um terceiro manuscrito, e vocé en- contrara versdes variantes adicionais, mas também passagens adicionais, como resultado, onde o texto original é preservado (isto é onde os dois primeiros manuscritos concordam em um erro). E assim por diante — ria variantes textuais. C \quanto mais manuscritos forem descobertos, mais versdes variantes; mas « ambém quanto mais semelhangas forem descobertas entre essas verses Vwariantes, mais provavel sera alguém descobrir o texto original. Portan- to, as trinta mil variantes descobertas por Mill nfo depreciam a integri- dade do Novo Testamento; elas simplesmente.fornecem os dados de que 'os pesquisadores necessitam para tcabalhar no estabelecimenta do texto, uum texto que é muito mais amplamente.documentado do que qualquer ‘outro do mundo antigo} Como veremos no préximo capitulo, essa controvérsia gerada pela publicagzo de Mill, por fim, levara Bentley a dedicar todas as suas pode- rosas habilidades intelectuais ao problema do estabelecimento do mais antigo texto do Novo Testamento ao qual se pode ter acesso. Mas antes de nos embrenhar nessa discussio, talvez devamos dar um passo atris ¢ ‘examinar onde nos situamos hoje com relagio a espantosa descoberta de Mill de trinta mil variantes na tradi¢ao manuscrita do Novo Testamento. Nossa sITUACAO ATUAL Enquanto Mill tomou conhecimento ou examinou cerca de cem manus- ctitos gregos para descobrir suas trinta mil variantes, hoje temos conhe- cimento de muitas, muitas mais. Os siltimos célculos indicam que mais de cinco mil e setecentos manuscritos grego _gados. E quinhentas e setenta vezes mais do que os cem manuscritos que ‘Mill conhecia em 1707. Esses cinco mil ¢ setecentos incluem de tudo, Hons le Sota yawn’ lg Fee ee ee Oe et ‘TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO desde 0 menor dos fragmentos de manuscritos — do tamanho de um ear- tao de crédito — até produces bem maiores ¢ excelentes, preservadas em sua totalidade. Alguns deles contém apenas um livro do Noxo ‘Testa ‘mento; outros contém Evangelhos ou as cartas de Paulo}; poucos sio os que contém o Novo ‘Testamento inteiro."" Por outro lado, ba muitos manuscritos das vias versbes (= ttadusdes) primitivas do Novo Testamento. Esses manuscritos se distribuem no tempo do inicio do século Il (um fragmento pequeno chamado P™, que registra varios versiculos de Joao 18), até 0 século XVI" O tamanho deles varia muito: alguns so peque- nas c6pias que caberiam na palma da mao, como uma c6pia copta do Evangelho de Mateus, chamada cédice Scheide, que mede 11x13,7 cen- timetros; outros sao cépias muito maiores e impressionantes, dentre as quais podemos citar o ja mencionado Cédice Sinaitico, que mede 38,1x34,2 centimetros ¢ ocupa um bom espao quando completamente aberto. Alguns desses manuscritos so baratos, cépias produzidas as pressas; alguns chegam até a ser copiados em paginas usadas (quando um documento foi azagado ¢ 0 texto do Novo Testamento foi escrito por sobre as paginas apagadas); qutros so copias magni incluindo algumas escritas em pergaminhos purpura com tinta de prata ou de ouro. Em geral, os pesquisadores falam de Guatta tipos de manuscritos gregos:"* uma pequena colecio (por exemplo, os quatro 13. Meu amigo, Michael Holmes, chama minha acengio para o fato de que das sere mil cépias da Biblia grega (tanto © Novo Testamento arego quanto © Antigo Testamento ‘rego), menos de dez, 20 que saibamos, ainda contém a Biblia inteira, © Antigo € 0 Novo Testamentos. Desscs der, todos agora tém falhas (paginas falrando aqui e acola}s 36 quatro dees sio anteriores ao século X. c. 14, Manuscritos — edpias mio — contioyasam a se feiros depois da invengio da im ‘prensa, do mesmo modo como algumas pessoas continuam a usar méquinas datloges- Ficas hoje, mesmo com todos os processadores de texto disponiveis, 15, Veremos que as quatro eategorias de manuscritos ndo seguem os mesmos prinek pos. Os papiros sio esirios em escrita uncial, assim como os uneiais, mas em uma su perficie de esritadistinta; os mindsculos sZo escritos no mesmo tipo de superficie dos ‘uncials (pergaminho), mas em um tipo de eseita diferente too (© QUE JESUS DISSE? a) Os mais antigos sto os manuscritos papyrus, escritos em material manufaturado do junco de papiro, um material de escrita valoriza- do, mas barato ¢ eficiente no mundo antigo; eles datam de uma Epoca que vai do século Il ao século VIL. b) Os manuseritos finciaiS)(= caixa alta) sao feitos de pergaminho (= pele de animais, as vezes, chamado de velino), cujo nome vem das letras grandes, semelhantes a nossas maitisculas, que eram usadas; cles datam, em sua maioria, de uma época que vai do século IV ao, século IX. ) Manuscritos Zrintisculo€{caixa baixa) também sao feitos em per gaminho, mas sio escritos em letras menores, freqiientemente combinadas (sem que a pena seja levantada da pagina) com algo {que se assemelha ao equivalente grego da escrita cursiva; esses da- tam do século IX em diante, 4) Lecionarios geralmente se apresentam em forma miniscula, mas ‘em vez de consistir em livros do Novo Testamento, conté ordem estabelecida, “Ieituras” tiradas do Novo Testamento para ser usadas semanalmente na igreja ou em cada dia santo (como os leciondrios usados hoje nas igreias). Allém desses manuscritos gregos, temos conhecimento de cerca de dez = mil manuscritos da Vulgata latina, sem falar nos manuscritos de outras verses, como a Sirjaca, a Copta, a Arménia, a Vétero-georgiana, a da Igreja Eslava, e assim por diante (lembremos que Mill s6 teve acesso a poucas das verses antigas e apenas por meio de suas tradugdes latinas). éscimo, temos os escritos de. padres da Igteja como Clemente de “ea Alexandria, Origenes ¢ Atandsio, entre os gregos; Tertuliano, Jerdnimo _c Agostinho, entre os latinos — todos com citagdes dos textos do Novo “Testamento em muitas passagens, o que possibilita reconstituir 0 que > Ema devem ter sido os manuscritos (atualmente perdidos em sua maioria) que utilizavam, Com tamanha profusio de indicios, qual sera o total de variantes ~ atualmente conhecidas? Os pesquisadores fazem estimativas muito dis- Ss. cordantes — alguns falam de duzentas mil variantes conhecidas, outros 40” ds de itas.muiJ, alguns falam de quatrocentas mil, ou mais! Mas nao se or” tem certeza, porque, apesar dos impressionantes avangos da inform: ca, ainda nao houye quem fosse capaz decantar todas. Talvez, como eu hydt | tyre am tae TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO jd disse, seja melhor falar em termos comparativos. Ha mais variagies* entre os nossos manuscritos que palavras no Novo Testamento. Tiros DE MUDANGAS EM NOSSO MANUSCRITOS Se € problematico falar da quantidade de mudangas que ainda persiste, que dizer dos tipos de mudangas enconteaveis nesses manuscritos? Geral- mente, 08 pesquisadores hoje distinguem mudangas que parccem ter sido inseridas acidentalmente por causa de exros dos copistas ¢ alteragdes in- tencionalmente feitas, com premeditagao. feonteiras inflexiveis e fixas, mas mesmo assim parecem ser bem apro- as nao sao, evidentemente, priadas: qualquer pessoa pode compreender que um copista, sem perce- ber, deixou de fora uma palavra enquanto copiava um texto (uma mudanga acidental), mas ¢ dificil compreender como os daze tltimos very siculos de_ Marcos poderiam ser acrescentados por causa de um escorre- io da pena. Por isso, parece bastante proveitoso encerrar este capitulo com alguns Vi exemplos desses dois tipos de mudanca. Comesarei indicando alguns ti- pos de variantes “acidentais” Mudancas acidentais Deslizamentos acidentais da pena" eram, sem duivida, potencializados pelo fato de os manascritos gregos serem todos redigidos em scriptuo — sem pontuagio, z é mesmo sem es- ago entre as palavras. Isso significa que/palavras muito semelhantes en tre si eram frequentemente tomadas uma pela outral Por exemplo, em 1 Corintios 5,8, Paulo diz a seus leitores que eles deviam tomar parte do Cristo, 0 cordeiro pascal, e que nao deviam comer 0 “fermento velho, © fermento de maldadee de perversidade”. A diltima palavra, perversidade, 16, Para-mais exemplos de mudangas avidentais, ver: METZGER, Bruce M.; EHR MAN, Bart D, Text of the New Testament, op. cit cap. 7, sega0 1 lo ete Irvenney, tbl om poatans nvm cones gh Loe. mon PAE em grego é PONERAS, que, como se pode ver, é muito semelhante ao ter- ‘mo grego para “imoralidade sexual”, PORNEIAS. A diferenga de sentido pode nao ser ki muito grande, mas 0 chocante é que em alguns manuscri- tos subsistentes Paulo exorta explicitamente no contra a perversidade ‘em geral, mas contra o vicio sexual em particular. Esse tipo de erro de ortografia se tornou ainda mais constante pelo fato de os copistas as vezes abreviarem determinadas palavras para ga~ = nhar tempo ou espago. A palavra grega para “e”, por exemplo, é Raiye alguns copistas simplesmente escreviam a letra inicial, kj com um tipo de perninha no fim para indicar que se tratava de uma abreviagao. Outras abreviaturas muito comuns envolviam 0 que os pesquisadores chamaram de nomina sacra Cristo, Senhor, Jesus ¢ Espirito, que vinham abreviadas ou porque ocor- riam muito freqiientemente ou para mostrar que clas deviam ser objeto \de atencio especial. Por vezes, essas varias abreviaturas levaxamn.copistas “espécie de confusio, porque eles 601 pun abreviatura com outra oy tomayam_uma abreviatura por uma palayra Finteirat Por exemplo, em Romanos 12,11, Paulo exorta seu leitor a “ser- vir ao Senhor”. Mas a palavra Senhor, KURIOW, geralmente era abrevia da nos manuscritos como kw (com uma linha em cima), 0 que levou alguns copistas antigos a entendé-la como abreviatura de KaIRW, que sig: “tempo”. Desse modo, nesses manuseritos, Paulo exorta seus lei- jomes sagtados), um grupo de palavras como Deus, | | posteriores a uma nifica tores a “servirem ao tempo” De modo semethante, em 1 Corintios 12,13, Paulo mostra que todos foram, em Cristo, “batizados em um s6 corpo” ¢ todos “beberam de um 36 Espirito”. A palavra Espirito (pNcuma) fora abreviada como PMI, que também poderia ser — e foi — mal-entendida por alguns copistas como ‘0 termo grego para “bebida” (roma); desse modo, Paulo surge nesse tex- to indicando que todos “beberam da mesma bebida” Um tipo muito comum de erro nos manuscritos gregos ocorria quan- do duas linhas do texto que se estava copiando acabavam com as mes- ‘mas letras ou as mesmas palavras. Um copista copiava a primeira linha do texto e depois, quando seu olho voltava para a pagina, caia nas mes- ‘mas palavras, mas na linha de baixo, em vez de cair na linha que acaba- ra de copiar; cle continuava a copiar dali e, como resultado disso, saltava as palavras ou linhas do trecho que ignorara. Esse tipo de erro é chama- do de periblesis (um “pulo do olho”) pravacado par homocoteleutan Los TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO TO3 “mesmos fins”). Digo a meus alunos que eles s6 podem dizer que passa- ram pelo ensino superior quando puderem falar inteligentemente sobre periblesis provocacas por homoeoteleuton. O texto de Lucas 12,8-9 6 um bom exemplo de como isso funciona O texto € 0 seguinte: "Todo aquele que me confessa diante dos humanos, o filho do homem confessaré perante os anjos de Deus ’Mas todo aquele que me nega diante dos humanos serdo negados perante os anjos de Deus. Nosso mais antigo papiro manuscrito da passagem deixa de fora todo o versiculo 9; ¢ nao é dificil perceber como 0 erro foi cometido. O copista copiou as palavras “perante os anjos de Deus” no versiculo 8 € quando seu olho voltou & pagina, caiu sobre as mesmas palavras do versiculo 9 e pen- sou que fossem as palavras que acabara de copiar — dessa forma, ele avan- ‘sou para copiar o versiculo 10, deixando de fora o versiculo 9 inteiro. Em algumas ocasides, esse tipo de erro pode ter conseqiiéncias ainda mais desastrosas para o sentido de um texto. Em Joao 17,15, por exem- plo, Jesus diz em sua oragao a Deus acerca de seus seguidores: Nao peco que os guardeis do mundo, mas que os guardeis do maligno. Em um de nossos melhores manuscritos (o Cédice Vaticano, do sécu- lo IV}, as palavras *mundo... do” estdo omitidas, de modo a fazer Jesus enunciar a infeliz. oragao “nao pego que os guardeis do maligno”! Por vezes, erros acidentais so cometidos nao porque as palavras pare- cam semelhantes, mas porque soam semelhantes. Isso deve ter acontecido, por exemplo, quando um copista copiava um texto que Ihe estivesse sen- do ditado — quando um copista lia um manuscrito ¢ um ou mais copis~ tas copiavam as palavras em novos manuscritos, como as vezes acontecia, nos scriptoria posteriores ao século IV. Se duas palavras eram homéfonas, © copista que estivesse copiando podia, sem perceber, optar pela palayra errada em sua cépia, especialmente se ela fizesse sentido [errado}. Isso pa- rece ter ocorrido, por exemplo, em Apocalipse 1,5, onde o autor ora Aquele que “nos livrou de nossos pecados”. © termo grego para “livrou” (1usanTt) soa exatamente como o termo para “lavou” (LOUSANT!). Por- tanto, ndo é de surpreender que em certo niimero de manuscritos medie~ vais 0 autor ore aquele que “nos lavou de nossos pecados”. ‘Temos outro exemplo na carta de Paulo aos Romanos, onde Paulo afirma que “visto que fomos justificados pela fé, temos paz com Deus” 104 (© QUE Sbs DISS? (Romanos 5,1). Mas foi isso mesmo o que ele disse? O termo grego para “temos paz”, uma afirmagao de fato, soa exatamente como o termo para “petmita-nos ter a paz”, uma exortagao. Por isso, em expressive niime- ro de manuscritos, incluindo alguns dos mais antigos, Paulo nao afirma ‘que ele e seus seguidores tém paz com Deus, ele se incita a si e aos outros a buscar a paz. Essa 6 uma passagem cujo sentido correto os pesquisado- res textuais tém dificuldade em decidir.” Em outros casos, hi menos ambigitidade, porque a mudanga textual, mesmo sendo compreensivel, realmente nao faz sentido. Isso acontece muito, quase sempre por uma ou outra das razGes que vimos discutindo. Exemplo disso, Joao 5,394 onde Jesus diz a seus adversarios para “pers- crutar as escrituras... porque elas dio testemunho de mim”. Em um ma- nuscrito antigo, o verbo final foi mudado para outro que soa parecido, ‘mas que nio faz sentido algum no contexto. Nesse manusctito, Jesus fala para “perscrutar as escrituras... porque elas esto pecando contra mim!" Um segundo exemplo ve do livro do Apocalipse, quando o profeta tem uma visio do trono de Deus, em torno do qual “havia um arco-iris que parecia uma esmeralda” (4,3). Em alguns de nossos manuscritos primiti- vos, hé uma mudanga pela qual, por mais estranho que paresa, que em torno do trono “havia sacerdotes que pareciam uma esmeralda!” ‘nos dito Dentre os muitos milhares de erros acidentais introduzidos em nossos ‘manuscritos, provavelmente mais esquisito seja 0 que ocorre em um ma- ruscrito miniisculo dos quatro Evangelhos oficialmente numerado como © 109, produzido no século IV." Seu erro peculiar ocorre em Lucas, capi- tulo 3, na narrativa da genealogia de Jesus. O copista estava, claramente, copiando um manuscrito que trazia a genealogia em duas colunas. Por al- gum motivo, ele nao copiou uma coluna por vez, mas foi copiando de uma e de outra, Como resultado, os nomes da genealogia sao jogados de- sordenadamente, com muitas pessoas sendo classificadas como filhas do pai errado. Pior ainda, a segunda coluna do texto que o copista estava co- 17. Quem tiver interesse em ver como os pesquisadores debatem acerea das virrudes de uma leitura ou de outea deve vers METZGER, Bruce M.A textual commentary, op. ct. 18. Devo esse exemplo, assim como varios dos exemplos anteriores, a Brace M. Metz: get. Ver: METZGER, Bruce M.; FHRMAN, Bart D. Text of the New Testament, op. cit, p. 259. pore commiipegcat IA bikn race ROME Mamet 20) SS ae Buehies coum i LEM WA Behn Act URL TEXTOS DO NOVO TESTAMENTO ros piando ndo tinha muitas linhas, nem mesmo a primeira, de modo que, na ‘pia que o copista fer, 0 pai da raga hi {isto é,0 itime nome men- sionado) nao é Deus, mas uma igraelita chamado Fares; ¢ 0 proprio Deus “aparece como sendo fil Mudangas intencionais De certo modo, as mudancas que vimos antes sio mais fceis de localizar € de climinar quando se esta tentando estabelecer a forma mais primitiva do texto. Mudancas iatencionais tendem a ser um_pouco mais difices. Exatamente porque (evidentemente) feitas de propésito, essas mudancas sendem a fazer sentido, E dado que fazem sentido, sempre haverd criticas ndem que elas fazem 0 melhor sentido — ou seia, s20 ori no se trata de uma disputa entre pesquisadores que acham que o texto fo alterado ¢ outros que acham que no foi. Todos sabem que o texto foi mudados a_verdadeirajquestio] ¢ qual variante representa_a alteracao epresenta a fornia mais primitiva do texto a que se pode remontar. E aqui que os pesquisadores, por vezes, no chegam a acordo. 'm um notavel mimero de ocasides — na realidade, na maioria delas 105 pesquisadores discordam abertamente, Talvez nos seja titi exami- nar uma série de tipos de mudangas intencionais que se pode encontrar em nossos manuscrites, visto que elas podem nos dar as razdes pelas quais os copistas fizeram as alteragoes. Em algumas ocasides, os copistas mu vam que el ciozinho IM seus textos porque pensa®~ contivessem umferro factual! Esse parece ser 0 caso do ini- le Marcos, onde o autor introduz seu Evangelho dizendo: “Assim como est escrito em Isafas, 0 profeta, ‘eis que estou enviando um mensageiro diante de vossa face... Aplaineis os seus caminhos””, O Problema é que o inicio da citagio nio é de Isaia® Ela representa umay~

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