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ees Sere) Ba cYeie cie | = PRBS M UMS oe ater pequenas cismas insis= tentes. A prinefpio, a familia no suspeitou que fosse gra- ve. Leitor dvido de ufologia, cespiritualidade e teorias da conspiracao, questionar a na~ ‘tureza da realidade era quase um hobby para ele. Aié que parou de ser. ‘As filhas notaram que algo estava errado quando aque- les interesses pecuiliares se ‘transformaram em habitos assustados, paranoias per- sistentes. O celular e a in- ternet viraram vildes: “ele tinha convieeao de que es tava sendo hackeado’, con- taa filha de 35 anos. “Por ‘menos sentido que fizesse,a fantasia era tao intensa que cheguei a me perguntar se poderia ser verdade” Logo ficou claro, porém, que a cis- ma era sintoma, e que Joo precisava de tratamento. delirio persecutério uma das caracteristicas mais marcantes dos trans- tornos psiosticos. O pacien- te passa a crer que évitima de uma grande emboscada = cujos responséveis podem ser desde os vizinhos até a Nasa. Nenhum tipo de prova cconvence o psieético do con- trdrio. A realidade paralelaéa autoridade maxima na mente ddo paciente durante a crise. ‘A Organizacao Pan-A- mericana de Satide estima que 23 milhdes de pessoas ao redor do mundo sofram com transtornos psicsticos, 50 suvee ouTus20 2019 termo que se refere a um conjunto bastante diverso de ‘diagndsticos. O mais famoso 6 também o mais comum:a esquizofrenia. Mas outras doengas ~ como a depres- so, 0 transtomo bipolar € 0 ‘transtomo de personalidade limitrofe (ou borderline) ~ grupos: a orgénica e a fun- ional. No primeiro, estavam (8 pacientes cujos sintomas de delirio e alucinagao eram consequéncia direta de algu- ‘maoutra doenga~ um tumor no afrebro, por exemplo. Ji a psicose funcional era uma questo exclusiva da mente. Essa distingfo, claro, aca~ bbou caducando, Hoje, ¢ dbvio para os cientistas que a bi logia nunca esteve ausente ras psicoses ditas funcionais ~ hoje chamadas de psicoses primérias. A hereditariedade é um fator de isco impor- tantissimo na esquizofrenia, ‘bem como em varias doen- ‘cas mentais, eos sintomas de delirio e alucinagao nao tém como nascer de outro lugar quenao o cérebro. Ainda as- sim,a divisio cérebro versus ‘mente marcou todaa histéria da psicose, ‘Uma breve histéria da loucura Antes de existir como diag- néstico, a distorgdo do senso de realidade era conhecida simplesmente como “lou- cura’ O louco era, antes de ‘tudo, o individuo a parte - aquele que nao se envolve com a realidade comparti- Ihada pelos demais. rea nS Mote earth fas talo haaonh Por séculos, a loucura chegou a ser encarada co- ‘mo experiéncia sobrenatural — na Biblia, delirios como o do rei Saul eram recebidos ‘como mensagens proféticas. Ou, endo, o oposto: posses- Ges demoniacas. Até entio, a loucura nao era necessa~ riamente definida como do- enga. E com a ascensao do Tuminismo que ela passa a ser vista dessa manera. O centro do pensamento ilu- minista, anal, eraaideia da racionalidade como a maior mais importante caracte- ristica do ser humano. Sea Toucura levava 4 perda da ra- 240, portanto, ela s6 poderia ‘ser uma enfermidade. Noséculo38,aempreitada de investigar as causas da psi cose recaiu sobre os psiquia- tras Philippe Pinel e Jean-E- tienne Dominique Esquirol. ‘A dupla buscava entender que pacientes com quadros psicéticos tinham em co- ‘mum, mesmo fora das crises = como a frustracdo diante de emogoes intensas — para selecionar comportamentos ue pudessem influenciar ou engatilhar os delfrios. ‘No final do mesmo sécu- lo, 0 estudo da psicose co- ‘mega areceber influéncia da concepeao do inconsciente, de Sigmund Freud. Dali em diante, a psicandlise ofere- ceria um olhar diferente aos Aistirbios psicsticos - mais preocupado em mergulhar na mente e na histéria do paciente do quem explicar a biologia das crises. psicanalista inglés Donald Winnicott (1896- 1971) entendia as psicoses graves como fruto de falhas ambientais, ou seja, proble~ ‘mas no ambiente em que a crianga est inserida. Sob essa visio, a primeira in- fancia é responsavel pela consolidago da experiéncia do sex. E. 0 momento do de- senvolvimento da confianga para sentir o mundo como ‘um lugar familiar. Quando ha falhas nesse contexto ~ que vio desde instabilida- de familiar, vulnerabilidade afetiva até morar em éreas de risco -,a crianga passa a perceber 0 mundo como um local ameacador: “Ela nao vi- vencia essa falha como algo que pertence ao ambiente, mas sim como uma falha do préprio “eu”, explica a psicéloga Jéssica de Sousa Villela. A psicose nasceria, ento, como uma manifes- tagdo dessa confusdo entre o que € parte do ambiente eo que é parte da esséncia daquele individuo. Biologiaxambiente Conforme a neurociéncia dos transtornos psicéticos avancou, porém, ficou claro que impossivel compre- ender o enigma da psicose considerando,isoladamente, a influéncia da biologia ou do ambiente. Prova disso um estudo recente, publi- cado no periddico Lancet Public Health, que revisou as pesquisas internacionais sobre psicose para entender como ela se distribui em diferentes paises ~ e quais fatores aumentam o risco de um paciente desenvolver ‘transtornos psicéticos. Homens s40 mais pro- pensos a doencas com esse tipo de sintoma do que as mulheres."“As diferencas no riisco podem ser relaciona- das a um papel protetor do estrogénio [horménio sexual {feminino] ou até um papel prejudicial da testostero- na [horménio masculino]’, afirma o psiquiatra James —> risa Boone) Pee pe st) es JAlucinacao ou delirio? Na alucinagso, as experiéncias | | séo sensoriais:a pessoavee | | ouve coisas, sente cheirose | | gostos quenso correspondem | | tealidade. 3 odelitioafeta 2 interpretacSo da realidade ‘2s convicroes pessoals de slguém. Pode ser um delirio ecutério, de grandeza, de ALGUNS DOS TRANSTORNOS PSICOTICOS Urea ees ere Se enn or rons isolamento socal, além do comprometimento das atvidades coticianas. Co ceennenes cane poeta ane Cre ee ce) ee Sees as Ee ee) a ee een cer Pee Eee de mania, depressivos ou een eae eee Sed ee entanto, tanto depressio pees ees podem vir acompanhados de eee Ps en ae poe Kirkbride, um dos autores do estudo. Moradores de paises de latitudes mais al- ‘2s, como a Suécia, também tm risco aumentado - € 0 motivo pode ser igualmente Dbioldgico: “Existe uma tese de que a falta de vitamina , que depende da exposicio a0 sol, possa afetar o desen- -volvimento do cérebro no inicio da vida e, por conse- quéncia, aumemtar orisco de psicose no adulto’. Mas a influéncia do ambiente também se faz clara: imigrantes, mino- rias étnicas e individuos em vulnerabilidade social estdo entre os grupos mais afetados, segundo o estudo. “Uma maior exposicio & ad- versidade social, incluindo a discriminacao, pode ter um papel relevante’, diz Kirkbride, Uma pesquisa similar reforgou essa tese a0 encontrar indices mais altos de psicose em grupos de refugiados (ou seja, pes- ssoas forcadas a imigrar) do gue entre imigrantes que optaram por trocar de pais voluntariamente. A expe- rigncia de vida de alguém pode fazer toda diferenca no surgimento da psicose, atuando como gatilho para uma predisposigao genética. Enguanto isso, no mundo do cérebro,osneurocientistas seguem buscando um me- canismo-chave no sistema nervoso que explique como 0s sintomas psicsticos apa- recem. Por anos, a hipétese favorita foi o desequilibrio quimico: acreditava-se que, emalgum momento, algum pesquisador encontraria um neurotransmissor faltando ou presenteem excesso no eére- bro dos pacientes psicdticos, bastatia colocé-lo de volta em equilibrio para resolver © problema de uma vez por todas. A dopamina, um dos neurotransmissores do pra- zer, foi um forte candidato a esse papel. Percebendo que muitas drogas antipsicéti- cas afetavam o sistema do- paminérgico, pesquisadores ‘comegaram a se perguntar se irregularidades na produgio de dopamina estariam naraiz cerebral do problema. Estu- dos mais recentes, porém, mostram que a solugao no & tdo simples: a psicose en- volvealteracées em diversos circuitos cerebrais e neuro- transmissores de uma s6 vez. ‘Tratamento multidisciplinar s transtornos psicéticos, em geral, so quadros cro niicos. Nao existindo cura, 0 foco dos tratamentos é esta- bilizar o paciente e ampliar sua qualidade de vida. Internar a pessoa ¢ uma opsao extrema — e pouco frequente. Desde a década de 1980, internagées so muito pontuais, acionadas apenas durante surtos graves e quando ha risco de suicidio. ‘Na maioria das vezes, 0 tratamento envolve medi camentos antidepressivos e antipsicéticos, associados'a0 acompanhamento terapéu- tico constante. Foi s6 na til- tima década que cientistas colocaram & provao efeito da terapia em quadros psi- céticos - e os resultados foram surpreendentemente promissores. Primeiro, por- queaterapia combinada com osremédios se mostrou mais, eficiente do que a medicacgo sozinha. Segundo, porque conseguit melhorar 0 qua- dro até dos pacientes que abandonaram os remédios. Parte das pessoas com. transtornos psicéticos rejeita medicamentos ~ al- guns porque negam estar doentes, outros porque nao conseguem lidar com os efeitos colaterais: ganho de peso, sonoléncia, tremores, disfuncio sexual... E essa é ‘s6 uma parte da lista Acexperiéncia dos pacien- tes, & claro, varia ~ hé quem seadapte bem aos farmacos. Paraos que nio seadaptavam, porém, era dificil encontrar ‘umplano B cujaeficiciafosse comprovada pela ciéncia, Isso mudou em 2014, quando um estudo publicado na revista cientifica The Lancet mostrou que a terapia cognitiva era capaz. de reduzir os sinto- ‘mas psicsticos, mesmo em pacientes que se recusavam a tomar os remédios. Curiosamente, nos tra- tamentos terapéuticos, su- primir os delirios, vozes, visdes ou paranoia nao é © objetivo primério. No consultério, o contetido desses delirios importa Eles podem refletir medos e experincias passadas que acabam funcionando como gatilhos das crises do pa- iente. Como em qualquer ‘outro problema psiquistrico, comoansiedade e depressio, falar sobre a experiéncia, se~ jald ela qual for, costuma ser essencial para a qualidade de vida - e para o prognés- tico ~ do paciente. Ou, co- mo coloca Jéssica de Sousa Villela: Tanto nos delirios quanto nas alucinages ain- da ha algo essencialmente humano e potencialmente saudavel em uma pessoa, Precisamos trabalhar para favorecer 0 ressurgimento dessa poténcia.” @ ourvsro 2019 suPER 53,

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