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Pangroo “CiroFlamarion S. Cardoso SOCTEDADES “DOANTIGO ORIENTE PROXIMO unic & MP BIBLIOTECA CENTRAL Direcdo Benjamin Abdala Junior Samira Youssef Campedelli Preparagao de texto Mério Tadeu Brugé Arte Coordenacao e projeto grafico (miolo) Anténio do Amaral Rocha Arte-final René Etiene Ardanuy Joseval Sousa Fernandes Capa Ary Normanha ISBN 85 08 01085 0 1986 Todos os direitos reservados Egitora Atica S.A. — Rua Bardo de Iguape, 110 Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656 End. Telegréfico. "Bomlivro” ;-—, So Paulo Ki 1. Sumario Palacios, templos e aldeias: o “modo de producao asiatico”. 5 Antecedentes do conceito de “modo de produgao asidtico”___________5 Da elaboragio do conceito ao seu abandono___1h Reabre-se a discussio. 18 “Modo de produgao doméstico” ¢ “modo de produgao palatino’. 23 A Baixa Mesopotamia 29 29 ‘As forgas produtivas______32 Descrigdo das principais atividades econémicas__38 Propriedade e relagées de producdo? interpretagio das estruturas econdmico-sociai 41. O III milénio a.C,_________— 3 O II milénio aC, —___— 47 OT mile 5 aC, Tntrodug&0 $$$ _—— 54 54 As forgas produtivas_______ 56 Deserigdo das principais atividades econdmicas_—62 Propriedade e relagdes de producti das estruturas econdmico-sociais. A formagéo da sociedade faraénica___66 As estruturas bdsicas do Egito durante o III milénio a.C. e a primeira metade do II milénio a.C. Transformagées ocorridas na segunda metade do II milénio a.C. e no I milénio aC,_72 O Egito faraénico ——________— Yntrodugio_________________— 4. Conclusao. 5. Vocabulario critico. 6. Bibliografia comentada. Obras de cunho tedrico sobre 0 “modo de produgio asidtico”. Obras gerais. Obras sobre a Mesopotami Obras sobre 0 Egito, 18 t 78 8 86 88 89 91 1 Palacios, templos e aldeias: o “modo de produgaéo asiatico” A forma como abordaremos, neste livro, o estudo das sociedades do antigo Oriente Préximo — através dos exemplos egipcio e mesopotamico — vincula-se direta- mente & nogio de modo de producao asidtico. Comecare~ mos, entéio, por uma exposigdo suméria: dos antecedentes do surgimento deste polémico conceito; da sua elaboracio na obra de Marx; ¢ do seu complexo destino posterior. Em seguida, trataremos de expor a versio especifica do mencionado conceito, que nos serviré de base para inter- rogar os exemplos escolhidos, Antecedentes do conceito de “modo de producao asiatico” Do século XVI ao XVIII, os escritores eutopeus que, por alguma razao, se referiam ao Oriente — a Asia —, faziam-no no contexto do pensamento acerca do social como existia em sua época, isto é, manifestando interesse rio, ou mesmo exclusive, pelos aspectos politicos. A idéia de que a politica no passa de uma parte do todo social, do qual s6 aparentemente é 0 principio condutor, nao comecou a se desenvolver antes do século XIX. Assim, na fase anterior, nogdes como o “despotismo oriental” apareciam como objetos perfeitamente auténomos ¢ legi- timos de andlise. Inicialmente, os materiais usados provi- nham da Biblia e de escritores classicos antigos — por exemplo, as opiniées manifestadas pelos gregos acerca do Império Persa —-, bem como de informacées nfo muito precisas sobre os turcos otomanos e 0 Império Moscovita. A partir do século XVI, porém, multiplicaram-se as publi- cagdes de escritos de viajantes, mercadores, navegantes € diplomatas que se dirigiam ao Oriente (Império Turco, Pérsia, India, China etc.) em busca de ganho mercantil, de vantagens comerciais para si préprios ou para os paises que os enviavam. Tais escritos foram lidos e utili- zados, na Europa, por pensadores (fil6sofos, historiadores, economistas politicos) interessados principalmente em con- trastar os dados que conheciam ou acreditavam conhécer a respeito da “Asia” ou do “Oriente” — entéo quase sempre visto como uma tinica totalidade homogénea — com sua interpretagdo do que ocorria na Europa, em polémicas acerca do absolutismo, do livre comércio, dos direitos naturais dos homens, ¢ de outros temas. Foi unica-| mente no século XIX que as sociedades asidticas passaram, a ser encaradas em sua heterogeneidade e multiplicidade, e vistas como objeto de estudo em si mesmas, em fungi nao apenas das mudangas ocorridas na maneira de abor- dar o social, mas também de uma penetragao crescente € em profundidade dos interesses europeus nessas socie-| dades orientais. No século XVI, a Europa vivia a emergéncia das nagées-Estados modernas, das monarquias absolutistas. Questdes como a necessidade de exércitos ¢ burocracias permanentes, de sistemas nacionalmente integrados de finangas, impostos e leis, estavam na ordem do dia. Pensadores se debrucavam sobre tais problematicas, ten- tando entendé-las e dar-Ihes respostas positivas ¢ prag- miticas, alguns dos quais foram pioneiros na apresentagao do Estado oriental como antitese da monarquia européia. Machiavelli, por exemplo, acreditava que no Império Turco havia um ‘nico senhor, sendo todos os outros homens seus servidores; a razio disto seria que, ao contrario ¢o que ocorria na Europa, entre os otomanos inexistiria uma nobreza hereditéria, idéia algum tempo depois retomada por Francis Bacon. Ele opunha, ento, o governo europe, exercido por um monarca cercado de conselheiros, 20 despotismo ‘oriental; contrastava os numerosos Estados europeus, em que havia condigdes que favoreciam a criati- vidade dos habitantes, aos imensos impérios orientais, ca- racterizados por uma populacio servil. Bodin, por sua vez, sob forte influéncia de Aristételes, comparou a “monarquia real” curopéia — em que os stiditos obedeciam as leis do rei e as leis naturais, sendo-Ihes reconhecido o direito & liberdade natural e & propriedade — com a “monarquia senhoiial” do Oriente, esta ilustrada pelos Estados tur e moscovita, Em tais Estados o' rei, senhor dos bens. ¢ das pessoas por direito de conquista, governava seus siidi- tos como um chefe de familia romano governava seus escravos. Em 1650, Thomas Hobbes endossou algumas das idéias de Bodin, ao tratar do que, por influéncia grega, chamou de “reino despético”. No século XVII, comerciantes e embaixadores que haviam conhecido a Pérsia e a India especularam sobre as origens e bases do “poder despético”: elementos de seus escritos foram amplamente usados, sobretudo na Franga, nas acaloradas polémicas acerca do absolutismo mondrquico. Em seus contatos com o Oriente, os europeus notaram, em primeiro lugar, 0 contraste entre a imensa riqueza das cortes e a pobreza abjeta da maioria da popu- lacdo, confirmando, portanto, uma visio como a de Ma- chiavelli ¢ Bacon acerca da auséncia de mediacées sociais entre a corte e 0 povo, Quase todos afirmaram que o déspota era o tinico proprietério do solo. O mais famoso dos viajantes, Bernier, acreditava ser esta propriedade a fonte do poder despético — tese que seria adotada poste- riormente pelos fisiocratas, por Adam Smith e por Marx — enquanto outros, pelo contrdrio, achavam que era do poder absoluto que o governante derivava seus direitos Sobre as pessoas ¢ os bens. Bernier notou também que os artifices orientais — artesios de alta qualificagéo — dependiam, para viver, da redistribuigdo das riquezas concentradas através de tributos feita pelos soberanos, Para os quais trabalhavam. No século XVIII, além de uma voga generalizada, na Europa, das coisas e dos costumes turcos e persas — como os viam os europeus, numa evidente reinterpretagdo —, a China fez sua aparic&o no universo intelectual do Ocidente, alimentando a oposi¢do entre “‘sinéfilos” e “sind- fobos”: Voltaire serve para ilustrar a primeira posicéo e Montesquieu, a segunda, Montesquieu, em 1748, considerou o “despotismo” como sendo uma das formas fundamentais de governo, exemplificando-o, porém, nao apenas com sociedades grientais, mas igualmente com personagens do Império Romano e com a Inglaterra de Henrique VIII. Seu con- traste entre “monarquia” e “despotismo” baseava-se na nocdo de que, sob este iltimo regime, inexiste qualquer instfncia entre 0 déspota © © povo: todos os siiditos sio “nada” diante do governante todo-poderoso. Uma socie- dade despética carece de leis politicas fundamentais e de comércio; nos casos extremos, o déspota monopoliza a propriedade da terra, 9 Voltaire, que via a China como o pais dos reis filé- sofos, protétipo do “despotismo esclarecido”, por ele pre- conizado, criticou Montesquieu, no que foi imitado por alguns fisiocratas. Quesnay, por exemplo, encarava a China como um “despotismo legal”, em oposigio ao “despotismo arbitrério”. Embora nem todos os fisiocratas fossem “siné- filos”, credita-se a eles a formulagio do primeiro modelo econémico sistematico aplicado ao “despotismo oriental”; isto porque foram também os primeiros que perceberam a economia como uma totalidade coerente, feita de partes interdependentes ou solidérias. Numa posicao relativamente isolada na época, 0 orien- talista francés Anquetil-Duperron, em obras publicadas entre 1778 € 1791, opds-se a idéia de que o governo da India fosse despético e ignorasse as leis ou o direito de propriedade, e também & afirmagéo — feita em 1783 por A. Dalrymple — de que a terra ali fosse possufda coletiva- mente pelas aldeias. Ainda no final do século XVII, Adam Smith, em A riqueza das nagdes (1776), afirmou que na India e na China a agricultura, e ndo a manufatura, era altamente considerada e favorecida. A riqueza (ouro e prata) estava nas méos de uns poucos magnatas, que nfo a investiam nem permitiam que outros o fizessem. O Estado — pro- prietario de todo 0 solo — interessava-se em promover a agricultura, manter os caminhos e os canais de irrigagdo. Jé no inicio do século XIX, 0 filésofo alemao Hegel — que lera os filésofos franceses do século XVIII e Adam Smith — procedeu a um contraste entre Oriente e Oci- dente. A Europa conhecera um progressivo desenrolar da autoconsciéncia, enquanto no Oriente se dera 0 desenvol- vimento de uma consciéncia moral externa ao individuo, ou seja, abstrata. Por tal razfo, na China a historia se reduzia a uma mera crdnica, enquanto na India ela sim- 10 plesmente nio existia. A politica, na forma de invasdes ou revoltas palacianas, era indiferente para os camponeses, em suas aldeias imutaveis. A imutabilidade das aldeias como base da estagnacio da India pré-briténica foi salientada por John Stuart Mill, em 1848: nelas se combinavam o artesanato ¢ a agricul- tura, e, embora 0 Estado fosse © proprietdrio das terras, os camponeses detinham seu usufruto mediante o paga- mento de rendas fixadas pelo costume. Outro economista politico, cujas idéias teriam grande influéncia sobre Marx, foi Richard Jones: em 1831 caracterizara a “renda em forma de tributo” — tipica, para ele, da India e de outras sociedades asidticas — entre as modalidades possiveis da renda — desenvolvendo, neste ponto, certas idéias de Adam Smith —, ¢ ligara-a a estagnaco oriental, pelo. fato de impedir a acumulacio individual e preservar o despotismo. A partir de meados do século XIX, multiplicaram-se | 0 estudos~de sociedades orientais, no mais a partir dos | governantes ¢, sim, das unidades aldedis ¢ suas instituicdes. | Tais estudos foram influenciados por duas grandes corren- | tes de pensamento. Uma delas consistia na crenca de ser | © sdnscrito a lingua-mae das grandes linguas da Europa, | © que levava a crer numa espécie de “unidade institucional | indo-européia”, exemplificada nos estudos em que, entre | 1861 ¢ 1875, Henry Maine comparou as comunidades aldeds da India as dos eslavos, germanos e celtas. A outra foi a longa polémica — ainda atual — acerca de serem ow nao as sociedades aldeas primitivas caracterizadas pela propriedade coletiva sobre o solo, reconhecendo-se as fami- | lias individuais unicamente um direito de usufruto, 1 1A tespeito dos antecedentes do conceito de “modo de produgio asidtico", ver BaLey, Anne M. & Luosera, Josep R., eds. The Asiatic mode of production, p. 13-23. V. “Bibliografia comentada”. n Da elaboragao do conceito ao seu abandono Na obra-de Marx 0 “modo de produgio asifitico” aparece, na imensa maioria dos escritos — como ocorre, aliés, com todos os modos de producao pré-capitalistas —, num contexto bem definido: em relagio mais ou menos direta com a anélise do capitalismo e com a critica da economia politica que hoje chamamos “cléssica”. Nestas condigées, nfio se pode esperar encontrar nos escritos do fundador do marxismo uma teoria explicita e acabada a respeito das sociedades “asidticas”. Mesmo assim, embora baseadas nas idéias que vinham se desenvolvendo na Europa durante cerca de trés séculos a respeito do Orien- te, as suas concépedes acerca do “modo de producio asidtico” foram suficientemente interessantes para terem duradoura influéncia. Na década de 1850, como correspondente do jornal New York Daily Tribune, em Londres, Marx redigiu uma série de artigos sobre a india e a China, ao cobrir debates no Parlamento britinico a respeito de temas como a reno- vacao dos privilégios da Companhia das Indias Orientais, as rebelides Taiping, a revolta dos cipaios etc. Sua corres pondéncia com Engels, na mesma época, preparou alguns dos desenvolvimentos presentes naqueles artigos. Em carta a Engels, em 1853, Marx cita longos extra- tos do livro Voyages contenant la description des états due ‘Grand Mogol, de Bernier (1670), chegando & conclusio de que o viajante do século XVII tivera razio ao ver, na inexisténcia da propriedade privada da terra — na Turquia, Pérsia, India —, a base de todos os fendmenos do Oriente, inclusive a auséncia de. histéria de que falara Hegel. Engels sugeriu-lhe, em resposta, que a origem. da inexis- téncia de propriedade privada residiria nas condigGes cli- mfticas de semi-aridez, fazendo com que a irrigagio arti- 12 So ficial, organizada seja pelas comunidades, seja pelo Estado, fosse condicdo primordial para que a agricultura pudesse ser praticada, Estas ¢ outras idéias expostas na carta de Engels foram retomadas por Marx, com algumas modifi cages, em seu artigo de 25 de junho de 1853, a partir do papel do governo no que diz respeito as obras piiblicas de irtigagao, Na India, a auséncia de propriedade privada da terra e o papel do Estado nas obras piiblicas, bem como 0 caréter autérquico das aldeias — cada uma das quais, um pequeno mundo em si —, cujas terras podiam ser cultivadas em lotes familiares, permanecendo porém comuns as pastagens, explicariam a estagnacao, o cardter estaciondrio da sociedade. Essas comunidades conheciam, sem dtivida, as distingdes de casta e a escraviddo; mas, na medida em que combinavam o artesanato ¢ a agricul- tura,'sua auto-suficiéncia bloqueava o desenvolvimento do individuo ¢ servia de base ao despotismo oriental. A linica revolugdo auténtica na histéria da Asia se devia a0 impacto tio capitalismo. Num artigo de 8 de agosto de 1853, Marx tratou do modo pelo qual os britinicos, rompendo a autarquia alded na India — pela introducdo de tecidos baratos de algodao e pela construgdo de estra- das de ferro — e absorvendo-a em sua civilizacao, estavam Jangando as bases do progresso de uma efetiva transfor- magio social. Entre 1857 ¢ 1859, Marx redigiu um extenso manus- crito para pdr em ordem suas pesquisas em economia, como também a elaboracio do seu método especitico de andlise. Tal manuscrito — os Grundrisse (Fundamentos da critica da economia politica) — s6 seria publicado pela primeira vez em 1939-41, tendo maior difusio somente no fim da década de 1950. Numa passagem dos Grundrisse — “Formas que pre- cedem a produgio capitalista” —, Marx aborda o processo da separaco do trabalhador em relagio as condigées obje- tivas da produgdo e reproducio de sua vida, o que signi- ficou, historicamente, tanto a dissolugdo da pequena pro- priedade quanto a da propriedade coletiva, baseada na co- munidade oriental. De fato, no texto, a “forma asidtica” de propriedade comum da terra aparece como uma entre vé~ rias modalidades possiveis — justamente a mais resistente & mudanga, devido & unido entre agricultura e artesanato nas comunidades autarquicas, devido a que, no interior destas, 0 individuo nfo pudesse converter-se em proprie- tério, tendo exclusivamente a posse da terra, Assim, mes- mo o surgimento da escravidéo ou da servidio e da riqueza monetéria pouco péde afetar as resistentes tomu- nidades “asiéticas”. . Marx imagina uma evoludo que, passando pelo pas? toreio némade, levasse a tribo A sedentarizagio em deter minado territério, mantendo sua comunidade de sangue, Iimgua costumes. Na variedade “asidtica” de comunidade, © produtor individual vé na organizagao tribal — formada “naturalmente” — um suposto natural ou divino do pro- cesso de trabalho, no produzido por este. O individuo 86 pode apropriar-se das condigdes objetivas de sua vida na qualidade de membro da comunidade: a apropriagio real dessas condigdes através do trabalho s6 se pode der sob aquele suposto que aparece como natural, ou sobre- natural.|Por cima das comunidades locais esté uma unidade superior ou englobante, encarnada, em iltima andlise, numa sé pessoa — o déspota —, que se apresenta como a tinica proprietéria do solos as comunidades locais sio, simplesmente, possessotas hereditérias. Deste modo, a uni= dade superior mediatiza a relacio entre o individuo e as condigées de trabalho por intermédio de cada comunidade particular, que dela parece receber o direito de uso sobre 0s recursos naturais,\Em conseqiiéncia, uma parte do trabe- 14. Iho excedente de cada comunidade local destina-se & uni- dade englobante, ou “‘comunidade superior”, na forma de tributo e de trabalho comum para exaltagio da unidade, prestado ao déspota real ou ao ser imagindrio que encar-| na a unidade tribal: a divindade. Vé-se que, na andlise de Marx, na fundacio material do “despotismo oriental”, por tras das aparéncias — poder despético, auséncia de. propriedade — se perfila a base real constituida pela propriedade comunal, em que se com- binam agricultura e artesanato, nas comunidades autdr- quicas que contém em seu interior todas as condigdes para sua reprodugio e para a produgSo de excedentes. A realizado do trabalho pode dar-se tanto pelas familias, em lotes individuais, quanto pelo cultivo em comum do solo. Dentro de cada comunidade, a unidade desta pode-se encarnar, seja num chefe individual, seja num conselho de chefes de familias. ‘As obras piiblicas, na prdtica levadas a cabo pelas comunidades, aparecem como realizaco da unidade englo- bante do regime despético ao qual cada individuo, de cada comunidade, parece pertencer. O excedente acumu- lado pela “comunidade superior” serve para 0 comércio exterior, as obras publicas e a remuneragéo de artesaos especializados, a servico da corte. Inexiste 0 intercAmbio mercantil no interior de cada comunidade, podendo haver, no entanto, trocas entre as comunidades. Em 1859, no prefacio & sua Contribuicdo @ critica da economia politica, Marx afirmou que, de ‘maneira geral, 0s modos de producio asidtico, antigo, feudal e burgués moderno podem ser encarados como épocas que marcam sucessivos progressos no desenvolvimento econémico da sociedade. No livro, chamou a atencao sobre o fato de que, na Asia, a tesaurizagao da riqueza em metais preciosos tinha pequenc papel no mecanismo total de producio; 15 em contraste com o capitalismo, a imobilizagao da riqueza em tesouros ainda aparecia como uma finalidade em si. Em O capital — obra da qual somente o primeiro tomo foi publicado com Marx ainda em vida (1867), surgindo os outros dois postumamente, em fungéo de for- midavel esforco de Engels na organizacio do texto (1885, 1894) —, diversas passagens esparsas tém a ver com 0 “modo de produgéo asiético” ou com sociedades espect ficas por ele conformadas (India, Peru pré-colombiano), tendo sempre como ponto de referéncia o contraste com © modo de produgao capitalista, Tratando do destino do excedente nas sociedades “asidticas”, diz Marx que ele se destina, em parte, A troca entre as aldelas e, em parte, 4 renda apropriada pelo Estado, com a qual este paga os artesios pelo seu servigo e realiza 0 comércio de longo curso, Seguindo uma opiniéo de Adam Smith e de Richar Jones, ele afirma que, nos Estados da Asia, dé-se a coin cidéncia-entre renda-e tributo, Por outro lado, nas socie- dades “asiéticas”, como enr todas aquelas em que 0 pro- dutor direto controla os meios de producio, a extorsio | do trabatho excedente s6 pode ocorrer mediante 0 recurso | & coagdo extra-econdmica, ou seja, pela utilizagéo da re- pressio militar, dos mecanismos judiciais, da ideologia etc. © papel de Engels na elaboracio do conceito de “modo de produgio asiético” foi bem menor do que o | de Marx. No Anti-Diihring (1878), Engels reafirmou a necessidade de organizacio das obras de irrigagio no Oriente como elemento que explica o surgimento dos Estados despéticos. Ele via no despotismo oriental a mais primitiva forma de Estado, por bascai-se na mais elementar das formas de renda: a renda eim trabalho. O livro men- | cionava também que as comunidades aldeds da India ha- viam evolufdo da propriedade comunal tribal ao parcela- mento da terra e ao surgimento de diferencas de riqueza | 16 entre os individuos, devido a distribuicao desigual do pro- duto das trocas intercomunitarias. Em sua obra A origem da familia, da propriedade privada e do Estado (1884), Engels descartou a anélise da “hist6ria antiga dos povos civilizados da Asia”. Isto foi interpretado por alguns como significando o seu aban- dono do conceito de “modo de produgao asidtico”, 0 que no parece procedente.'No Anti-Diihring ele sugerira a existéncia de dois caminhos histéricos para o surgimento do Estado: 0 que conduz ao despotismo oriental, no qual se mantém em existéncia as comunidades aldeds, e o que passa pela dissolucdo das comunidades tribais e pela evo- lugio das forgas produtivas, levando ao desenvolvimento do escravismo. Tudo indica que, no novo livro, decidira limitar-se ao segundo caminho, para ele 0 mais completo por dar acesso,as sociedades de classes nas quais se desen- volvem a propriedade privada e a produgdo mercanti No século XIX, a arqueologia nao revelara, ainda, a exisiéncia de civilizagées préximas por suas caracteristicas das sociedades orientais na Grécia continental e insular proto-histérica; assim a Engels parecia que, na Grécia, passara-se da organizagao tribal & sociedade cléssica, num proceso que nfo conhecera qualquer modalidade social de tipo “asidtico”. * Da morte de Marx, em 1883, até 1929, 0 conceito de “modo de produgio asidtico” apareceu com bastante freqiiéncia, e sem contestacio, na obra de diversos autores marxistas (P. Lafargue, H. Cunow, R. Luxemburg, G. Plekhanov etc.) e nos debates da Segunda Internacional. Na Rassia, as intervengées a respeito tiveram muitas vezes, como pano de fundo, a discussio dos marxistas com os chamados “populistas”, que idealizavam a comuna agraria 20s textos de Marx e Engels que interessam aos pontos de que tratamos foram reunidos em MARX, ENGELS, LENIN. Sur les sociétés précapitalistes. Préf, M. Godelier. V. "Bibliografia comentada”. Pa Tussa, ou mir, acreditando poder ela ser a base da transicio a0 socialismo, enquanto os marxistas sublinhavam que, por um lado, historicamente, as comunidades rurais haviam servido de base ao despotismo — inclusive na Russia — €, por outro, encontravam-se em franca dissolugao, Ple- Khanov tinha, das origens do “modo de producdo asidtico”, uma concepcio apoiada num determinismo geografico e técnolégico bastante estreito. Nos anos que se seguiram a Revolugdo de 1917, as discuss6es acerca do “modo de producdo asiético” passa- ram a estar crescentemente dominadas por preocupagoes politicas ligadas a qual deveria ser a posicao socialista correta da Terceira Internacional diante das conseqiiéncias do colonialismo europeu ¢ da determinagao das principais forgas revoluciondrias presentes nas sociedades orientais, No fim da década de 1920, a situago da China concen- trava quase toda a atenco. Enquanto Varga e Riazanov acreditavam ver na sociedade chinesa a articulagao de” dois modos de produgio — o asidtico e o capitalista —, outros Iideres tinham opiniées diferentes, e achavam que a idéia de “estagnacdo”, que em varios textos de Marx se vinculava & nogdo de “modo de producao asiatico”, poderia levar & conclusio da impossibilidade da revolucio. socialista no Oriente. Simpédsios realizados em Tbilisi’) (1930) e em Leningrado (1931) conclufram pela inexis téncia de um “modo de produgao asidtico” espectfico, havendo apenas uma “variante asidtica” do escravismo ou do feudalismo, Estruturava-se, j4 ent&o, a visio unilinear | da evolucio da humanidade que Stalin consagraria em | 1938. Defensores do “modo de produgio asiatico”, como | Riazanoy e Madiar, desapareceram na repressdo dos anos | 1930, e © conceito foi quase: universalmente abandonado por varias décadas-* Ver Soret, Gianni, I! modo di produzione asiatico. ‘Torino, Einaudi, 1969. cap, 2. moon 18, Ee Reabre-se a discussao Wittfogel, ex-membro do Partido Comunista Alemao que, mudando-se para os Estados Unidos, ali ensinara his- téria da China e fora um delator quando das perseguigdes da era de McCarthy, publicou, em 1957, Oriental des- potism', livro no qual expés sua teoria a respeito das “sociedades hidréulicas”, cujas maximas representantes no mundo contemporéneo seriam a Unido Soviética e a China socialista, as grandes inimigas do Ocidente. . Wittfogel mescla uma concepcao ecologista e tecnicis- ta, semelhante a de Plekhanov, ao difusionismo ¢ a outras | influéncias. Afirma que as condigdes em que surge a opor- tunidade — nao a necessidade — para que se desenvolvam padrées despéticos de governo ¢ sociedade, por ele identi- ficados com a “‘sociedade hidrdulica”, dependem de certos requisitos: 1. A reagao do grupo humano diante de uma paisagem deficitaria em Agua. 2. Tal grupo tem de estar acima do nivel de uma estrita economia de subsisténcia. 3. O grupo deve"estar distante da influéncia de centros importantes da agricultura de chuva. 4. O nivel do grupo precisa ser inferior ao de uma cultura industrial baseada na propriedade privada. ; Cumprindo-se todos esses requisitos, Jo surgimento de uma sociedade hidrdulica torna-se possivel, embora nio necessério; a escolha entre adotar ou nfo tal forma de organizagdo permanece em aberto, sempre havendo alter- nativas. O controle, armazenagem e uso de grandes massas de gua através de obras hidrdulicas exigem um trabalho macigo, que tem de ser coordenado, disciplinado e diri- gido, o que impée a subordinagao & autoridade reguladora de um Estado forte ¢ eficaz; este acaba por esmagar a/ liberdade do grupo que lhe esta submetido. { ‘4 WirrrooEt, Karl A. Despotismo oriental, Trad, F. Presedo. Ma- drid, Guadarrama, 1966, . » Para Wittfogel, a economia hidréulica primeiramente surgi nas regides dridas, difundindo-se depois pelas semi- ~Aridas e timidas, sempre na dependéncia da sua aceitaco Por parte dos grupos humanos aos quais se tenha colocado @ opedio. Ele acha que é possivel a adocio da forma hidréulica de sociedade ¢ de Estado, mesmo em regides onde nao exista ou seja pouco importante a agricultura hidréulica: € a “sociedade hidréulica marginal”. No caso de serem adotadas sé parcialmente as caracteristicas do “despotismo oriental”, terfamos uma “sociedade hidrdulica submarginal”, Assim, a necessidade de obras hidrdulicas seria condicao necesséria para o surgimento da sociedade hidréulica em cardter pioneiro, sem ser, no entanto, impres- cindivel para a difuséo de tal forma de organizacio social. Por fim, diz 0 autor que, uma vez’ esgotadas as possi- bilidades de desenvolvimento e de mudancas criadoras contidas no modelo da “sociedade hidréulica”, esta tenderia a repeticao estereotipada — epigonismo — ou mesmo a decadéncia. O seu ciclo completo seria: formagio, cresci- mento, maturidade, estagnacio, epigonismo e retrocesso institucional. As idéias de Wittfogel tiveram muitos seguidores. Outrossim, uma de suas posturas basicas, a “hipétese causal hidréulica” — isto é, a idéia de que a necessidade de controle sobre os grandes trabalhos exigidos pela manu tengao de um sistema complexo de irrigagio foi o fator central na geracdo do Estado “despético” —, era ja bem antiga, tendo sido defendida por historiadores como J. Baillet, J. Pirenne, A. Moret, J. Vercoutter e H. W. F. Saggs. Tal hipétese € falsa, 0 que foi evidenciado, sem diivida, por inémeras pesquisas bem apoiadas na arqueolo- gia e em fontes escritas. B irénico que uma dessas pesqui- sas tenha sido realizada por um dos mais incondicionais seguidores de Wittfogel, A. Palerm, que comecou sua inves- eee tigacdo arqueolégica © etno-histérica pensando provar a “hipétese causal hidréulica” no caso do México pré-colom- biano, mas demonstrou, de fato, 0 contrério: que o con- trole dos sistemas de irrigacdo competia as comunidades locais, ¢ que sé muito tardiamente 0 Estado desenvolveu uma politica de grandes obras puiblicas de tipo hidréulico. * [~ _Entre os marxistas, o livro ‘d Wittfogel — que pro- \ vocou grande indignacao — constituiu apenas um entre muitos fatores que deram impulso a retomada do interesse |] pelo conceito de “modo de producdo ‘asidtico”. Outros | fatores foram: a “desestalinizagao”, iniciada pelo XX Con- || gresso do Partido Comunista da Unido Soviética, que no | | campo do materialismo histrico desencadeou ‘um ataque | | A nog do unilinearismo evolutivo das sociedades huma- | | as; progresso dos movimentos de libertacao nacional, | | sobretudo a partir da dé le 1950, com a admissio | sucessiva, &s Nagées Unidas, de numerosas nagdes afro- -asidticas, cujos problemas socioeconémicos especificos exigiam também fespostas de tipo histérico; a ampla cir- culagdo dos Grundrisse, texto de Marx praticamente desco- | | | |: nhecido até a mesma década, bem como a republicagao de seus artigos sobre a India e de escritos de Plekhanov, ‘Varga e-outros autores acerca das sociedades “asidticas”, % “Nos paises socialistas, na Franga, na Itdlia, no Japiio © em outras partes do mundo, inclusive na América Latina — se bem que modestamente, a ndo ser no caso do México —, os anos 60 e 70 viram proliferar uma biblio- grafia numerosa ¢ variada sobre 0 “modo de produgio asidtico”, em meio a ativa troca de idéias — poder-se-ia 5 Ver, sobretudo, ADaMs, Robert M. Early civilizations, subsistence, and environment, In; STRUEVER, S., ed. Prehistoric agriculture. New York, The Natural History Press, 1971. p. $91-614; PALERM, Angel & Wor, Eric, Agricultura y civilizacién en Mesoamérica, México, Secretaria de Educacién Piiblica, 1972, p. 128-48. 2 ee: mesmo dizer, no contexto de um vivo debate e de agudas divergéncias, Entre os temas em torno dos quais se desencadeou a discussdo acerca do “modo de produc&o asidtico” — Que muitos passaram a chamar de “tributério”, “despético- ~tributério”, “despético-aldefio” etc., por ser obviamente inadequado 0 adjetivo asidtico aplicado a um tipo de sociedade que os pesquisadores julgavam encontrar na histéria de regides situadas em todos os continentes — estavam as seguintes indagagdes: Qual a sua organizagao interna, sua origem, suas contradigdes, seu desenvolvi- mento? Tratar-se-ia de uma forma de transigiio das socie- dades comunitérias tribais as sociedades de classes plena- mente desenvolvidas, ou de um tipo especifico e bem definido de sociedade de classes? Seria uma formacéo marginal restrita somente a certas sociedades, ou universal? As respostas dadas. a estas e outras perguntas foram heterogéneas segundo autores ¢ tendéncias, em parte por- que nos préprios textos a que todos recorriam, como diz Melotti, A énfase de Marx se desloca, nas diversas passagens, de um a outro dos (...) aspectos. Ora atirma que o elemento fundamental do sistema oriental 6 a auséncla da proprie- dade privada, ora atribul esta mesma auséncia aos fatores particulares de caréter geografico @ olimético (...). Ora explica 0 papel eminente do Estado por estes fatores ecolé- gicos, que impunham a necessidade de grandes trabalhos hidréulicos, ora, pelo contrério, pela dispersdo e pelo isola mento das aldeias. Em certas passagens, atribui este isola- mento & economia auto-suficiente, garantida pela combine- 940 de agricultura e artesanato doméstico. Em outras, pa- rece adotar contrariamente a idéia de que seja a estrutura simples destas aldelas, e portanto @ limitada diviséo do trabalho, 0 que explica a estagnagéo do sistema oriental. Alhures, sublinha fatores diversos, como a civilizagdo dema. —__ ppmmmeerenniieeniiitiee 22 { siado fudimentar, o baixo nivel das forcas produtivas ou a { particular estrutura de classes, que allés faz decorrer, por | sua vez, da insuticiéncia da divisao do trabalho. © © que significa, como j4 foi mencionado, que Marx nao chegou a elaborar uma teoria sistemdtica e acabada do “modo de produgdo asiético”. Embora alguns autores (K. A. Anténova, P. Ander- son, B. Hindess e P. Q. Hirst, G. Komoréczy) conclufssem pela inexisténcia de tal modo de produco como forma especifica de sociedade, outros (F. Tékei, Godelier, Me- lotti, J. Suret-Canale, J. Chesneaux, R. Bartra etc.) che- garam & conclusio contrdria e também salientaram a im- portancia desse conceito para basear uma visio multilinear do desenvolvimento das sociedades humanas, em oposigo A perspectiva unilinear consagrada por Stalin. Ainda mais interessante & a posigio de Goblot, que se opde tanto ao unilinearismo quanto ao multilinearismo, jé que defende a opiniéo de que a evolucdo das sociedades nao é linear: 0 desenvolvimento Social, caracterizado por contatos e in- fluéncias, deslocamentos, “novos comecos”, nao é continuo em cada unidade “etnogeogrdfica” — que pode mesmo co- nhecer estagnagées e involugées —, por mais que a conti- nuidade temporal e légica daquela evolugao possa ser recuperada quando integramos os diferentes processos evolutivos numa unidade superior. Por isso, diz M. Rebé- rioux que o historiador deve abandonar a busca (absurda) da continuidade geogrdfica do desenvolvimento histérico e aprender “a ver 0 continuo no descontinuo”. 7 ®Metorn, Umberto. Marx ¢ il terzo mondo. Milano, Il Saggi tore, 1972, p. 92. TGostor, Jean-Jacques. Lhistoire des “civilisations” et la con- ception marxiste de l'évolution sociale, In: PeLtevizr, A. & —. Mazérialisme historique et histoire des civilisations.’ Paris, Ed. Sociales, 1969. p. 57-197, 23 Embora seja impossivel seguirmos aqui toda a traje- t6ria do conceito de “modo de produgio asiético” desde que sua discussio foi retomada, pouco antes de 1960, é mister, além de remeter o leitor aos textos principais gerados em tal discusso, ® recordar que, se bem que até meados da década de 1960 ainda fossem comuns os escritos puramente exegéticos e tedricos a respeito, desde ento tem-se desenvolvido a perspectiva de que, sem des- curar da teoria, é essencial proceder ao seu confronto com © material empirico disponivel, infinitamente mais rico do que no século passado. Afinal, foram Marx e Engels que frisaram, referindo-se A “sintese dos resultados mais gerais que € possivel abstrair do estudo do desenvolvimento histérico”: Tais abstragées, tomadas em si mesmas, separadas da historia real, néo tém qualquer valor.® “Modo de produgdo doméstico” e “modo de produgao palatino” As tentativas de aplicaciio do conceito de “modo de producao asiStico” disseram respeito a grande ntimero de sociedades e a cortes cronolégicos também variados: as civilizagdes do antigo Oriente Proximo; algumas das ci lizagGes da proto-histéria mediterranea (cretense, micénica €, com menos verossimilhanga, a etrusca); India, Sudeste Asiético e China pré-coloniais; algumas das culturas da Africa negra pré-colonial; as altas culturas da América pré-colombiana. Casos muito controversos, e com graus de probabilidade muito mais baixos, so o Império Bizan- 8A coletinea mais atualizada ¢ a jé citada na nota 1, organizada por Bailey Llobera ® Marx, Karl & ENcELS, Friedrich. La ideologia alemana, Mon- tevideo, Pueblos Unidos, 1968. p. 25. tino, 0 mundo muculmano — insistiu-se mais no’ caso /turco —, a Riissia tzarista e 0 Japio. Aqui nos interessa 0 antigo Oriente Préximo, visto ‘através de dois exemplos: 0 Egito faradnico e os Estados da Baixa Mesopotmia. Por tal razio, apoiar-nos-emos na interpretagio da evolucdo social préximo-oriental ela. Dorada, sob inspiracio das discussdes acerca do “modo de producio asidtico”, por dois autores italianos, especia. Uistas na hist6ria dessa regitio: M. Liverani e C. Zaccagnini, Por volta de 7000 .C, jé existiam, na Asia Ociden tal, aldeias sedentérias, resultantes do proceso que o arquedlogo australiano Gordon Childe propds fosse cha. mado “revolugio neolitica"; esta forma de organizacao Se generalizou a0s poucos no Oriente Préximo. Alguns Séculos antes de 3000 a.C,, na Baixa Mesopotimia, e por tolta dessa data, no Bgito, nova transformacio — que Childe chamava “revolugdo urbana” — se traduziu no surgimento de cidades, do Estado, e de uma diferenciagéo Social profunda; ou, mais em geral, do que se conven. cionou denominar “civilizacao”., Liverani, ao interpretar a situagio posterior A “reyo- luca urbana”, propde um duplo quadro de referéncia: © “modo de produgio doméstico”, ou “aldeao”, e 0 “modo de produgdo palatino”. O primeiro seria uma estruturagio Social cuja origem remonta a “revolugéo neolitica”; sio caracteristicas suas a economia de subsisténcia, a auséncia de divisio especializagio do trabalho — dando-se, em cada aldeia, a unido da agricultura e do artesanato —-, a auséncia de uma diferenciagao em classes sociais, a pro- Priedade comunitéria sobre a terra. O “modo de producao Palatino”, por sua vez, resultaria da “revoluedo urbana”, que desembocara no surgimento de complexos palaciais ¢ templarios como centros de nova organizacio social. A economia passara a basear-se na concentragiio, transfor- 25 ts Macao e redistribuicdo dos excedentes extraidos por tem- plos ¢ paldcios dos produtores diretos — em sua maioria ainda membros de comunidades aldeis —, mediante coa. Sao fiscal, configurando tributos in natura e “‘corvéias”, ou trabalhos forgados por tempo limitado, para atividades civis (trabalhos diversos) e militares; isto manifestava divisdo e especializaeio do trabalho, com o surgimento de especialistas de tempo integral (artesdos, sacerdotes ¢ burocratas dependentes dos templos e paldcios), uma dife- renciago fortemente hierérquica da sociedade, um sistema J4 complexo de propriedade que incluia, entre outras for. mas, as propriedades dos paldcios e dos templos. As comunidades aldeas e, em regies marginais, também as comunidades tribais, tomadas em si mesmas, eram o resi- duo de um modo de produgao cujas raizes mergulhavam no passado pré-hist6rico; mas constitufam, ao mesmo tem- Po, a base sobre a qual se desenvolvera 0 novo modo de Produco; este s6 péde surgir e se expandir explorando © modo de producdo mais antigo, que foi subordinado, adaptado ¢ utilizado de acordo com os novos interesses, mas sem perda de todas as suas caracteristicas proprias. 2 Para Zaccagnini, a articulagéo entre estruturas pala- linas hegem6nicas ¢ estruturas aldeas subordinadas — mas ainda reconhecfveis e com certo nivel de autonomia local — € que constitui o “modo de produgao asiético”, ou “tributério”, tal como existiu no antigo Oriente Proxi mo. Ele cré também que, nos grandes vales fluviais itrigados © urbanizados (Egito, Baixa Mesopotamia), a forte centralizagao palatina Ievou, jé no IM milénio a.C., um redimensionamento t&0 profundo das comunidades aldeds, que elas perderam a maior parte de sua autonomia 10 Liverani, Mario. La struttura Politica. In: Moscartt, Sabatino, ed. Lalba della civilta, v. 1, p. 277-414. V. “Bibliogratia comen, tada". Id. Il modo di’ produzione, ibid., v."2, p. 3-126. ¢ importéncia econémica — talvez tenhamos ai uma apre- | ciagdo exagerada, como veremos. Nas regiées menos nu- | cleares do antigo Oriente Préximo (Palestina, Siria, Asia Menor, partes da Assiria), pelo contrério, o sistema de comunidades de aldeia teria sobrevivido com forca, man- tendo reconhecivel seu cardter comunitério tradicional até pelo menos 1200 a.C., aproximadamente. * Como foi possivel a transigfo de aldeias indiferen- ciadas & situaco de desigualdade e dominio que se confi- gurava j4 claramente desde o III milénio a.C.? Obvia- mente, o ponto de partida’ tem de ser um inicio de diferenciagdo funcional no seio das préprias comunidades aldeds, tanto devido a fatores internos quanto por impactos externos (comércio intercomunitério ou de longo curso, guerra, influéncias diversas). Tal diferenciago, ao ocorrer, se cristaliza no plano do prestigio, do ganho e do poder decisério: certos “notdveis” safdos das familias mais’ im- portantes passam a manipular de fato, por sua influéncia e formas materiais de pressio, as decisées do “conselho de ancifos” da aldeia, A origem primeira da diferenciagio pode decorrer do fato de que certas familias, mais nume- rosas que outras, concentraram o controle de mais lotes de terra comunitaria e mais cabegas de gado do que as demais; ou de que as familias estabelecidas hé mais tempo na aldeia tivessem privilégios negados as mais recentes; ow ainda do resultado da distribuicgo desigual de bens provenientes do comércio intercomunitério ou de longo curso. Seja como for, quem alcangasse posigdes vantajosas tentaria garanti-las para seus filhos. Com 0 tempo, esta~ belecia-se uma diferenga entre os que trabalham e os que dirigem o trabalho alheio; entre os que decidem e os que executam; entre os que realizam trabalhos “comuns” 31 Zaccagnint, Carlo. Modo di produzione asiatico e Vicino Oriente antico. Dialoghi di Archeologia. V. “Bibliografia comentada”. 27 (agricolas) e “especializados” (de transformacéo, troca, administragio). Quando as mudangas desembocam plenamente na urbanizagdo e na organizagio estatal, trés setores sociais bésicos sao perceptiveis: 1. A imensa maioria da popu- ago dedica-se as atividades agropecuérias, consumindo diretamente parte do que produz e entregando 0 resto a0 poder central; tal populagio nao participa das decisbes comuns. 2, Um grupo. muito minoritério se ocupa com atividades artesanais, de troca, de administragio, religio- sas; € mantido pela redistribuigéo dos excedentes extrafdos das aldeias, e nao participa das decisoes comuns. 3. Um grupo infimo organiza o trabalho das comunidades, pelas quais € sustentado, e decide por todos; este poder de decisio tende a personalizar-se, a ter como expoente uma 86. pessoa. A ampliagio do corpo social, que passa a englobar numerosas comunidades aldeds, mais os nticleos urbanos, leva a uma coesao cada vez mais artificial e menos auto- mitica; se tal coesio na aldeia decorre de relagées de parentesco ¢ vizinhanga e de decis6es tomadas por repre- sentantes das familias nas confederacdes tribais amplas e, mais ainda, num Estado, recorre-se a sancdo divina do poder ¢ da ordem social. O governante supremo passa a situar-se num plano diferente do que caracteriza o resto da sociedade: a sacralidade facilita a aceitagtio das decisoes pela maioria nao consultada. A contraparte dos excedentes recebidos das comunidades 6 de tipo administrativo, mas sobretudo ideolégico: o rei, ou governante, é 0 garantidor da justiga — ordem césmica aplicada a casos particulares — e da fertilidade da terra e dos rebanhos, utilizando-se, para tal, de meios sobrenaturais, © palicio ¢ o templo so impenséveis sem a aldeia, mas esta, ao inserir-se no interior de um sistema palatino, 28 Be Sofre transformacées: j4 nio é a aldeia auténoma do Neolitico; assim, os dois nfveis basicos da integragao social | Séo interdependentes. No entanto, as relagdes entre eles sio de iniciativa exclusiva do nivel superior, manifestando- ~8e na taxaco, no recrutamento militar, na repressio, Existe uma tenséo, um hiato de interesses e mesmo de compreensao entre ambos os niveis, que a ideologia oficial tenta ocultar, difundindo a imagem de uma sociedade ho- mogénea em que todos — do mais pobre camponés a0 mais exaltado funciondtio — sao “servos” do monarca, que, por direito divino, é 0 senhor de suas vidas e o dispensador da abundancia. 2 A Baixa Mesopotamia Introdugao A Mesopotamia — vale fluvial do Eufrates © do| Tigre — pode ser dividida em duas partes, respectiva. mente a noroeste e a sudeste do ponto em que os dois ios mais se aproximam um do outro: a Alta Mesopotamia, mais montanhosa, ¢ a Baixa Mesopotamia, imediatamente a0 norte do golfo Pérsico, regido extremamente plana. Enquanto 0 povoamento da Alta Mesopotamia deu-sé desde tempos pré-histéricos muito antigos, a Baixa Meso- potémia — potencialmente fértil, mas pouco adequada & agricultura primitiva de chuva — ndo parece ter sido “ocupada em carfter permanente antes do V milénio a.C., durante a fase de Ubaid, talvez entre aproximadamente 5000 e 3500 a.C, — basicamente neolitica ou, mais exata- mente, calcolitica, pois objetos de cobre j aparccom em Pequeno niimero a partir de 4500 a.C. A fase arqueolégica seguinte, a de Uruk (aproximadamente 3500-3100 a.C.), viu os primérdios da urbanizacio e da escrita, inovacdes que se consolidaram no Perfodo Inicial do Bronze (3100- ~2100 a.C.), iniciado com a fase de Jemdet-Nasr (aproxi- 30 Oo madamente 3100-2900 a.C.), considerada como a época da verdadeira revolugio urbana, © espago de que dispomos neste livro nfo permite uma’ apresentagao, mesmo suméria, das etapas por que desde entdo passou a histéria da Baixa Mesopotamia, (Ver © quadro 1.) Pela mesma razao, nao serd possivel fazermos justica cabal as heterogeneidades regionais, por muito tem Po tipicas de uma civilizagéo cuja unidade sociopolitica bésica foi, primeiro, a cidade-Estado. A gravitagdo das numerosas cidades-Estados da Baixa Mesopotamia nao deixou de se fazer sentir mesmo quando, a partir de 2371 a.C., aproximadamente, tentativas de unificagao im. perial se sucederam, cada vez mais consistentes, 1 - Do ponto de vista etnolingiifstico, 0 povoamento da Baixa Mesopotmia, no periodo historico, esteve marcado Por dois grupos iniciais: os sumérios, que se julgava terem migrado por mar para a regiio, mas arqueologicamente se vinculavam ao sudoeste do Tri (o Elam, ou Susiana),, ¢ falavam uma lingua aglutinante;.e_os $_acddios, que fala- | vam uma lingua de flexao do grupo semita, e provavel- mente vieram do oeste. O elemento sumério predominava 20 sul (pafs de Sumer, ou Suméria) da Baixa Mesopoti- mia, € 0 acédio, a0 norte (pais de Akkad, ou Acédia). A verdade, porém, € que, quando comecamos a ter mais informag6es, em meados do III milénio a.C., esses grupos estavam ja bastante mesclados. No milénio seguinte, a fusdo se completou; predominaram, desde entio, as linguas semitas: 0 acadiano, 0 babilénio dele derivado e, por fim, © aramaico. Com o tempo, 0 mapa etnolingiiistico se complicou devido a sucessivas migragées — que as vezes desembocavam em invasdes violentas — de némades semi- {Ja no inicio do I milénio a.C. © imenso Império Asstio ainda Gra governado através da extensio das instituig6es tipicas ‘dae cidades-Estados. (GaneLtt, Paul, L’assyriologie. Paris, Presses Ut versitaires de France, 1964. p. 75.) BB @ & i a Sa /R582/8288/ 2] seesls: gs lgges|ssa| 3 Baggies g [PS RAleSE/ B] SRS RL é ba s 35 2 lS = g2 | js 3 5 jeez . s Es 4 Fie fatal ads | at 82 DQ SS SBS i[eseSlae s 2a Saltese] 885 Fss/8s| 8 |e 18 Faljgbs} B28 (2ssisc) 8 £ 32 S/$ss| FFa \Fsayes! 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Lr Se Sle 3] [£223 slack geeSlege| 2/53 38 Fag" S222s2s/ 2 |oz as 8] 825 Beeg|8eo| Fo 825 oleae Seael6es) s/8s28s], ESSE #8) 2/2828 8/4 Séfse 52) § |e 58 Fale & 32, a {as vindos do oeste através do deserto da Siria (amorreus, jou amorritas, arameus, caldeus) e de montanheses do / Keste (ettios, elamitas, cassitas; estes tiltimos, provavel. mente dirigidos por um reduzido grupo de lingua indo- ssureptin) ou do norte (os assirios, que representavam um velho povo da Alta Mesopotimia, i ay 2 oes »por Posteriormente As forcas Produtivas ,___ 08 grandes rios da Mesopotamia tém uma cheia mais irregular do que a do Nilo em sua cronologia e ineidénein As Aguas sobem, em principio, entre marco @ maio c baixam entre junho ¢ setembro, A enchente se caracterize Por sua grande violéncia: o Eufrates e 0 Tigre, ao dence, Tem velozmente, durante a cheia de zonas montanhoes, & uma regiéo absolutamente plana, depositam enormes quantidades de aluvides — timo misturado com cal gmbora a corrente se faca mais lenta na planicie, come 6 natural, ainda é suficiente para causar muita destruigho Ora, quando as aguas sobem, as plantagses ja foray Semeadas hi varios meses; a inundacio poderia, em tre condigdes, destruir os campos cultivados e pér a perder todo © trabalho. Isto torna imperative um sistere he digues ¢ barreiras de protecdo, e a0 mesmo tempo é pre. Giso acumular égua e cavar canais que irriguem os campos durante os meses de seca; em suma, 6 necescétio wm sistema completo de protecio ¢ de regadio, de caracte. tisticas perenes. Dos tios, 0 Tigre, mais violento © cujo leito é baixo demais em relagio as margens, é menos itil para a ir Bacio, enquanto 0 Eufrates sempre teve mais possibili. dades de aproveitamento, jé que corre acima do nivel da planicie. Os dois j4 mudaram de leito varias vezes. © 33 Eufrates, além disto, sempre correu por mais de um Ieito a0 mesmo tempo: no II milénio a.C., 0 principal dos trés canais naturais deste rio era o que passava pela cidade acadiana de Kish; 0 da cidade de Babilénia se tornou o mais importante no final do milénio seguinte. A mudanga de curso dos rios significava igualmente uma transformacio gradual dos assentamentos e das concentragées demogri- ficas. Por outro lado, a planicie nao constitui uma zona integralmente fértil. No caso da Suméria, por exemplo, as cidades-Estados constitufam dois grupos principais, sepa- rados pelo deserto de Edin: a oeste, as cidades de Nippur, Shuruppak, Uruk, Ur e Eridu; a leste, além do deserto, as de Abad, Zabalam, Umma, Bad-Tibira e Lagash. O terreno cultivavel formava, além do mais, manchas mais ou menos separadas entre si. As condigées ecolégicas explicam que a agricultura de irrigagio, ao impor trabalhos consideraveis — embora no necessariamente transcendam a esfera local, como veremos —, torna impossivel uma organizagdo individua-' lista da agricultura, As obras de protegdo e de irrigacio exigiam, para serem construidas, limpas e conservadas, um esforgo coletivo; e o seu uso devia ser regulamentado e disciplinado pela lei. A dependéncia para com os diques € instalagdes de irtigacio era tio grande que h4 casos historicamente comprovados de reversio A vida némade, devido & sua destruigao local. ‘ No caso do Eufrates, o trabalho em si de cortar a margem nao apresenta dificuldades especiais, e com o sistema de diques de protecio, tanques, canais principais regos, a cheia fertiliza o solo com seus aluvides, ¢ pode-se ter agua abundante durante 0 ano todo. O pro- blema maior consiste em ser a regiao absolutamente plana, © que dificulta 0 escoamento do excesso de Agua, que se imobiliza em charcos ¢ tende a impregnar a terra de sal e gesso. Tal problema, assinalado j4 em fontes do IIL 34 milénio a.C., nfo foi solucionado na Antiguidade; a dre- nagem insuficiente causou, freqiientemente, o abandono de amplas superficies de terra, que antes haviam sido férteis. Os canais, cortados nas margens altas, eram refor- cados pelo actmulo de aluvido, ao qual as vezes se somia- vam esteiras de junco. Muitos cursos naturais, correspon- dentes aos bragos dos rios principais e aos tributérios destes, foram regularizados e canalizados, mesmo porque também serviam para a navegacdo. O sistema de regadio acompanhava tradicionalmente 0 curso do sistema fluvial natural, e foi mudando para acompanhar seus freqiientes deslocamentos. © enorme esforgo gasto era compensado por um rendimento muito considerdvel. Sem que. aceitem rendi- mentos de 200 e até 300 graos colhidos para cada grao semeado, de que fala Herédoto (I, 193), os autores de | hoje, baseando-se no testemunho menos espetacular dos \ proprios documentos mesopotimicos, admitem variagdes de 8 a 103 graos colhidos para cada grao semeado, caindo depois de 2000 a.C. para a média de 30 por um. Seja como for, trata-se de rendimentos importantes, além de que, com freqiiéncia, era possivel obter duas colheitas anuais. Isto sem divida explica a grande concentragao demogréfica e a forte urbanizagio da Baixa Mesopotamia, embora as estimativas tentadas variem muito. Para 0. final do III milénio a.C. e inicio do seguinte, L. Woolley calculou, para a cidade de Ur, uma populagdo de 360 000 habitantes, Outros autores acham, com maior verossimi- Thanga, que a populagéio das cidades sumérias variava de 10000 a 50000 habitantes, aproximadamente, e que Ur — a maior delas — poderia ter uns 200 000 habitantes. Tais cAlculos sao frageis, mas ha dados indiretos que per- mitem comprovar o cardter de “formigueiro humano” que 35 apresentavam na Antiguidade os 30000km* de terras cultivaveis da Baixa Mesopotamia, Em que medida pode-se aceitar, para a regio em estudo, uma “hipétese causal hidrdulica”, como a que foi discutida no primeiro capitulo? Bem antes dos textos mais conhecidos de Wittfogel e seus seguidores, tal hips- tese era ja muito popular na primeira metade deste século, como podemos comprovar em obras como as do arque6- logo australiano Childe e do historiador francés A. Moret. Mais reéentemente, Saggs afirmava, em tom peremptério, que a reuniéo de comunidades no sul, formando cidades, fol quase certamente ditada pelos rios: para controlé-los @ uti- Iizé-Jos em forma efetiva precisava-se da cooperagéo numa escala malor do que 2 que pequenas aldeias isoladas e primitivas poderiam prover.? No entanto, a tendéncia dominante tem sido, cada vez mais, a que predomine a opinido que vé na “hipdtese causal hidréulica” uma simplificagao abusiva de processos multicausais e complexos. Entre os que assim pensam, a opiniio de R. M. Adams é uma das que tém maior peso, j4 que ele 6 um dos poucos arqueélogos que levaram -a cabo escavacées relativas aos sistemas mesopotimicos de irrigacdio. Ele mostrou que os padrées bésicos de assenta- mento seguiam de perto os cursos dos principais. rics, caracterizando-se por sistemas locais de irrigagio em pe- quena escala, desde aproximadamente 4000 a.C. Tal situa- Go continuou a predominar mais tarde, apesar das consi- deraveis obras hidrdulicas levadas a cabo pelos governantes a partir de meados do IIL milénio a.C., obras que, seja como for, s6 foram iniciadas muito posteriormente & 2Sacos, H. W. F. The greatness that was Babylon, New York, ‘The New American Library, 1968. p. 41. 36 urbanizagio e ao surgimento da civilizagdo, 0 que des- mente a “hipétese causal hidréulica”, ® Como explicar, entGo, o desenvolvimento das cidades- -Estados sumérias? Embora este seja um tema mal conhe- cido — porque nio o iluminam os textos decifraveis, jé que, quando comegam, 0 proceso de urbanizagio jé terminou —, é provavel que a explicagio tenha de ser multicausal e complexa, incluindo fatores como a propria irrigagdo — ligada A multiplicaco dos excedentes agrico- las e ao crescimento demogréfico, sem os quais as cidades nao poderiam ter surgido —, mas em conjunto com outros: religiosos, politicos, militares, populacionais etc. Os milénios IV e II a.C. viram constituir-se o sistema tecnolégico basico da Mesopotamia da Bpoca do Bronze e, no conjunto, dio a impressio de um dinamismo maior das forcas produtivas do que, por exemplo, o que se vé no Egito da mesma épgca. O arado de madeira meso- potamico, acoplado a um dispositive por onde entravam 0s gréos, petmitia arar e semear a0 mesmo tempo. A transigéo do cobre ao bronze se fez muito mais rapida- mente do que no Egito, j4 no perfodo protodinéstico, ¢ embora o metal fosse caro — j4 que os minérios tinham de ser integralmente importados —, seu uso para fins produtivos difundiu-se mais do que no Egito na Epoca do Bronze. O instrumento para elevagio de Agua baseado no principio do contrapeso, conhecido pelos egipcios de hoje como shaduf, aparece representado na Mesopotémia por volta de 2000 a.C. e, no Egito, s6 uns seiscentos anos mais tarde. Mas convém néo exagerar: 6 instrumental agricola era, no conjunto, bastante rudimentar. © metal s6_ substi- 3 Ver o artigo de Adams incluido na nota 5 do primeiro capitulo, © qual aborda no somente o caso da Baixa Mesopotamia, mas também 0 do Eglto e os do Pera e Mesq-América pré-colomblanos. ” tuiu de todo a madeira e a pedra ao difundir-se o ferro, a partir de fins do II milénio a.C. Enxadas, picaretas ¢ machados eram de cobre e depois “de bronze. Mas o arado foi, durante muitos séculos, feito de madeira, bem como a foice — na qual se inseriam pedras cortantes de silex — ¢ 0 trené usado para separar 0 gréo da palha — prancha sob a qual sé fixavam pedras pontudas, Como os instrumentos de bronze nao permitiam tosquiar as ovelhas, antes da Idade do Ferro a la tinha de ser arrancada, Um documento de aproximadamente 1700 a.C., que os especialistas chamaram de “almanaque do lavrador”, descreve os trabalhos agricolas, que comegavam logo de- pois das chuvaradas de outubro-novembro. Tal texto men- ciona a necessidade de controlar a altura da égua antes de comecar a preparar a terra. Previamente ao uso do arado, o terreno era trabalhado com picaretas, para tor- né-lo fofo; se necessério, os torres eram quebrados com um malho. O arado, puxado por bois, abria sulcos sepa- rados por aproximadamente um metro, para evitar o esgotamento do solo. Cem litros de sementes bastavam para semear 20000 m? — contra 5 000m? atualmente. Depois da semeadura, os sulcos eram limpos; as sementes deviam ser protegidas contra insetos e passaros, e regadas em quatro ocasiées. A colheita — de abril a junho ou julho — era realizada pela sega com a foice; as espigas eram cortadas curtas, e os caules do cereal, queimados. E interessante notar que, segundo o “almanaque do lavra- dor”, as diferentes operagdes do ciclo agrario acompa- nhavam-se de rezas a diversas divindades. Tanto na, agricultura quanto no artesanato, a produ: vidade do trabalho parece ter sido baixa, o que era ‘compensado mediante 0 uso macigo de trabalhadores. Trés mulheres deviam trabalhar oito dias, por exemplo, pard~ fiar e tecer um pano de 3,5 X 4m. A divisio técnica 38. do trabalho artesanal e agricola teve pouco desenvolvi- mento, predominando a cooperacao simples, onde todos os trabalhadores realizam as mesmas operagoe Na economia da Baixa Mesopotimia, as fomes e crises de subsisténcia’eram freqtientes, causadas pela irre- gularidade da cheia, como também pela guerra, que des- trufa as instalagdes de irrigagdo ou as colheitas. Uma dessas crises acompanhou a queda do Império de Ur, em 2004 a.C, Outro perfodo de crises econdmicas relati- vamente bem conhecidas ocorreu nas cidades de Eshnunna, Ur e Larsa, pouco antes da expanséo imperial de Ham- murapi, no século XVIII a.C.; mas nao se deu entéo a mesma coisa em Mari e Babildnia. A economia continuava nfo-unificada e os transportes eram lentos. Quando a guerra ou a incidéncia de calamidades naturais afetavam © equilibrio instavel inerente a forcas produtivas — ape- sar de tudo insuficientes ou precdrias —, numa sociedade marcada por extremas desigualdades, o resultado era 0 endividamento e 0 aumento do sofrimento dos agricultores mais pobres e do povo em geral. Descrigao das principais atividades econémicas A agricultura intensiva era a base da vida econémica | e da urbanizagao. Os textos sumérios anteriores ao Império_ de Akkad permitem conhecer com algum detalhe as ativi dades agricolas desde meados do III milénio a.C. O cereal | mais cultivado era a cevada, usada como alimento humano e do gado, e como matéria-prima para fabricagio de cer- veja, Diversos tipos de trigo eram também plantados, além do sésamo (gergelim), do qual se extrafa o azeite para alimentagio e iluminacdo. Os textos mencionam igualmente legumes, raizes, pomares de érvores frutiferas, 39 mesmo Arvores plantadas para obtengéo de madeira) muito escassa na regio. O cultivo da tamareira — da| qual se aproveitavam os frutos, fibras ¢ madeira ordindria — exigia o uso da polinizagao artificial. Desde © Neolitico, a agricultura se associava A pe- cudria: criavam-se ovinos, caprinos, suinos, bovinos e| muares. O gado bovino era usado como animal de tiro para o arado e para os carros — estes também podiam ser puxados por asnos; 0 cavalo s6 se difundiu no II milénio a.C. —, além de fornecer carne, um alimento de luxo, ¢ leite, A 14 das ovelhas era a matéria-prima bésica para a produgdo téxtil, embora também se conhe- cesse 0 linho e, bem mais tarde, 0 algodao. O asno cra © meio de transporte terrestre mais importante. Sabe-se que os rebanhos eram muito numerosos desde o IIT milé- nio a,C., ¢ que as vezes eram importados animais de boa raga para aprimoramento das espécies criadas. = Ha prova documental da importincia persistente da pesca (no golfo Pérsico, nos pantanos costeiros, rios e canais), que empregava um pequeno barco feito de molhos | de junco trangado, anzol e rede. A caga, atividade com- plementar, era bem menos vital. 4 Praticava-se a coleta em terras pantanosas, especial- mente para obtencdo do junco, que, além de ser usado em cestas, barcos, cordas e cabos de ferramentas, constitufa © material de construgio, por exceléncia, de cabanas rurais. A argila era também matéria-prima essencial, usada na fabricacgdo de cerimica, tijolos. Existiam numerosas especializagées artesanais. Os textos ¢ algum material iconografico — muito menos rico do que o egipcio — permitem-nos conhecer a produgéo de cerveja, vasilhas (de argila, sobretudo, mas também de pedra, madeira e vidro), tijolos — secos ao sol ou cozidos no forno —, que eram a base de todas as cons- 40. trugdes, objetos de metal, téxteis, objetos de couro (san- délias, roupa, equipamento militar, odres, sacos, guatnicdes de carros, certas embarcagées), artigos de madeira etc. Os textos da II Dinastia de Ur, por exemplo, mencionam escultores, ourives, cortadores de pedra, carpinteiros, forja- dores de metais, curtidores, alfaiates, calafates. Havia gran- des oficinas pertencentes aos templos e palicios; assim, no final do IIT milénio a.C., em trés localidades proximas cidade de Lagash trabalhavam 6 400 artesdos téxteis em oficinas estatais. Mas também existiam oficinas fami- liares, e nas cidades os artesdos se agrupavam em ruas especiais. O desenvolvimento da producao era dificultado pela escassez de combustiveis, matérias-primas, metal para as ferramentas, cujo abastecimento dependia quase total- mente da importacéo, Mesmo assim, certas unidades de produgéo empregavam muita mio-de-obra, especialmente 0s moinhos e as manufaturas téxteis, O comércio local e o entre as cidades da Baixa Meso-| potamia, utilizando a navegacio nos rios e canais paral © transporte, implicavam poucos riscos, mas a concorréncia| era grande. Muito mais importante foi o comércio de Jongo curso. J4 aproximadamente em 4000 a.C., a obsidia-_} na © 0 silex eram importados do leste, ¢ 0 asfalto, do curso médio do Eufrates. Na fase de Jemdet-Nasr, alguns textos j4 mencionam um “chefe dos agentes comerciais” entre.os funcionétios das cidades-Estados. B que a Baixa Mesopotamia s6 conta com pouca madeira, de m4 quali- dade, faltando-lhe de todo pedra-e metais. Até as grandes més de pedra dos moinhos tinham de ser incomodamente importadas. Assim, excedentes agricolas e produtos manu- faturados (especialmente téxteis de 14) foram desde cedo mobilizados para serem trocados no exterior por matérias- -primas (madeira, cobre, estanho, pedras duras) e por artigos de Iuxo (ouro, prata, lépis-laziili, tecidos estran- geiros etc.). = A principal rota terrestre para o norte e 0 oeste, percortida por caravanas de asnos, ganhava a Asia Menor através da Assfria, que ficava na parte leste da Alta Mesopotamia. Por mar, havia contatos freqiientes com Dilmun — atual Bahrein —, com outros pontos da Arabia e, indiretamente, com a India, Os comerciantes mesopoté- micos mantinham uma rede de agentes e correspondentes ao longo das rotas comerciais. Apesar de riscos conside- raveis, desde que deixou de ser monopélio exclusivo dos palicios e templos, 0 comércio de longo curso passou a permitir consideravel acumulacdo privada de riquezas — mesmo porque se associava 4 compra de terras ¢ escravos € ao empréstimo a juros. A economia era protomonetirie: nao houve moeda cunhada antes do dominio persa, mas a cevada e os metais (prata e cobre, sobretudo) funcions- vam como padrao de valor e unidade de conta nas tran- sages. No comércio exterior © pagamento podia ser feito com lingotes de metal. Em certas ocasides falhava o abastecimento de maté- rias-primas importadas, afetando as atividades de trans- formagao. Na época do apogeu do Império de Akkad, por exemplo (século XXIV a.C.), houve uma reversio passageira do bronze ao cobre, aparentemente porque fal tou o estanho. Propriedade e relagées de producado: interpretagdo das estruturas econémico- -sociais Escreveu certa vez o arquedlogo Petrie: A idéia de propriedade nao é absolutamente uma abstracéo simples; & de fato to complexa em suas variadas natu- rezas que se trata de uma generalizago que no podemos esperar encontrar em uma sociedade arcaica. Existem varlas 42 modalidades de propriedade, to diferentes entre si que, para @ maneira conereta de perceber, nada tem em comum, Existe 0 lote de terra tribal, ocupado unicamente em usu. fruto @ usado s6 como um meio de trabalho. Existe « erme ganha 20 inimigo, ou 0 saque de assentementos, que é © prémio da bravura. Existe a porcio de mantelga teita pela done-de-casa, @ que seré consumida. Existe 0 chifre esculpido, que serve para beber, produto de um artesanate individual, querdado como heranga de familia. Estas dite. fentes modalidades de coisas néo séo percebidas como similares em sua origem, na natureza da posse sobre elas, ada ge finelidade, Generalizélas todes como proprie. dade néo 6, absolutamente, algo bvio, 4 Embora Petrie ndo estivesse pensando,- aqui, numa Sociedade como a da Mesopotamia e, sim, numa cultura como a dos celtas da fase pré-romana, esta passagem Serve para alertar-nos sobre um ponto importante: quando | empregamos © termo propriedade, muitas vezes Ihe asso- ciamos, automatica e implicitamente, uma. Nogao unificada | ¢ absoluta de propriedade, tipica da tradig&o ocidental que! Temonta a0 Direito Romano. Ora, tal nog&o, nfo sendo| adequada nem pertinente ao se tratar do antigo Oriente Proximo, pode conduzir a becos sem saida ¢ a falsas percepcées, Nas terras pertencentes aos templos sumérios do III milénio a.C., por exemplo, havia extensdes consideréveis cuja renda era revertida ao rei e a membros da familia real. Seriam, por tal razio, “propriedade” do rei e de seus familiares? Um sumério no veria assim as coisas, nem sentiria necessidade de fazer tal pergunta. Mas, se a ronda dessas terras, sistematicamente, nao ia para os femplos, que significa dizer que tais terras pertenciam a sean, William M. F. Some sources of human history. London, Society for Promoting Christian Knowledge, 1922. p. 105-6 43 eles? Outrossim, o rei ¢ a familia real dispunham também de terras préprias: uma parte do rendimento delas deri- vado podia, no entanto, destinar-se a financiar despesss dos templos, como ocorria no perfodo da. IIT Dinastia de Ur. Vejamos outro exemplo: Na antiga Baixa Mesopotimia havia seres humanos que chamamos de escravos, pois pertenciam a pessoas que podiam vendé-los, legé-los ou alugé-los, bem como a gi-los fisicamente, marcé-los com signos de Propriedade € fazt-los trabalhar. Com algumas excegdes — sob a I Diriastia de Ur, por exemplo, os: prisioneiros de guerca escravizados (namra) careciam de status juridico —, tais escravos, porém, podiam casar-se com pessoas livres, & bens, intentar acdes em justica; e pagavam impostos. De certa forma eram “propriedade” de seus donos, mas certa- mente nio no mesmo sentido ¢ extensio em que o eram 0 escravos no mundo greco-romano cléssico, Poderiamos dar outros exemplos, mas 6 importante que fique registrada apenas a seguinte adverténcia: 0 uso de termos comuns no garante, a0 se tratar de sociedades tio diferentes da nossa, que o seu significado permaneca necessariamente 0 mesmo. O Ill milénio a.c. © pélo “palatino” da sociedade histérica da Baixa Mesopotimia, ou seja, uma classe dominante mais ou menos confundida com o aparelho de Estado, ja hws surgido claramente na passagem do IV para o IIT milénio aC. — fase de Jemdet-Nasr; entio aparecem, nos documentos, funciondrios como o chefe da cidade-Estado, que era também sumo sacerdote (en), 0 chefe dos agentes comerciais, a grande sacerdotisa, e outros. A partir de meados do III milénio comecamos a perceber outros ele- 44 mentos da organizagao estatal: o sistema de tributos in natura e “corvéias” — trabalhos forgados, por tempo limitado, para obras: ptiblicas, servicos para o grupo diri- gente e servico militar — imposto & populacdo, e desta- camentos militares recrutados entre os dependentes do templo, o que permitia a existéncia de um micleo de forca policial e militar independente da milicia camponesa con- vocada em época de guerra, Nas cidades-Estados da Baixa Mesopotamia, no pélo dominante estatal, 0 setor dos templos por muito tempo predominou sobre o do paldcio, aparentemente mais tardio, mas ambos eram ligados entre si; a tendéncia ao longo do TIT milénio a.C. foi a ascensio dos “‘chefes” (en, ensi), que em certos casos assumiram o titulo de “rei” (/ugal) e, por fim, no periodo de Akkad, declararam-se de cardter divino, em detrimento dos templos: o aparelho militar sob comando real se ampliou, independentemente das milicias dos templos, e as terras reais tornaram-se gradualmente mais extensas do que as dos santuérios, Até 1950, aproximadamente, foi popular entre os especialistas a tese da “economia-templo”, ou “cidade- -templo”, suméria: os templos, acreditava-se, possufam toda a terra cultivada, Foi Diakonoff que demonstrou ser falsa tal opinido. Os templos talvez ocupassem, em meados do III milénio a.C., a metade do solo ardvel; 0 resto dividia-se em terras do palécio e terras comunais — de familias extensas e de comunidades aldeds. A pes- quisa posterior obriga a acrescentar um quarto elemento: a propriedade privada incipiente, que aparece em documen-_\ taco publicada por'D. O. Edzard e pode também ser deduzida do fato, iluminado pelo proprio Diakonoff, de se darem vendas de terra comunal a individuos que nem sempre representavam o Estado. Devemos, entéo, imaginar o funcionamento da econo- mia baixo-mesopotamica a partir de duas estruturas basicas, 45 que correspondem ao que Liverani chama de “modo de produgao palatino” e “modo de producio doméstico”, ou “aldedo”:) 1. Os complexos econémicos organizados em ¢ada cidade-Estado & volta dos templos e do palicio real, além de’ concentrarem os resultados dos impostos ¢ cor- véias que a maioria da populagdo devia — redistribuidos aos dependentes em forma de ragdes —, controlavam terras proprias dotadas de sistemas de irrigacdo. 2. Por outro lado, as comunidades familiares, ou aldeas, possuindo a terra coletivamente, utilizavam o esforgo comunal para organizarem a irrigagio, para a ajuda miitua, para se defenderem dos efeitos da usura — em anos de mis colheitas era preciso pedir grios emprestados, que nem sempre podiam pagar —, para a prestaco de corvéias © pagamento dos impostos. Tanto a nivel de cada aldeia quanto da prépria cidade, existia um “conselho de ancidos” e uma “assembléia” como rgios administrativos e para dirimir disputas, de clara derivagio comunal e tribal. * Ao lado das duas estruturas polares da sociedade, a pro- priedade privada aparecia como algo ainda pouco impor- tante; pode mesmo ter desaparecido momentaneamente durante o periodo estatizante da III Dinastia de Ur, como pretendem alguns autores. Ignoramos o detalhe da organizago econdmica do complexo palacial, que segundo parece se baseou na dos templos. A organizacio destes nos é conhecida sobretudo por um exemplo, 0 do santuério da deusa Baba — o segundo em importdncia da cidade de Lagash, que tinha uma vintena de templos —, possuidor de 4465 hectares de terra, nos quais trabalhavam 1 200 individuos, sob a supervisio de um sacerdote administrador, um intendente, um inspetor e grande néimero de capatazes e escribas. AS 5 JaconseN, Thorkild, Primitive democracy in ancient Mesopotamia. Journal of Near Eastern Studies, Chicago, 2, 1943. p. 159-72. 46 suas terras se dividiam em trés blocos principais: uma quarta parte era cultivada diretamente para o templo, através de alguma méo-de-obra escrava, mas sobretudo do trabalho de dependentes juridicamente livres; 0 resto dividia-se em “terras de labor”, dadas em arrendamento por 1/7 ou 1/8 da colheita, e “campos de subsisténcia”, em que pequenas parcelas eram distribuidas aos agriculto- res, artesdos, guardas, pescadores, escribas, servicais etc., que também recebiam racdes. Os templos devem ser imaginados como enormes complexos, com terras, reservas de pesca, rebanhos, ofi- cinas artesanais e uma participacdo direta e talvez predo- minante no comércio de longo curso e nos empréstimos usurérios de prata e cereal. Os trabalhadores dependentes parecem. ter tido origens variadas: refugiados estrangeiros | transformados em “clientes” dos templos, membros de \ familias e comunidades arruinadas pela usura. Quanto a escravidéo, predominantemente feminina nesta época, era importante na tecelagem, nos moinhos, no servigo domés- tico, mais do que na agricultura. No perfodo fortemente estatizante da I Dinastia de Ur, os lavradores dependentes (gurush), agora na sua imensa maioria instalados em terras estatais, j4 nfo rece- biam lotes de subsisténcia e, sim, somente ragées: traba- Ihavam em tempo integral para o Estado, ¢ suas ragées, a0 que parece, eram pequenas demais para que pudessem constituir familia, Este sistema foi abandonado no milénio seguinte.* Também a produgao artesanal tornou-se, na época, estatal na sua maioria, e os artesios eram muito vigiados. Como a escrita era usada sobretudo na administragio dos templos ¢ palicios, as comunidades aldeds sio mal Gets, I. J. The ancient Mesopotamian ration system, Journal of Near Eastern Studies, Chicago, 24, 1965, p. 230-43, a a7 conhecidas. Tais comunidades somente aparecem em algu- ma documentagio, sobretudo em contratos de venda de porgdes de terra comunal em que os vendedores sao varios — representando grupos de parentes e recebendo-porcdes desiguais do pagamento em cobre e de “presentes” in natura —, e 0 comprador um s6: o rei, um comerciante agiota, um funciondrio. Interpreta-se, portanto, este tipo de contrato como significando a venda de terra comuni- téria, sob coacio politica — o rei acadiano Manishtusu, por exemplo, comprou, “A forca”, grande extensio de terreno de comunidades, para distribui-la em usufruto a dependentes seus — ou como resultado da usura. Os comerciantes (damgar) eram funcionérios a ser- vigo do palécio e dos templos, dos quais recebiam os produtos para serem trocados no exterior. No entanto, também faziam negécios por conta prépria; certos fun- ciondrios aparecem, igualmente, comprando terras e reali- zando empreendimentos prdprios, As vezes financiados por empréstimos dos templos, mesmo no perfodo estati- zante de fins do III milénio a.C. O Il milénio a.c. Os historiadores estio de acordo em perceber trés tipos de propriedade sobre a terra na primeira metade do II milénio a.C.: 1. As extensas terras reais. 2. Os dominios dos templos, muito menos importantes do que no perfodo sumero-acadiano. 3. As propriedades privadas, geralmente pequenas, mas numerosas; segundo alguns, predominantes em termos de drea total, afirmacao dificil de ser provada. Um quarto setor é objeto de divergéncias: Diakonoff cré que as comunidades se mantivessem como proprietaries de terras coletivas ainda neste periodo, enquanto Komo- réczy acha que elas continuavam sendo 6rgios adminis- 48. trativos e judiciais, mas haviam perdido toda a importéncia econémica nas reas mais dindmicas, conservando-se por algum tempo a propriedade comunal sobre certas terras, unicamente em regides mais atrasadas, periféricas. 7 H4 muitos indicios de um desenvolvimento da pro- priedade ¢ das atividades privadas nesta época, e nio somente no setor rural. Os tamkaru (mercadores) forma- vam, em Babildnia, uma corporagéo subordinada ao Esta- do, ¢ faziam negécios a mando do governo, Mas também negociavam em proveito proprio, aproveitando-se da ampla rede de agentes que mantinham dentro ¢ fora da Meso- potamia; praticavam, ainda, 0 empréstimo a juros, forma- yam sociedades mercantis, compravam terras e escravos. Um dos sinais de que tais atividades tinham importincia considerdvel é 0 desenvolvimento do direito privado, que se expressa na atividade legislativa dos reis, em especial de Hammurapi (1792-1750 a.C.), fundador do Império Paleobabilénico, Outro sinal ¢ a freqiiéncia com que, a prazos irregulares ¢ sem aviso prévio — para no inter- Tomper as atividades de crédito —, os reis decretavam 0 misharum (“justica”), edito que anulava as dividas e a escravidio por dividas, 0 que era uma forma de proteger a pequena propriedade privada da terra, a qual devia, portanto, desempenhar um papel importante. Nas terras reais encontramos trés setores: 1. A parte administrada diretamente pelo paldcio, trabalhada por lavradores dependentes e pessoas que cumpriam a “corvéia real”, 2, Lotes arrendados, ou confiados a colonos — aos quais o rei adiantava os animais de tiro —, contra uma 7 I. M. Main features of the economy in the monarchies Tome Economique. V. “Bibliografia comentada”; Komoréczy, oF Landed property in ancient Mesopotamia and the theory of’ the so-called Asiatic mode of production, Oikumene. V. “Bibliografia comentada” 49 renda in natura. 3, Porgées (iki) concedidas em usufruto a soldados ¢ funciondrios em troca de servigo; eram ina. liendveis mas transmissiveis por heranca. Embora a esera- vidio continuasse existindo, alimentada pela guerra, pelo tréfico, por condenagées judiciérias e pelo nao-pagamento de dividas — neste tiltimo caso foi limitada, por Ham- murapi, a uma duragdo de trés anos —, os escravos eram Taramente empregados no trabalho agricola, mas com maior freqiiéncia, nas oficinas artesanais e no servigo do- méstico. A mo-de-obra agricola compreendia lavradores dependentes (ishshakku) e também assalariados alugados Por dia, em especial para a colheita, tanto nas terras do rei quanto nas de particulares, A sociedade dividia-se em trés categorias juridicas! awilum, 0 homem livre que gozava da plenitude dos direitos; mushkenum, o homem livre de status inferior + talvez uma categoria de dependentes do palécio, e por este tutelados e protegidos; wardum, 0 esctavo. Os direitos, deveres © privilégios desses grupos variavam de acorde com a sua categoria. Embora as mencdes aos mushkenu| tenham comegado ainda no III milénio a.C., sua origem nao € clara, © a documentagao disponivel nao permite que se dé razio em forma decisiva a alguma das nume- Tosas teorias existentes a respeito, © periodo paleobabilénico viu sem diivida um desen-| volvimento das transagGes mercantis ¢ crediticias, mesmo na auséncia de moeda cunhada, e um incremento da divisdo social do trabalho. Alguns acham que isto teri abalado as estruturas comunitdrias das aldeias, mas tal coisa é duvidosa. Ha indicios, outrossim, de uma grande heterogencidade regional na Baixa Mesopotamia, que exemplificaremos. Uma pesquisa baseada em 1600 do- Cumentos, que permitiram conhecer as atividades de cerca de 20000 pessoas, mostrou, na cidade de Sippar, entre 1894 e 1595 aC., a existéncia de muitas familias ricas 50, sem conexGes com os templos ¢ 0 governo real, dedicadas agricultura e ao comércio exterior, sendo que os ganhos comerciais erm investidos na compra de terras e na impor- taco de escravos. Mesmo o rei de Babildnia vendeu ter- renos rurais a pessoas de Sippar, que eram, em parte, arrendados. Eshnunna apresentava caracteristicas simila- res as de Sippar, e Ur — centro da importaco do cobre — estava, pelo contrdrio, sob estreito controle estatal e mostrava menor pujanga da iniciativa privada. O periodo seguinte —.a segunda metade do II milé- nio a.C., ou perfodo cassita da Babilénia — é mal conhe- cido. Ao chegarem & Mesopotamia, imigracGes de povos ainda tribais (os cassitas,,os arameus ¢, j4.no inicio do I milénio a.C., 0s caldeus) revitalizaram as estruturas comunitérias, Por outro lado, a interrupgio dos editos do tipo misharum significou o abandono da protegio aos pe- quenos proprietérios endividados, disto resultando a con- centragiio da propriedade do solo. Os santuérios viram-se novamente com a atribuicdo de muitas terras, mas sob estreito controle real. Os reis cassitas doaram extensos apandgios a seus parentes, a chefes militares e a funcio- nérios do paldcio, isentando-os de corvéias e impostos, como sabemos por monumentos inscritos de pedra (kudur- ru). A diferenciacdo sociojuridica entre os awilu e os mushkenu continuou em vigor, prolongando-se até o milé- nio seguinte. O | milénio ac. A Baixa Mesopotimia — sob dominio as vezes so- mente nominal de Babilénia — estava, na primeira parte do I milénio a.C., inicialmente sob a influéncia indireta dos assirios e, depois, sob seu governo. Babilénia, Sippar, Nippur, Uruk faziam parte, porém, de um grupo de cida- des privilegiadas, centros agricolas e manufatureiros — 51 no caso de Babilénia, “cidade santa” —, em cujas estru- turas internas os dominadores do norte pouco intervieram. Os assirios favoreceram os templos com muitas doacées, mantendo-os, porém, sob controle estatal. As comunidades. aldeds foram reformuladas: as familias camponesas — em muitas regides do império vindas de outras plagas, segundo © sistema assirio de deportagdes de populacées inteiras — deviam entregar certas taxas in natura ao governador provincial, enquanto a aldeia, em bloco, devia outras taxas ao rei. Esta reorganizagao rural assiria afetou poucas re- gides na Baixa Mesopotamia, onde muitas das cidades gozavam de privilégios fiscais e conservavam suas prOprias leis e instituigdes, incluindo as assembléias e conselhos de ancidos (aldedes e urbanos), de tradicéo muitas vezes milenar. Embora as numerosas guerras do periodo tenham intensificado a escravidio, esta continuou constituindo um aspecto secundério das relagdes de produgio. Ao dominio assirio sucedeu-se 0 Império Neobabi- Jnico (626-539 a.C.). Nesta fase — a iltima da hist6ria independente de Babilénia —, os templos tiveram outra vez um papel fundamental na economia, Um tinico templo (o Eanna, de Uruk) possuia, em meados do século VI aC., 20650 hectares de terra conhecidos, que eram, como se sabe, s6 uma parte de um-conjunto ainda mais vasto. No entanto, o dizimo real atingia todas as terras, inclusive as dos templos, e a ingeréncia do Estado na economia dos santudrios foi causa de forte oposig¢ao sacer- dotal ao rei Nabonido. As propriedades do palécio, menos conhecidas, eram também importantes. - Os dominios dos templos eram em grande proporcio. arrendados a pequenos parceiros, que entregavam parie da colheita (erreshu), ou a pessoas de posses (os arren- datarios ikkaru), que arrendavam grandes extensdes de terra por periodos longos, para exploré-las mediante tra- balhadores (sabé); estes podiam ser livres ou escravos, 52 os quais se alugavam coletivamente: formavam “tropas” errantes em busca de trabalho. As terras administradas pelo préprio templo eram cultivadas por agricultores de- pendentes, que, tal como os pastores e os artesios do santuétio, recebiam alimentos, roupas ¢ prata em troca de trabalho, A renda de certas terras era dada em pre- benda a trabalhadores graduados e dignitdrios do templo, correspondendo a dias de servico, e os titulares podiam negociar com ela. A importdncia social dos complexos dos santuérios era tanta que se pode falar de uma espécie de “sociedade dos templos”, muito estratificada, dentro da sociedade ba- nica global. Esta “sociedade dos templos” (shirkatu) estava constituida por individuos que haviam sido consa- grados & divindade por seus pais ‘ou outras pessoas, for- mando uma hierarquia que ia desde grandes personagens — possuidores de terras e escravos, e que participavam do grande comércio — até agricultores, pastores e artesdos dependentes. Nota-se a ligagio dos templos com a sociedade global no fato de que o grupo de “notaveis” (os mar bani), que ocupava o topo da sociedade mesopotimica, exercia pre- bendas nos templos e era formado por “ancidos” dos con- selhos ou tribunais que funcionavam no interior dos san- tuarios. E possivel que as grandes oficinas artesanais e o in- tenso comércio exterior tenham sido majoritariamente con- trolados pelos templos, Mas os comerciantes tamkaru continuavam ativos, ligados ao paldcio: o principal tam- karum do rei Nabucodonosor tinha nome fenicio, e sabe- mos que as cidades de Tiro e Sidon ocupavam lugar privilegiado no comércio do Império Neobabilénico. Havia verdadeiras firmas privadas, como os Egibi, de Babilénia, e os Murashu, de Nippur, que investiam no comércio, 53 possufam terras — que em parte arrendavam — e atuavam como bancos. No periodo persa nfo houve grandes mudangas estru- turais, mas com a introdugéo da moeda cunhada deu-se, a0 que parece, um empobrecimento ainda maior dos cam- poneses de menos recursos. Apesar do grande desenvolvimento da propriedade privada, da economia mercantil e da escravidao, concor- damos com Adams quando afirma o seguinte a respeito das comunidades aldedi (...) © papel das comunidades corporativas na agricultura mesopotamica permaneceu substancial néo apenas durante © I milénio, mas até muito mais tarde, Seu numero @. , influéncia sobre o curso dos acontecimentos seguramente foram sujeitos a flutuages, mas enquento tals comunidades so fracas, individualmente, coletivamente parecem quase| indestrutiveis. Em suma, elas eram regularmente minadas @ continuamente geradas de novo por um contexto mais amplo de incerteze ecoldgica, de pressdes no sentido de sua subordina¢éo a0 crédito e ao poder urbanos, de resis- téncia a tais pressdes, e de cristalizacéo e decadéncla alternades dos controles politicos e administrativos impcs- tos por dinastias sucessivas. * Este fato pode ser ocultado por uma documentagio de origem macicamente urbana ¢ rido-rural, ¢ pela insis- téncia dos poderes constituidos sé nas formas legais de propriedade, deixando na sombra — por néo mencioné-las, — as modalidades informais e consuetudinérias de acesso ao solo e Agua, que nem por isso cessavam de existir e de ter grande peso nas zonas rurais. 8 Apams, Robert M. Property rights and functional tenure in Mesopotamian rural communities. In: — et al. Societies and languages of the ancient Near East, p. 11. V. “Bibliografia co- mentada”. 3 O Egito faradénico Introdugao Como {rea de assentamento permanente, o antigo Egito & sindnimo das terras imediatamente atinentes a0 curso_do_tio Nilo: do Mediterraneo, ao riorte, até a atual Assuan, ao sul, onde comecava a Nuibia. Rio perene, emi] zona desértica, o Nilo era a garantia da vida num pais onde a agricultura de chuva representava uma impo: bilidade. Por razées que tanto a Histéria quanto a Geo-| grafia justificam, é usual a distingo entre 0 Baixo Egito,| que. compreende o delta do Nilo e uma pequena porgdo} do vale fluvial imediatamente ao sul, e o Alto Egito,, integrado pela porgao do vale do Nilo, ao sul do atual Cairo € ao norte de Assuan. Era corrente, entre os egiptélogos mais antigos, acre- ditar numa espécie de “prioridade” do delta em matéria de povoamento e civilizagdo, quando comparado ao vale que, no entanto, foi a regio de onde partiu a unificagao do reino — mesmo se este continuou sendo visto como um pais duplo: o faraé, ou monarca egipcio, era “rei do Alto e Baixo Egito”, ou “senhor das duas terras”. Atual- : 4 55 mente, a tendéncia ¢ inversa: estudos unindo a paleoeco- logia com métodos arqueolégicos e histéricos mostraram que o vale, no perfodo chamado Pré-Dinéstico — que antecede 0 processo de unificagio completado por volta de 3000 a.C, —, era mais densamente povoado que o delta, Este tltimo manteve-se como zona de colonizacio agricola ao longo de boa parte da histéria faradnica, e quicé s6 por volta de fins do II milénio a.C. sua popu- aco tenha se igualado A do sul em nimeros absolutos, conservando-se ainda inferior em densidade. O Egito foi povoado desde tempos pré-histéricos mui to remotos, mas é provavel que o fator decisivo na for- magio do pais como o conhecemos na fase histérica tenha sido a constituicéo da ecologia atual da regio, com o| vale do Nilo apertado entre colinas que 0 separam do | deserto Libico, a oeste, e do deserto Arabico, a leste. No passado, a agricultura e a criagao de gado foram possiveis numa faixa de varios quilémetros de cada lado do curso do Nilo, e igualmente em vales tributdrios, hoje secos. Porém, por volta de 3300-3000 a.C., isto é, no final do Pré-Dindstico e na fase da unificagdo, uma forte queda da pluviosidade, ligada A desertificagao agora completa do norte da Africa, tornou impossivel a vida agricola fora do vale do Nilo. Isto estimulou o inicio, ainda timido, da irrigagio artificial. ‘A lingua egipcia antiga, na classificagio de M. Gre- enberg, pertence A familia “hamito-semitica”, ou “afro -asidtica”, 0 que a vincula, por um lado, a linguas africa~ nas (berbere, tchadiano) e, por outro, as Ifnguas semitices da Asia Ocidental. Isso talvez reflita dados do povoamento do pais, onde elementos vindos do Saara, outrora fértil, se mesclaram com elementos chegados da Sfria-Palestina, enquanto a arqueologia e outros dados mostram um forte influxo de negréides que desceram 0 curso do Nilo. Pre- tendeu-se mesmo, recentemente, que os antigos egipcios 56 fossem total ou predominantemente negréides, mas a ver- dade é que os elementos disponiveis néo permitem decidir > a respeito, numa discusséo marcada por fortes injungdes ideolégicas (negritude, unidade africana). Como no caso da Baixa Mesopotamia, o-espago dis- ponivel neste livro nos profbe até mesmo fazer uma tesenha répida das etapas da histéria faraénica do F; (Ver 0 quadro 2.) 3000-2920 2920-2649 2849-2134 2134-2040 2040-1640 1640-1550 1550-1070 1070-712 712-332 Datas aproximadas [oxen] Atlas of ancient Egypt. Oxford, As forcas produtivas aproximada) do Cobre do Bronze Periodo de Apogeu do Bronze Periodo Iniciall do Ferro Fases da metalurgia Periodo (correspondancia nos tltimos anos, o que talvez explique que em manuais recentes ainda se veiculem informagoes falsas. O de Fine- gan, por exemplo, assim apresenta as fases da metalurgia, no caso do Egito: | Sobre este tema, fizeram-se progressos muito grandes “hiesos”: ) Periodo Inicial do Bronze___3100-2100 a.C. Periodo Médio do Bronze. 2100-1500 a.C. Perfodo Tardio do Bronze. 1500-1200 a.C. Periodo Inicial do Ferro. 1200-900 a.C. Periodo Médio do Ferro_____900-600 a.C. Petiodo Tardio do Ferro. 600-300 a.C. Quadro 2 CRONOLOGIA SUMARIA DO EGITO FARAONICO dos dinastias XVIII (ATé A CONQUISTA MACEDONICA) : dinastias IX, X @ parte da XI jo: dinastias XXI a XXIV e inicio Ora, esta projecio da cronologia das fasés da meta- | lurgia da Asia Ocidental sobre 0 Egito é absurda, pois a seqiiéneia correta é a que apresentamos no quadro 2: a um longo periodo de emprego do cobre, endurecido com arsénico, segue-se uma fase ainda inicial do bronze no Reino Médio — baseada, parece, na importacdo de lin- gotes prontos ou na fusio de minérios contendo, em forma natural, cobre e estanho, sendo que continuava persistindo amplamente 0 uso do cobre — e, depois, uma fase plena 5 Perfodos e dinastias 3 ° & 3 — 8 2 3 é 3 # z s\§ § g|2 3] a zt &| Bin Bl 8 g)a ae sia g Phaidon, 1980. p. 30-52. (Com modificaci Reino Novo; periodo de expanséo imperial a XX Segundo Periodo Intermediario; o domi dinastias XV a XVII 3 3 = 2 Dindstico primitivo: dinastias 1 Unificagaio (protodinastico) Reino Antigo: dinast Primeiro Perfodo Intermedi 3 E 8 2 z 1 Fivzoan, Jack. Op. cit, p, IX-XIT. 58 ae do bronze como resultado da introducio, por invasores asidticos (hicsos) de técnicas mais aperfeigoadas de meta- lurgia, permitindo finalmente a fusio simultinea de miné- tios de cobre e de estanho; quanto ao ferro, embora conhe- cido desde a segunda metade do II milénio a.C., sua producto nao teve qualquer importincia no Egito até a invasfo dos assirios (século VII a.C.). Insistimos nisso porque no Brasil, ao que tudo indica, esses dados ainda séo amplamente ignorados. * Também no tocante ao estudo da irrigagiio antiga, os progressos foram fantésticos nas duas ultimas décadas, em especial devido as pesquisas de Karl Butzer e Barbara Bell. Os niveis das cheias do Nilo, a populagdo egipcia) ¢ a superficie cultivada, antes tratados quase sempre como constantes — salvo flutuagdes acidentais —, passaram a ser vistos como varidveis. O nivel do rio e de suas cheias variou segundo fases perceptiveis nos tempos histéricos; | a populacdo aumentou ou diminuiu conforme as épocas,, mudando a sua distribuigdo espacial, e 6 sistema de irri gaciio — de inicio baseado quase todo nas bacias formadas naturalmente pelo rio — foi-se complicando e aperfei- goando ao longo dos séculos para adaptar-se & pressdo populacional — criando maior superficie cultivavel — e aos insumos de trabalho varidveis, Ao mesmo tempo que. as técnicas da irrigagio mudaram constantemente, as do cultivo e da colheita permaneceram, pelo contrério, prati- camente inalteradas, por serem adequadas as condigdes da agricultura egipcia. (Ver 0 quadro 3, cujos dados devem ser encarados somente como ordens de grandeza, admi- tindo importante margem de erro.) 2 Harris, J. B. Technology and materials, In: —, ed. The legacy of Egypt. Oxford, Clarendon Press, 1971. p. 83-111. ‘Ver um dos iltimos estudos metaltirgicos de objetos do Reino Antigo em Journal of Eeyptian Archaeology, London, 70, 1984. P. 33-41, By Quadro 3 POPULAGAO, AREA CULTIVADA E DENSIDADE DEMOGRAFICA HIPOTETICAS NO EGITO FARAONICO SEGUNDO CALCULOS DE BUTZER Km? cultivavels | Habitantes por km? Ano (aC) | Habitantes | gisponiveis _| de terras cultivévels 3000 870.000 15 100 5761 2500 | 1.600000 47100 93,87 1800 | 2.000000 18450 108,40 1250 | 2900000 22.400 129,46 Fonte: Burzer, Karl W. Early hydraulic civilization in Egypt. Chicago, University of Chicago Press, 1976. p. 83. (Com simplificagdes.) Para o periodo que consideramos — da unificagio até a conquista macedénica —, os estudos de Butzer cons- tataram maior densidade demografica no vale do que no delta e ocorréncia de diminuigées da populacio nas 6pocas de divisio e anarquia politica (os trés perfodos intermedidrios do quadro 2). O sistema de irrigagao egipcio. era muito diferente do complexo sistema mesopotimico, porque as condigdes naturais eram muito diversas nos dois casos. A cheia do Nilo também fertiliza as terras com aluvides, mas é muito mais regular e favordvel em seu processo e em suas datas do que a do Tigre e Bufrates, além de ser menos destrui- dora. Sua fase principal comega em julho; isto quer dizer que nos meses de maior calor 0 solo ardvel é coberto pela agua, sendo protegido ao mesmo tempo em que é fertilizado. Quando as terras voltam a emergir, em fins de outubro ou em novembro, é 0 momento adequado para a semeadura. Entre a colheita (abril-maio) e a nova cheia passa-se tempo suficiente para a limpeza e 0 conserto das instalag6es de irrigaco, Nao sio necessérias, na maioria dos casos, as obras de protecdo, absolutamente essenciais 60 nla Mesopotamia. Embora as circunstincias da agricultura irrigada egfpcia, no periodo faradnico, néo permitissem mais de uma colheita anual, os rendimentos eram satis- fatérios na maioria dos anos. Outrossim, 0 vale e o delta do Nilo so autodrena- dos ao passar os meses de inundagio, ao contrério do que acontece na Baixa Mesopotamia. Ao ocorrer a cheia, 0 rio invade uma série de tanques naturais interconectados, formando conjuntos locais totalmente independentes uns dos outros quanto a entrada e saida da 4gua. No inicio do periodo histérico, uma agricultura irrigada herdada do Pré-Dindstico, adaptada as bacias, ou tanques, naturais — regularizadas ¢ as vezes subdivididas e providas de diques de separagio para o controle da entrada saida do flu- Xo —, comecava apenas a criar também redes de canais pequenos para melhor distribuicio da 4gua pelos campos. Com o tempo, o sistema passou por sucessivos aperfeigoa- mentos ¢ as hortas e vergéis situados em terrenos mais altos deviam ser regados com a Agua transportada em potes, pois s6 no século XIV a.C. se introduziu um meca- nismo baseado no contrapeso para elevacio da 4gua, que no Egito de hoje é conhecido como shaduf. Como a agricultura dependia das cheias, ao ser feita a avaliagéo do solo para o estabelecimento do imposto, fazia-se a distincio entre a chamada “terra alta” — que constituia a categoria mais extensa, entendida como solo que era habitualmente produtivo para cereais, mas que em anos de m4 inundagéo podia ficar a seco — e a “terra baixa” — um terreno que em hipétese alguma deixava de receber a inundagdo. As vezes se considerava um terceiro elemento: as “ilhas”, que funcionavam como terra baixa, mas eram consideradas, por defini¢ao, propriedade direta do rei; muitas delas eram formadas s6 ocasionalmente, sem que constituissem tragos permanentes da topografia do vale. 6 O sistema egipcio de agricultura irrigada adequava-se bem a um controle local, ao nivel do que no Egito uniti- cado eram as provincias — cada uma delas chamada spat, mas que denominamos mais correntemente de nomos, usando um termo derivado do. grego —, ou mesmo ao nivel das aldeias. Nao h4 qualquer sinal de grandes obras de irrigagdo levadas a cabo pelo governo central, ou sob seu controle, até 0 Reino Médio, quando a unificagao do pais jé tinha um milénio de existéncia, Por outro lado, o estabelecimento de reservas de alimentos para redistribui- cdo em caso de necessidade, de que da testemunho o Velho Testamento (Génesis, capitulos 41 a 43), e que se baseava na rede de celeiros dos templos, nao é atestado antes do Reino Novo (segunda metade do II milénio a.C.) Isso significa que a conclusio para o Egito tem dé!~,, ser a mesma que para a Mesopotimia: a agricultura irr gada, ao permitir 0 aumento demogréfico e a producio | de excedentes, foi condigao necessdria para o surgimento | da civilizacio faradnica, mas nao procede a “hipétese! causal hidrdulica” — muito popular entre os egiptdlogos | até um passado recente —, posto que o controle da irrigagio era local, e s6 tardiamente o Estado se voltou para grandes obras no setor; aliés, sem que mudasse por isto cardter fundamentalmente local da organizacao hidrdulica. * Quanto aos outros aspectos das forcas produtivas, podemos considerar trés fases principais em que se deram inovacées tecnolégicas: 1. Durante 0 IV milénio a.C. ¢ no inicio do milénio seguinte (até aproximadamente 2700 a.C.), fixaram-se algumas das técnicas basicas da civili- zagio egipcia: diversas técnicas agricolas ¢ da pecudria; 8 Burzer, Karl W. Perspectives on irrigation civilization in Pha- raonic Egypt. In: ScuMANDT-Besserat, D., ed. Immortal Egypt. Malibu, California, Undena Publications, 1978. p. 13-8. UNICAMP BIDIIATEOA CENTRAL q y q + dgaAnsolics 62, metalurgia do cobre, persistindo porém 0 predominio de uma tecnologia da pedra e da madeira nos instrumentos da produgio agricola; um torno lento para a producdo da ‘cerimica; o tear horizontal; técnicas de construgéo em tijolo e, no final do perfodo, em pedra; de navegacdo a remo ¢ a vela; de escrita e aritmética etc. 2. O Reino Médio (2040-1640 a.C.) viu uma relativa difusio do uso do bronze, mas foi o Segundo Periodo Intermedirio (1640-1550 a.C.) que se apresentou como novo na ino- vacio e aperfeicoamento tecnolégico, com a introdugao, pelos asidticos hicsos, de métodos melhores de metalurgia do bronze, de um torno répido para fabricar cerémica, do tear vertical mais eficiente, do gado zebu e do cavalo, de novas frutas ¢ legumes, além de técnicas militares (arco composto, carro), sem as quais as conquistas do Reino Novo na Asia seriam impossiveis. 3. Por fim, a ocupacio , assiria difundiu, no século VII a.C., 0 uso do ferro, popu-' larizando finalmente no Egito os instrumentos metélicos, antes raros e caros. Essa cronologia mostra um nitido atraso na evolucio tecnolégica egipcia em comparacio com a da Asia Oci- dental. O baixo nfvel geral das forcas produtivas era compensado com 0 uso macigo de uma méo-de-obra abun- dante. Ao ocorrerem cheias demasiado baixas, ou altas demais, apesar das condicdes naturais serem normalmente favordveis, elas podiam trazer catdstrofe e fome, coisa bem documentada nos tempos faradnicos, Descric¢ao das principais atividades econémicas A economia egipcia baseava-se na unido da agricul-) tura e da pecudria, atividades estas que, no entanto, eram | sempre estritamente separadas do ponto de vista admi-| | a | & nistrativo, Se a Baixa Mesopotamia deixou uma quanti- | dade de documentos escritos, pertinentes para a histéria| econdmica, maior do que o Egito faraénico, este, em | compensacao, legou-nos uma riquissima iconografia (pin- | turas e relevos murais das tumbas, modelos de ferramentas, | maquetas diversas), que nos facilita a descrigdo das ativi- | dades de produgao e transporte. 2 Os cultivos basicos eram o trigo-duro (emmer), para © pio, a cevada, para a cerveja, ¢ o linho, para o vestudrio. A semeadura destas plantas era feita, com freqiiénciz, na terra ainda muito mole, imediatamente depois do reflu- xo da cheia anual. O leve arado de madeira abria os sulcos, e 0 gado menor pisoteava os campos para enterrar as sementes. Se, ao chegar 0 momento da semeadura, = terra estivesse seca, a enxada e 0 arado — muito simples, de madeira e corda — serviriam para abrir e homoge- neizar a terra, e enterrar os grdos. Entre a semeadura e a colheita, a umidade com que a cheia impregnara o solo bastava para o crescimento das plantas. Os camponeses podiam, portanto, dedicar-se 8 horticultura, a viticultura e aos vergéis: aos cereais se juntavam, assim, legumes e verduras diversos, a uva para © vinho, frutas variadas. A colheita de cereais era feita cortando-se 0 talo com uma foice primitiva: um crescente de madeira no qual se inseriam laminas cortantes de sflex; 0 linho era arrancado. Em seguida, 0 grao e a palha eram separados, fazendo-se com que 0 gado pisoteasse os montes de espi- gas na eira, Peneiravam-se os graos resultantes, para lim- pa-los, armazenando-os por fim em celeiros. No antigo Egito, os animais domésticos mais usuais erfim os bois, asnos, carneiros, cabras, porcos, aves diver- sas e, a partir do perfodo dos invasores hicsos, os cavalos. Os bovinos serviam principalmente para o tiro e para 0 64 leite; a carne era um alimento de alto luxo, s6 muito ocasionalmente disponivel para os menos favorecidos. Os pastos se localizavam quase sempre em terras pantanosas. Como na Mesopotamia, o rebanho era melhorado mediante importacao de reprodutores (da Niibia e Asia). A criagéo se fazia em duas fases: na primeira, os animais eram deixados em liberdade; na segunda, selecionavam-se al- guns para a engorda sistemética, encerrando-os. ‘A pesca era praticada no Nilo, nos canais e nos pintanos segundo métodos variados (anzol, rede, nassa, arpio), e 0 consumo popular de peixe era grande, espe- cialmente seco. Entre os privilegiados, porém, havia certas Jimitagdes de cunho religioso a tal consumo. A caga era realizada nos pintanos e no deserto, como esporte, para prover a mesa dos poderosos renovar a criagiio de aves: captura de patos e gansos selvagens com redes. As ativi- dades extrativas compreendiam o barro do Nilo para fabricagio de ceramica, tijolos; 0 papiro, de miltiplas utilidades — a mais importante era a fabricagdo de mate- rial para a escrita; juncos e canigos para confeccio de cestas e méveis populares; a madeira de qualidade inferior disponivel no Egito (sicémoros, palmeiras, acécias etc.). © artesanato dependia, antes de mais nada, das maté- rias-primas fornecidas pela coleta ¢ agricultura: produgao de tijolos e vasilhas de argila; fabricacio diéria do pao e da cerveja; produgio de vinho; fiagéo e tecelagem do linho; indistrias do couro, do papiro e da madeira. Dife- rentemente da Mesopotimia, o Egito contava, em regides submetidas nas épocas de centralizagéo mondrquica & sua jurisdigfio direta (0 Sinai, 0 deserto oriental, a Nibia), com facil abastecimento de pedras para construcio e estatudria, gemas semipreciosas e minérios (ouro, cobre, chumbo; agora se sabe que também algum estanho).. Mas certas matérias-primas deviam ser importadas: a madeira de cedro, que vinha de Biblos, na’ Fenicia; minéri lapis-lazali. A organizagio artesanal fazia-se em dois niveis dife- rentes. Nas aldeias, os camponeses fabricavam seus im- plementos e objetos grosseiros de uso corrente, nao tendo em geral acesso aos produtos do artesanato de alta quali- dade, Este tltimo concentrava-se em oficinas, as vezes grandes, instaladas nos paldcios do rei, templos e grandes dominios rurais. O faraé exercia 0 monopélio sobre a exploragio das minas e pedreiras através de expedigdes intermitentes, bem como sobre as grandes construcdes & obras piiblicas. Desde 0 Reino Antigo, as tumbas mostram em seus | relevos a existéncia de um pequeno comércio local baseado/ no escambo. Existiam especialidades regionais Sais) era grande centro téxtil; o delta tinha os melhores vinhedos e 0s maiores rebanhos; Ménfis concentrava muita ativi- dade metalirgica etc. —, ¢.o Nilo era singrado por barcos, As vezes de grande ‘porte; mas, como veremos, a circulagao das cargas de uma a outra parte do pais fazia-se sobretudo administrativamente, por conta do sistema eco- némico estatal. Nas transagdes mais importantes usava-se um padriio de referéncia, constitufdo por pesos de metal (cobre, prata), que serviam de equivalente de valor e moeda de conta, mas 0 pagamento efetivo era feito com objetos diversos. O grande comércio exterior, realizado por terra, subindo-se Nilo e, principalmente, por mar — com as ilhas de Creta e Chipre, com a Fenjcia, no Mediterraneo, e com o “pais de Punt” (talvez a costa da Somilia), pelo mar Vermelho —, servia para importar matérias-primas e objetos de luxo, bem como artigos ne- cessérios ao culto religioso, pagando-se as importacoes em boa parte com 0 ouro extraido do deserto Ardbico e da Niibia. Tal comércio de longo curso organizava-se através de expediges ordenadas pelo rei ou pelos templos.

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