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ita domiciliar é uma técnica que vem se po- Peirce a oe ametuer ic ed Se ee cue ae ae cee eee Ree el ee ea eR Ret RC iS Cie eau CR CR ean at Parte dos objetivos deste livro. Difundi-la e oferecer Cee oe oes ee Oe PUM a Comoe pele ear areL Te( Belek goes cet ol pensar complexo da autora em restabelecer os fios que Ue eee iC ee MT Ted Rablakas Ce eta eat eee ee To eR enor See) ete Rs Sane cn Ro aces Coe ee CRCu ee eee Cee a et ee ae pa Te le ual ee eo nec eer ceili Teo Reece hee ce ee te Rael Roce oe) eee ee a eee ute} ciel temolégica! LGA aor) Pere! Se eee etd rae a Vista Deomicilicr SARITA AMARO Sarrta AMARO Visita Demnicilicr PORTO ALEGRE 2003 © Sarita Amaro, 2003 Renato Santos Jinior (Tata) Mustrages Tots Diagramagéo Lauri HermocevEs CARDOSO Supervisio editorial: Pauto Flavio Lepur Editoraga elerrni AGE ~ Assessonia GRAHICA F 0a. Reservados todos os direitos de publicagio & EDITORA AGE LTDA. cornage@editoraage.com.br t Ramiro d'Avila, 20, conj. 302 217-4073 — Fax (51) 3223-9385 {90620-050 Porto Alegre, RS, Brasil www. editoraage.com. Distribuidora AGE Rua José Rodrigues Sobral, 230 (51) 3339-2952 ~ Pax (51) 3352-0375 9510-000 Porto Alegre, RS, Brasil vendas@editoraage.com.br Impeesso no Brasil / Printed in Brazil edico este livro a todos os pro- fissionais de satide, em especial aos meus colegas de diferentes areas ¢ fungdes que atuam na 13* Coor- denadoria Regional de Satide do Es- tado do Rio Grande do Sul. Apresentagio . Visita: Consideragoes Iniciais 1. Visita domicil 2. Profissionais “Visitadores” . ro que 3. A visita domi metodolégica iar como opgio Realidade e Complexidade. L. A realidade é mais que uma soma de fatores ou facticidades 2. Nem tudo & 0 que vocé vé, nem tampouco 3, O que hé para ver pode-se ocultar na visita Realidade e Visio Complexa 1. Vocé esti pronto para ver a realidade 2. Ou voc? esté apenas procurando “alguma coisa” enquanto visita? 3, A verdade da realidade parte de uma visio complexa preocupada em compreender 0 conjunto relacional 13 13 15 16 ses 1B see 18 oo 24 .. 28 28 33 . 36 Questiio Social, Socialidade e Complexidade .. 39 1. Olhar a relagio social ver 0 que ela esconde e imanta 39 2. A questo social na lente de um olhar Por uma Abordagem Complexa na Visita Domiciliar 2... svnrenannnnes 46 1. Uma ligao de coeréncia: o olhar co éalimentado por um pensamento complexo .. 46 2. Erica, uma condigéo indispensivel cece 48 3. Tits perguntas-chaves: por que, quando © com quem visitar? 50 4, A telagao profissional na visita domi 55 53 agio da visita dom 56 6. O registro da visita domi 60 soon OD Referéncias 8 Apreseniagao idéia de escrever este livro partiu inicialmente de uma situago mu to especifica: um colega da univer- sidade solicitou que eu lhe emprestasse al- gum material sobre visita domiciliar para que o mesmo pudesse indicar a seus pupi- los. Quando dei por mim, estava em casa a procurar entre meus livros, j4 meio irri- tada por nada encontrar, Nao havia ne- nhum titulo, nenhum artigo, nem texto mimeografado. Em meio & busca, a meméria de meu tempo de graduanda na Faculdade de Ser- vigo Social emergit, e nesse resgate perce- bi que nunca havia tido contato com um livro ow artigo sequer sobre visita domici- liar até aquela daca. Inicialmente, essas recordagées me dei- xaram desconcertada. Afinal, 0 Servigo Social é uma das dreas que mais emprega a visita domiciliar em suas abordagens, e isso desde os primérdios da profissio. Visita Dowiciiiar Comecei a me lembrar das iniimeras vi- sitas técnicas que jé realizei, orientei € co: ordenei ao longo da atuagio como assis- cente social ¢ extensionista universitdria. Percebi que muito do que sei deriva da ob- servaco participance e de uma sintese pro- Aissional prépria. Desde aquele dia, assumi comigo o compromisso de colocar no papel © que sei sobre visita domiciliar, que por sinal é uma técnica que vem se popularizando ra- pidamente, acompanhando a crescente agdo de grupos governamentais ¢ ndo-go- vernamentais nas comunidades Desconstruir a imagem estereotipada de que visita é coisa de leigos, cristalizada num empirismo edesprovida de fundamentos, faz parte dos objetivos deste livro. Difundi-la e oferecer subsfdios para que o seu desenvol mento ocorra sobre bases éticas, humanas € profissionais, também. A idéia de escrever sobre a visita na pers- pectiva da complexidade constitui um en- saio nessa direcao, mobilizada pela indaga- fo: estard o profissional apto a captara com- plexidade do real na visita domiciliar? No livro, essa resposta é composta, me- diante o restabelecimento dos fias que ar- ticulam a técnica da visita a realidade com- plexa. Os capitilos provocam os profissio- nais a rever seus conceitos, seduzindo-os para ver a realidade em sua danga comple- xa. A linguagem despojada, acompanha- da de ilustragGes e 0 formato de bolso se associa & técnica em tela, em seu trago potencialmente criativo, erftico ¢ dina- mico. Seja bem-vindo(a) a esta aventura epis- temolégica! SARITA AMARO. deragées Iniciats ou de atendimento, realizada por um ou mais profissionais, junto ao indivi duo em seu préprio meio social ou familiar. a domicilias, como interven- E uma pratica profissional, investigativa senvolver: a observagio, a entrevista e a his- lato oral. A visita como técnica se organiza mediante 0 didlogo entre visitador e visitado, no geral organizado em torno de relatos do indivi duo ou grupo visitado. Esse didlogo, distin- co de uma simples conversa empitica, é, me~ todologicamente, o que se conhece por en- revista, mas como se trata de uma entrevista profissional, guiada por uma fi pecifica, pode-se dizer que geralmente as vi- sitas domiciliares sao entrevistas sermi-estrutu- radas, dado que orientadas por um planeja- preliminar. A observagiio, 7 Visita Dow 7 sempre presente, indica a acuidade atenta aos detalhes dos fatos e relatos apresentados du- rance a visita. A importincia do relato est em “revelar como as pessoas dao sentido as suas vidas dentro dos limites e da liber: dade que thes si concedidos” (Camar- g0,1984, p.42) Inicialmente, entendemos ser necessétio, conceiuar a vida, antes mesmo de detalhar a metodologia que se propée a capté-la. Se- gundo Faulkner (apud Camargo, 1984): * vidas sio propriedades biogréficas perten- centes a pessoas ea outros, inclusive ins- tituigdes e Nagdes-Estados; as vidas sio produgdes interpessoais que envolvem relagdes complexas de conse- qiiéncias morais, técnicas, politicas, eco- ndmicas, de parentesco e sociais; cada vida € 20 mesmo tempo singular ¢ universal, particular e, no entanto, ge- neralizdvel; as vidas so a expresso da histdria pessoal e social, bem como das teias relacionais de influéncia; * cada vida é vivida e contada dentro de uma linguagem particular e de um con- junto de significados que devem ser apreendidos e registrados (Faulkner, apud Camargo,1984, p.32-33). Analitica ¢ sinteticamente, a interpre- tagéo do visitador deve observar a totali- dade significativa da vida do sujeito, ma- nifesta em suas narrativas pormenorizadas, nas conversas trocadas, sem descartar sua correlagdo com as intimeras situagGes € expressividades observadas. 2. Profissionais “visitadores” De um modo geral, a pritica da visita esté ligada a alguns segmentos profissionais es- pecificos. O que os identifica é a idéia de que as pessoas tendem a enfrentar melhor suas dificuldades quando estao em seu pré- prio meio social, familiar ou comunitério. © lugar do cotidiano, da realidade con- creta ou mundo vivide como espago de criagao, aprendizado ¢ emancipacao, tem raizes no pensamento marxista em suas di- ferentes correntes, expresso nas produces de Agnes Heller, Karel Kosik, Jurgen Ha- bermas e Humberto Maturana. Nessa linha, médicos de familia, assisten- tes sociais, psicdlogos comunitarios, terapeu- tas familiares ¢ enfermeiros sao os principais executores de visitas. Mas € bom que se ¢s- clareca: visita nao é técnica restrita & drea da Visita Dow satide. A educagao também tem se revelado ‘uma grande praticante desse procedimento. Professores particulaes desenvolvem poten cialmente uma visita de atendimento quan- do prestam reforgo escolar. Além de médi- cos ¢ educadores, outros segmentos profis- sionais efecuam cotidianamente visitas de conhecimento (exploratérias) ou acompa- nhamento (interventivas). E.0 caso do a ne tede saide edo conselheio tuela, caja pr a de visitas a individuos ou familias, além de coments, et araignda asua clea pro- 3. A visita domiciliar como opcao metodolégica Como outras técnicas ¢ abordagens, a visi- ta em sua natureza requer predisposigao e interesse. Salvo 0 caso de atividades pro- fissionais em que a visita é basilar e obriga- téria, € importante que o profissional que a desempenha efetivamente a adote como técnica, por opgao. Tratando-se de uma escolha metodolégi- a, vantagens e desvantagens devem ser con- sideradas. Entre as vantagens esté 0 fato de ‘SatuTa AMARO 16 realizar-se num locus privilegiado, o espaco vivido do sujeito , no geral, contar com a boa receptividade do visitado. O faro de acon- recer no ambiente doméstico, no cenario do mundo vivido do sujeito, dispée regras de convivialidade e relacionamento profissional mais flexiveis e descontraidas do que as pra- ticas do cendrio institucional. Muitas vezes 0 fato de estar juinto com o usuario, comparti- Ihando de fragmentos de seu cotidiano, faci lita a compreensio de suas dificuldades, fa- vorece 0 clima de confianga e acaba por for- talecer oaspecto eminentemente humana da relacéo constituida. Entre as desvantagens, std a auséncia de controle de o profissional saber 0 que acontece em forno da visita, ou scja, na casa. Essa desvantagem, na verdade, associa-se antes & natureza da cotidianeida- de, reforcada na visita, na qual tanto rotinas € priticas regulares como fatos imprevistos sdo comuns. Afinal, o profissional, ao visicar, se insere no cotidiano do outro ¢ de alguma forma deve se ajustar as condices que en~ contrar. O espaco ideal para aquele testemu- nho nem sempre existe. Da mesma forma, no se pode, no espago do outro, repreendé- Jo ou cortigi-lo por gritar com o filho ou mesmo reagir colérico contra um vizinho. j niin ensiNeiiiilaiaieiitlet. .aissstdnmsnannisitnntiiiet 1. Arealidade é mais que uma soma de fatores ou facticidades océ olhha 0 céu eo que vocé vé? Um amontoado de estrelas, umas maio- res, outras menores, umas mais ilu- minadas que outras. O céu estrelado com- pée-se das estrelas que vemos e conhece- mos, bem como daquelas que nem sequer imaginamos que existam E mais ou menos isso que acontece com a tealidade que observamos ao visitar. A realidade compée-se ¢ estrutura-se com base na presenga e auséncia de alguns cle- mentos, que nem sempre so de nosso co- nhecimento, Mas hd quem ainda acredite que a rea- lidade seja exclusivamente a reuniaio do que se vé, cristalizada na soma dos fatores ou condicionamentos que se evidenciam ~ 0 que cu considero uma idéia muito resu- mida de conceber a realidade. Nao estou quetendo dizer que a reali dade nao seja composta de uma diversi de de farores, mas chamar atengio para 0 faro de que a realidade existe ¢ <6 ¢ com preendida em sua complexidade quando se olha para além dessas somas de fatores. = ~Visrta DOMICILIAR Ou seja: a realidade nao é uma formula matemdtica, com uma tinica resposta para cada equacao. Estou colocando em questao aqui aque- a idéia de que pelas partes se conhece o todo, baseada na premissa de que o todo deriva da soma das partes. Nao acredito que a realidade objetiva corresponda a esse tvdo-masaico, em que cada parte é conectada a apenas um peda- go do todo para ganhar e dar sentido 3 rea- lidade que configura. Acredito, sim, que a realidade comple- xa se revele nas partes, como todo ordena- do € orginico que é essa composigao. As- sim, 0 todo é perceptivel em “todas as par- tes”, Essa € a linguagem do holograma, como também é ado DNA. E essa visio Aologramadtica que permi- tiu aos cientistas observarem nossa consti- tuicao celular ¢ apostarem na possibilida- de de se produzir, a partir das partes, “tora- lidades geneticamente idénticas”, como a ovelhinha Dolly. Nao portanto, na soma, mas sim na relagao estabelecida entre as artes que a realidade existe e revela seu sentido complexo. A soma das partes é reveladora apenas de fragmentos de verdade da situagao que pretelemos obserarna visa, Devemos estar atentos a captar o todo, restruturando-o através de nosso olhar vi- gilante, ocupados em identificar 0 méxi- mo de situagdes relagdes que reforcam, condicionam ou explicam a atitude do su- jeito ou sua resposta evasiva. 2. Nem tudo 6 0 que vocé vé, _ nem tampouco como vocé vé A tealidade ¢ bem maior do que 0 nos- so olhar on percepgio pode captar. Essa é uma verdade inalienavel € que explica, em parte, por que € tao ficil distorcer mos 0s fatos ¢ construirmos interpreta- des equivocadas. ; De fato, a realidade que existe objetiva- mente estd ld materializada na vida do su- jeito, toda coerente em cada ato ou signi- ficado que amarra sua ordem natural, problema é que nem sempre nossa razio € visdo esto aptas a captar todas as relagdes, ages ¢ significados que compoem 6 real do sujeito ou grupo que estamos dis- Visita Do ai Postos a observar através da visita. Apesar de essa dificuldade constituit-se num fa- tor complicador, ao mesmo tempo € ela mesma um fantéstico desafio, Ela desafia constantemente nossa consciéncia a des- pojar-se de preconceitas e mitos; a0 passo que nos provoca a olhar a realidade com cutiosidade e espitito investigativo ; Nessa perspectiva, entdo, a aparigao de siuag6es ou fatores surpresa na visita é sem pre bem-vinda. Esteja, portanto, sempre pronto para o inesperado, Além disso, como a realidade & com- plexa, nao se apresse em fazer interpreta. G6es sobre 0 que voce vé. Muitas veres, diante de nossos alhos, in- vatiavelmente preconceituosos e pouco hé- beis do ponto de vista investigativo, a reali dade que nos surpreende ou choca tendeea se manifestar como um desvio ou perversao, quando na verdade nao é nada disso. Nao vi acreditando nos padvies de wealidade que voce conhece para neles encaixar a vida real das pessoas que vocé vai visitas, Pais idosos néo séo sempre pais su- erproterores, assim como casais jovens nao sio, a priori, negligentes ou ieres- ponsdveis. Da mesma forma, familias innate No eect chefiadas por maes lésbicas nada tém de promiscuas ou lares doentios ao desen- volvimento de uma crianga, como infe- lizmente pensam muitas mentes conta~ minadas por preconceitos. O que estou querendo dizer é que a reali- dade est’ lé pronta para ser interpretada, den- tro de sua verdade peculiar, Na visita, deve- ‘mos estar aptos para encontrar a verdade da- quela realidade, nao a verdade que acredita- mos ou que queremos ver. Nao espere, por tanto, chegata modelos de realidade, para clas sificar a verdade de cada historia falada ou observada nas visitas que realiza. Em cada vida, em cada experiéncia particular, vive, provavelmente, uma verdade nas motivagoes, necessidades e situages que impulsionaram a realizagio desta ou daquela agio pelo indi- viduo, Se os modelos existem, eles nao pas- sam de tendéncias ou evidéncias de que em alguns aspectos a vida social e particular se refletem, como um espelho. O importante, porém, é que vocé nao conte com isso a0 dirigir-se a uma visita. Nao va pensando que essa familia € como ada dona Fulana, que tem tal habito e por isso tem tais problemas. Dirija-se a cada visita disposto a conhe- cer um universo diferente e se depois voce encontrar afinidade com outta histéria fa miliat ou individual, simplesmente apren- da com essas evidéncias, sem deixar-se es- cravizar por clas. 3. O que ha para ver pode-se ocultar na visita Lembro-me, de repente, de uma certa vi- sita que realizei ha cerca de dez anos. A finalidade da visita era verificar se a far lia era elegivel & obrengao de um recurso destinado 3 aquisicao de material de cons- trugo para reforma da casa. Na ocasiao, a instituigao exigia que apresentdssemos um ctonograma de visitas, sendo que as datas das mesmas eram definidas com a pessoa solicitante do recurso, Assim, no dia e hora previstos, dona Fulana estava lé pronta pra me receber. Explico melhor o que eu quis dizer com @ expressio pronta: a casa estava arrumada, mas nao ostentava qualquer sinal de con- forto. A televisio era velha e parecia sem uso. Os estofados eram gastos e muito an- tigos. Havia um quarto literalmente vazio na casa € no outro uma cama de casal, onde SARITA AMARO dona Fulana dizia ser 0 aposento em que dormiam ela, 0 esposo ¢ 0 casal de filhos pequenos. Bem, isso foi o que eu vi. Mas, neste caso, 0 que eu vi nao era a verdade. Aquela coisa toda que eu vi fora arranjada e calculada para conseguir um parecer fa- vordvel & solicitagao do recurso. Meses de- pois de ter dado parecer favorivel a dona Fulana, tive conhecimento de que ela ha- via planejado aquela representagéo toda € pago uns trocados a uma pessoa muito pobre da comunidade pelo empréstimo de seus méveis e TV naquela tarde. A dona Fulana pretendeu demonstrat ca- réncia financeira no simulacro que cons- truiu para corresponder aos critérios ins- titucionais. E eu estava 14 para compro- var a (pseudoverdade que ela estava de- monstrando. SituagGes como essa sio mais comuns do que se pensa. Familias candidatas & adogao sao incti- velmente harménicas, interessadas € cari- nhosas com criangas. Talver 0 sejam, na- curalmente. Mas, no dia da visita, elas es- forcam-se para agirem de modo convin- cente. Esteja atento, portanto, para con centrar sua percepgao no que “nao € dito’ ou que “nao esta diretamente vi Observar 0 que nio ¢ explicitado é um caminho & descoberta de provaveis aspec- tos importantes daquela realidade. Procurar entender (observando ou per- guntando) por que a vové sé fica no quar- toe é mantida afastada das relagées fami- liares sé pode ser uma preocupagao de quem estd interessado em captar a realida- de para além da superficialidade aparente. O aparentemente dbvio pode ser um en- godo ou uma visio parcial da verdade. Da mesma forma, a compreensio da realidade complexa pressupde 0 encontro SARITA AMARO 26 de elementos que autentiquem sua coerén- cia interna, De repente, no relato da fami- lia todos os filhos estudaram em escola publica — podendo essa informagao carac- tetizar dificuldade financeira da familia em custear 0s estudos dos filhos e admiti-los & bolsa solicitada, Mas, ao encontrar-se um quadro na sala ou uma foro num porta- retrato que indique a formatura de um dos filhos em uma cara escola particular, pode- se rever a visio inicial. Ou seja: deve-se estar atento para olhar 0 diferente, 0 inaudito, o invisivel; © que esté fora da sala ou fora de visio, 0 que nao aparece no relato ou na casa. Nao devemos nos satisfazer com o que vemos ou com o que nos é mostrado e dito, Devemos buscar evidéncias também no que esté oculto. Visita DomicrLiar ay Reallidade © 1. Vocé esta Pronto para ver a realidade tal como ela 6? ja honesto consigo mesmo ao res. ponder essa pergunta. E se voce as- sim o fizer, estaré confirmando 0 quanto € dificil encarar a realidade tal como cla é :xatamente porque a realidade & com- plexa, ela patrocina de alguma forma oen- contro da realidade do outro com a sua, provocando a redefinigéo de paradigmas que falam de vida, de morte e do que € necessério para ser feli O fato de a realidade do outro se tevelar ara voc’, ou nao, depende, antes de tudo cla sua predisposigio. Talvez naquele dia voce no esteja numa boa consigo mesmo e na- quela visita, por obra do cosmos, voce se de- pare com uma situacdo semelhante a sta, Se voce nao esta predisposto para com- pteender uma situagao, que no seu con- ceito & conflitante, possivelmente ter di- ficuldades em ver aquela realidade tal como ela é, Nesse caso, a racionalizagao que vocé tende a construir sobre a realidade do outro pode estar servindo em beneficio préprio. Mas pensemos em outra situagao, nada conflitante: vocé vem de uma familia com recursos e 6timo nivel social ¢ certo dia se vé visitando, a trabalho, uma familia que vive em condigées miserdveis. Voce jd sabe, de antemao, que a vida de quem é pobre é muito dificil. Mas ver essa realidade de perto, sera sua primeira vez. Vocé ja foi orientado para ndo demonstrar qualquer forma de discriminagdo, mas vocé nem mesmo tem idéia do que esté por ver. Che gando na casa, conversando com as pes- soas, vocé nao se surpreende muito. A po- breza nao fez deles pessoas muito diferen- tes das familias que vocé conhece. Mas a0 sair da visita, pode ser que voce fique com a idéia de que: 1. as criangas s4o preguigo sas por nao estarem estudando (vocé viu que elas estavam dormindo, durante o dia, mas desconhece que trabalham & noite en- tregando jornais); 2. a dona da casa nao sabe receber bem, pois nada serviu durante meia hora de visita (vocé pensa isso, des- conhecendo que a familia pouco tinha para sua propria sobrevivéncia); 3. a familia é, no geral, pouco higiénica (voce ficou irri- tado ao ver que a dona da casa ¢ os demais parentes exibiam roupas sujas ou mal la~ vadas, com um odor enfumagado, sem sa- ber quea familia lava sua roupa como pode e seca no vento ~ infelizmente enfurmaga- do pelas atividades do lixio nas proximi dades da casa). Se vocé saiu daquela visita pensando as- sim, saiba que vocé nao viu a realidade ver- dadeira; apenas codificou aquelas cenas conforme o seu quadro referencial pessoal Captar a realidade dentro de seu quadro social e cultural especifico exige do profissio- nal a visio de seus elementos dificeis, intri- gantes ¢ conflitantes, por mais estranhos que eles possam parecer 2 nossa razio. A questao que se coloca é : até que pon- to estamos aptos a ver tais elementos? Jé vimos 0 quanto a predisposigao nos coloca em sintonia com a realidade, mas tudo indica que sé estar interessado em ver 0 real concreto nao basta. Para que isso ocorra, é preciso tam- bém que se esteja pronto para ver o ines perado. Visita DOMICILIAR 31 O estranho, o diferente ¢ 0 inacreditd- vel deixam de ser bloqueadores da visio da realidade a partir do momento em que pas- sam a. compor a pauta das expectativas do profissional que realiza a visita. Nada de surpresas ou de achar tudo es- tranho, horrendo, fantasmagérico. Se vi- vemos, situados no mundo real, vendo si- tuagées novas, mais ou menos violentas € aviltantes, nao estaremos encontrando nada de tao novo assim. Ha gente que preferiré continuar mas- carando a realidade, vendo nela fadas onde ndo hé ou pintando a realidade com cores que nela inexistem. Essa atitude nada tem a contribuir a leitura complexa da realida- de, além de desviar a compreensio da tea lidade de seu caminho original Acredito que é preciso coragem ¢ coe- réncia para romper com essa visio parcial ¢ falsificadora da realidade. 2, Ou vocé esta apenas procurando “alguma coisa” enquanto visita? Hi gente que usa a visita domiciliar para realizar uma busca de coisas, como provas que atestem alguma situagio. que fica é que a visita domiciliar termina- 14 no momento em que a coisa procurada aparecer, Esse tipo de visita nao é ficcional; ele existe ¢ é bastante praticado. Sao aquelas entrevistas que distraem 0 dono da casa com perguntas enquanto, sem olhar seu interlocutor, 0 entrevistador vai vas- culhando a casa inteira para verificar se lé exis- tem aparelhos eletrodomésticos ¢ utensilios indicadores de conforto ¢ status social. Imagine por um instante que voce é a pessoa visitada e sinta o quao desagradével & essa situagao: vocé € visitado e 0 profis- onal nem olha para vocé, pergunta coi- sas sem dialogar com voce. Hé quem faca isso nas visi sem ter essa intengao. E 0 caso do profissional, ancorado numa visio parcializada do real, que vai & visita pronto para coletar 0 que pretende ver. Nao se trata de objetivacao — 0 que seria uma boa qualidade —, mas de miniatutizagio da reali- dade a uma série de fatores observaveis. Esse profissional usa a visita para verificar algumas coisas. Ele vai & visita, sabendo de antemao 0 que ird ver, desinteressado em as~ pectos estranhos aqueles que previamente ele- , mesmo geu. Se os aspectos diferentes aparecerem, possivelmente ele nao consideraré. Seu relatério nada dird sobre os elemen- tos novos e inesperados daquela realidade contextualizada. Tal profissional coleta verdades sociais como quem coleta material para andlise la- boratorial. Produz conclusdes como quem soma gldbulos vermelhos Mas os aspectos da realidade social que mobilizam a realizacao de visitas domici- ares so pouco compardveis a essas partf- culas biolégicas. Portanto, atengao, para nao fazer o mes- mo. A verdade do real nao reside exclusi- vamente em situagoes conhecidas postas 2 verificagao, mas em um indefinido nime- ro de outras situagdes desconhecidas, pos- tas @ exploragao investigativa do profissio- nal, durante a realizagéo da visita. 3. Averdade da realidade parte de uma visio complexa preocupada em compreender © conjunto relacional O olhar simplifcado & é um olhar redutor, marcado pela visio atomizada ¢ atomi: ~ Sarrra AMARO| dora; caracteriza-se por praticar um isola- mento mutilante dos fatores que compem © fendmeno. Retalha a compreensio de sua totalidade e acaba por restringir o alcance das observagies construidas a partir da vi- sita. O pensamento redutor atribui a ‘ver- dadeira’ realidade ndo as totalidades, mas aos elementos; néo as qualidades, mas as medidas; néo aos seres e aos entes, mas aos enunciados formalizdveis e matematizdveis (Morin,1998:27). Por outro lado, na ultrapassagem do olhar redutor, emerge uma visto baseada num princfpio de complexidade. Nessa perspectiva, 0 profissional esforga-se em obter uma visio poliocular ou poliscépica do fendmeno, preocupado que esté em romper com a fragmentacao e a incomu- nicabilidade das particularidades. A coeréncia do processo empreendido na visita com o principio de complexidade am- pliaas posibilidades qualitaivas e quantita tivas das observagGes a serem formuladas. Primeiro, porque o aumento do alcan- ce da ente do profissional evoca uma sig- nificativa ampliagio no campo das in- dagagées. E segundo, porque se expande também a observacio dos componentes do fendmeno: passando a admitir que inércia, descontinui- dade, aleatoriedadee improdutividade sio ca- racteristicas objetivas, mensurdveis e, sobre- tudo, presentes em todo e qualquer fendme- no, mesmo quando nao sao visualizados pela lente da razao que observa. ‘Ao passo que a visita vai se desenrolan- do, seu contetido vai ganhando detalha- mento € profundidade. Exatamente por isso, a visita, gradualmente, passa a exigir maior habilidade ¢ atengio do profissio- nal que realiza. Afinal, tudo na visita fala. A mobilia da casa, assim como as falas & emogGes manifestas ou veladas dizem men- sagens que devem ser observadas consi- deradas na interpretagio ¢ andlise que se desenvolverd a partir da visita. Nesse sen- tido, requer que o visitador oriente seus sentidos para ouvir ndo apenas as palavras ditas, como as ndo-ditas. Ver no movimen- to dos corpos, nos gestos realizados ou blo- queados, na tonalizaczo ou silenciamento da ‘voz, na queda das lagrimas, nas relagies fisi- cas de afago ¢ repulsa, 0 que esses atos-men- sagens contam de medos, citimes, afetos, pto- tegGes e maus-tratos. ‘SARITA AMARO 1B dla ee 1. Olhar a relagdo social e ver o que ela esconde e imanta relagao social antes, espelho do con- flito de classes, tornow-se palco de apelo politico, configurando-se du- plamente demanda politica e capital pol tico. Essa funcionalidade patrocinou a in vengio e fabricagao serial de novos padres de socialidade. Nessa tessitura, as sociali- dades perderam a solider ¢ tornaram-se vo- Liteis de valores, ideologias, condutas ¢ re- lagoes ‘A crise econémica e politica do mun- do, actescida dessa maquinaria simbélica, desencadeou uma crise no universo das subjetividades. Quando o individuo se descobriu ¢ passou, finalmente, a reclamar sua identidade, todo um aparelho social € acionado para fazé-lo novamente submer- gir 4 massificagao. O prego de defender manifestar sua singularidade ou represen- tagio em dada coletividade ¢ alto. A afir- magao da diversidade de ser mulher, afro- descendente, portador do vitus HIV, ho- mossexual transgénero, ou indigena, con fronta-se com a padronizagio de modelos sociais, tipificadores de prestigio ou estig- ma previamente associados a cada um des- ses segmentos. Conforme a sociedade ¢ a cultura local, usar trangas nastafari pode ser mais ou menos aceitével. Da mesma for- ma, um casal homossexual masculino ou feminino pode sofrer maior discriminagio se estiverem em uma sociedade em que 0 machismo impera. Essa desfiguracao do social, que subme- te o individual a um padrao social morali- zador, tem acarretado mutilagao da ques- to social, que cumpre desconstruir. 2. A questio social na lente de um olhar complexo Quando se fala em realidade social e, mais precisamente, em questao social, logo se pensa em apenas uma fatia da sociedade: a dos despossuidos, dos desiguais. Na histé- ia do pensamento social, a questao social "SARITA AMARO est invariavelmente vinculada & exclusdo e marginalidade, como fendmenos globais, representados em histdrias individuais ¢ coletivas. Parece, contudo, que pensar questao so- cial nesta perspectiva, pode ser menos com- plexo do que se imagina: hd interfaces es- quecidas do social que cumpre reconhecer para redimensionar o olhar sobre a ques- to social. Tradicionalmente, somos ensinados (na vida social e nos centros escolares) a codi- ficar como questao social tudo o que passa pelo filtro das politicas sociais ou que exis- ta sob 0 signo da perda ou déficit. Na contramarcha dessa tendéncia, po- rém, h4 autores que reconhecem como questo social elementos como a cultura ¢ a politica, que imantam cidadania e toda uma correlacao de forgas de trago ascen- dente, Nessa perspectiva, Chau (1972) ¢ Demo (1988) no economizam argumen- tos para lembrar que é a cultura que faz a democracia ¢ nao 0 contrério: a cultura funciona como motor que estrutura e di- namiza a participaco ¢ a atividade politi- ca dos sujeitos. Nesse processo, parece in- dispensével que o olhar do profissional fo- Visita Domiciuian 41 calize a questao social e, principalmente, nas novas configuragdes que a mesma pas- saa admitir, Nese itinerdtio, as orientacdes do pro- fessor Oravio Tanni (1994) serve como biissola, sobretudo quando sugerem que abandonemos a associagio exclusiva da questao social & desigualdade social e fe- némenos dessa ordem. Segundo o professor, hd que se obser var a questo social noutras conjungées, para além do signo da exclusio social. De- semprego, subemprego e miserabilidade sao dimens6es importantes da questo so- cial, mas nao a esgotam: ‘As reivindicagées, gteves e protestos também expressam algo desse contexto”.! Nessa diregio, novos grupos € priticas sociais sao formados, tecendo um comple- xo processo histérico-social em que a Juta por cidadania interage com a metamorfo- se da populagzo e com a renovagio cultu- ral e ética da prépria sociedade. Castel (1998) corrobora essa posi¢io quando teafirma: “Nao se trata de pensar apenas os fenémenos de como e quem foi "idem. p. 92. SARITA AMARO| posto A margem, mas também o que acon- tece com os que permanecem no interior das zonas de coes4o social ou nas zonas de integracao, em seu frdgil e transitério equi- librio, constitufdo a partir do vinculo en- tre as relagies de trabalho e as formas de so cialidade.”? Afinal - complementa 0 autor ~, €impossfvel separar completamente os de dentro cos de fora, jé que hd um continusm de posigées que se contaminam (...)°, ‘Ao adotarmos esse olhar, passaremos a ver no s6 a desestabilizagao, a precariza- 40 €a miserabilidade como faces da ques- tao social, mas também as relagdes e ex- ptessdes sociais que ocorrem no fluxo en- tre as zonas de integragdo © as zonas de coe- sdo social. E apenas nessa perspectiva que se pode compreender o solidarismo no contraste com 0 etnocentrismo; a violéncia urbana crescente; a multiplicidade de subjetivida- des; a proliferacao de socialidades e as pos- ilidades de gestio social democrdtica como fundantes de uma nova configura~ cao da questao social. 2 Castel, 1998, p12, ~ Vistta Do 43 A questo social tornou-se cada vex. mais permeavel as mudangas conjunturais ¢ ad- quiriu diversidade ¢ maleabilidade, como reflexo da polifonia ¢ polissemia da muta- cao do mundo social e politico. Universo volatil, compie-se ¢ se des- compée dialeticamente, no curso do reor- denamento das regras sociais, do acitra- mento das forcas em luta e da agudizacéo/ enfrentamento da miséria econémica € politica que amotina o povo brasileiro. Tecido constituido por desigualdades, confrontos, conformismos € resisténcias’, historicamente situados e construidos sob a regéncia da sociedade em movimento. Compreender, analisar e pautar essa dia- lética da questao social requer relativizd-la com as mudangas macro e microfisicas que esto sendo organizadas no cenatio politi- co, educacional, cultural, filoséfico, teolé- gico, cientifico e tecnolégico. Mas o mais importante, ver a questéo social na lente da complexidade implica romper com os maniquefsmos ¢ estigmas a ela associados, tomando sua génese como encontro do uno com 0 multiplo, da fragilidade com a p92. potencialidade, do medo com a cordgem, do conformismo com a resistencia. Afinal, essas atitudes nao se encontram dispersas, deslocadas, nem tampouco indissociadas. Urge, portanto reconhecé-las nesse seu ‘movimento, testaurando suas reciprocida- des, rensdes € mutagées, A exemplo da consciéncia que pensa a questio social em sta complexidade, recomendamos que também a acio profissional se revigore. ata-se de avangar em praticas ¢ proces- sos de trabalho que observem e ativem a rede institucional e social que abriga cada questo social especifica ¢ suas interfaces. ‘Trata-se também de ser um agente profis- sional sintonizado com essa cultura de rede, na linha telacional e de soma que a inter- disciplinaridade aponta. Por wie Gomplexa n 1. Uma ligdo de coeréncia: 0 olhar complexo é alimentado por um pensamento complexo ara ser complexo, o pensamento deve estar equipado com (...) idéias claras para patrulhar 0 nevociro, 0 confiso, 0 indizivel, 0 indecifrdvel> O pensamento ¢ olhar complexos nao combinam com idéias, racionalidades, relagGes e conceitos simplificados e sim- plificadores. No horizonte do pensamento esté 0 co- nhecimento da realidade toral, seja ela cap- tada ou nao pelo profissional na visita O profissional que conduz a visita apoiado nesse pensamento nao economi- zard indagacoes sobre a realidade obser- vada para melhor ¢ mais cocrentemente compreendé-la. SConf, Mi 998: 23 ~ SARITA AMARO 4&6 Da mesma forma, possivelmente, nao resistird em repeti-la até compreender al- gum aspecto ou relagio que permaneca in- decifravel. ‘A meta do profissional, orientado pelo pensamento complexo ao visitar, é explo- rar a tealidade para melhor questioné-la € aproximar-se da verdade que esconde. Vale lembrar que o pensamento comple- xo pressupde uma aticude eminentemente ét ca do profissional, relativa tanto ao conheci- mento que busca obter como & relagao que constrdi com o sujeito visitado. Visits Domici.ian az 2. Etica, uma condigao indispensavel A ética e 0 respeito sao principios e condi- oes fundamentais & realizagio da visita do- miciliar. O fato de ser realizada no ambiente domiciliar ou particular, por si jd clama por uma s¢rie de atengoes e consideragées éticas, relativas ao direito & privacidade e sigilo pro- fissional. A par disso, hd situag6es que se re- velam na visita ¢ exigem uma aco propositi- va e afirmativa do profissional, que em cer- tos casos podem salvar vidas. E 0 caso de uma orientacao relativa a realizagao de um exame de HIV, do registro de uma ocorréncia poli- cial, de um exame de corpo-delito ou 0 uso com recomendagao médica da pilula do dia seguinte; no caso de um relato de uma situa- ao de risco, como um abuso intrafamiliar. Negar-se ou ser reticente a oferecer uma orientagao dessas, em tempo habile em meio A oportunidade do relato na visita, represen- ta uma infracio ética, por omissio de socor- ro ou negligéncia. De modo mais corriquei- 10, mas nio menos importante, a ética ou sua falta se releva na interacao ¢ no didlogo entre visitador ¢ visitado. Considerando a subjetividade de cada ser, é comum que 0 quadro de valores seja distinto. Essa caracte- Visita Dow ristica divergente deve ser tomada como va- lore nao como obstéculo, Assim, o visitador, entendendo seu papel de educador e nao de moralizador, tenderé a orientar-se por per- guntas € reflexdes associadas a0 objetivo da visita € nunca por julgamentos ou comenté- ios proibitivos e punitivos. Atengio, portan- to, 2escolha das perguntas que voct ird fazer: seja ctitico ¢ observador, sem ser constrange- dor ow invasivo. 3. Trés perguntas-chaves: por que, quando e com quem? Por que visitar? Deve haver racionalidade e planejamento A organizacio de uma visita, Nao esqueca que, antes de tudo, a visita domiciliar ser- ve ao alcance de um objetivo. Desde 0 momento em que se projeta a visita aré sua eferivacao, estamos planejando uma me- thor aproximacao da'tealidade do sujeito Gu grupo que se pretende observar ou aten- der, Ir & visita com uma idéia ou roteiro preliminar das informagdes que vocé pre- tende obter é indispensavel. O roteiro sobre ‘Sanita AMARO © que perguntar ou investigar deve ser fél- to ¢ colocado em pratica. A participagao do profissional na visica deve estar orientada e 20 mesmo tempo li- mitada ao objetivo da visita. Isso nao sig- nifica uma condigao de rigidez, imposta ao profissional, ao visitar. Longe disso, re~ presenta um critério para que preserve a qualidade ¢ © profissionalismo na visita, respeitando 0 tempo ¢ assunto/acendimen- to programado, Assim, nao se trata de deixar sem resposta aquela diivida do usuétio sobre como agendar o atendimento com o oftal- mologista no posto de satide em que traba- Ihamos. E papel do profissional, ao visitar, acessar 0 maximo de informagées ¢ esclare- cimentos possiveis a0 que for demandado. Quando visitar? Nem sempre o dia que escolhemos para realizar uma visita é propicio ao seu de senyolvimento. De modo contrério, po- rém, as vezes aquela visita que estamos pla- nejando realizar ha algum tempo torna-se possivel, favorecida por uma coincidéncia ou acidente situacional. Visita Dowicnar Evitar realizar visitas em feriados e ho- ratios inapropriados, bem como verificai antecipadamente a disponibilidade de transporte da instituicao para levar 0 pro- fissional até a residéncia a ser visitada so medidas simples que asseguram um mini- mo de organizacio. Programada a execugio da visita, é fun- damental que se defina com o sujeito a ser visitado sea data ¢ horério escolhidos lhe sto favordveis. Esse acerto € vital para que nio apenas a visita efetivamente ocorra, como também para que as bases democraticas e de respeito sejam previamente estabelecidas. O esforgo do profissional é atender 0 cidadao, respeitando sua rotina familiar € pessoal, desorganizando 0 minimo possi- vel o cotidiano da familia. Assim, antes de falar com o sujeito a ser visitado, recomenda-se apenas 0 agenda- mento preliminar de um ou dois hordtios estratégicos, os quais sero definidos em conjunto com a pessoa visitada. Visitas-surpresa, além de invasivas e de- sagradaveis, revelam-se manifestos de uma cultura autoritaria, moralizadora, fiscaliza- toria e disciplinar e, por essa raz4o, devern ser banidas do pensamento e pratica do profissional que visita ‘Sanita AMARO Com quem visitar? A pessoa visitada esté no seu ambiente, privativo, acordou com um profissional que {la e na hora acordada che- gam a sua porta: quatro pessoas (0 profis- sional acompanhado de trés estudantes!). A pessoa, que antes estava trangiiila, no aguardo do profissional, passa a ficar afli- ta, talvez pensando: Quem siio essas pessoas que vieram com ele? Antes interessada em tratar do tema que motivou a visita, agora preocupada com futilidades, como: onde irdo sentar? Comegou a confusio, antes mesmo de a visita ter inicio. Como procedimento profissional, a vi- sita difere de uma reuniao ou encontro de amigos, em que “sempre cabe mais um”, nao importando quem. A visita requet, portanto, profissiona- lismo, ¢ isso nao € encontrado em atitudes espontaneistas ou oportunistas. Em vista disso, sempre que necessdtio, privilegie a companhia de profissionais para fazer a visita. Evidentemente, a pre- senga desses outros profissionais deve ser anunciada antecipadamente e justificad mais que uma companhia, ela deve repre sentar a observagdo de algum aspecto que ia Visit Domicnuiak seu acompanhante convidado domine mais que voc Visitas agendadas por assistentes sociais para acompanhamento de familias em cujo seio habitam pacientes portadores de so- frimento psiquico podem justificar a pre- senga de médicos psiquiatras e psicélogos na atividade domiciliar. O importante é que se evite a compa- nhia de pessoas leigas ou mesmo de pro- fissionais que tm alguma reserva ou pre- conceito relacionado ao grupo que voce vai visitar, Uma atitude inesperada desses su- jeitos pode comprometer a qualidade de sua visita, desde o relacionamento até o diagnéstico ou o tipo de atendimento que voce pretende realizar. Outra dica: esteja atento para que a visita domiciliar que vocé pretende realizar no se transforme numa excursao. Vocé € seu(s) colega(s) esto indo & casa de um individuo, no a um programa de lazer. Portanto, néo fume durante a visita, nem v4 mascando chi- cletes ou comendo guloseimas (talvez naquela casa as criangas nao vejam esas delicias ha meses, ¢ isso seria muito constrangedor para las ¢ para seus colegas). E, por fim, lembre-se que nao é recomen- davel que o ntimero de visitadores seja supe- rior ao das pessoas visitadas, Em visita domi- ciliar nao se leva toda a equipe até a casa da pessoa, mas apenas aquele ou aqueles (dois ow trés, no maximo) profissionais implica- dos no diagnéstico ou atendimento. Uma olhadela, dias antes, no prontud- rio da familia que serd visitada, poderd aju- dar na decisto de quantos profissionais podem participar do atendimento. Muitas vezes, em casebres em que mal cabem os préprios familiares, uma visita de mais de um profissional é inviavel e cau- sa constrangimentos aos moradores. 4. A relacdo profissional na visita domiciliar Em se tratando de uma visita domiciliar a relagio estabelecida entre quem visita e quem é visitado tem significativa importincia. Primero porque ambos se afiguram su- jeitas do processo, dotados de razo, emo- a0 e subjetividades em interago constante. Em segundo hugar, porque é a relagéo que possibilitard a expansio ¢ livre expresso do sujeito visitado, colaborando ou obstaculi- zando o desenvolvimento da visita. 1a DoMic A empatia, o respeito muituo, a hori- zontalidade e a atitude de nao-julgamento do pesquisador acerca do contetido do que é relatado ou apresentado sio os conduto- res indispensdveis da visita. ‘A demonstragio disso deve partir do proprio profissional ao introduzir a visita, dizendo a que veio ¢ colocando-se a dispo- sigdo para uma conversa amigével ¢ honesta. Ao passo que se pauta numa relagao ba- seada na confianca mtitua, na reciprocida- de e na compreensao, suas chances de éxi- to ampliam-se. Construa uma relagio agra- davel, que permita ao individuo ou grupo visitado ficar vontade, mas sempre reser- vando-se a uma relacao profissional. Nao tente, portanto, mostrat-se Zatimo de quem vocé esta visitando. Aja com cordialidade, sem perder a naturalidade. 5. Adialética da duragao da visita domiciliar A concep¢ao de um tempo tinico capaz de revelar fendmenos ou significados da vida de determinado individuo ou grupo s6 pode acarretar uma leitura resumida da realidade Sarita AMARO 56 observada ou estimular 0 ocultamento da ver- dade, por parte de quem é observado. A diversidade dos fendmenos precisa de tempo para manifestar-se aos olhos do pro- fissional, na visita, E preciso que se estude detalhadamen- tea dialética dos fenémenos. Isso implica tempo. Nao tenha a pretensao, portanto, de realizar aquela visitinha répida, de meia hora ou até menos! Dificilmente, num tempo téo resumi. do, vocé terd chances de perceber algo mais que a cor do mével em que estd sentado, Assim como 0 olhar complexo nao é ins- tantaneo, a realidade nao revela sua com- plexidade de imediato. Reserve a visita que id realizar um tempo compativel com a visio que ird orienté-l Prever um intervalo de uma a duas horas pode ser favordvel. Mas se sua duragio sera inferior ou superior a isso, o préprio proces- so € que dird, Esteja pronto para deparar-se com situagbes que poderao esticar ou estrei- tar o tempo que voce definiu para sua Imagine uma situagao: voce estd pron- to para fazer uma visita a uma adolescente que esta gravida e mora com os pais. Sua intengao € fazer 0 acompanhamento da gestacdo e orientar a garota para alguns idados. Ocorre que um dia antes da vi- sita, a familia entrow em crise © passou a discutir ¢ cobrar-se mutuamente por to- dos os fatores implicados na gestacao. Vocé no sabe nada disso e vai a visita, tranqiii- lamente. Quando chega Id, a resposta a uma pergunta sua vem acompanhada de um comentario agressivo dirigido a ado- lescente ou simplesmente pelo choro con- ‘SARITA AMARO vulsivo da garota. Boom! Comunico-lhe, amigo, que 0 tempinho que voce previu para esta visita terd de ser significativamen- te ampliado! Caso contrario vocé estaré fin- gindo que fez uma visita profissional. O contrério também pode acontecer. Vocé chega na casa de um sujeito e ele est se arrumando para sair (nao importa se vai a um aniversdrio ou a uma entrevista para um emprego). i i vocé calcula que tem uns quinze minutos de papo. Decisio dificil: vale a pena co- mecar uma conversa que tem prazo to curto para terminar? E mais que isso: vocé no estard arriscando 0 contetido da visita hor: ao conversar com o sujeito num momento em que ele esta com toda sua atencao vol- tada para uma outra coisa? ° transferida para out {que transferéncia é a melhor opgio, dado que 0 contet- do da visita esté preliminarmente comprometido pel ‘curto espago de tempo disponivel; sem contar que aaten- io do interlocutor esté desviada para outro foco, Contu: do, em casos em que a vista é fundamental para dar se {guimenco a um tratamento ou acesso a recurso ins pete ao profissional Ta DoMICILIAR Casos como esses, que alguns conside- ram como imprevistos, esto ld nas casas das pessoas nos esperando todos os dias. Afi- nal, a realidade existe independentemente das nossas visitas. Tem, portanto, vida ¢ ritmo proprio, Nao é porque voce vai visicar alguém que o dia daquela pessoa deixard de cum- » pedro, Tudo isso indica como ¢ importante néo sé considerar a duracéo da visita como tam- bém saber ident que se encontra o individuo ou sua fami lia é propicio a visi prir seu itinerai ‘ar se © Momento em 6. O registro da visita domiciliar Construir a meméria da visita ¢ importante. A sistematizagao dos relatos orais, das obser- vacées, encaminhamentos ¢ conclusées ob- tidos deve estar presente no registro da visita e ser indluida entre os documentos que his- toriam o atendimento da familia ou indivi- duo em tela, E recomendavel que tanto ins- tituigdes como profissionais formulem um prontuétio em que a visita seja integrada rotina de acompanhamento profissional. As- sim, assegura-se que tal como os demais aten- dimentos (entrevistas, exames, ...) 0 conteti- do da visita seja objetivamente incorporado e aproveitado no estudo, avaliagao e aborda- gem do cao, rompendo com a visio empi- ista a ela associada. Nos bastidores, o regis- tto nasce da adogio de alguns procedimen- tos durante a realizacao da visira Geralmente, 0 uso de gravador, tao dgil para quem visita, nao é tomado da mesma forma pelo sujeito ou grupo visitado. A sensacio de estar sendo avaliado, fiscaliza- do em todas as manifestacées orais pelo gravador torna 0 objeto uma terceira pes- soa na relacao, pesando o poder do visita- dor, jé previamente carregado pela institui- ¢G0 ou cargo que nela exerce. Um bloco de notas, uma prancheta ¢ caneta para apontar algumas observacoes so o suficiente para que o registro seja rea- ado, sem colocar em segundo plano a relagao humana estabelecida. Esclarecer, no inicio da visita, que a prancheta e o bloco de notas serao usados eventualmente para registrar informagées indispensdveis é va- lido ¢ trangtiliza o sujeito visitado sobre “o que sera escrito” lowres Finats onversamos, ao longo dessas pagi- nas, sobre olhares, modos e formas de fazer da visita domiciliar uma abordagem complexa e, enquanto tal, con- seqiiente. CO livro apresentou pistas ecaminhos nessa diregao, tendo a ética, o humanismo, a criti- cidade ¢ a complexidade como hzes. Mas agora é com vocé! E chegada a hora de vocé tomar uma posi¢ao profissional, com base nas refle- xées apresentadas. A partir de agora, portanto, vocé & 0 mestre, pois é voce quem fitz a visita deco- lar, reviver e brilhar. Bom trabalho! SaRtTA AMARO 62 1. AMARO, Sarita. Visita domiciliar: orientagaes pant uma abordagem complexa. In: Desaulniers, J. (org) Fenémeno, uma teia complexa de relagées. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000: . BACHELARD, Gaston. O novo esptrito cientifi- co. 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