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COLONIALISMO, ECONOMIA-MUNDO E GLOBALIZAGAO: TRAJECTORIAS E DEBATES HISTORIOGRAFICOS Iwo Canwsino be Sousn® Apalavra globalzasio instalou-se para ficar no nosso quotidiano, comparecendo recorrentemente utllizada pelos meias de comunicagio tanto como pelo discurso politico, a andlise social ou o agitado mundo da economia e das finanges. Despida nestes discursos quase de histéria, a globalizacso transformou-se em ideia praticamente comum, sendo frequentada Ionge de qualquer rigor nocional e muito ‘menos de qualquer enquadramento histérico, explicando a sua “genealogia” 0 seu funcionamento no tempo € no espago. Ao vulgarizarse e ao perder qualificacio conceitual, a ideia de globalizagko alimenta as mais contraditérias causagbes, aqui concorrendo para explicar uma conjuntura econémica desfavorsvel, ali limitando incapacidades eincompeténcias de governos eburacracias, mais além justificando as principais modali¢ades que estruturam as relagbes politicas internacionais, sublinhando-se a sua novidade global quando, em muitos casos e comunicagaes, se revisitam velhas formas de dominagGes e exploragGes entre teritdrios e sociedades colocadas em lugares hierarquicamente assiméizicos de wm mundo persistentemente atravessado por des gualdades profundas. A ideia de globalizacio parece impor-se inexoravelmente também nos campos organizados por uma comunicagie cada ver ‘mais automitica em que a sensagdo de pertenga a wm espago-mundo, da informaséo A estética, do consumo & imagem, fazem de cada um uma espécie de cidadio, entre cespectador eagitade: cessa propalacia aldeia da comunicacio global. Tratase, porém, de uma situagio perseguindo propositadamente ilusbes e alienacGes simbélicas, privilegiando uma produgao virtual que, exceptuando varios mercados especializados, 1ndo tem vindo a contribuir para aterar substancialmenteas estruturas fundamentais, ‘que organizam a divisto e distribuigho social e mundial do trabalho e da circulacio de bens, Para um camponés mambai das montanhas do centro de Tamor ou para un, pescador de. Tomé e Principe, tanto como para um sem-terra brasileiro ou para os milhdes de desempregados e pobres espalhados pela maioria do planeta “em desenvolvimento”, a ilusto da globalizagéo néo se transforma em trabalho ou alimentagio, podendo, por isso, arolar-se uma demorada literatura cientlica cfiea Departamento de Hsia da FLUP /Investgnor do Centro Portugués de Estudos do Sueste Asistic, 138 tratando de demonstraros efeitos perversos da globalizacso econsmicana sorte destas populagtes afastadas dos centros ocicentais da economia e da politica internacional. Apalavra globalizacso tomou-secada vez mais coextensiva coma representagho social, econémica e cultural que domina a imagem, quase 0 “design”, das nossas socieciades ocidentais, esse “primeiro mundo” agora apresentado, muitas vezes sem ‘qualquer fundamentagao, como verdadeiramente pés-industrial. globalizagioserve, assim, jf para representar 0 “nosso” mundo, jé para hierarquizar as nossas elagbes ‘com 08 outros teritoriais, socials e culturais. Descrevemos a pobreza da Africa subsariana ou os paises e movimentos islamicos apresentados como ““fundamentalisias” a partir da representacio da sociedade global em que julgamos vviver,explicando a situacéo desses outros pelas suas dificuldades ou ineapacidades para se desenvoiverem no sentido da globalizacéo, perseguindo as nossas préprias representagGes sociais e comporiamentos culturais dominantes. A exportagio dessa cultura global cruzando a democracia ou o estado-nacio ocidentais, a economia de ‘mercado, uma caltura urbana laicizada ou esse novo capitalismo da dédiva fxado ‘em milhares de ONG e agéncias intemacionais, haveria de constituira solucio para ‘0 desenvalvimento econdmico e social da maioria pabre do globo que encontraria a {felicidade num nove tipo de initatooccidens, recordando uma plurimilenar tendéncia da histéria ocidental para cruzar pax et imperio, Bsta duplicidade da ideia de paz imperial ou da establidade oferecida por poderes centrais e dominantes, ocorre também nitidamente na construcio da ideia de glabalizagio, revestida de uma dimensao ddplice, epistémica e processual. Com efeite, convoca-se epistemologicamente a nocio de globalizagso para destacar o predominio daciéncia eda racionalidade ocidentais que, recobrindo o planeta, concorreriam para aplacar a doenga,limitar a mortalidade e a natalidade, “libertar” a mulher ou, entre tantos ‘outros apregoados beneficios, assegurar definitivamente 0 desenvolvimento que 0 ‘outro nao poders aleangar com as suas particularidades culturais tradicionais, entre irracionalidade e supersticto. Ao mesmo tempo, a globalizagio ¢ laramente 9 (um) resultado de umlongo processe histdtico enformando os tempos, espacos e culturas fem que nos movimentamos. Da mesma forma que nao parece possivel discutir a globalizagio fora do tempo e do espaco, também no parece possivel entender a ‘omnipresenca da palavra exteriormente a um processo normativo de acreditagio da cultural ocidental como a verdadeira racionalidade, sempre progressiva e benigna, Se existe uma ampla investigacio cientifica que foi criticando este optimismo ‘duminista incrustado nas ideias de progressoe razio ocidentais, desafiado daecologia ‘20s movimentos de “novas minorias", sio infelizmente menores os estudos sérios que procuram iazer a histéria da globalizacio, escrutinando o(8) processo(s) responsével por tornar a ideia em palavra focal do nosso mundo medistico evistual actual Dominada 20 mundo ocidental pelo prestigio nunca mitigado das historias rnactonais, especalizada nas ultimas décadas em varios dominios, mocias e muitas ‘micro-histérias, a historiografia contribui hoje escassamente para ajudara percsber © cameuor conomamnco cognate ees noes “7 139 paradoxo de uma glabalizagio que tornou a informagio quase imediata enquanto a ‘pobreza, a doenca cu suddesenvolvimento so mediatos, destacando © peso das realidades locais mesmo quando se multiplicam e justapdem em imagens que organiza, pelo pardoxa ¢ contradigio, a "missi0" global da cultura acidental na nosso planeta. A historiografia ocidental nunca foi 0 espaco de conhecimento privilegiado para estudar quer os mundos néo-euzopeus quer as contzadicbes geradas or um processo histGrico globalmente entendiddo como linear e progressive. Um persistente paradigma de espelho, tratando de ver no outro o reflexo da nossa propria exportagdo de polticas, economias ¢ culturas, embaraga a contribuicéo da(s) historiografia(s) para um melhor reconhecimento das diferentes composicoes que impuseram actualmente uma narrativa falada e visual univoca da ideia de globalizagio, Este estudo procura seguir algumas das principais traject6riase debates historiogréficos que podem interessar a uma futura histéria do processo da globalizacao, da palavra & imagem, da representagio & estética, do espago a periodizagio. A Heranca de Fernand Braudel Asdiforentes tadigSese “escolas” historiogréficas procuraram sempre produzir historias universais, uma espécie de paixao que se aprofunda nos meios cultivadas europeusao longo do século XIX das primeiras décadas do século XX comes grandes trabalhos, entre outros, de G. Weber, Oswald Spenger ou Amnold Toynbee, No entanto, a compreensio de que a histéria organizava diferentes unidades do espaco mundial ~e nido uma histéria universal - em tempos longos, zeunindo essas unidades em conexdes gerais, estatificanclo relagdes econdmicas glaimis tanto como sociedades, politicas e culturas ¢uma nocio muito mais recente. Um dos historiadores que mais, contribuiu para firmar uma investigacso dos grandes espacos ociaisna longa cluracio, perspectivando as suas conexdes e periodizacées & escala do globo, foi indiscutivelmente Fermand Braudel (1902-1985). Fruto de vinte anos de trabalho, totalmente reescrito vinte anos mais tarde para contemplar novos problemas e pesquisas, a obra que marca uma ruptura metodolégica definitiva com as escalas e ‘met6dicas da hist6ria tradicional “positivista” 60 sempre fascinante La Mediterranée tle monde méditerronéen & 'époque de Philippe IP. O livro navega uma perspectiva central sublinhandoas relagdes entre histéria e geografia, as conexbes doespagoedo tempo que se estruturam em ritmos longos, sobrepujarco o tempo curto da politica fe da guerra para poder compreender as dindmicas mais lentas de longa duracio, orientando tanto os empos da economia, como os dos Estados, das sociedades e das. " BRAUDEL, Femand ~ La Modan tle Mane Msitrine 8 pane de Philip I, Pats: Calin, 1966. primers inpreso da bra dats de 199, nas ¢preferiel eu ea sets ego cue las verso orginal ns does tnvestgno das stad das ciilagiese de dempa, aan80 ‘ambém mas demoradanente est outa paste do mundo medterrisca que €oniperie atnano. Mo AYMARD, Maurice ~Femand Bruel a LE GOFE CARTIER, Roge REVEL, equi) Lt [Nowell Hite Pas CEP, 197, p88. S BRAUDEL Remand ~ Caton marie! Captains (Xoe XV). Pars: A. Coli vols, 1967-1979 (uaductopartgesa Lio: Tore, 1992183). * BRAUDEL,Famand ~ Cony eter, zotmeCapalino (not KU-XVIID. Ax Ears to Quattino. Liso Teoma, 12. SBRAUDEL, Fernand ~ Cozaglo miter, Eorami e Copa (sas XV-XVIID. Osage is ‘Doct show Tere, 1992 os andares superiors da vida econémicn e, mais cima, a dindunica capitalsta. A ‘economia comesa nolimiar do tel da roca, especializando uma continuada reuniso de Verdaceiros sistemas de trocas, dos intercmbies mais clementares de vizinhanga ‘0 capitaliema mais safisticndn & eacala global. Através da investigacao das regularidades e mecanistas da estrutura das tocas no tempo longo e em unidades espaciais coerentes, Braudel tenta aproximar-se de uma hisria econémica “geral” ‘ou mesmo de uma rologia wm mde, uma espécie de gramitice capaz de funcionar historicamente como ponto de encontro nodal do econémico, do social, do politico edo econémico. Metodologicamente, descobre-se uma investigacéo comparada que, através do tempo e do espaco, liga a histdria as outras céncias do homem, entre _modelo (do passade)e observagio (do presente). Este tipo ou modelo encontra-se precisamente na nogio dintmica de capitalismo que, numa perspectiva de longa ‘duragéo,coneretiza uma ordem milena, global, mas que se entra progressivamente, entre os séculos XV e XVII, na Europa para, a partir dela triunfar globelmente: “Tl com a Eusops, o resto do unundo 6h sécolos tenbalhado peas nocesiades de produ pas obrignes da rcs 8 preileees da moeda, See absurdo peocura 29 ‘elo dest combines, sins que annem os reslzem umn cert capitalma? Gostrla de daw, cono Deleuze e Guat, que de certo mado, ocapalismo asomiron todas 25 formas de siciedade, pelo manos 0 eptalsm tl como o cone. Mas, eeauherameo emai construct ns na Eepa boa no Jap, fala as excep coelinann riya) om quae todos outros tos ~melha seria dizer que no secorsuma* Investigando, partir daqui, esta assimetria entre 0 “sucesso” europeu € as difsxentes ineapacidades dos munclos néo-europeus, Fermandl Braudel sublinha que, no caso da China, oobstéculo ao desenvolvimento do capitalismo resideno Estado, 1a coesio da sua burocracia, na muito longa duragdo de um sistema de estado centralizador e moralizador. Seguindo os rigores de uma moral confuciana instrumentalizando cultura, ideologia e religito, o préprio Estado, englobando os ‘mandarins de todosos escaldes, encontra-se colocado ao servico de um entenclimento bburocrético do ber comum’. Com efeito,o Estado do grande império do meio procure controlar tudo, das cheias & produao agricola, da administragio das cdades as ameacas externas, pasando mesmo por um comércio interno ¢ extemo sempre estritamente vigiado, Um sistema em que a acumulagao s6 é permitida ao Estado e 420 aparelho de Estado, exemplificando a distingio entre a “simples” economia e a “complexidade” docapitalismo, A China exibe, de facto, entre os sécuilos XV e XVI ‘uma solida economia de mercado em agitados espagos locais, entre grupos fervilhantes {SDRAUDEL, op tp. 518. > pasar de no tia teralment as sus esas ecalegorias ete debate acoca da economia © sectedade chines most--se bastante deveder de obra de WEBER, Max ~Confciarsme tolsme Pars: [Ed Gallimard 2000 Trl coms abe, de tote pbladae por bers parte 19150 lo esa de Etc cdc as gies mundi em que vii tener a extoda 9 bods, ohndusao © jdasmo antigo, de artesos e milhares de mercadoresitnerantes, multiplicando-selojas e feiras. Na base da sociedade imperial distinguer-se estas trocas animadas, mas nos niveis econdmicns sociis ¢ politicos superiores impée-se a omnipresence do aparelho de Estado e a sua hostilidace em relacéo a qualquer individuo que, simplesmente, enriquosa. Em rigor, apenas se pode falar de capitalismo em grupos muito bem Aefinidos, caucionados e estritamente vigiados pelo Estado. Quando muito, pode com algum esfoxgo recanhecer-se no tempo dos Ming uma certa burgucsia e uma espécie de capitlismo colonial que se perpetuou até hoje, sobretudo nos emigrantes chineses do Sudeste Asidtico, No Japlo, er contrast, wm futuro captalsta comega a Aesenhar-se a época Ashileaga (1368-1573) com o apazecimento de orcas econSmicas e sociaisindepenclentes do Estado, das corporacdes 8s cidade livres, do coméicio Jonginquo a associagbes de mercadores.Instalam-se mezcados livzes,cidadeslivzes, sendo a primeira, em 1573, 0 porto de Sakai. Poderosas corporagoes estendem a3 suas redes e monopélios, enquanto as sociedades comezciais, zeconhecidas oficalmente em 1721, assumem por vezes sin carécter de companhias comerciais ‘ndlogas as do Ocidente* Estabelecem-se ainda firmemente dinastias de mercadores ‘que se prolongam por séeulos. Se é certo que os entraves eas restrigdes pastas 20 comércio externc entre 1638 e 1868 retardaram a expansio econémiea, 0 Japio ube compensar muito rapidamente o seu atraso, partindo para 9 seu recente surto Industrial imitaéo do Ocidente mobilizando essa base histéria de wm capitalismo mercantl antigo que tinha sabido construir pacientemente e sozinho. J em terras mx imagem que domina éa de uma sociedade contda, de wer em quando abalada pelo Estilo, mas para sempre separada da terra que alimenta. Em toda & parte 0 espectécalo ¢ 0 mesmo, na Pérsia, os Klaus sfo senhores a titulo vitalicio, como na india do Grao-Mogol, ao tempo do seu esplenclor. Em Deli,na verdade, fo Int “grandes familias” que se perpeter. A nica classe de familias dominantes que a india conhecia eraa dos mercadores,fabricantes ebanqueiros que, tadicionalmente, de pai para iho, dieigiam tanto aadministracio como as cdades de negScios,fossem (9s grandes portes ou uma vigorosa cidade do téxtl como Armedabad. Uma classe ue se defence methor e mais duravelmente com o que melhor conhece: 0 diaheiro gue corrompe oinvasor ao deixar-se corromper por ele. E possivel perseguietratos e intercdmbios nests mundios, aque acolé encontrar capitis e indsteiasartesanais ppoderosas mas tanto os Estados centraizados como, pincipalmente,asestratificagbes Sociais segmentedas e militaizadas limitam as possibilidades de dinamizagio de uma accio Sipicamente capitalist Pode, assim, concluir-se que a dindmica do capitalism consttui um proceso de conexbes sucesivas em que se podem vislumbrartréscondigbes necessdvas (1) ‘existéncia com continuidade de uma economia de mercado vigorosa e em vias de Progresso pode encontrar-sea escala mundial entre os séculos XV e XVIII, mas sendo ‘ondigfo sine que non nao 6 suficiente para a formacao de um processo capitalista. A * BRAUDEL, oc p. 827

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