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hu colecao arte, ARLINDO MACHADO direcao: Gloria Ferreira “I Arte conceitual Cristina Freire "I Arte de vanguarda no Brasil: Os anos 60 Paulo Reis {Arte e Midia Arlindo Machado 7 Brasilia e o projeto construtivo brasileiro Grace de Freitas M4 Corpo, imagem e representacao Viviane Matesco arte e midia 34 edicao ') 0 legado dos anos 60 e 70 Ligia Canongia "1 Linguagens inventadas, Palavra, imagem, objeto: formas de contagio Fernando Gerheim t Local/global: Arte em transito Moacir cos Anjos "1 Manet: Uma Mulher de Negécios, um Almogo no Parque e um Bar Luiz Renato Martins ©! Performance nas artes visuais Regina Melim ‘1 © projeto do renascimento Elisa Byngton "Il Razées da critica Luiz Camillo Osorio ' Ateoria como projeto: Argan, Greenberg e Hitchcock Guilherme Bueno & @Y ZAHAR , "i J LJ J , ir J J , fi , i ld 4 4 , , , 4 , » | | 4 r id \4 4 ) Copyright © 2007, Arlindo Machado Copyright desta edigao © 2010: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janeiro, RE tel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 editora@zahar.com.br www.zaharcom.br Todos os direitos reservados. A reprodusao nao autorizada desta publicacao, no todo ouem parte, constitu violagao de direitos autorais, (Lei 9.610/98) Edigdes anteriores: 2007, 2008, Capa: Dupla Design Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortogrétfico da Lingua Portuguesa CIP-Brasil. Catalogagao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Machado, Arlindo, 1949- M1292 Arte e midia / Arlindo Machado. 3.ed. ~ Rio de Janeiro ; 3.ed, Jorge Zahar Ed., 2010. (Arte+) Inclui bibliogratia ISBN 978-85-7110-979-7 1. Artee tecnologia. 2. Arte digit al. 3, Arte por computador. 4E ica moderna, 5. Multimfdia (Arte). 1. Titulo. II. Série. CDD: 700.105 CDU: 7.021 10-1010 [ | sumario Introdug¢ao. Arte e midia: aproximagées e distingoes Tecnologia e arte: como politizar 0 debate Convergéncia e divergéncia das artes e dos meios Referéncias e fontes Sugestées de leitura it (9) [30] 57] [79] 183] Introducéo O vocABuLo “AarTEMiDIA”, forma aportuguesada do inglés “media arts”, tem se generalizado nos tltimos anos para designar formas de expressao artistica que seapropriam de recursos tecnoldgicos das midiaseda indistria do entretenimento em geral, ou intervém em seus canais de difusao, para propor alternativas qualitativas. Stricto sensu, o termo compreende, por- tanto, as experiéncias de didlogo, colabora¢ao e inter- vengao critica nos meios de comunicacao de massa. Mas, por extensdo, abrange também quaisquer expe- riéncias artisticas que utilizem os recursos tecnolé- gicos recentemente desenvolvidos, sobretudo nos campos da eletrénica, da informatica e da engenha- tia bioldgica. Incluimos, portanto, no ambito da arte- midia nao apenas os trabalhos realizados com media- 7] arlindo machado = ao tecnoldégica em areas mais consolidadas, como as artes visuais e audiovisuais, literatura, musica e artes performaticas, mas também aqueles que acontecem em campos ainda nao inteiramente mapeados — como a cria¢ado colaborativa baseada em redes, as in- terven¢oes em ambientes virtuais ou semivirtuais, a aplicacao de recursos de hardware e software para a ge- ra¢ao de obras interativas, probabilisticas, potenciais, acessdveis remotamente etc. Nesse sentido, “artemi- dia” engloba e extrapola expresses anteriores, como “arte & tecnologia’, “artes eletrénicas”,“arte-comuni- cacao’, “poéticas tecnoldgicas” etc. Mas essa designagao genérica apresenta 0 in- conveniente de restringir a discussao da artemidia apenas ao plano técnico (suportes, ferramentas, mo- dos de produgao, circuitos de difusao), sem atingir o cerne da questao, que é 0 entendimento da imbrica- ao destes dois termos: “midia” e “arte”. Que fazem eles juntos e que relagao mantém entre si? Dizer arte- midia significa sugerir que os produtos da midia podem serencarados comoas formas de arte de nosso tempo ou, ao contrario, que a arte de nosso tempo busca de alguma forma interferir no circuito massivo das midias? Em sua acep¢ao propria, a artemidia é algo mais que a mera utilizacao de cameras, compu- tadores e sintetizadores na produgio de arte, ou a simples insergao da arte em circuitos massivos como a televis 10 ea Internet. A questao mais complexa é saber de que maneira podem se combinar, se conta- minar e se distinguir arte e midia, instituigdes diferentes do ponto de vista das suas respectivas his torias, de seus sujeitos ou protagonistas ¢ da insergao social de cada uma. O objetivo deste livro é buscar res postas a essa ques Arte e midia: aproximacées e distin¢goes Aarte sempre foi produzida com os meios de seu tem- po. Bach compés fugas para cravo porque este era 0 instrumento musical mais avangado da sua época em termos de engenharia e actistica. Ja Stockhausen pre- feriu compor texturas sonoras para sintetizadores cle- trOnicos, pois em sua época jd nao fazia mais sentido: conceber pegas para cravo,a nao ser em termos decita- cao historica. Mas 0 desafio enfrentado por ambos 05 compositores foi exatamente 0 mesmo: extrair 0 mAximo das possibilidades musicais de dois instru- mentos recém-inventados e que davam forma a sensi- bilidade actistica de suas respectivas épocas. Edgar Degas, que nasceu quase simultaneamente a invengao da fotografia, utilizou extensivamente essa tecnologia nao apenas para estudar o comportamento da luz, que ele traduzia em técnica impressionista, mas também para suas esculturas, ao congelar corpos em movi- mento com 0 mesmo frescor com que 0 fazia o rapi- dissimo obturador da camera. A série fundadora de Marcel Duchamp, Nu descendo a escada, é uma aplica- [9] arte emidia cao direta da técnica da cronofotografia (precursora da cinematografia) de Etienne Marey, com a qual o artista travou contato através de seu irmao Raymond Duchamp-Vallon, cronofotégrafo do Hospital da Salpétrigre,em Paris. Por que, en 40, 0 artista de nosso tempo recusaria 0 video, o computador, a Internet, os Programas de modelagao, processamento e edicao de imagem? Se toda arte é feita com os meios de seu ee as artes midiaticas representam a expressdo mais avancada da criagdo artistica atual e aquela que melhor exprime sensibilidades e saberes do homem do inicio do terceiro milénio. Faxiande a tecnologia do seu projeto industrial. Mas @ apropriacao que a arte faz do aparato tecnoldgico que lhe é contemporaneo difere significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como a indstria de bens de consumo, Fm geral, aparelhos instrumentose maquinas semiéticas nao sao pros dos para a producao de arte, pelo menos nao no sen- tido secular desse termo, tal como ele se constituiu no mundo moderno a partir mais ou Mmenos do século XV, Maquinas semiéticas sao, na maioria dos casos. concebidas dentro de um principio de produtividade industrial, de automatizacao dos procedimentos para a produgao em larga escala, mas nunca para a produ- sao de objetos singulares, singelos e“sublimes” A pia- nola, por exemplo, foi inventada em meados do sé- culo XIX como um recurso industrial para automati- ee zar a execucao musical e dispensar a performance ao vivo. Gragas a uma fita de papel cujas perfuragées “memorizavam” as posi¢des € os tempos das teclas pressionadas durante uma tinica execucao, o piano mecanico podia reproduzir essa mesma execucao quantas vezes fosse preciso e sem necessidade da intervengao de um intérprete. A funcao do aparato mecAnico era, portanto, aumentar a produtividade da musica executada em ambientes publicos (cafés, restaurantes, hotéis) e diminuir os custos, substi- tuindo o intérprete de carne e osso pelo seu clone mecanico, mais disciplinado e econémico. As perfu- ragoes de uma fita podiam ser ainda copiadas para outra fita eassim uma tinica apresentagao se multipli- cava em infinitas outras, dando inicio ao projeto de reprodutibilidade em escala que, um pouco mais tarde, coma invencao do fondgrafo, desembocaria na poderosa industria fonografica. A fotografia, o cinema, 0 video e o computador foram também concebidos e desenvolvidos segundo os mesmos principios de produtividade e racionali- dade, no interior de ambientes industriaise dentro da mesma légica de expansao capitalista. Mesmo osapli- cativos explicitamente destinados a criagao artisticn (ou, pelo menos, aquilo que a industria entende por criagao), como os de autoria em computagao grafica, hipermidia e video digital, apenas formalizam Wm conjunto de procedimentos conhecidos, herdados de uma hist6ria da arte j4 assimilada e consagrada, Neles, « Liu arte e midia ; ; arlindo machado (12) a parte “computdvel” dos elementos constitutivos de determinado sistema simbélico, bem como as suas regras de articulacao e os seus modos de enunciacao, ¢ inventariada, sistematizada e simplificada para ser colocada a disposi¢ao de um usuario genérico, prefe- rencialmente leigo e “descartavel”, de modo a permi- tir a produtividade em larga escala e atender a uma demanda de tipo industrial. Os atuais algoritmos de compactacao da ima- gem, utilizados em quase todos os formatos de video digital, sto a melhor demonstracao da “filosofia” que ampara boa parte dos progressos no campo das tec- nologiasaudiovisuais. Eles partem da premissa de que toda imagem contém uma taxa elevadissima de re- dundancia, entendidas como tal as Areas idénticas dentro de um tinico quadro eas que se repetemdeum quadro a outro, no caso da imagem em movimento. Eliminando-se essa redundancia por meio de uma codificagao especifica, obtém-se uma significativa compactacao dos arquivos de imagem, o que possibi- lita um armazenamento econdmico (poucos bytes de memoria) e uma répida recuperagio da imagem (vi- sualizacdo em tempo real), Apremissa do video digital é evidentemente dis- cutivel, pois 6 é aplicavel a produgao mais banal e cotidiana — de onde, alias, foi extraida. Fla nao pode seraplicadaa imagens limitrofes da arte contempora- hea, como os quadros da Action Painting (pintura leita com agao performatica do corpo doartista,como ‘ em Pollock, por exemplo) ou 0s flickering films (fil- mes “piscantes”, em que cada fotograma individual é diferente dos demais) do cinema experimental norte- americano—razao pela qual obras dessa natureza aca- bam destruidas pela compactacao digital. Para com- provar isso, basta tentar gravar em DVD os filmes de Stan Brakhage pintados 4 mao diretamente na pelt- cula cinematografica: o gravador de DVD simples- mente entra em pane, pois, nao havendo nenhuma redundancia nas imagens, a compactacao fica impos- sibilitada. Experiéncias como as de Brakhage, que lidam com quest6es essenciais da arte contempora- nea (como o estranhamento, a incerteza, a indetermi- nagao, a histeria, o colapso, o desconforto existen- cial), nao estao obviamente no horizonte do mercado e da industria, ambientes usualmente positivos, oti- mistas e banalizados. Algoritmos e aplicativos sio concebidos industrialmente para uma produgao mais rotineira e conservadora, que nao perfura limites nem perturba os padrées estabelecidos. Existem, portanto, diferentes maneiras de se lidar com as maquinas semidticas cada vez mais dis- poniveis no mercado eletrénico. A perspectiva artis- tica é certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta em tal intensidade do projeto tecno- légico originalmente imprimido as maquinas e pro- gramas que equivale a uma completa reinvengao dos meios. Quando Nam June Paik, com a ajuda de fir poderosos, desvia 0 fluxo dos elétrons no interior do [13] arte emidia arlindo machado [14] tubo iconoscépico da televisdo para corroer a légica figurativa de suas imagens; quando fotégrafos como Frederic Fontenoye Andrew Davidhazy modificam o mecanismo do obturador da camera fotografica para obter nao o congelamento de um instante, mas um fulminante processo de desintegracao das figuras resultante da anotagao do tempo no quadro fotogré- fico; quando William Gibson, em seu romance digital Agrippa (1992), coloca na tela um texto que se emba- ralha e se destréi gragas a uma espécie de virus de computador capaz de detonar os conflitos de memoria do aparelho-entao nao se podemais,emnenhum des- ses exemplos, dizer que os artistas estao operando den- tro das possibilidades programadas e previsiveis dos meios invocados. Eles esto, na verdade, ultrapassando os limites das maquinas semisticas e reinventando radicalmente os seus programas e as suas finalidades. O que faz, portanto, um verdadeiro criador, em vez de simplesmente submeter-se as determinagdes do aparato técnico, é subverter continuamente a fun- ga0 da maquina ou do programa que ele utiliza, é maneja-los no sentido contrério ao de sua produtivi- dade programada. Talvez até se possa dizer que um dos papéis mais importantes da arte numa sociedade tecnocratica seja justamente a recusa sistematica de submeter-se a ldgica dos instrumentos de trabalho, ou de cumprir o projeto industrial das maquinas semidticas, reinventando, em contrapartida, as suas funcoes ¢ finalidades. Longe de se deixar escravizar por uma norma, por um modo estandardizado de comunicar, as obras realmente fundadoras na ver- dade reinventam a maneira de se apropriar de uma tecnologia. Vejamos 0 caso de Conlon Nancarrow, compo- sitor norte-americano (que posteriormente se exilou esenaturalizou mexicano) que, a partir de 1969, deci- diu compor especificamente para a pianola, instru- mento do século XIX que introduziu, juntamente com a fotografia, a padronizagao, a reprodutibilidade ea serializacao dos bens culturais. Um século apés a invengao do piano mecanico, Nancarrow viu nele algo que as geragdes anteriores nao puderam ver, limitadas como estavam pela adesao ao projeto in- dustrial do instrumento. Como a musica era produ- zida gracas 4“memorizacao” das notas codificada nas fitas perfuradas, ela podia ser produzida pela mani- pulacao direta das fitas e nao apenas, como se fazia até entao, pelo registro de uma performance. Produzin- do as perfurag6es manualmente, era possivel fazer 0 piano soar como nunca antes, pois ja nao havia o constrangimento da performance de um intérprete, testrita, como nao poderia deixar de ser, aos limites do desempenho humano. A maquina, até entao limitada a reprodugao de uma performance humana, podia agora produzir uma musica que potencializava in- finitamente essa performance. Mais que isso: ex- plorando diferentes velocidades de rota¢ao das fitas, “vozes” diferentes podiam ser combinadas de forma BE AEN AARHRRAARD AR eae arlindo machado complexa em simultaneos accelerandos e ritardandos. Dessa maneira, ao inverter ou corrompera programa- ¢ao original da pianola, Nancarrow contribuiu para uma reinvencao radical dessa maquina até entao res- tritaa aplicac6es comerciais banais. As técnicas, os artificios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir ¢ exibir seus trabalhos nao apenas ferramentas inertes, nem mediagdes inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer outras. Eles estao carregados de conceitos, eles tém uma histéria e deri- vam de condic6es produtivas bastante especificas, A artemidia, como qualquer arte fortemente determi- nada pela mediagao técnica, coloca 0 artista diante do desafio permanente de, ao mesmo tempo em que se abre as formas de produzir do presente, contrapor- se também ao determinismo tecnolégico, recusar o projeto industrial ja embutido nas maquinas e apare- thos, evitando assim que sua obra resulte simples- mente num endosso dos objetivos de produtividadeda sociedade tecnoldgica. Longe de se deixar escravizar pelas normas de trabalho, pelos modos estandardiza- dos de operar e de se relacionar com as maquinas; longe ainda de se deixar seduzir pela festa de efeitos e clichés que atualmente domina o entretenimento de massa, 0 artista digno desse nome busca se apropriar das tecnologias mecanicas, audiovisuais, eletrénicas e digitais numa perspectiva inovadora, fazendo-as tra- balhar em beneficio de suas ideias estéticas. O desafio da artemidia nao esta, portanto, na mera apologia ingénua das atuais possibilidades de criacao. A artemi- dia deve, pelo contrério, tragar uma diferenga nitida entre o queé,deum lado, a produgao industrial de esti- mulosagradaveis paraas midias de massa e, de outro, a busca de uma ética e uma estética paraaera eletrdnica. Aarte como metalinguagem da midia. Como poderia- mos entender esse “desvio” do projeto tecnolégico original no didlogo com as midias e a sociedade industrializada? Ora, aartemidia éjustamente olugar onde essa questdo encontra uma resposta consis- tente. O fato mesmo de as suas obras estarem sendo produzidas no interior dos modelos econdmicos yigentes, mas na diregao contrdria deles, faz delas um dos mais poderosos instrumentos criticos de que dis- pomos hoje para pensar 0 modo como as sociedades contemporaneas se constituem, se reproduzem e se mantém. Pode-se mesmo dizer que aartemidia repre- senta hoje a metalinguagem da sociedade midiatica, na medida em que possibilita praticar, no interior da propria midia ede seus derivados institucionais (por- tanto nao mais nos guetos académicos ou nos espagos tradicionais da arte), alternativas criticas aos mode- Jos atuais de normatizagao e controle da sociedade. ‘A videoarte talvez tenha sido um dos primeiros lugares onde essa consciéncia se constituiu de forma clara desde o inicio. Antes mesmo da inyengao do videoteipe portatil e de a midia eletrénica ser reco- arte e midia arlindo machado [18] nhecida como campo de possibilidades para a expres- so estética, alguns criadores como Wolf Vostell e Nam June Paik ja desmontavam os sintagmas televi- suais em instalagGes ao vivo ou através do registro em suporte cinematografico, Pode-se dizer que a pertur- bacao dos signos visuais e sonoros da televisdo, 0 reta- lhamento ¢ a desmontagem impiedosa de seus pro- gramas, de seus fragmentos, ou até mesmo de seus ruidos naturais, constituem a matéria de boa parte das pesquisas plasticas em video. Daf a razao de nao ser exagero dizer que a televisdo tem sido o referente mais direto e frequente da videoarte nos seus mais de 40 anos de historia. Algumas verificag6es. This Is a Television Recei- ver (1971), video de David Hall. Nele, a imagem ea voz bastante familiares do apresentador da BBC Ri- chard Baker recitando as noticias de um telejornal sao progressivamente deformadas em anamorfoses cada vez mais acentuadas, ao mesmo tempo em que suas sucessivas recopiagens vao fazendo suas formas origi- nais se desintegrarem. Assim, nés assistimos a uma desintegracdo implacavel da face do apresentador, a medida que as anamorfoses a distorcem, tornando-a cada vez mais grotesca, ¢ 4 medida também que as sucessivas regrava¢Ges de sua voz vao degenerando o sinal sonoro original, dissolvendo-o progressiva- mente nos ruidos do canal. O resultado é que essa figura respeitavel e emblematica da midia se vé redu- zida aquilo que ela é em sua esséncia: uma sequéncia de padrées pulsantes de luz sobre a superficie da tela. Outra verificagao: Technology/Transformation (1979), video de Dara Birnbaum, que utiliza imagens “pira- teadas” do seriado americano Mulher Maravilha eas desmonta para discutiraimagem da mulher nos meios de massa. A artista fixou-se basicamente na sequéncia da transformacao da mulher comum em Mulher Maravilha, um espetaculo tipico de seriados juvenis, baseado em efeitos pirotécnicos de magico de vaude- ville. Essa sequéncia é repetida mais de uma dezena de vezes, até esgotar todo o seu apelo sedutor e resultar em sua banalizagao pelo excesso de énfase. No caminho que vai da videoarte a artemidia, ha uma obra quese pode considerar fundadora no que diz respeito ao questionamento da sociedade midiatica: de Antoni Muntadas. De fato, poucas obras, a partir da segunda metade do século XX, foram capazes de reve- lar o funcionamento mais intimo ¢ invisivel de nossas sociedades com a mesma penetragao e radicalidade com que o fez esse artista catalao. As midias eletrénicas, os espetaculos de massa, os cendrios da performance politica e econdmica, a instituicao das artes, a arquite- turaea organizacao urbana, tudo isso foidissecado por ele com o rigor de um cirurgiao, o alcance de um fil6- sofo, mas sobretudo com a sensibilidade de um artista capaz de experimentar as contradicGes mais agudas de nosso tempo e exprimi-las na linguagem mais ade- quada. Em outras palavras, a andlise que Muntadas faz das estruturas de poder, que subjazem as formas apa~ arte e midia PMPMOASHHAPMHOPS SST ASS SEK SSeS ees artindo m. rentemente indécuas de nossas sociedades, nao toma a forma de um discurso racional e distanciado, mas é produzida com os mesmos instrumentos ¢ meios com que essas estruturas sao construidas. Trata-se, por- tanto, de um ataque por dentro, de uma contaminagao interna, que faz com que essas estruturas deixem momentaneamente de funcionar como habitualmen- te se espera, para que as possamos enxergar por um outro viés, preferencialmente 0 critico. A obra de Muntadas é extensa e variada: com- preende videos, programas paraa televisao, instala- goes multimidia tanto em espagos fechados quanto em espacos publicos, intervengdes na paisagem ur- bana e, mais recentemente, projetos paraa Internet. Nessa obra, a tendéncia mais forte consiste em reci- clar materiais audiovisuais, por meio da construgao de novos enunciados a partir dos materiais que ja estao em circulagéo nos meios de massa. Nesse aspecto, Muntadas retoma uma grande tradic¢ao da arte contemporanea, que comeca com os readyma- des de Duchamp, segue com a reapropriagao de objetos industriais pelo dadaismo, as colagens de Schwitters, Rodtchenko ¢ Heartfield, até a reto- mada da iconografia de massa pela Pop Art. Mas a Sua contribuicao particular esta em colocar toda essa poética da reciclagem a servigo de uma investi- gacao sistematica e implacavel do modo como se organizam ¢ se reproduzem as formas de poder no mundo contemporaneo. Para proceder ao exame critico dos mecanis- mos subjetivos com que trabalha, por exemplo, a televisao, Muntadas recicla as imagens e¢ os sons da prépria midia eletrénica, justapondo fragmentos uns em seguida aos outros, como se estivesse zapean- do, porém num ritmo muito mais lento, de modo a permitir um exame mais sistematico de seu modo de funcionamento. Basicamente, ele faz correrem na tela, tal e qual foram nela encontrados, spots public trios, programas religiosos, propaganda eleitoral ou créditos de abertura e encerramento de programas, todos eles tomados dos mais diferentes canais, dos mais variados modelos de fazer televisao nas varias partes do globo. O resultado perturbador é que tudo, seja qual for a fonte ou a origem, é tristemente igual e repetitivo, confirmando uma espécie de variagao infinita em torno da identidade tinica. Cross-cultural Television (1987), realizado em parceria com Hank Bull, é exemplar nesse sentido: imagens eletronicas provenientes de intimeros paises demonstram que, malgrado as variag6es locais ditadas por especifici- dades culturais ou linguisticas e por diferencas de suporte econdmico, a televisao se constréi da mes- ma maneira, se endereca de forma semelhante ao espectador, fala sempre no mesmo tom de voz e utiliza o mesmo repertério de imagens sob qual- quer regime politico, sob qualquer modelo de tutela institucional, sob qualquer patamar de pro- gresso cultural ou econémico. Trata-se, nesse vi- oe arte e midia arlindo machado y a deo, de tornar evidente o imperialismo do Mesmo na tela pequena. Os exemplos poderiam se multiplicar ao infi- nito. Em nosso tempo, a midia esté permanente- mente presente ao redor do artista, despejando o seu fluxo continuo de sedugao audiovisual, convidando ao gozo do consumo universal e chamando para si o peso das decis6es no plano politico. E dificil imaginar que um artista sintonizado com 0 seu tempo nao se sinta forgado a se posicionar com relagao a isso tudo € a se perguntar que papel significante a arte pode ainda desempenhar nesse contexto. As respostas que ele pode dar constituem a diferenga introduzida pela intervengao artistica no universo midiatico. Em lugar de simplesmente cumprir o papel que lhe foi desig- nado — como criador de demo tapes atestadores do poder da tecnologia, alimentando assim com enun- ciados agradaveis a maquina produtiva— o0 artista, na maioria das vezes, tem um projeto critico relacionado aos meios e circuitos nos quais ele opera. Ele busca interferir na propria légica das maquinas e dos pro- cessos tecnoldgicos, subvertendo as “possibilidades” prometidas pelos aparatos e colocando a nu os seus pressupostos, fungGes e finalidades. O que ele quer é, num certo sentido, “desprogramar” a técnica, distor- cer as suas fung6es simbélicas, obrigando-as a fun- cionar fora de seus parametros conhecidos ea explici- tar os seus mecanismos de controle e seducao. Nesse sentido, ao operar no interior da instituicao da midia, aarte a tematiza, discute os seus modos de funcionar, transforma-a em linguagem-objeto de sua mirada metalinguistica. Amidia como reordenamento da arte. Mas hé também o movimento no sentido inverso. Falamos até aqui de arte como se ela correspondesse a um conceito defini- tivo. Entretanto, sabemos que arte é um processo em permanente mutacao. Era uma coisa para 0s arquitetos egipcios, outra para os caligrafos chineses, uma ter- ceira para os pintores bizantinos, outra ainda para os musicos barrocos ou os cineastas russos do periodo revoluciondrio. Nesse sentido, nao é preciso muito esforco para perceber que o mundo das midias, com sua ruidosa irrupgao no século XX, tem afetado subs- tancialmente 0 conceito e a pratica da arte, transfor- mando a criacao artistica no interior da sociedade mididtica numa discussao bastante complexa. Basta considerar 0 fato de que, em meios despontados no século XX, como o cinema por exemplo, os produtos da criagao artistica e da produgao midiatica nao sao mais téo facilmente distinguidos com clareza. Ainda hoje, em certos meios intelectuais, hé uma controvér- sia sobre se o cinema seria uma arte ou um meio de comunicagao de massa. Ora, ele é as duas coisas ao mesmo tempo, se nao for ainda outras mais. Jé houve um tempo em quese podia distinguir com total clareza entre uma cultura elevada, densa, secular e sublimada e, de outro lado, uma subcultura dita “de massa’, bana- arte e midia 4 « + 6 “ 6 « 6 € € « € «€ * € € € € FORSHHHHHOHHEASEE L indo machado lizada, efémera e rebaixada ao nivel da compreensao e da sensibilidade do mais rude dos mortais. Se em tem- pos heroicos, como aqueles da Escola de Frankfurt por exemplo, a distingao entre um bom e um mau objeto de reflexao era simplesmente axiomatica, nestes nos- sos tempos de ressaca da chamada“pés-modernidade” acisao entre os varios niveis de cultura nao parece tao cristalina. Em nossa €poca, 0 universo da cultura se mostra muito mais hibrido e turbulento do que o foi em qualquer outro momento. Mas a ideia de que se possa fazer arte nas midias ou com as midias é uma discussao que esté longe de ser matéria de consenso. De uma forma geral, 0s inte- lectuais de formacao tradicional resistem a tentagao de vislumbrar um alcance estético em produtos de massa, fabricados em escala industrial. No seu modo de entender, a boa, profunda e densa tradigao cultu- ral, lentamente filtrada ao longo dos séculos por uma avaliagao critica competente, nao pode ter nada em comum com a epidérmica, superficial e descartavel producao em série de objetos comerciais de nossa época. Portanto, para esses intelectuais, falar em cria- tividade ou qualidade estética a propésito da produ- Gao midiatica s6 pode ser uma perda de tempo. Os defensores da artemidia, entretanto, costu- mam ser menos arrogantes e mais espertos. Eles de- fendem a ideia de que a demanda comercial e 0 con- texto industrial nao necessariamente inviabilizam a criagao artistica, a menos que identifiquemos a arte com 0 artesanato ou com a aura do objeto unico. No entender destes tiltimos, a arte de cada época é feita nao apenas com os meios, Os recursos € as demandas dessa época, mas também no interior dos modelos econémicos ¢ institucionais nela vigentes, mesmo quando essa arte é francamente contestatéria em relacao a eles. Por mais severa que possa ser a nossa critica 4indtistria do entretenimento de massa, nao se pode esquecer que essa industria nao éum monolito. Por sercomplexa, ela esta repleta de contradigoes inter- nas, e é nessas suas brechas que o artista pode penetrar para propor alternativas de qualidade. Assim, nao ha nenhuma razao por que, no interior da industria do entretenimento, nao possam despontar produtos como programas de televisao, videoclipes, musica pop ete.—que, em termos de qualidade, originalidade edensidade significante, rivalizem coma melhor arte “séria” de nosso tempo. Nao ha também nenhuma razdo para esses produtos qualitativos da comunica- cao de massa nao serem considerados verdadeiras obras criativas do nosso tempo, sejam elas vistas como arte ou nao. O fato de determinadas formas artisticas serem criadas no interior de regimes de produgao restriti- vos, estandardizados e automatizados, com o suporte de instrumentos, know how e linguagem desenvolvi- dos pela ou para a industria do entretenimento de massa, as vezes até mesmo encomendadas e/ou finan- ciadas pelas mesmas instancias econdémicas que sus- [ & arte e midia arlindo machado [26] tentam ou promovem essas formas industrializadas de produgao, nao as torna necessariamente homolo- gatorias dessas estruturas e poderes. Pelo contrario, elas podem estar sendo produzidas sob forte conflito intelectual ecom inabalavel capacidade de resisténcia contra as imposi¢es do contexto industrial. Afinal, a cultura de outras épocas nao esteve menos constran- gida por imposigGes de ordem politica e econémica do que a de agora e nem por isso ela deixou de ser rea- lizada com grandeza. Assim como 0 livro impresso, tao hostilizado nos seus primérdios, acabou por se revelar o lugar privilegiado da literatura, nao ha por que televisao ou a Internet nao possa abrigar as for- mas de arte de nosso tempo. Talvez possamos com proveito aplicar a arte produzida na era das midias o mesmo raciocinio que Walter Benjamin aplicou a fotografia e ao cinema: 0 problema nao é saber se ainda cabe considerarmos “artisticos” objetos e eventos taiscomo um programa de televisao, uma histéria em quadrinhos ou um show de uma banda de rock, O que importa € perce- ber que a existéncia mesma desses produtos, a sua proliferacao, a sua implantacao na vida social colo- cam em crise os conceitos tradicionais e anteriores sobre o fendmeno artistico, exigindo formulacdes mais adequadas a nova sensibilidade que agora emer- ge. Uma critica nado dogmatica saberé ficar atenta a dialética da destruicao e da reconstrugao, ou da dege- neragao e do renascimento, que se faz presente em todasas etapas de grandes transformagées. O que nao se pode é julgar toda essa produgao com base numa legislacao teérica prefixada, j4 que ela esta sendo governada por modelos formativos que provavel- mente nao foram ainda percebidos ou analisados teo- ricamente. Com as formas tradicionais de arte en- trando em fase de esgotamento, a confluéncia da arte com a midia representa um campo de possibilidades ede energia criativa que poderé resultar proximamen- te num salto no conceito e na pratica tanto da arte quanto da midia—se houver, é claro, inteligéncias esen- sibilidades suficientes para extrair frutos dessa nova situacao. Existe hoje toda uma polémica a respeito das origens das artes eletrénicas, e ela pode nos trazer ensinamentos. Para alguns, ela nasce no ambiente sofisticado da videoarte, com as primeiras experién- cias do alemao Wolf Vostell e do coreano Nam June Paik. A videoarte surge oficialmente no comego dos anos 1960, com a disponibilizagao comercial do Por- tapack (gravador portatil de videoteipe) e gragas sobretudo ao génio indomavel de Paik. Mas, se a tele- visdo puder ser incluida no ambito das artes eletréni- cas (endo hé nenhuma razao para que nao seja), tere- mos de acrescentar a galeria de seus pioneiros nomes como o do hiingaro-americano Ernie Kovacs e do francés Jean-Christophe Averty, que introduziram na televisdo a autoria ea criagao artistica, além de terem sido os primeiros a explorar largamente a linguagem_ [27] arte e midia RANAeaaeasaeea00 HAMRMRARAKRABRMRBAADEADA iw lindo machado do novo meio, razao por que alguns autores os consi- deram os verdadeiros criadores da videoarte, antes mesmo de Vostell e Paik, Averty, 0 Méliés da televisao, foi um dos primei- Tos a propor e a realizar, em quase uma centena de programas, uma televisao autoral e delirante, utili- zando largamente recursos de insergao eletrénica quando eles ainda mal tinham acabado de ser inven- tados. Seus Ubu Roi e Ubu Enchaine, produzidos para a Radio et Télévision Frangaise na década de 1960, hipertrofiamo que ja havia de absurdo na pega homénima de Alfred Jarry, inaugurando aberta- mente uma televisao de invengao, Kovacs, por sua vez, desde 0 comeco dos anos 19 Z 50, escreveu, dirigiu ¢ interpretou uma série de Programas fulminante- mente inventivos para as trés principais redes co- merciais de televisao dos EUA, onde foram experi- mentados, de forma sistematica e radical, varios procedimentos que depois seriam con de vela: hecidos como onstrutivos: dissociacao entre imagem e som, re- 40 dos bastidores da televisao com seus apa- ALOS © técnicos, desmistificacao das técnicas ilu- sionistas, constante referencia 4 televisio como dispositivo. O critico Bruce Ferguson chegoua vis- lumbrar na obra de autores seminais da vanguarda contemporanea, como Michel Snow, Bruce Nau- man e Vito Acconci, varios procedimentos des- construtivos e metalinguisticos que ja haviam sido utilizados por Koyaes. O sentido das artes eletrénicas adquire rumos completamente diferentes se contarmos a sua histé- ria a partir de Paik e Vostell, que vém do circuito sofis- ticado e erudito dos museus e galerias de arte, oua partir de Kovacs e Averty, que despontam da expe- riéncia da cultura popular “eletrificada” e ampliada pelas tecnologias eletrénicas. E a mesma tensao que existe entre Eisenstein e Chaplin no cinema, ou entre Stockhausen e Theremin na musica eletrénica. Tradi- cionalmente, a histéria da arte contemporanea é con- tada a partir apenas da primeira perspectiva, igno- rando quase completamente a segunda, mas uma artemidia consequente tem de ser capaz de encontrar o das duas principais perspectivas. Talvez a dificuldade exista apenas para aqueles o ponto de fu: que encaram essa questao a partir do prisma das artes tradicionais e para os te6ricos que se colocam tam- bém nessa perspectiva. Quem faz arte hoje, com os meios de hoje, esté obrigatoriamente enfrentando a todo momento a questao da midia e do seu contexto, com seus constrangimentos de ordem institucional e econdmica, com seus imperativos de dispersao eano- nimato, bem como com seus atributos de alcance e influéncia. Trata-se de uma pratica ao mesmo tempo secular e moderna, afirmativa e negativa, integrada e apocaliptica. Os puiblicos dessa nova arte sao cada vez mais heterogéneos, nao necessariamente especializa- dos e nem sempre se dao conta de que 0 que estao vivenciando é uma experiéncia estética. A medida [29] arte e midia arlindo machado Bo] que a arte migra do espago privado e bem definido do museu, da sala de concertos ou da galeria de arte para 0 espaco publico e turbulento da televisao, da Inter- net, do disco ou do ambiente urbano, onde passa a ser fruida por massas imensas e dificeis de caracterizar, ela muda de estatuto e alcance, configurando novas e estimulantes possibilidades de insercao social. Esse movimento é complexo e contraditério, como nao poderia deixar de ser, pois implica um gesto positivo de apropriagao, compromisso e inser¢gao numa socie- dade de base tecnocratica e, ao mesmo tempo, uma postura de rejei¢ao, de critica, as vezes até mesmo de contestagao. A arte, ao ser excluida dos seus guetos tradicionais, que a legitimavam e a instituiam como tal, passa a enfrentar agora o desafio da sua dissolucao e da sua reinvencao como evento de massa. Tecnologia e arte: como politizar o debate Em um livro recente — intitulado Politizar as novas tecnologias —, 0 socidlogo Laymert Garcia dos Santos procurou dar expressao a um sentimento cada vez mais generalizado de insatisfacao para com os discur- sos apologéticos da tecnologia, discursos estes de glo- rificacao das benesses do progresso cientifico, de pro- mogao do consumismo, quando nao de marketing direto de produtos industriais, que costumam tomar corpo em boa parte dos eventos internacionais dedi- cados as relagoes entre arte, ciéncia e tecnologia. Em um pais como 0 Brasil, deslocado geograficamen- te em relacao aos paises produtores de tecnologia e em que 0 acesso aos bens tecnoldgicos é ainda seletivo e discriminatério, uma discussao séria sobre 0 tema das novas tecnologias deve necessariamente refletir esse deslocamento e essa diferenga, para que possa servir, a0 mesmo tempo, de caixa de ressonancia a experiéncias e pensamentos independentes, proble- matizadores e divergentes, que acontecem, ainda que marginalmente, em varias partes do mundo, sobre- tudo fora dos centros hegemOnicos. A onipresenga dos computadores a nossa volta, o estabelecimento definitivo da Internet, os ayangos da biotecnologia eas promessas da nano, as inovagdes tecnoldgicas de toda sorte ja ultrapassaram infin mente os limites dos laboratérios cientificos e hoje fazem parte do cotidiano de uma porcentagem cada vez maior das populag6es urbanas de grande parte do planeta. A medida que o mundo natural, tal como 0 endo conheceram as geracGes de outros séculos, vai s substituido pela tecnosfera — a natureza criada ou modificada pela ciéncia -, novas realidades se im- poem. De um lado, aumento das expectativas de vida, incremento da produtividade, multiplicagao das riquezas materiais e culturais, mudangas profundas nos modos de existir, circular, relacionar-se, perceber erepresentar o mundo, campo fértil para experiéneias on arte e midia |, azaeeese Gado machado Wi i artisticas inovadoras; de outro, generalizagao dos efei- tos colaterais, dos riscos de acidentes de toda espécie, centralizagao da produgao e do poder nas maos de um ntimero cada yez menor de nagGes e empresas trans- nacionais, ampliagao da exclusao social, do apartheid econdmico, do gap entre ricos e pobres, produtores e consumidores, hegeménicos e marginais. As novas tecnologias, associadas ao processo de globalizacao, penetraram todos os espacos do planetae interferiram na vida de todos os povos, até mesmo das populagoes mais isoladas ¢ refratarias 4 modernizacao, como é 0 caso dos povos indigenas. Uma noticia sur- preendente, que circulou ha pouco tempo apenas nos meios interessados em midias mortas, informa que 0 ultimo servigo de pombos-correios que ainda existia no mundo fechou finalmente as suas portas em 2001. Atuando na regiao de Orissa, na India, uma das mais remotas e miseraveis do planeta, a pequena empresa que se dedicava a mais arcai forma de comunicagao a ‘ancia do mundo nao péde resistira chegada dos ser- vi¢os de telecomunicagoes e telematica. Até mesmo a esquecida, longinqua e quase inacessivel Orissa, tiltimo dis reduto do mundo em que as informagées ainda viaja- vam atadas fisicamente as patas de uma ave, teve de do- bra sea globalizagao implacavel dos servicos de telefo- nia ea conexao universal via Internet. Hoje, quando os indios do Xingu usama Internet para construir um sis- tema alternativo de comunicacao entre as nagoes indi- genas da regiao do Pard; quando os camponeses mise- raveis da regiao de Chiapas vao a web buscar adesao 4 rebeliao zapatista contra o governo do México; quando os indios norte-americanos, praticantes da mais antiga forma de comunicagdo interativa em tempo real do mundo, trocam a skywriting (linguagem dos sinais de fumaga) pela netwriting, nao hé mais como ignorar 0 fato de que a conexao universal via Internet é um fato consolidado e sem retorno. Masasnovas tecnologias nao promoveram esse avanco democratizando 0 acesso, universalizando as riquezas produzidas, gerando o crescimento mate- rial e cultural de todo o planeta atingido pela sua in- fluéncia. Elas avangaram fortemente ancoradas em instrumentos politicos e juridicos autoritarios, como apropriedade privada,a patentee o copyright,ahege- monia do capital global, a divisio do planeta em es- tratos sociais, classes, ragas, etnias e géneros diferen- ciados, desigualmente beneficiados com 0 acesso aos bens produzidos. A divisio do formato DVD em seis diferentes regides planetarias, para possibilitar a dis- tribuicdo desigual dos bens culturais, sobreposta ainda a anterior divisdo do planeta em sistemas de video incompativeis entre si (NTSC,SECAM, PAL-G, PAL-M, PAL-N etc.) €um bom exemplo da perspec- tiva segregacionista do pensamento tecnologico glo- balizado. A aceleragao tecnolégica modulou também © ritmo de nossas vidas, exigindo atualizag6es cada vez mais rapidas, premiando os que se adaptam mais facilmente e descartando os que nao conseguem 13] arte e midia EEE arlindo machado fal acompanhar a velocidade das mudangas — os “dro- mo-inaptos”, na feliz acep¢ao de Eugénio Trivinho. As novas tecnologias colocaram ainda em risco 0 am- biente em que vivemos, promoyvendo 0s cendrios ca- tastroficos que diariamente perturbam as paginas dos jornais. Ao mesmo tempo, as novas descobertas cienti- ficas, com raras excegées, tém sido conduzidas por velhas.instituigdes econdmicas, na direcao de uma apropriagao legal (sob forma de patentes) de plantas e animais transgénicos, células e sementes genetica- mente modificadas, genes sintéticos e genomas, e con- figuram, portanto, uma forma de enquadramento da vida como propriedade privada. No entanto, apesar de todo o impacto produ- zido sobre a vida cotidiana, sobre a politica ambiental ¢ sobre a geopolitica de dominagao internacional de nagées ricas sobre pobres, as novas tecnologias conti- nuam sendo implantadas por decisées politicas exclusivas dos Estados ou por estratégias das empre- sas privadas, sema participagao da sociedade, que fica escamoteada da discussao por negligéncia, desconhe- cimento ou incapacidade critica. A centralidade das novas tecnologias, sejam elas eletrdnicas, digitais ou biogenéticas, € também pouco problematizada nos eventos dedicadosa elas, sobretudo no campo que aqui mais nos interessa: aarte contemporanea. Predomina ainda, no universo das artes eletrénicas ou das poéti- cas tecnolégicas, um discurso legitimador, um tanto ingénuo, alheio aos riscos que a adogao de uma estra- tégia de aceleragao tecnoldgica comporta. Se é ver~ dade,como demonstra Martin-Barbero, que nos ulti- mos 50 anos assistimos a um processo de esvazia- mento da politica, vazio esse que foisendo aos poucos preenchido pelo discursohegeménico da tecnologia, também é verdade, por outro lado, quea tecnologia foi se convertendo em um novo campo de utopias, que doutrinas as mais variadas vislumbraram nas madqui- nas e nos algoritmos perspectivas de emancipasao, progresso e felicidade coletiva que antes estavam clr- cunscritas ao discurso politico. Alguns analistas do ciberespago tém sugerido, por exemplo, que os computadores conectados em rede,ao colocar também em conexao 0 epermitir quecada um deles se distribu: rede, esto afetando profundamente a tersubjetividade e de sociabilidade dos homens, la sua rela~ s seus usuarios a dentro dessa s relagdes de in assim como a propria natureza do “eued cao com 0 outro. O inglés Roy Ascott, um dos ido dessa corrente, chega a afirmar que a Internet esta produzindo uma “consciéncia planetdria”, sea da sintese de todos os sujeitos presentes no ciberes- avegante da rede, integrado ao corpo das: pago. O ni 0; interfaces, nao € mais um mero espectador passivi erferir no fluxo das energias ¢ ideias; incapaz de int ele se multiplica pelos nos da rede e se pelo contrario, i distribui por toda parte, interagindo com outros part- cipantes e constituindo assim uma espécie de cons- ciéncia coletiva. Com essas ideias, Ascott parece pro [35] arte emidia PORMATAASSHABAeeseer . o_o o' mover algo como uma hipertrofia do ciberespago, (ransformando-o num “espago” privilegiado, numa espécie de agora virtual em que, diferentemente do pobre e degradado espaco real, as promessas de uma verdadeira democracia finalmente encontrariama sua expressao acabada. “Ou vocé esté no interior da rede”, diz ele, “ou vocé nao esté em parte alguma. E, se vocé esta no interior da rede, vocé esta em todos os lugares.” Na linha do pensamento de Ascott, vemos hoje multiplicarem-se esses novos discursos utépicos que creditam aos dispositivos tecnolégicos um potencial quase “revoluciondrio”, promotor dos ideais de demo- cratizacao universal tao duramente perseguidos pela humanidade em sua histéria, um potencial desenca- deador também de mutagoes na propria natureza bio- légica humana, a ponto de converter o homem em uma espécie de Ubermensch (super-homem ou sobre- homem), na acep¢ao nietzchiana, capaz de superar a fragilidade owa perecibilidade do corpo através de pr6- 8 eletrénicas e engenharia genética. O canadense ick de Kerckhove, o alemao Peter Weibel, 0 francés Pierre Levy, o norte-americano Nicholas Negroponte, entre tantos outros, representam hojea vanguarda inte- lectual dessas utopias tecnoldgicas que rapidamente se espalham e ganham adeptos por todo o mundo. E curioso verificar também como essas doutrinas neopo- sitivistas, que se generalizam na Europa, Japao e Amé- ri do Norte, encontram eco em setores significativos di América Latina, mesmo quando arealidade ao nosso redor as questiona permanentemente. No Brasil, sobre- tudo, em que ideias como as de Roy Ascott estao, além de tudo, mescladas com um misticismo de tipo folclo- rizado e de fundo colonizador (retorno ao xamanismo, ao tribalismo e aos efeitos terapéuticos de drogas indi- genas como a aiuasca, supostamente formas “primiti vas” de imersao e navega¢ao, como aquelas que hoje experimentamos no ciberespaco e nos dispositivos de realidade virtual), aimportacao em larga escala deideias ede modelos de agao de outras realidades socioecond- micas tem impedido o desenvolvimento entre nés de uma consciéncia alternativa relacionada as noyas tec- nologias. Com isso, seguimos a reboque—e sem massa critica — de um movimento hegeménico, arquitetado em escala planetéria. Por sua vez, a critica ainda nao foi capaz, entre nés, de discutir as novas tecnologias em toda a sua complexidade, limitada que esta, muitas vezes, por uma tendéncia tecnéfoba igualmente ingénua e igualmente importada de modelos apocalipticos europeus ou norte-americanos (Paul Virilio, Jean Baudrillard, Fredric Jameson, entre outros). Em pri- meiro lugar, o que se percebe é uma crescente dificul- dade, a medida que os aplicativos de computador se tornam cada vez mais poderosos e “amigaveis”, de saber discriminar entrea contribuicao original deum verdadeiro criador e a mera demonstragao das vir- tudes de um programa. Nesse sentido, assistimos hoje a um certo degringolamento da nogao de valor, B7] arte e midia arlindo machado [38] sobretudo em arte. Os juizos de valorizagao se tor- naram frouxos, ficamos cada vez mais condescen- dentes em relagao a trabalhos realizados com mediagao tecnoldégica, porque nao temos critérios suficiente- mente maduros para avaliar a contribuicao de um artista ou de uma equipe de realizadores. Como consequéncia, a sensibilidade comega a ficar embo- tada, perde-se o rigor do julgamento e qualquer bo- bagem nos excita, desde que parega estar up to date com 0 estdgio da corrida tecnolégica. Para além das tendéncias mais confortaveis da tecnofilia e da tec- nofobia, o que importa é politizar o debate sobre as tecnologias, sobre as relacdes entre a ciéncia e 0 ca- pital, sobre o significado de se criarem obras artisti- cas com pesada mediacao tecnolégica. Acontribuigao de Flusser. Dentre os varios pensadores da tecnologia que despontaram no Ocidente na segunda metade do século XX, Vilém Flusser talvez seja aquele cuja importancia mais tem crescido ulti- mamente. O que chamaa aten¢ao, em primeiro lugar, na figura desse pensador, é a sua posicao divergente com relagao tanto a posicao tecnéfila quanto a cor- rente tecnéfoba — ambas atualmente em vigor. Tche- co de nascimento (e criado no seio de uma familia judaica), Flusser teve de abandonar seu pais em 1939 para fugir dos nazistas, que ja tinham liquidado toda sua familia, inclusive o pai, entao reitor da Universi- dade de Praga. Depois de viver algum tempo na In- glaterra e j4 cansado de ver a Europa submergir nas trevas, com seus mitos arcaicos de raga; poder, ideolo- gia e nacao, ele migra com sua mulher, Edith Barth, para o Brasil, acreditando encontrar no pais uma civi- lizagao descompromissada com os valores do Velho Mundo. Nao foi exatamente 0 que encontrou. Em- bora tenha conseguido se tornar um polo de atragao entre os intelectuais mais independentes do pais, ele foi hostilizado tanto pela ditadura militar, que domi- nou o pais entre 1964 e 1984, quanto pela esquerda local, que, no dizer de Sérgio Paulo Rouanet, “nao podia entender um pensamento tao anarquico, tao genuinamente subversivo, tao livre de todos os cli- chés”. Flusser viveu 31 anos no Brasil e foi, possivel- mente, o principal mentor intelectual de varias gera- ¢0es de artistas brasileiros que enfrentaram o desafio da tecnologia. Mesmo depois de seu retorno a Europa eaté o seu falecimento em Praga em 1991, continuou frequentando regularmente o ambiente intelectual brasileiro, pais onde deixou nao apenas dois filhos, mas também um largo circulo de discipulos. Os seus estudos sobre o impacto causado a civilizagao con- temporanea pelas tecnologias eletrénicas e biogené- ticas comegaram a se desenvolver muito precoce- mente, jé a partir dos anos 1960 e ainda no periodo brasileiro. Além dos primeiros escritos sobre as ima- gens técnicas e da polémica com o grupo brasileiro da poesia concreta, Flusser aproximou-se bastante dos artistas brasileiros que estavam trabalhando com as arte e mit novas tecnologias, e essa aproximagao produziu in- . Varios desses artistas eram seus alu- nos ou colegas nas Faculdades Armando Alvares Pen- teado (Faap), em Sao Paulo. E possivel, portanto, tracar uma relagao entre o surgimento das ideias flusserianas sobre a sociedade tecnoldgica e o contexto das artes ele- tronicas no Brasil a partir da década de 1960. Toda a notoriedade post mortem que Flusser vem recebendo em grande parte do mundo seexplica, entre outras coisas, pelo fato de seu pensamento ser fluéncias miitua: absolutamente certeiro na andlise das mutacdes cul- turais, sociais e antropolégicas que estao ocorrendo no mundo contempordneo,e também o mais conyin- cente na adverténcia dos riscos que corremos. Na ver- dade, 0 filésofo tcheco-brasileiro s6 reconhece uma ¢poca comparavel coma nossa: a Antiguidade, quan- do o homem passou de um estagio pré-histérico e mitico para uma fase histérica, ldgica e baseada na escrita alfanumérica. No atual estégio, chamado por Musser de pés-hist6rico, a “escritura” é construida com ou por maquinas e consiste essencialmente numa articulacao de imagens—no limite, imagens digitali- zadas, multiplicéveis ao infinito, manipulaveis a von- lade ¢ passiveis de distribuicdo instantanea a todo o planeta. Caracteres se tornam bytes, sequéncias de texto se conyertem em sequéncias de pixels, os fins e 08 Mei9s S40 substituidos pelo acaso, as leis pelas pro- babilidades e a razao pela programagao. E certo que muitos pensadores contemporaneos — de McLuhan a Kerckhove, de Debord a Baudrillard, de Ong a Lévy — buscaram ou continuam buscando exprimir algo semelhante por outras vias e com outros argumentos, mas Flusser 0 fez nao apenas mais precocemente que os outros, mas também com uma clareza, precisdo e radi- calidade que tornam todos os outros caminhos mais tortuosos, dridos, retricos, comprometidos e estrate- gicamente menos eficazes. Falar de Flusser significa falar, em primeiro lu- gar, de Filosofia da caixa-preta, sua obra mais densa e também a mais conhecida. Esse livro apresenta uma histéria bastante singular. Publicado pela primeira vez na Alemanha, em 1983, a sua versao para 0 portu- gués nao é simplesmente uma tradugio, mas ja uma revisao da versao alema. A comegar pelo titulo. En- quanto a primeira versao recebeu 0 nome de Fiir eine Philosophie der Fotografie (“Por uma filosofia da foto- grafia”), titulo que foi mantido em todas as tradug6es para as outras linguas, a versdo para o portugués teve o seu titulo modificado conforme acima, permitindo perceber melhor 0 universo conceitual e o campo de abrangéncia do livro. As mudangas foram providen- ciadas pelo proprio autor, que alias escreveu ele mes- mo a versio em portugués, depois de reconsiderar alguns aspectos de sua argumentacao. Em 1984, data provavel de redagao da versio brasileira, Flusser estava envolvido com a concep¢ao do livro Ins Universum der technischen Bilder (“Em diregao ao universo das imagens técnicas”), que era, [41] arte e midia arlindo machado na verdade, um desdobramento da Philosophiee uma resposta aos inumeros comentarios criticos que o filsofo recebeu com a edigao desta tiltima. Era impossivel, portanto, que essa nova discussa0 nao afetasse a“tradugao” da Philosophie parao portugués. Eis a razao por que a verso em lingua portuguesa dessa obra fundamental de Flusser é tinicae difere sig- nificativamente das outras tradugées conhecidas (baseadas no original alemao). Uma simples compa- ra¢ao das vers6es para o alemao ¢ para 0 portugués ja deixa entrever as diferencas. O prefacio foi inteira- mente refeito na versao brasileira, 0 glossario acres- centou novos termos, nao considerados na verséo alema, e partes inteiras do texto principal do livro foram reescritas para dar maior precisao e consistén- cia a argumentagao. Nesse sentido, para ser realmente fiel ao pensamento de Flusser, a versao em lingua por- tuguesa (e nado a alema) é que deveria ser tomada como 0 texto definitivo da Filosofia e, por consequén- cia, ela é que deveria estar sendo utilizada como base da tradugao para outras linguas. A mudanga do titulo é fundamental. Malgrado a fotografia seja realmente o objeto principal da refle- xao efetuada no livro, ela funciona mais propria- mente como um pretexto para que, através dela, Flusser possa verificar o funcionamento de nossas sociedades “pés-histéricas”, ou seja, de nossas socie- dades marcadas pelo colapso dos textos e pela hege- monia das imagens. Na verdade, a fotografia ocupa, entre as midias de nosso tempo, um lugar bastante estratégico, porque é com base na sua defini¢ao se- mi6tica e tecnolégica que se constroem hoje as ma- quinas contemporaneas de produc¢ao simbélica au- diovisual. E com a fotografia que se inicia, portanto, um novo paradigma na cultura do homem, baseado na automatizacao da produgao, distribuigao e con- sumo da informagao (de qualquer informagao, nado s6 da visual), com consequéncias gigantescas para os processos de percepcao individual e para os sistemas de organizacao social. Mas foi com as imagens eletré- nicas (difundidas pela televisao) e com as imagens digitais (difundidas agora no chamado ciberespa¢o) que essas mudangas se tornaram mais perceptiveis e suficientemente ostensivas para demandar respostas ico-filoséfico. Que nin- guém espere, portanto, encontrar nessa obra de por parte do pensamento c: Flusser uma anilise da fotografia de tipo classico. A fotografia é nela abordada com base sobretudo em conceitos da informatica e comparece ai apenas como um modelo bdsico para a andlise do modo de funcionamento de todo e qualquer aparato tecnolé- gico ou midiAtico. Por essa razo, Filosofia da caixa- preta traduz melhor as ambicées da obra do que um lac6nico Filosofia da fotografia. Por que “caixa-preta”? Sabemos que o termo vem originalmente da eletronica, onde é utilizado para designar uma parte complexa de um circuito eletrénico que é omitida intencionalmente no dese~ [43] arte e midia VPSesrevssesessesessessesee nho de um circuito maior (geralmente para fins de simplificagao) e substituida pelo desenho de uma caixa vazia, sobre a qual apenas se escreve o nome do circuito omitido. Atentemos ao fato bastante signifi- cativo de que Gregory Bateson, em seu Steps to an Ecology of Mind, amplia ironicamente o significado de“caixa-preta”, com o propésito de aplic4-lo a grande parte dos conceitos problematicos da filosofia e da ciéncia. Como os engenheiros eletrénicos — explica Bateson —, também os fildsofos e cientistas utilizam rotulos, nomes ou “caixas-pretas” para designar cer- tos fendmenos, mas diferentemente daqueles, estes lillimos acreditam, muitas vezes, que tais expedientes implicam uma compreensao do fendmeno. Assim, por exemplo, damos a uma certa classe de fendémenos © nome de instinto e acreditamos que isso resolve 0 problema. Mas 0 que chamamos de instinto pode ser apenas uma caixa-preta que esté ali para mascarar 0 que justamente nao conseguimos compreender. No caso especifico de Flusser, o conceito de caixa- preta deriva mais propriamente da cibernética. Nesse campo particular, d4-se o nome de caixa-preta a um dispositivo fechado e lacrado, cujo interior é inacessi- vel e 86 pode ser intuido através de experiéncias basea- dias na introdugao de sinais de onda (input) ena obser- sposta (output) do dispositivo. Em geral, “-preta traduz um problema de engenharia: como deduzir acerca do que ha dentro de uma caixa, sem jamente abri-la, mas apenas aplicando volta- vagio dar ca Hecessa gens, choques ou outras interferéncias em suas paredes externas? No entender de Flusser, o transporte desse conceito para a filosofia possibilita exprimir um pro- blema novo, quea fotografia foi justamente o primeiro dispositive acolocar—o surgimento de aparatos tecno- légicos quese podem utilizar e deles tirar proveito,sem que o utilizador tenhaa menor ideia do que se passaem. suas entranhas. O fotdgrafo, de fato, sabe que se apon- tara sua camera para um motivo e disparar o botao de acionamento 0 aparelho Ihe dara uma imagem nor- malmente interpretada como uma réplica bidimen- sional do motivo que posou para a camera. Mas 0 fotégrafo, em geral, nao conhece todas as equagoes utilizadas para o desenho das objetivas, nem as rea¢6es quimicas que ocorrem nos componentes da emulsao fo- tografica. A rigor, pode-se fotografar sem conhecer as leis de distribuigdo da luz no espago, nem as proprieda- des fotoquimicas da pelicula, nem ainda as regras da perspectiva monocular que permitem traduzir o mun- do tridimensional em imagem bidimensional. As came- ras modernas es\ moa fotometragem daluz eadeterminagao do ponto de foco serem realizadas pelo aparelho. Nesse sentido, a caixa-preta “cibernética” de Flus- ser se encontra coma caixa-preta“eletrénica” de Bateson ao automatizadas a ponto de até mes- no ponto em que ambas exprimem um desconheci- mento fundamental e, mais que isso, um desconhe- cimento que se transforma em atividade, forga motriz € razao estrutural, seja do pensamento (no caso de [45] arte e midia o de Flusser). Bateson), seja da sociedade (no Somos, cada vez mais, operadores de rétulos, aperta- dores de botées, “funciondrios” das maquinas, lida- mos com situag6es programadas sem nos darmos conta delas. Pensamos que podemos escolher e, como decorréncia disso, nos imaginamos criativos e livres, mas nossa liberdade e nossa capacidade de invengao estdo restritas a um software, a um conjunto de possi- bilidades dadas a priori e que nao podemos dominar inteiramente. Esse é justamente 0 ponto em que a Filosofia de Flusser quer intervir: ela quer produzir uma reflexao densa sobre as possibilidades de criagao e liberdade numa sociedade cada vez mais progra- mada e centralizada pela tecnologia. Em termos bastante esquematicos, podemos resumir mais ou menos assim o percurso do pensa- mento de Flusser na Filosofia: a imagem fotografica nao tem nenhuma “objetividade” preliminar, nao corresponde a qualquer duplicagao automatica do mundo; ela é constituida de signos abstratos forjados pelo aparato (camera, objetiva, pelicula), pois a sua funcao fundamental é materializar conceitos cientifi- cos. Em outras palavras, 0 que vemos realmente ao contemplaras imagens produzidas por aparelhos nao é0 “mundo”, mas determinados conceitos relativos revelassem mais abertamente como resultado de um processo de codificacdo icénica de determinados conceitos cientificos. O computador permite hoje forjar imagens tao préximas da fotografia, que muita gente nao € mais capaz de distinguir entre uma ima- gem sintetizada com recursos da informatica e outra “registrada” por uma camera, S6 que, no computa- dor, tantoa “camera” que se utiliza para descrever com- plexas trajetdrias no espaco como as “objetivas” de que se langa mao para dispor de diferentes campos focais, como ainda os focos de “luz” distribuidos na cena para iluminar a paisagem, sao todos eles opera- Oes matematicas e algoritmos baseados em alguma leida fisica. Bis por que as imagens técnicas, ou seja, as representa¢Oes iconicas mediadas por aparelhos, nao podem corresponder a qualquer duplicagao inocente do mundo, porque entre elas eo mundo se interpoem os conceitos da formalizacao cientifica. Oaparelho fotografico é, portanto, uma maqui- na programada para imprimir nas superficies simb6é- licas modelos previamente inscritos. Nesse sentido, as fotografias sao atualizacoes de algumas dessas poten- cialidades inscritas no aparelho. O fotdgrafo “esco- the”, dentre as categorias disponiveis, as que Ihe pare- cem mais convenientes, mas essa “escolha” é limitada AAMAAAARARAAAMRMAABRAMRAM EI ao mundo, a despeito do aparente automatismo da pelo ntimero de categorias programadas na constru- 8 impressao do mundo na pelicula. Talvez tenha sido cao do aparelho. O universo fotografico inteiro é rea- ii S _ necessdrio esperar até o surgimento do computador e lizagdo causal, por “funcionarios da transmissao” de | i © das imagens digitais para que as imagens técnicas se algumas dessas virtualidades, mas nao cabe em seu t | ie ee artindo machado horizonte a instaura¢ao de novas categorias. Num certo sentido, nao é 0 fotégrafo quem fotografa, mas a camera (ou 0 dispositivo fotografico inteiro).“O fotdgrafo s6 pode fotografar o fotografavel’, senten- cia Flusser. “Quem contemplar o album de um fots- grafo amador’, continua ele mais frente, “estara ven- do a meméria de um aparelho, nao a de um homem. Uma viagem para a Itdlia, documentada fotografica- mente, nao registra as vivéncias, os conhecimentos, os valores do viajante. Registra os lugares onde 0 apa- relho o seduziu para apertar o gatilho.” Nao é por acaso que quase todasas fotografias da Torre Eiffel, do Big Ben, da Estatua da Liberdade ou do Pao de Actcar sio idénticas, independentemente dos valores de quem as fotografou. Para produzir novas catego- rias, nao previstas na concepgao do aparelho, seria necessario intervir no plano da propria engenharia do dispositivo, seria preciso reescrever 0 seu pro- grama, 0 que quer dizer: penetrar no interior da caixa-preta e desyela-la. Numa primeira aproximagao, Flusser adverte, portanto, sobre os perigos da atuacao puramente externa 4 caixa-preta. Na era da automagao, 0 artista, nao sendo capaz ele préprio de inventar o equipamen- to de que necessita ou de (des)programéa-lo, queda-se reduzidoaum operador deaparelhos pré-fabricados, isto é,a um funcionario do sistema produtivo que nao faz outra coisa senao cumprir possibilidades ja pre- vistas no programa, sem poder, todavia, no limite desse jogo programado, instaurar novas categorias. A repeticao indiscriminada das mesmas possibilidades conduz inevitavelmente a estereotipia, ou seja, a homogeneidade e previsibilidade dos resultados. A multiplicagao a nossa volta de modelos pré-fabrica- dos, generalizados pelo software comercial, conduz a uma impressionante padronizagao das soluges, a uma uniformidade generalizada, quando nao a uma abso- luta impessoalidade, conforme se pode constatar em muitos encontros internacionais de artes eletronicas, ondese tema impressdo de que tudo 0 que se exibe foi feito pelo mesmo designer ou pela mesma empresa de comunicacao. Se é natural ¢ até mesmo desejavel que uma maquina de lavar roupas repita sempre e inva- riavelmente a mesma operacao técnica, que é a de e lavar roupas, nao é todavia a mesma coisa que espera de aparelhos destinadosa intervirno imagin4- rio, ou de maquinas semidticas cuja fun¢ao basica é produzir bens simbdlicos destinados a inteligéncia ¢ asensibilidade do homem. A estereotipia das maqui- nas e processos técnicos é, alids, o principal desatio a ser vencido na 4rea da informatica, talvez até mesmo o seu dramatico limite, que se busca superar de todas as formas. Artemidia: a experiéncia brasileira. O Brasil apresenta uma trajet6ria de cerca de 50 anos de hist6ria no campo das poéticas tecnoldgicas. Essa histéria come- cou, nos anos 1950, com as primeiras experiéncias [49] © g S arlindo machado [50] com arte cinética por Abraham Palatnik, e na década seguinte, com osurgimento da musica eletroactstica, por iniciativa de Jorge Antunes, e a introducao do computador na arte, por Waldemar Cordeiro. Desde entao, as poéticas tecnoldgicas se definiram muito rapidamente entre nds com pelo menos duas caracte- risticas mais marcantes: 1) sintonia e sincronia como que estava sendo produzido fora do Brasil, o que dava aos brasileiros uma condicao de atualidade, quando nao até mesmo de precocidade em alguns casos espe- cificos; 2) ao mesmo tempo e paradoxalmente, uma certa diferenca de abordagem, motivada principal- mente pelo veio critico de boa parte dos trabalhos, fruto do enfrentamento de uma trdgica realidade social e de uma vida politica massacrada por uma ditadura militar, o que tornava as obras brasileiras um tanto distintivas com relacao ao que se fazia no exterior. As geragées seguintes, que enyeredaram pelos terrenos da videoarte, computer art, computer music, arte-comunicagao, holografia, poesia interse- mi6tica e intersecao arte-ciéncia (para citar apenas os campos que mais se desenvolveram no Brasil nos anos 1980 1990), um pouco mais aliviadas dos cons- trangimentos, pelo menos no campo politico, deram continuidade aos principios dos pioneiros e fizeram expandir o campo de experiéncias de modo a abarcar quase todo o universo das poéticas tecnoldgicas. Seria o caso de se indagar um pouco sobre o sig- nificado dessa precocidade e expansao qualitativa das poéticas tecnoldgicas no Brasil, fendmenos surpreen- dentes se considerarmos que poucos outros paises da América Latina (a nao ser, talvez, Argentina e México) atingiram o mesmo patamar de experiéncias.O Brasil teve a sorte de contar desde cedo com um contexto favoravel a inser¢ao do computador na criagao artis- tica, gracas primeiramente a discussao aberta aqui pela poesia concreta, ambiente de onde saiu, jana década de 1970, um dos primeiros exemplos mun- diais de poesia gerada em computador, tal como foram concebidos por Erthos Albino de Souza. Além disso, embora grande parte dos pioneiros da compu- ter art, nos anos 1960/70, tenha sido de europeus e norte-americanos — pela razao dbvia de que viviam em contextos cientificos em que a pesquisa com informatica estava mais desenvolvida—, um brasileiro ocupou lugar importante entre os inventores desse campo de criagao artistica. Trata-se de Waldemar Cordeiro, artista que, ao incorporar as imagens digi- tais ao seu trabalho, j4 era reconhecido nacional e internacionalmente, sobretudo por sua producao no campo da arte concreta. Trabalhando em conjunto com 0 fisico italiano Giorgio Moscati, Cordeiro foi importante também por ter dado uma dimensao cri- tica 4 computer art, acrescentando as imagens 0 comentario social que nao havia na produgao mun- dial. Comunista assumido e militante, Cordeiro nao promove, com suasimagens digitais, o milagre datec- nologia, mas busca uma forma diferenciada de discu- arte e midia SHSHMHAMAENMNAADAHRAANAOHRBAMMS tir, em pleno auge da ditadura militar, o desastre sociopolitico do pais. O desenvolyimento das artes computacionais no Brasil foi grandemente impulsio- nado pelo fato de Cordeiro ter organizado em Sao Paulo, em 1971, uma das primeiras conferéncias internacionais de computer art — a Arteénica — que reuniu Os nomes mais importantes nessa drea no plano mundial e colocou o pais na rota internacional do uso criativo dos computadores na arte. Durante um certo tempo, acreditamos aqui no Brasil que as tecnologias eletrénicas e digitais esta- vam introduzindo, no campo das praticas significan- tes, novos problemas de representacdo, abalando antigas certezas no plano epistemoldgico e, por con- sequéncia, exigindo a reformulagao de conceitos estéticos. Suptinhamos, entao, que as ideias que esta- vam brotando no campo das diversas engenharias e das ciéncias “puras” como a fisica ea matematica po- deriam possibilitar 4 arte reinventar-se novamente e se manter em sintonia com o seu tempo. Nessa época, ando 0 grupo que trabalhava comarte e tecnologia era ainda bastante reduzido, quando a tecnologia ea q ciéncia ainda eram consideradas intromissées mais ou menos estranhas, e até certo ponto indesejaveis, no universo estabelecido das artes oficiais, sentiamos que era preciso juntar forgas paraimplantar no Brasil, tal como j4 vinha acontecendo em outros lugares do mundo, um novo campo de intervengao estética. Além disso buscdvamos também dar legitimidade a uma pratica artistica que era vista entao com uma certa desconfianga pela ala hegemOnica da cultura. Ideias como as da videoarte, holographic art, com- puter art, web art, telepresence art, ambientes intera- tivos, instalacdes multimidia etc. foram sendo aos poucos introduzidas, desde os tempos heroicos de Abraham Palatnik e Waldemar Cordeiro, até serem reconhecidas como formas legitimas de expresso ar- tistica neste nosso periodo de generalizacao das tecno- logias, da eletronica e da informatica. Del4 para cd, muita coisa mudou.As poéticas tec- nolégicas foram perdendo seu carater marginal e quase underground para rapidamente se converterem nas nlovas formas hegemonicas da produgao artistica. Nos tiltimos anos, temos visto multiplicarem-se em todo o mundo os festivais, encontros e mostras dedica- dos exclusivamenteaexperiéncias de intersegao da arte as com a tecnologia e a ciéncia. Cada vez mais, artis Jangam mao do computador para construir suas ima- gens, musicas, textos, ambientes; 0 video é agora uma presenga quase inevitavel em qualquer instalagao. A incorporagao interativa das respostas do publico se transformou numa norma (quando nao numa mania) em qualquer proposta artistica que se pretenda atuali- zadae em sintonia com 0 estagio atual da cultura. De repente, nos damos conta de uma multipli- cacao yertiginosa, ao nosso redor, de trabalhos rea- lizados com mediagao tecnolégica pesada. Mas 0 que prometia aflorar como um petiodo intensivo de [53] arte e midia

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