Download as pdf or txt
Download as pdf or txt
You are on page 1of 127

‡&•Ė —©‚£&Ė

Ÿ¨«ԑ-வ -ն¯ŸԸ©րևவ βσ -«Էவ ՘©Ԑவ

  

Z %2.(%)Z ")%)Z

¯ਗÂ‫ڙ‬ଟ୵ୱॢவ
‫ۦږ‬வ
Ģ૦ஏĢߞĻவ ¨ÂਘߟंĻவ

¦ۧࢤஎਖߝ‫ש‬வ ?வ յॡّč?‫?ژתڗ‬வ

 

º‰ʢο͖ǧǞσ

Â>r=Ķ ¶·Ķ =Åȸ2oÃËlĢġ>Ķ

ȶ) ‫ ؛‬ȻÐϣÚ6‫ ؛‬Î


‫ ؛
 ؛‬ŝ.Iº‫ ؛‬E‫ ؛‬E8ƛ)‫؛‬ə‫ ؛)
؛‬eՐ6?
)ǡ‫ ؛‬E‫ ؛‬.\ƥȄ ¿‫ ؛& ؛‬EÎa\ž\)‫& ؛ ؛‬Hºe‫ ؛\ ؛‬V΁6aϘǟ3‫؛‬0a\))‫؛ ؛‬
ᩏ᮵ ‫࠴ࠕ࠳ܐ‬Ͷ᮵ "D¦|Ø ,p†ÎNÁ¢lØ

e‫ ؛‬ĩ\‫ ؛‬V΁63сǧ3‫̓؛‬Ҥ)ù‫= ؛‬Ķ \‫ ؛‬eŏ)=‫ ؛‬.
‫ ؛‬ǛØƥeƸ‫؛‬ìDzi ˢ
j‫؛‬+ž3‫ ؛‬aaH‫ ؛)\
؛) ؛‬q‫) ؛‬Ú‫ ؛
 ؛‬Ώi˴Ƿ)ø‫
؛‬eÂȉ
>›_—¸Ø ²Ø Zr£`r¿°Ø œC¤DØ ÂO€rSDÔÑØ Z`±»EØ ‘P¤FØ bØ |ՇmÃDØ ž¦¼Än Å`²DØ Ñ‫
؛‬ǔ ʐe6ɻ)‫!؛؛‬a
Úe‫؛‬ǕE‫؛‬ë.
$ʜĖe‫؛‬aˏq‫؛‬$‫ ؛‬Ցs3՞‫؛‬
¥`³a¦ÈG[’³Ø दল୞
‫ס‬Օ\‫ ؛‬q ‫) ؛‬Âīaö‫؛‬t\Â$$"Э‫ ؛\˗ ؛\ž  ؛‬5‫ ؛‬qĞ 6e‫ ؛‬ɔ
‫ ؛‬Hǿ‫ ؛‬a)ƥ‫؛‬
.ìˬŜ")‫ ؛‬ǿ.ƍ)8‫ ؛‬ȿκ їI
H)¤‫ ؛‬ʚH3
aī‫ " ؛‬ʚ‫)؛) ؛‬Ԃºϼ -\‫؛) ؛ ؛‬
ш eɫҥHù‫ ؛‬ŋ8a‫ ؛ )" ؛‬Ŝme‫ ؛ ؛‬a)H‫ ؛‬H3‫ ؛)
 ؛ ؛‬ÎҢ˚3nũe‫ ؛‬ԛ)žH‫؛‬
hiɍɘ7κ
‫ ؛‬.)Ė\‫ ؛‬ī‫  ؛‬Â
)=‫ ؛‬s )‫ ؛‬ǜ‫
؛‬Òae+e‫ ؛‬6$˂)‫  ؛‬ʿÚ3‫ ؛‬ƮHDŽ‫؛‬
8ÆCØ $Ø &²½`jЇwCØ #*
4A aHHu8‫؛` ؛‬ː
)‫؛‬ɽ aȄÌcũe‫ ؛‬ŎƃȄ)ø‫ ؛& ؛‬Ւ"ŢÚ\‫ž؛‬ǜƣş‫ ؛)؛‬aǜM3‫װ‬ ‫؛‬
A 2/;6Ø
Î3+ƍ )‫` ؛‬E‫؛‬ÂeaHcU ‫؛\؛‬ȼibH‫&؛  ؛‬E‫؛‬ЏĚ‫ ؛‬aa ‫ ؛‬Ȍ‫؛‬s ?
?`y`i²Ø & A -+A ୞ '$A (/A 2A
>`}aËØ *#!A %/*'2Ø ୌ᮵
ɚːc‫
؛  ؛׫‬e‫ ؛‬+‫ " ؛‬V.
Ėe͂‫؛‬
>azbkCÌØ A )#A޶ࠔ᮵/,A A
>Ķ .Ğa ‫ ؛ ؛‬E‫
؛‬ˑ
a)‫ ؛‬ȶ3ځ‫ ؛‬ȻǡĚÂa6‫ ؛‬e8‫؛‬$‫؛‬aɕȉ
>›Z´Ø ‘µØ \q¥arؽ–¶Ø \`Ø S“‚b¥VuH}vÏDÓÑ”Ø ˆ•Ø ƒa¦TDZØ Q§C·s~`r¨–Ø ©b´aªÉC\²Ø ᫙ࡸ᮵ )‫ ؛‬E8Î8‫ ؛‬³ ëEaì3‫ ؛ ؛‬eƊǧ-)ȎôE‫ ؛‬ɑӕiH‫ ؛‬ϙǬÚŜ)aʇž\‫؛  ؛‬
ƊŘHǬ‫؛)؛‬Ⱦĩ\5‫ ؛‬ɀ˫Ē)‫ ؛‬Ǜ‫؛‬+‫ ؛‬ìDzȔ" ‫؛) ؛‬°5H‫ ؛‬́H‫ ؛‬Ô .şՖ* Ю‫؛‬
)‫
\ ؛
 ؛‬ʫe‫ ؛ ؛‬$&8\‫ ؛–„ ؛‬aHqȫʇcؓ8‫ ؛
 ؛‬ȾւĞӖ)‫ ؛‬АEĩ‫˨ ؛ ؛‬çŢ ‫؛‬
¥°¥‫ ؛‬ÇʙÂ$
e‫) ؛‬՝‫ ؛‬Â)‫ ؛‬E‫ ؛‬ÖE3‫ ؛‬ȵ\a֖Ʒ‫ ؛‬NJ6ì‫ ؛‬ȴӬ\ÂңE‫؛ ؛‬ûϽ ‫؛‬
($0>78Ø )9@95$Ø 9<-3Ø = Ø Λ)‫؛‬ɀHa)ć=‫؛& ؛‬eɧՓЯ‫؛‬ȃӭH‫ ؛‬Ø֗Ŝĩ\‫ ؛‬ažHgU ‫ ؛‬ɖeª‫؛ ؛‬ǔq ‫؛ ؛‬
Éa‡r\DØ 9r–Ø «I‡UØ ࠯࠰Υ  A ·$Mɱe‫ ؛‬Ö)ʄ
Քҡ‫ ؛‬ŏMʆ")5 ‫؛‬H‫\؛‬a‫؛‬ɚ‫؛ )؛‬q‫ ؛‬ϲ͗θ̨୞ ĥǿaϚ‫ ؛‬a˂\+?
% Խ‫ޢ‬୞ ]`Ø 1J‰`rÀ›ØΥ ÞӾ୞
+IÌØ A *! *A cU=‫ ؛‬.EKÎa)\‫ ؛)
 ؛‬؁ÚȁE‫ ؛‬aŝ)HȎU‫ ؛‬ƊҦMeM؏-\ȝ‫ ؛‬$
a‫ ؛‬E‫ ؛‬Ϻ\ş).ÎŨ
A`
Ø A +"0A Ac{dÍØ A "".21A
aс‫ ؛‬īM3‫\ ؛‬ƥgU‫ ؛‬Ǜqƃ\+3‫ ؛\ ؛‬ÎHę̈‫ ؛\ ؛‬Ú ‫ ؛ ؛‬.H ̩‫ ؛‬CŲ \KƮī‫؛‬
5 ‫ ؛‬ɖ8e‫؛‬ì6Ɗǧ")ižŅ‫ ؛‬ŋ$M\‫؛‬E‫؛\؛؛‬ʫĞiʂϻ3‫؛‬$‫؛‬5‫ױ‬ô8‫" ؛‬Ȕ:ìoŎƷ‫؛‬
4a„Ö¬sDØ eØ ;Vp`^K\dØ
"›|bVÓÒ—Ø W¤ZaŠC[IØ ध঳୞ *­L†Wr´VØ !`½od‹T‘Ç£¾Ø aØ ӈ‫ޡ‬अĈ୞
:C‚E[DØ "Ū½–Ø ɐe
‫ ؛‬ϛ‫ ؛‬а ‫ ؛‬:EĖe‫ ؛‬+‫ ؛‬NJE‫Š ؛‬eĚĚԜ̈́‫ ؛‬ŝ‫ ؛‬ȴÎ /e‫ ؛‬ΫaБԏ‫ ؛ ؛‬e‫؛‬

"DŸCØ  ;%< 97&0< 1< κ ॠᥬᠹೖខ༡᮵ य़ೕᒘᥘ૙‫ܗ‬͸᮵ ঘᥕᅇ᮵ ༱ᅆඓᅈ᮵  ! $ ӇWਘؐःࢳĠ୞ #$ ‫ݿ‬᮵ ʚ|ºØ Սťଲ࡚ʏ୞ BršŽhØ
:fÈr²ÑØ 8< '$42(< /+J " D8
.EW !$% ੠েৈ޷Χ጗৉৊ߏࢫ᮵ ૚ጔጕᅎྒྷᅏ᮵ धᎽೖഊᅐጓ༢ͼ᮵ ࠗ࠘୞ ՅֻĮੴं୞ $ 
$ "
#›ƒ ˜¸tÔяØ 0 < ঃᠶᥗ࿒༠កΦ < )5)*!.+
:,< ѱˢRŻƦżƧ୞ (+ "# )+ Ž᮵ገ՗ė᮵ ඒ๋Ֆ᮵ ‫܄‬᮵ ØǂȝϝȜʑ୞ য੻ğ࡛त̩ʒ୞ ஄ᖈÉ ༡᮵঱‫־ޟ‬Ҏ୞ Þભ‫ࢴޠ੷੶ڷטח‬ऄ୞ ঄๒՜ᅔᥚඕᎾࢩͽ᮵ ጖࠵୚߼ࢪ᮵ ௃ᅓ᮵ͅ#κ
.¯¡®g´¹x™Ø ȕκ DS×RM…XŒY–Ø 36#< ᧶᪁᮵
গĖ᮵ ̧Ɂ͚¦κ
ጏࡺᥖ᮵ ு੟๎‫ܓܔܓ‬᮵ᅄ‫ͱ܈܇‬᮵ žਗ਼᮵ ++ɻΣgκ ͯՠ᮵ ΂ՠࢬ΃΄ġ֮֯΅ࢭ΄ՠ᮵ /*). -0$+,2 ᅆᒗ᮵ $+ ż᮵U F3W ધ᮵ØӓаʩӨ୞ǯȚ‹Јțʐ୞ គᥭᅑᎽᘤ՛ͻ᮵
ॲ༣ᘥᬗᠺᅒᥙᖍ᮵ ૛᪸࣡ᘦឃ๑᮵ ᒖउ᮵ Љ૙οбН̼Ѥκ୞ /V0SOT1T2HW  CKP349: ,!;W ܑĚ‫ࡹ֩֩ܒ‬᮵ ƴግͷ᪷ጎᅉ᮵ՏՐ᮵ ؏ ୞Վ᮵#$#Q*<=I5+W ֪ᅌᒙĝጒᅍ጑ᅍ᮵ %&*!'+ ้๊᮵ ࣣࡼᅕጙጚᥜཨֲֲſƀģ‫·ܩܨֳܧܦ‬᮵ ଙᅖចឆᒚഋඖ᮵
ᥛ֫‫ܠܟܞ‬Ġ֭ᖎ֬ጘង΁᮵ 3>3N?@ :A( %&W U67B<LG-W ਫ਼ęఃĘ᮵ጄΊ᮵
੡ஆऴଘ᮵ ᭔‫ܛܙ‬ƶ᮵߽Ğ‫ܚ‬᪹࣢‫ܝܜ‬ğ๓Ϳ᮵ Ƣκ
v 111 A MICRO-HISTÓRIA NOT.ti. DE APRESENTAÇÃO IX

.
l'nH'esso do cardeal Morone por Massimo Firpo, o estudo das micro­ A primeira obra de grande impacre publicada por Ginz burg ,
•• ri i r u l ações de poderes no campo religioso, como a que é proposta I Benandanti4, trata de um culto de fertilidade ainda existente no
l "'r Albano B iondi no caso de Modena, a análise cuidada dos desvios século XVI na região do Friuli, no Norte de Itália, segundo o qual
.1 nnodoxia, como a que é apresentada por Silvana Seidd Menchi os nascidos envolvidos na membrana amniórica estariam destinados
::ohrc a recepção das dourr.inas de Erasmo em Itália2• a combarer as bruxas numa batalha anual, de cujo resultado depen­
As rupturas introduzidas por Cario Ginzburg situam-se, neste deria o sucesso das colheitas. A análise dos processos instaurados
, on1 cxto, na construção de novos objectos - a feitiçaria, a meta­ pela inquisição contra estes «andarilhos do bem» demonstrou a
l lloi'Í'()se animal, os ritos de fertilidade, a cosmogonia, a iconogra- distância enrre os dois universos culturais. Com efeiro, a dificul­
l1:1 -, na pesquisa sobre paragdimas de conhecimento - a noção dade de situar este culro no sistema classificatório das heresias
dt· altO e de baixo nos séculos XVI e XVII, a emergência do pro- levou os inquisidores a formular uma acusação de bruxaria que
l ,·dimento por indícios no século XIX -, na reflexão sobre
os encontrou as maiores resistências por parte dos benandartri (afir­
mC:codos urilizados - quer na história da arte, debatend o os pres­ mavam ser justamente seus inimigos). A aculturação dos campos
st�postos de Watburg, Saxl, Panofsky ou Gombrich, quer na antro- está aqui bem expressa pelo resultado obtido ao fim de dezenas de
i ,ologia, discutindo as perspectivas de Lévi-Srra
uss, Dumé�il, anos de insistência na perseguição desta configuração cultural arcai­
WíLtgensrein ou Propp3. Uma linha condurora atravessa a mawr ca: os benandanti acabam por confessar a bruxaria de acordo com
p;trtt· dos seus trabalhos: a valorização dos fenómenos aparente- \ o modelo sugerido pelos inguisidores.
nwnte marginais, como os ritos de fertilidade, ou dos casos obscu- \ Este problema da relação entre diferentes níveis de cultura é
,
ros, protagonizados pelos pequenos e pelos exclUidos, CUJa verda- \ colocado de novo na obra li formaggio e i vermP, onde é feita a análise
deira dimensão cultural e social acaba por ser demonstrada. / de dois processos instaurados pela Inquisição a um moleiro friulano,
Domenico Scandella, dito o <<Menocchio». Os processos são extre­
mamente ricos, pois o acusado não se remete a uma posição defen­
S. Olschki,
Lelio Sozúni, Opere (edição de Antonio Rorondõ), Florença, Leo
2 siva: ele procura argumentar com o inquisidor e expõe as suas ideias
1986; Massimo Firpo, Il proceSJO ínqts ti iJ(Jf'ia/e de! cardinal Giovanni Moi'Oite (edição
de uma maneira bastante aberta. A originalidade das suas declara­
crírica), 3 vols., Roma, lsricuro Srorico Italiano per l'Età Moderna e Contempo ­
:me nel cercito­ ções está patente na cosmogonia pessoalfssima que esboça perante
canea:, 1981-84; Albano Biondí, «Lunga durara e microactico!azi1 .
rlo di un Ufficio dell'Inquisiúone: i! "Sacro Tribunale" a Modena
(1292-178 5)», o tr:ibunal: no início tudo seria caos, isto é, terra, ar, água e fogo
Annali .dell'Istituto Stm·ico Italiano-Germanico in Trento, VIII, 1982, pp.
73-90;
Silvana Seidel Menchi, Erasmo i11 ltalia, 1520-1580, Turim, Bollati
Boringhieri, • ldl'm, I Berl(mdanti. Strcgomwia e wlti agrarí tt·a CinqtJeamo e Seicento, Turim,
1987. H i 11:11111 i I 1 '){Í(),

Alguns dos ensaios de Carlo Ginzburg sobre esres problema


.l
s escão inseri- ·, l<l<•tn. lljimii;I!:J!.iO 1: i ·r;�n!li. 11 co.rnm rli 11!1 mu;:twio tlc/'500, Turim, Einaudi,
1\us na sua obra Miti, cmb!emi, spie. Morfologia e .rtoria, Turim, Einaudi, 19R6. I'' /I•.
X A MICRO-HISTÓRIA NOTA DE APRESENTAÇÃO XI

em conjunto; deste volume se fez uma massa como o queijo se faz criticou algumas das noções básicas com que tinham trabalhado as
do leite; neste processo nasceram os vermes, que eram os anjos, últimas gerações de historiadores da cultura, nomeadamente a noção
sendo Deus criado senhor entre eles com quatro capitães, Lúcifer, informe e incercl�sista de «mentalidade colectiva», a relação pas­
Miguel, Gabriel e Rafael; quando Lúcifer se quis fazer senhor à siva e de sentido único entre centro e periferia ou as perspectivas
imagem do rei, Deus mandou que fosse expulso do Céu com toda mais operacionais, mas nem pot isso menos discutíveis, de Michel
a sua ordem e companhia; então resolveu Deus fazer Adão e Eva, Foucaulc, mais atento às proibições, aos limites estabelecidos e aos
e a multidão de povo para substituir os anjos expulsos; à qual critérios de exclusão através dos quais foi construída a nossa cultu­
multidão, que não cumpria os mandamentos, enviou o seu filho, ra do que aos exdufdos e aos seus referentes culturais alternativos,
que foi preso e crucificado pelos judeus. Este é apenas um dos por vezes de otigem arcaica, como as práticas de xamanismo que
aspectos da visão do mundo de Menocchio: ele cem as suas próprias encontrou entre os benandanti do Friuli. O seu programa assenta
opiniões sobre a doutrina da Igreja, sobre o poder eclesiástico (que num paradigma <<indiciátiO» cujas origens na segunda metade do
não se cansa de criticar) e sobre a organização da sociedade. século XIX são estudadas pelo próprio autor, revelando as possibi­
Embora algumas das conclusões de Ginzburg mereçam uma ve­ lidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte Gio­
rificação mais atenta, como demonstrou recentemente Andrea Del vanni Morone, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra
Col na introdução à edição crítica dos processos em questão, onde Sigmund Fteud (todos os três formados em medicina, rendo desen­
sublinhou a dimensão maniqueia, de origem cátara, das opiniões de , volvido em diferentes campos a semiologia médica). Daí as suas
Menocchio6, não há dúvida de que o autor introduziu uma nova � incursões experimentais no estudo do mito dos lobisomens, na aná­
maneira de fazer a História que deu os seus frutos nas décadas de / lise dos códigos de figuração erótica do século XVI, ou na contex­
70 e de 80: uma abordagem que privilegia os fenómenos marginais, tualização da pintura de Piero della Francesca7•

jJ
as zonas de clivagem, as estruturas arcaicas, os conflitos entre A sua última obra, Storia notturna8, representa um ponto de
configurações socioc ulturais uma abordagem que ptocede a partir
- viragem no seu percurso. Embora o ponto de partida desta inves­
da microanálise de casos bem delimitados mas cujo escudo inten- tigação sobre as origens do mito do sabá se encontre em escudos
_
sivo revela problemas de ordem ma1s geral, que poem em causa : anteriores sobre configurações culturais subordinadas, neste caso o
ideias feiras sobre determinadas épocas (nomeadamente a impossi- )! autor abandona completamente o estudo de caso bem delimitado
bilidade de descrença no século XVI postulada por Lucien Febvre). para proceder a um vasto inquérito sobre os elementos estruturais
As consequências teóricas e metodológicas deste tipo de abor- ·
do mito (o voo nocturno das bruxas e a metamorfose animal), desde
dagem foram acentuadas pelo autor em diversos momentos, quando
7 Carlo G inzburg,lndap,ini.r11 Pü�-o. li Battesimo. I/ Cido di Arezzo. La Flage/azione
6 Andrea Del Col, Dmmmico Scande!lct detto Mmocchio. I jJYf)(:mi dell'InquiJizione di l/rbino, Turim, 1\inaudi, 1 9Hl.
(15/n J 51)9), Pordtnone, Hihliott:ca dtll'lmagint:, 1.990. 11
.. ld('lll, Stt>l'i,J !ltllfll1'11d. Uu.t t!n'iji•,tzirmc tl.el .wbbr1, Turim, Ein<tlldi, 1989.

\
XII A MICRO-HISTÓRIA NOTA DE APRESENTAÇÃO XIII

a Antiguidade Pré-Clássica ao século XIV, da Europa Ocidental ao


antropólogo. Nesra recolha procurou-se um equilíbrio entre um
Exrremo Oriente, situando-se nos estratos mais arcaicos do com­
grande esrudo de história de arte e uma série de pequenos rexros
plexo cultural euro-asiárico. Nesta sua «arqueologia» do sabá o
significativos, onde o autor realiza diversas experiências de micro­
autor mobiliza uma vasta erudição, movimentando-se com o mes­
-história ou refl.ecre profundamente sobre o estatuto do trabalho do
mo à-vontade na reinterpretação do mito de Édipo ou na reanálise
historiador.
do conto de Cinderela, identificando diversas formas de represen­
tação de fundo xamanista respeirantes à separação entre o corpo e
Memrfria e Sociedade - O.r coordenadorej
a alma, bem como as referências místicas à intersecção entre a vida
e a morre, a condição humana e a condição animal. Os resultados
estão um pouco aquém da riqueza de meios utilizados - este ripo
de inquérito coloca sempre problemas sérios de conrextualização, o
estatuto da comparação não é evidente e o pressuposto de níveis de
cultura subjacente à análise do mito do sabá já não é satisfatório -,
mas pela primeira vez o autor experimenta o cnaamenro entre a
análise morfológica e a análise histórica, num diálogo intenso com
as indicações metodológicas de Wittgenstein e de Propp.
Os textos incluídos no livro que aqui apresentamos procuram
exprimir o percurso, as preocupações e os métodos experimentados
por Ginzburg ao longo dos anos, nalguns casos em colaboração com
Enrico Castelnuovo e Carlo Poni. Nestes rexros, escolhidos pelo
próprio auror para esta edição, encontramos muitos dos problemas
que foram desenvolvidos nos livros já referidos, bem como novos
campos de investigação (os saques ríruais, as conspirações no século
XVII ou as imagens actuais da Idade Média) e uma reflexão apro­
fundada sobre questões reóricas a partir da prática de pesquisa
(onde sobressai o estudo fundamental sobre o centro e a periferia na
história de arre italiana). O estatuto da História no confronto com
as outras ciências sociais e humanas é objecto de dois importantes
estudos e a forma de construção das fontes com que os historia­
dores trabalham (� questionada no arrigo sobre! o ioqnisidor como
CAPÍTULO I

História da Arte Italiana

1. Penferia e p1·ovfncia

Periferia ou província? Talvez seja melhor falar de periferia,


termo neutro, menos carregado de implicações valorativas. Mas nem
mesmo a aparente neutralidade do termo «periferia» é isenta de
ciladas. Foi um geógrafo que escreveu, a propósito da oposição
paradigmática centro/periferia, que este segundo termo é interpre­
tado como uma «alegoria ao mesmo rempo espac.ial e política» 1•
Mas qual é o peso que corresponde a cada um destes elementos:>
Em que sistema se inserem de cada vez os dois membros, mais
complementares do que anritéricos, centro/periferia?
Esras interrogações, evidentemente cruciais pa.ra os geógrafos,
poderiam também sê-lo para os historiadores da arre2. Mas há o

1Cf. Y. Lacosce Géographie du sous-dA-eloppement e, em particular, Avertis­


,

.rement critique et autoc't'itique de la t:roisieme édition, Paris, 197 6.


2 A recente e positiva proliferação de pesquisas no terrirório - aresrada

pelas campanhas a favor do levantamento dos bens artísticos e culrurais do Ape­


nino emiliano promovidas pela Superintendência de Bolonha e pelo levanra­
menco do Apenino pistoiense por parte da Superintendência de Florença, ates­
tada ainda pelas pesquisas s obre a pintura de Seiscentos e Setecentos na Úmbria,
a cargo de uma equipa da Faculdade do Magistério em Roma, e por numerosas
exposições tais como «Arte in Calabria» (Cosenza, 1976), «Arte aGaeta>> (Gae­
ta, 1976), «Opere d'arte a Vercelli e nella sua província» (Vercelli, 1976), "Valle
di Susa, arte e sroria dall'XI ai XVIII seco lo>> (Turim, 1977)- poderá permitir
no futuro investigações mais precisas sobre as relações entre centro e periferia.
Tem faltado todavia na Itália, por muito tempo, uma reflexão e discussão sobre
os métodos, os limites e as possibilidades da geografia artística, como as que se
sucedem na Alemanha há mais de cinquenta anos. Veja-se a este respeito: X.
Gerstenberg, Idem Zfl eine�- Ktm.rtgeographie E11ropas, Leipzig, 1922; D. Frey, «Die
F.ncwiddllng nadonaler Stile in der mittelaltedichen Kunst des Abeudlandes»,
in Oalll.rih� Vim·tcljrltll:r.rd:trifl.fin· l.itere�t/11'11JÚW71.f<-'htift tlrtd GaiJte.rge1:hir.hte, XVI, 193 8,
,.

6 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAP[TULO I 7

cisco de ouvir a resposta um pouco desarmante contida nas pala­


dilema entre criatividade em sentido idealista (o espírito que sopra
vras de Lord Kenneth Clark.
onde quer) e socialismo primário. Mas um estudo deste géoero não
cem apenas uma relevância metodológica. Situada numa perspecti­
«A hisrória da arte europeia foi, em larga medida, a história
va polivalente, a relação entre centro e periferia mostrar-se-á muito
duma série de centros de cada um dos quais irradiou um estilo.
diferente da pacífica imagem delineada por Lotd Kenneth Clark.
Por um período mais ou menos longo este estilo dominou a arre
Não se trata de difusão, mas de conflito. Um conflito dececrável
do cempo, tornou-se de facro um estilo internacional, que no centro
mesmo nas situações em que a periferia parece limitar-se a seguir
era um estilo metropolitano e se rornava canto mais provincial
humildemente as .indicações do cenrro. E numa época de imperia­
quanto mais atingia a periferia. Um estilo não se desenvolve es­
lismos e subimperialismos, em que aré as garrafas de Coca-Cola se
pontaneamente numa área vasta. É a criação de um centro, de
assumem como sinal rangível de vínculos que não são apenas cul­
uma só unidade, que gera o impulso, que tanto pode ser pequeno
turais, o problema da dominação simbólica, das suas formas, das
como a Florença do século XV como a Paris antes da guerra, mas
suas possibilidades e modos de lhe fazer frente, toca-nos inevita­
- d uma metropoIe.» 3
que tem a segurança e a coesao

velmente de perto4.

Se o centro é por definição o lugar da criação artística e peri­


feria significa simplesmenre afastamento do centro, não resta senão
2. O caso italiano
considerar a periferia como sinónimo de atraso arrístico, e o jogo
está feiro. Trata-se, bem vistas as coisas, de um esquema subtil­
Para um escudo do nexo centro/periferia no campo artístico, a
menre tautológico que el.imina as dificuldades em vez de tentar
Itália revela-se um laborarório privilegiado. Por muitas razões. Anres
resolvê-las. Experimentemos antes aceirar os termos «centro» e
de mais nada, geográficas. Lembremos para já os aspecros mais
«periferia» (e as respectivas relações) na sua complexidade: geográfica,
visíveis: o alongamento da península; a relação entre o perímetro
política, económica, religiosa - e artística. Imediatamente nos
das costas e a superfície; a presença de duas cadeias de montanhas
daremos conta de que isto significa pôr o nexo entre fenómenos
- uma rtansversal, longitudinal a ourra - como os Alpes e os
artísticos e fenómeoos extra-artísticos, subtraindo-se assim ao falso
Apen.inos; a abundância de vales e de desfiladeiros. Estes elemen­
tos configuraram uma paisagem o mais possível contraditória e di­
versificada. Uma relativa facilidade de trocas com países afastados
pp. 1-74; P. Frankl, Das System der KtmsPwimnschaft, Brünn-Leipzig, 1 9 38,
pp. 893-939; H. lehmann, «Zur Problematik der Abgrenzung von Ku ns ­ foi acompanhada de comunicações raras e difíceis entre zonas in­
rlandschaften dargesrellr am Beispiel der Po E he ne », in Erdkur�dt, XV, 1961, ternas porventma muito próximas. (Ainda hoje, de resto, é mais
pp. 249-64; R. Haush eu, «Ueb erl egungen zum Sdand der Kunsrgeograp Ú�», �
in RheúJi.rche Vierteljahrsblitter, XXX, 1965, pp. 351-72; D. Frey, «GeschJchce
und Probleme der Kultur und Kunscgeogmphi e» , in Archaeologia Geogmphica, 4 É gmnde a aceitação do bin6mio centro/periferia n as ciências socta!S,
IV, 1965, pp. 90-105; as intervenções de R. Ha ushe rr, G. Von Der Osren, esrudado quer por quem, como E. Shils (Center ar�d Periphery. Essays in Macro­
P. Pieper e ourros em «Der Mi rt elrh ein als Kunsrlandschaft», in Kumt in Hes­ sociology, Chicago, 1975), deu preferência a uma espécie de ropografia de con­
sen und am Mittelrhein, 1969, Beihefr 9, pp. 38 ss.; R. Hausherr, ocKunstgeogra­ senso, quer por quem (veja-se nma resenha em N. Mckenzie, <<Cencer and
phie - Auf geben, Gremen, Moglichkeicen», in Rheinische Vierteljahrsbliiter, Pcriphery. The Marriage of Two Minds>>, in Acta Sociologica, XX, I, 1977,
1400 am
num
XXXIV, 1970, pp. 158-71; e o catálogo da exposição «Kunst um pp. 55 ss.) pôs o acento na coru1itualidade. D. Chiror, por outro lado,
Mirtelrhein», Fran kfurt , 1975, em que os problemas da geografia arcíscica são escudo recente sobre uma soci edad e periférica, a V aláqui a (Soca
i l Change in a
viscos na sua relação com as situações sociais e políricas e não dissolvidos em PerijJberiml Snâe!y. Thc C1· catior1 of a Balkan Economy, Nova Iorque, 1976), repôs
1·rn a
uma unirária e mítica Krm.rtland.schaft. discussilo aplictbilidade Jo modelo baseado na s equê ncia de fases económi­
J in The f!.nglish A.rsoâatitm PnJJidenti<il Addmr.r,
K. Clark, «Provincialism», c.l'; n>muullllc'lll'· ,tdmic·icla pl'la sncit·dadc p<;:c:iférica. Neste semi.do o problema
Lund n.:s, 1 �)' /.�, l) · �. p"dc·rut 11 11lll1�11l M<'r ll"'l" p:1r,1 .11 hi.�16ri.1 da lll'lt:.
8 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 9

fácil ir de comboio de Turim para Dijon do que de Grossero para ros, que separe as épocas e circunscreva as realizações; sem esra
Urbino.) ordem, ela (a história da pintura) degenera, como as outras, numa
Esra conrradição foi acenruada, e não esbatida, pela história da confusão de nomes mais propícia a sobrecarregar a memória do
península a parrir da Antiguidade. A existência de uma espessa que a iluminar o entendimento.»
rede de esrradas romanas e de uma quantidade excepcional de cenrros
urbanos e a fragmentação política da Itália depois da guerra greco­ Onde encontrar este fio condutor?
-gótica aumentaram, por um lado, a diversificação e, por outro, «Não se pode( ... ) imitar os naturaListas que, por exemplo, ten­
a abundância de comunicações. Desde então a produção artística do agrupado as planras em mais ou menos classes, conforme os
na Itália esrava condenada a lidar com uma forte tendência para vários sistemas de Tournefort ou de Lineu, reduzem facilmente a
o policentrismo, mas um policentrismo consciente, caracterizado cada uma das classes qualquer planta que vegete em qualquer lugar,
a maior parre das vezes ·pela multiplicidade e não pela falta de juntando a cada nome notas precisas, caracrerizadoras e definitivas.
contactos. Conractos que, de resto, eram frequenremence mais su­ Convém, para fazer uma completa história da pintura, encontrar
potrados do que desejados: basta pensar nos imperadores do Oriente um modo de si tuar rodos os estilos, por mais diferenres que sejam
e nos do Sacro Império, nos califas árabes e nos reis francos, nos uns dos outros; e para isso não soube encontrar melhor caminho
invasores húngaros e nos piratas normandos. Repensar a fisionomia do que fazer separadamenre a história de cada escola. Segui o exemplo
da produção artística italiana do ponto de vista das relações enrre de Winckelmann, óptimo artífice da história do desenho antigo,
centro e periferia- embora incidindo sobretudo na pinrura, muito que descreve tantas escolas separadamente quanras foram as
menos na esculrura e quase nada na arquiteccura - significa por­ regiões que as produziram. Nem de outro modo vejo rer feiro
tanto repensar, inreira, a história da Itália. Mr. Rollin na sua história dos povos . . . »'

Só as escolas, portanto, fornecem um critério de classificação


3. A «História" de Lanzi imune à rigidez e aos esquematismos, capaz de tornar possível
«COmpor uma história completa como a Itália deseja». A riqueza
«Na verdade», escrevia Lanzi, «a história pictonca é seme­ da história da pintura i taliana não é redutível à individuação de
lhante à literária, à civil, à sagrada.» A grande sistematização pro­ tal ou tal maneira ou à narração das biografias dos corifeus de
posta por Lanzi é, para o tipo de discurso em que estamos empe­ escola . Mas de que escolas se tratava precisamente?
nhados, um ponto de partida obrigatório: ainda que não seja senão A geografia da Itália pictórica precisou-se com lentidão na mente
porque, pela primeira vez, ele se afastou do venerando esquema de Lanzi . O projecto inicial previa dois volumes, que deveriam
centrado na biografia dos artistas para adaptar um diferenre, histórico­ corresponder à divisão feita por Plínio em Itália Superior e Itália
-geográfico, que reflectia as suas preocupações de curador da gale­ Inferior:
ria do grão-duque.
Com a sua Storia pittorica, Lanzi propunha-se explicitamente «No primeiro volume pensei incluir as escolas ( . . . ) da Itália
fornecer um equivalente da Storia de Tiraboschi: «Esta bela porção Inferior, uma vez que foi nela que as artes do Renascimento alcan-
de terra (a Itália) rem já, graças ao senhor Tiraboschi, a história
das suas letras; mas carece ainda da história das suas artes.» Isto
implicava, aos seus olhos, a definição de um critério ordenador l L. Lanzi, Sroría pittorica dell<t !talia de! t'is(ll·gimemo delle belle arti fin presso
ai fine dei XVllf s�:�:oLo, ed. por M. Capucci, 3 vols., Florença, 1968-74, I, pp. 5-
coerente e adequado à matéria:
-7 (salvo i nd icução em con r.rário, as citações de L'lnzi serão daqui em diante re­
(,·ridns :;<'111 1111Lis nadn a <:St<� <·< lição, indiwda como se segue: Lanzi, vindo
dq>t>i:. <> tllilllr'ro do volt1lll1' , . n rh1 l"l!:ina).
lO HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPI TULO I ll

çaram mais cedo a maturidade; e no segundo as escolas da Irália numa discussão que durava já mais de dois séculos. Neste lapso de
Superior, cuja gandeza surgiu mais tarde.» tempo o número de escolas reconhecidas não tinha parado de cres­
cer, ou porque centros já existentes haviam atingido uma posição
Mas só o primeiro volume foi dado à estampa, em 1792: de primeiro plano (Bolonha, Génova), ou porque a reacção muni­
.
compreendia duas escolas considerad�s principais, florentma e a � cipalista de Seiscentos procurara, no âmbito da lireratuca arrísrica,
_
romana, e depois outras duas, a de Stena e a de Napole�, constd�­ substituir por um quadro policêntrico a imagem substancialmente
radas «como adjacentes das primárias»6 Na dedicatóna a Mana

monocêntrica traçada por Vasari. A novidade trazida por Lanzi
Lufsa de Bourbon, grã-duquesa da Toscana, Lanzi informava que a consistia em ter apensado às escolas maiores uma rica constelação
elaboração do segundo volume, já adiantada, tinha sido interrom­ de escolas menores: ao todo, catorze, incluindo o Piemonte, «que,
_
pida «e não pode ser retomada tão cedo» . Mas as sucess1v�s reela­ sem ter um passado de escola tão antiga como outros Estados, tem
. �
borações, destinadas a desembocar na tercetra edtçao, de nltlva, de � no entanto outros méritos que devem ser reconhecidos para ser
1809, substituíram a bipartição inicial por uma obra ma1s ampla e incluído na história da pintura» li. Daf resultava um quadro muito
complexa, dividida em cinco volumes (mais um sexto volume de mais articulado do que os precedentes: a novidade maior era talvez

índices?. A cada volume correspondia (com uma excepçao Jmpor­ representada pelas cinco escolas (Módena, Parma, Mântua, Cremo­
tante como veremos em breve) uma das escolas principais. Esta na, Milão), com a qual era perturbada a etiqueta genérica de «escola
i
subd visão inspirava-se explicitamente naquela que tinha sido for­ lombarda>>. No entanto, tratava-se mesmo assim de um quadro
mulada por monsenhot Agucchi no início de Seiscentos - o qual, fortemente desequilibrado do ponto de vista geográfico.
,
quanto a escolas, tinha mencionado apenas quatro (lombarda, venet� , Partamos de uma consideração brutalmente quantitativa . Na
toscana e romana), decalcadas por sua vez sobre as quatro «manei­ edição da Storia pittorica de 1R09 a parte do leão cabia, como era
ras dos antigos» (ática, siciónia, asiática e roman�)R. Acerca d : de prever, às escolas maiores (excluída a lombarda, pela razão que
. .
«ordens, classes, ou seja, escolas» tinha falado GmlJO Manom, acaba de ser dita): florentina (300 pp.), véneta (293), romana (280)
prescindindo todavia de considerações de carácter geográfico, para bolonhesa (214). A uma disrância considerável seguiam-se: a de
distinguir as principais orientações estilísticas presentes em Rom� Milão (98 pp.), a de Nápoles (85); a de Génova (73); a de Siena
.
cerca de 16209. E ainda antes, em 1591, o pmtor G. B. Paggt (70), a de Ferrara (64). Mais distanciadas ainda: a de Parma (46),
tinha visto trabalhar na Itália «três famosas escolas de pintura, em a de Cremona (45), a do Piemonte (38), a de Módena (35), a de
Roma em Florença e em Veneza»; e acerca de «virtuosa escola» Mântua (25). Por outras palavras, a parte concedida aos pintores
f
tinha alado ' em meados de Seiscentos, Benvenuto Cellini10.
. . . . da Itália meridional -aquela «escola napolitana>> que, a partir do
Definindo as escolas italianas de pintura, Lanz1 msena-se po1s projecto inicial de Lanzi, figurava como apêndice da escola romana
- não ocupava mais que um vigésimo do total: 85 páginas sobre
.um total de mais de 1600.
6[dem, La stwia pittorica del/a Italia inferiore o sia d.elle SC'Iioie florentina mzese
Para explicar um desequilíbrio tão evidente convém lembrar
romana napolitalla compendiata e ridota a metodo. . . , Florença, 1792, �p� 9 e 37.
_ que Lanzi nunca se deslocou ao Reino de Nápoles nem às ilhas.
1 É nesta edição, publicada em Bassano, que se base1a a ed1çao cnuca
cic. de M. Capuccí. O seu escrúpulo de conhecedor - que o impeliu a explorar zonas
. . . .
a Cf. G. P. Bellori, Le vire de' pittwi, scultort e archztettt moderm, ed. por :Lté menos meritórias como Friuli (não fulando já de Génova ou da
E. Borea, Turim, 1976, p. 330. l.()mbardia) para poder formular a maior quantidade possível
.
9 Cf. G. Mancini, Comiderazioni sul/a pittura, ed. por A. Maucch1, Roma,
dt.' juízos em prímeit<t mão- é evidente que se deteve perante as
1956, I, pp. 1 0 8 ss.
. difinddad<:s e as fadi�as ele uma viagem ao sul de Roma. Desta si-
e
10 Cf. G. G. Borrari S. Ticozzi, Raccolta sul/a .�,�tftttra, fnttur� e
di /ettere
arcbitetlurd, VI, Milano, 1R22, p. 65; H. Ccllini, La Vita, td. por G. DaviCo
Boninn, Turim, 197��. pp. 1\M-/0. " 11111:.i, I, p, '0.
ti
,,

12 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 13


cuação de inferioridade era Lanzi o primeiro a estar consciente. No Em conclusão, o capítulo sobre a escola napolitana só toma em
intervalo entre a segunda edição .em três volumes (Bassano 1795- consideração dois centros - Nápoles e Messina. As referências aos
-96) e a terceira, definitiva (Bassano 1809), procurou ele ter acesso pintores que operavam no Reino ou fora da cidade de Nápoles
a informações mais amplas e fidedignas sobre a escola napolitana. �
( ola dell'Amatrice, Pompeo dell'Aquila, G. P. Russo da Capua,
A 13 de Junho escrevia de Bassano ao seu amigo Bartolomeo Gamba: Pretro Negroni) são escassas e demasiado genéricas. Deseja-se uma
obra sobre os pinrores siracusanos e em geral sobre a Sidlía.
«Desejaria obter de si, ou dele (o Senhor Lazara) algum bom A Sardenha e a Córsega nem sequer são lembradas.
livro sobre a pintura napolitana e siciliana mais recente; não tenho
visto nada depois de Dominici.>>12
4. História artf.rtica e distribuição geográfica
Mas estas buscas não foram bem sucedidas e Lanzi acabou por
se conformar com os atrasos da erudição pictórica meridional. A Noventa e cinco por cenro da Storia pittor
ica são, portanto, con­
sua única fonte de informação paca a escola napo!ltana continuou sagrados à Itália centro-setenrr.ional. Aqui
não falcavam a Lanzi
ser De Dominíci (Vita dei pittori... napoletani, Nápoles 1742-43), com nem um conhecimento directo das fonres
primárias nem um con­
a achega, para a Sicília, ou melhor para Messina, das Memo ri e de' junro amplo e fidedigno de fontes secun
dárias. No decurso do seu
pit tori mminesi, publicadas em Nápoles, em 1792, sob a auroria de t atado deparo -se-lhe todavia um probl
� � ema de ordem, por assim
Hackert, mas redigidas efectivamente por um erudito local, de no­ drzer, taxonómKa, que ele discutiu sobre
tudo relativamente à escola
me Grano. Lanzi quis marcar distâncias relativamente a De Dominici romana e à escola lombarda.
criticando-o com severidade: uma isolada e genérica apreciação posi­ Quanto à primeira, escrevia:
tiva adquiria um tom irónico, acompanhada que era de críticas
muito claras: «Muitas vezes vi entre amantes da pintura surgir a dúvida
se escola romana se diz por abuso dos termos ou com a mesma
«Ü recente guia, ou seja Breve deJcrizione di Napoli, deseja que propriedade com que se fala em escola florentina, bolonhesa ou vé­
houvesse nesta volumosa obra (a de De Dominici) •mais coisas, neta.»14
melhor método, menos palavras·. Pode-se acrescentar, relativamente
a alguns factos mais antigos, também melhor crírica, e relativamen­ Aqueles que em Roma tinham «ensinado,
' .
ou mesmo dado ' o
te a outr'os mais modernos, menos condescendência. No restante, com a pmtura» eram na verdade, excep
tuando Giulio Romano e
Nápoles tem para ele uma história pictórica absolutamente valio­ Sacchi, «artistas estrangeiros». Isto, aos
olhos de Lanzi, não cons­
sa, a julgar pelos juízos que apresenta sobre os artistas, ditados a tituía uma dificuldade,
maior parte das vezes por ourros artistas cujo nome inspira confian­
ça a quem lê. Se a arquitectura e a escultlJra aí estão ou não igual­ «já que em Veneza foram igualmente estrangeiros. Ticiano de
mente bem, não é este o lugar adequado para levantar a questão.»13 Cadore, Paulo de Verona, Jacob de Bassano, porque os vénetos são
considerados súbditos daquele domínio, tratando-se de um concei­
As Mernorie de'pittori messinesi, por outro lado, devem ter inspi­ to que abrange os nativos da capital ou da república. Pode dizer­
rado a Lanzi uma desconfiança ainda maior, visto que as referên­ -se o mesmo dos pontífices. Além dos nativos de Roma, vieram
cias que lhes faz estão escrupulosamente relegadas em nora. para lá mesttes de várias cidades súbditas, os quais, ensinando em

n Cf. { J. St-)1rc, /,uip.i I �mzi e ft, me: •Jf!i.�·v, Assis, I 1J0li ; T.ami, p. -iü1J.
·
11 l,a11�.i, I, p. :l'>'í. ,., 1/J/,/,,,,,, I'· .ntJ,
CAPÍTULO I 15
14 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA

Roma, continuaram a primeira sucessão e de algum modo assegu­


< Os novatenses, os vetcelenses e alguns do lago Maior (. . .) que
raram também as primeiras ditectivas. » 1 5 . �
extstuam antes da nossa época, nasceram, viveram e morreram

Pertencer ou não a uma determinada escola parece pois ligar­



sú ditos de outro Estado; e pelas novas conquistas não se tornaram
ma1s tunnenses do que Parrásio e Apeles se tornaram romanos a
-se a considerações políticas, tais como a proveniência de «cidades
partir do momento em que a Grécia passou a obedecer a Roma.
súbdi cas}> da capital. Na realidade, a posição de Lanzi é mais
Por esta azão, incluí aqueles na escola milanesa; à qual, conquan­
complexa. Por um lado, verifica-se que a exclusão, embora justi­ :
to lhe nao pertencessem por domínio, deveriam ser reconduzidos
ficável de um ponto de vista geográfico-político, acaba por ser
por educação, ou por domicílio, ou por vizinhança. Este é o méto­
formulada no terreno estilístico:
do que segui até agora, tendo como objectivo a história das escolas
de pintura e não a história dos Escados. » 18
«Muito menos incluo (em Roma) aqueles que lá viveram pra­
ticando um estilo completamente diferente, como foi, para dar um
Num caso, todavia, Lanzi vê-se obrigado a confessar que o método
exemplo, o caso de Michelangiolo da Caravaggio.»16 .
é madequado. Chegado o momento de expor «OS princípios e os
progressos da pintura na Lombardia>1, que «é a menos conhecida
Por outro lado, algumas cidades súbditas de Roma, no mo­
entre as pinturas da Itália», Lanzi faz notar que «a sua história
mento em que Lanzi escreve, tinham anteriocmento dado vida a
pictórica deveria desentolat-se segundo um método realmente di­
escolas aucónomas:
ferente do de todas as outras» . Isto deve-se à ausência de um centro

«Não faço coincidir os limites desta escola com os do estado unificador, uma capital:
eclesiástico; porque incluiria Bolonha e Ferrara e a Romanha,
cujos pintores reservei para outro tomo. Aqui agmpo com a capi­ «A escola de Florença, a de Roma, a de Veneza e de Bolonha

tal só as províncias que lhe estão mais próximas - o Lácio, a podem ser vistas como outros tantos d ramas , onde se mudam os

Sabina, o Património, a Úmbria, o Piceno, o estado de U rbino -, actos os cenários - que tais são as épocas de cada escola; mudam
;
cujos pintores foram na maior parte educados em Roma ou pelo tambem os actores - que cais são os mestres de cada novo período

menos por mestres v indos de lá.» 1 7 - mas a unidade de lugar, que é uma mesma cidade capital, con­
serva-se sempre; e os principais accores que fazem de protagonistas

Assim os dois ctirérios, o estilístico e o político, muitas vezes fi �am sempre, se não em acção, pelo menos como exemplo ( ... ). É
coincidem, porque toda a escola pressupõe um centro, que é dtferente o que se passa na história da lombardia: tendo estado

cumulativamente um centro político. Às vezes, porém, divergem, nos melhores tempos da pintura dividida em muitos mais domínios

porque exisrem centros artísticos que foram no passado centros do que agom, teve em cada Esrado uma escola diferente de todas

polfcicos e agora já o não são. Por outras palavras, a geografia as ourras e conheceu também épocas diferentes·' e se uma escola

pictórica e a geografia política da Itália, no momento em que Lanzi influiu no estilo da ourra, isso não se verificou tão exrensam.ente

escreve, nem sempre se podem sobrepor. Nestes casos o critério ou num tempo tão próximo que possa alguma época condizer com

determinante é, para Lanzi, o estilístico. Vejam-se as afirmações, muitas delas. Por isso desde o início deste livro eu renho renuncia­
do ao modo comum de falar, que diz escola lombarda como se ela
particularmente nítidas, a propósito do Piemonre:
fosse uma só.>>

•> Ibidem, p. 260.


'6 Ibidem.
'" 1/Jit!mJ, 1 1 1 , p. ' '• '• .
'7 fbiclem, p. 2(Í I .
16 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 17

Há certamente quem julgue que se poderia dar o nome de todos os outros centros das escolas lombardas por ele descritas
escola lombarda aos continuadores de Corregio, individualizando (exceptuando Cremona) tinham sido sedes de corte até a um tempo
as suas características: «Mas, limitada assim a escola, onde é que mais ou menos recente. Enfim, temos uma miríade de satélites (as
iríamos pôr os mantuanos, os milaneses, os cremonenses e tantos «cidades súbditas») gravitando, em posição subordinada, em torno
outros que, nascidos na Lombardia e aí florescendo, e sendo além dos planetas de primeira e segunda grandeza:
disso educadores de longa posteridade, merecem todavia um lugar
entre os lombardos ?»19 «É verdade que toda a capital cem o seu Estado, e por isso
A imagem habitual de um centro maior incontestado cede o devem ser lembradas as várias cidades e as vicissitudes de cada
lugar desra vez a uma imagem policêntrica. Mas a diversificação uma; mas estas encontram-se geralmente cão ligadas às da metrópole
enrre as diversas escolas lombardas, sobre a qual Lanzi insisre contra que facilmente se reduzem à mesma categoria, ou porque os arris­
o «modo comum de falat», brota das divisões políticas do passado. cas aprenderam a arre na cidade principal, ou porque aí a ensina­
A predominância atribuída às determinações estilísticas deixa entre­ ram - como se pôde ver na escola véneta - e os poucos que vão
ver um nexo, não analisado pot Lanzi, entre «história das escolas pic­ para fora em geral não alteram grandemente a unidade da escola e
tóricas» e «história dos Estados» , obnubilado pelo facto de os cen­ a continuidade dos ensinamentos.»21
tros artísticos tomados por ele em consideração terem sido também,
pelo menos num momento da sua história, centros de poder político. Bastará recordar, a este propósito, os dois casos, em cerco sen­
Em conclusão, a galáxia pictórica italiana descrira por Lanzi tido opostos, de Jacob Bassano e de Vetonese. O primeiro
apresenta-se dominada por quatro planetas mais importantes, as
«cidades capitais»: Florença, Roma, Veneza, Bolonha. Só em «era limitado de ideias, e por isso as repetia facilmente
raríssimos casos uma das «capitais» consegue tornar-se um sol, também por culpa da sua situação: é mais que certo que, aos artífices
unificando artisticamente a península toda: e escritores, as ideias surgem nas grandes metrópoles e apagam-se
nos aglomerados pequenos»22•
«Giotto foi assim um exemplo para os estudiosos durante todo
o século XIV, como depois Rafael no XVI e Carracci no seguinte; O segundo, pelo contrário, de Verona
nem consigo encontrar um quarto estilo que entre nós tenha tido
uma continuação como o destes três . »20 «passou primeiro a Vlcenza, e daí para Veneza. Era o seu
talento naturalmente nobre, elevado, magnífico, ameno, vasto; e
Mas trata-se de períodos excepcionais . Em regra, as «cidades nenhuma cidade de província podia fornecer-lhe ideias à altura do
capitais» são aquelas que conseguem impor uma hegemonia artística seu gênio tanto como Veneza»23•
dutadoira sobre as «cidades súbd.itas>> dos respectivos Estados.
Quando isto não se verifica, como no caso da Lombardia, encon­
tramo-nos perante uma constelação de planetas de segunda gran­ 5. Cidades capitais e cidades súbditas
deza. É claro que o termo «capital» é usado aqui numa acepção
artísrica, não política: em 1809, quando Lanzi dava à estampa a Poder-se-ia dizer que na Storia de Lanzi a periferia está pre­
edição revista da Storia, Milão era a capital do reino de Itália, e sente apenas como zona de sombra que faz realçar melhor a luz da

" /IJidom , ff, p. 'IH5.


19 Ibidem, II, p. 1 8 5 -86. · · 1/lirlum , p. <) 1{ .
2" Tbidem , I, p. 4.�. ··' l111dl'llt , 11. I O'> 11.

18 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 19

metrópole. Rudeza ou falta de ideias caracteriza os pintores das a cultura, que noutros tempos era acessível a poucos, a arte assume
cidades súbditas, de que Lanzi geralmente se desembaraça antes uma tonalidade nova, animada ainda pelas honras e pelo interesse.
de passar aos géneros menores da pintura. Numa das suas pouco O cosrume de expor em público as pinturas à vista da população,
frequentes formulações de carácter geral, escrevia ele, a propósito que faz justiça às boas, e por vezes, à força de apupos, faz retirar
de um pintor periférico seguidor de Maratta, Ubaldo Ricci: as mal compostas; os prémios públicos dados aos mais merecedo­
res, qualquer que seja a rerra a que pertencem, e acompanhados de
« Geralmente não ultrapassa a mediocridade: condição bastante composições de literatos e de festa pública no Capitólio; o esplen­
comum a pintores que vivem fora das capitais sem estímulos de dor dos templos sagrados adequado a uma metrópole da Cristan­
emulação e sem abundância de bons exemp los.>> 24 dade - esplendor que se alimenta das artes e que reciprocamente
faz viver as arres; as encomendas lucrativas que vêm de fora e que,
Benignidade do clima, mecenatismo, emulação, bons exemplos: pela generosidade de Pio VI ( . . . ), abundam na cidade; o continua­
são estas, segundo Lanzi, as características das metrópoles apro­ do exemplo de soberanos ( . . . ); estas coisas manrêm em perpétuo
priadas para incentivar as artes. A elas se juntam, na época mais movtmenro e em comperição louvável os arriscas e as suas esco­
» 6
recente, uma cultura artística mais d i fundida e a exisrência das las . . . 2
academias. Trata-se de um elenco tradicional, se excepruarmos os
dois últimos elementos, ligados a uma situação específica, substan­ « Honras>> e «interesse» ; «competição louvável» e «subsídios» ;
cialmente serecentista. Mas o rema da emulação entre os artisras, <cprémios públicos» e «encomendas lucrarivas» . Sobre a importân­
largamente presente na literatura anterior (pense-se em Vasari), cia das «Competições públicas» para o desenvolvimento da arte en
adquire em Lanzi implicações novas. Para as entender, releiam-se Atenas tinha-se debruçado Winckelmann naquela Storia d-el/e arti
as razões que o rinham impelido a escrever a sua Storia pittorica: de/ disegrto prmo gli antichi, explicitamente evocada por Lanzi, ou
anres tomada como modelo da Storia pittorica no que respeita à
«Todas as coisas parecem aconselhá-lo: o entusiasmo dos príncipes organização.27 Mas a referência ao « interesse» como motor do
pelas belas-artes; a compreensão destas alargada a rodo o gênero desenvolvimento arrístico não é winckelmânica. Tem-se reruado
de pessoas; o costume de viajar, a exemplo dos grandes soberanos, ligá-la à hipotérica leitura de uma obra que estamos habituados a
rornado mais comum a pessoas privadas; o tráfico das pinturas inserir numa órbita cultural muito afastada da do abade Lanzi: o
tornado um ramo de comércio importante para a Itália; a índole ESJay on the History of Civil Soáety, de Adam Ferguson (1 767). Dele
filosófica da nossa época, que em rodos os estudos abomina a apareceu em Vicenza, em 1 7 9 1 -92, uma tradução italiana - Sag­
superficialidade e exige sisrematização. » 25 gio sopra la Jtoria del/e società civile - feira a partir duma tradução
francesa anrerior e devidamente munida de uma licença de im­
As pinturas tornaram-se, portanto, um ramo do comércio: ram­ pressão passada pelo Santo Ofício veneziano.28
bém para elas valem os princípios da concorrência. Veja-se a página Os indícios de uma possível leirura desta rradução de Ferguson
que conclui a secção sobre a escola romana: por parte de Lanzi são, como veremos, exíguos. É cerco que, na

<<Assim, aumentados os subsídios, estendida a rodas as classes


26 Ibidem, p. 431-32.
21 1btd$f!J, p. 7.
211
24 Ibidem, I, p. 403. E vejam-se rambém as observações sobre Placência, nas Esca edição falca na bibliografia ordenada por M. Massi posra em apên­
quais se declara que a falra de escolas locais é posiriva para uma
cidade se­ dice. A. Fe·rguson, Sagp.io m//a !tlwia deite .rot'iettl civile, ed. por P . Salvucci, Flo­
cundária (li, p. 254). n·n<;a. I �f/:1, 'l' '�· rtgisw (p. 337) r:mduçi'í<.:s frnnté:sas , a lemãs e suecas do EJJay,
2) Ibidem, p. 4. l l l:!S l l i ' I I I I I Hllil i n d iaf]ll,
20 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 21

Staria pittarica, a impouância da concorrência é fortemente sublinha­ nação i tálica que não fosse a florentina, decaíram as acres em Sie­
da: quer no sentido de emulação entre arriscas, quer no sentido de na, não só porque estas seguem geralmente as vicissitudes civis
emulação entre conswnidores. Porque é que, por exemplo, há em das cidades, mas ainda porque dois terços dos cid adãos nessa oca­
determinados períodos concenrrações de arrisras - pinrores ou lire­ sião mudaram de terra, recusando-se a viver súbdi tos onde rinham
raros - de nível excepcional, como no «Século de Leão X » ? Lanzi nascido livres. »31
começa por dar wna resposta de tipo rradicionalmenre académico:
Na terceira edição (1 809), o mesmo passo era formulado mais
«Eu sou de opinião de que os séculos são sempre informados prudenremenre nesres termos:
de cerras máximas universalmenre aceires tanto por professores como
por diletantes; as quais, achando-se em dada época que são as mais «Veio finalmente o ano de 1 5 5 5 , em que Cosme I espoLiou os
verdadeiras e as mais jusras, formam nessa época muitíssimos Senenses da sua antiga li berdade. Eles tê-la-iam cedido com me­
professores bons e mesmo alguns extraordinários. » nos relutância a qualquer ourra nação que não fosse a florentina;
pelo que não ·é de admirar que dois terços dos cidadãos em tais
Mas a frase que se segue, d e timbre bem diverso, s e bem que circunstâncias mudassem de terra, recusando-se a viver súbditos
apresentada como um acrescento, soa anres como uma explicação de rão abominável inimigo.»32
alternadva:
Deste modo a relação liberdade/vicissitude civil/prosperidade
«Acrescento, porém, que estes séculos felizes nunca surgem se das arres, apresentada na primeira edição, era anulada. Entre as
não houver um grande número de príncipes e de particulares dis­ duas formulações tinha-se metido Napoleão, o <<novo Alexandre» ,
postos a competir na apreciação e encomenda de obras de bom ao qual Lanzi, no fim d a edição d e 1 809, prestava laconicamenre
gosto: assim se dá que fazer a muira gente; e do seu grande número homenagem.
surgem sempre certos génios que dão o rom à arre.»29 A referência, discrera mas eloquente, à liberdade rinha um rimbre
mu.iro winckelmânico. Na Storia del/e arti de/ disegno, a sua obra
Uma contraprova de tudo isro é dada, segundo Lanzi, pela maior, ele tinha escrito por exemplo que «a liberdade foi a princi­
«história da escultura em Atenas, onde a magnificência e o gosto pal fonte dos progressos da arte (grega) » . «É um princípio favorito
caminhavam a par»: a evocação imediara é, rambém aqui, a do Sr. Winckelmann», anotava a este respeiro o editor da tradução
Winckelmann - mas não se pode esquecer a página de Ferguson italiana (Roma, 1 7 8 3), C. Fea, «que a li berdade tenha tido sempre
sobre o luxo na sua relação com o progresso das arres.30 wna grande influência na perfei ção das artes; mas a reflexão e a
É claro que a insistência na pluralidade dos consumidores põe história provam mu.i.tas vezes o conttário . . . »33 Ao que parece, Lanzi
impl iciramenre um problema polírico: um principado absoluto é sentia-se nesre ponto, pelo menos em 1 792, mais próximo das
favorável ao desenvolvimento das artes do mesmo modo que uma .ideias de Winckelmann que das de Fea. Mas na referência à
república? Lanzi parece ter-se posro um problema deste género na «vicissitude civil» não se pode deixar de ver wn eco do Saggio de
primeira edição da Storia a propósito de Siena: Ferguson. No capítulo VII da III parre, intitulado «Da história
das arteS>>, lê-se:
«Depois que Cosme I espoliou os Senenses de uma liberdade
que eles .reriam cedido com menos relutância a qualquer outra ·11Cf. Lnnzi, La storia pittorir.·a d�lla ltalia infe,-iore, c.it., p. 179.
lc l1,m, T, p. 24.5.
·':'
·" J Winckelmann, Storia del/c <Mi rlcl di.reguo firmo gli antichi, Roma,
211Lanzi, I, p. 283-84.
I / H \ , 1 1 , p. I (,,j 11111:1.
"' cr. Ferg uson. S("f.gl',ili .roprrt ltt .rtrWÍ<I, di. , lT, 1>1'· 221. ss.
22 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 23

« A imaginação e a sensibilidade, o uso do intelecto e das mãos a fazer restrições no tempo e nos materiais. A atenção de Lanzi aos
não são invenções de alguns homens em particular. O estado flo­ aspectos artesanais e manuais do fazer pictórico assume neste pomo
rescente das artes ·é o sinal da interna fel icidade política de um ressonâncias singularmente modernas. Para afastar de Correggio a
povo é não uma prova de iluminações vindas de outro síri o ou de pecha t radi ci onal de avareza, ele não bes ita em quebrar visivel­
qualquer supe riori dade natural em tal entos e habilidade. » 34 mente o tom esrilísrico domi nanre da Storia para inserir uma lista
min uci osa de pagamentos, culminando com esta afirmação:
«0 estado florescente das artes é o sinal da i nterna felici dade
po lítica de um povo�> , escrevia Ferguson; «as artes ( . . . ) seguem em «Toda a sua pintura é executada ou em cobre ou em madeira
gerai as vicissitudes civis das cidades» , declarava Lanzi (antes de, ou em telas de boa qualidade, com verdadeira profusão de azul­
como vimos, ter co rrigi do rodo o passo). P·oder-se-ia conjecturar marinho, de vernizes e verdes belíssimos , com forre empastamento
que mesmo a expressão usociedade civil» - que ocorre na intro­ e contínuos retoques e a maiot parte das vezes sem tirar a mão da
dução à St�tria pittorica, na parte dedicada aos mérodos dos conhe­ obra ames de a ter acabado por complero; numa palavra, sem
cedores ( « a natureza, para segurança da sociedade civil, dá a cada nenhuma daquehis poupanças de d inhei ro ou de rempo de que
pessoa que escreve um girar de pena que dificilmente poderá fizeram uso quase todos os o ut ros . » �6
contrafazer-se ou confundir-se no e sc ri to feito por outrem») -
possa consti t uir um indício da leitura de Ferguson: sobretudo porque Sobretudo a economia de tempo, a «velocidade» , parece a Lanzi
aqui a x<sociedade civi'I» não é a comunidade humana organizada uma prática generalizada e condenável. Um excessivo número de
·da tradição aristorélica, mas, mais precisamenre, a sociedade bur­ pintores segue as pegadas de Vasari, que «a maior parre das vezes
guesa - uma sociedade fundada sobre a confiança recíproca, pro­ anrepôs a cel erid ade ao acabamento perfeiro » , reclamando-se da
ven i en re em primeiro lugar da dificuldade de falsificar as assinatu­ pi nrura condensada dos antigos: mas o passo de Plínio sobre Filo­
ras dos contratos comerciais.3� seno Ererrio - comenta Lanzi - fala de pinturas em que a velo­
cidade de execução era acompanhada de perfeição . Pelo contrário o
método moderno, baseado na « mecani zação» , no «meia bola e força>> ,
6. Concorrência e sociedade civil
«ral como é vantajoso para o artista, que assim multiplica os
Se insistimos na possibilidade, de qualquer modo não provada, seus ganhos, na mesma medida é nocivo à arte, que por esse caminho
de uma leitura de Ferguson por parte de Lanzi , é porque ela poderia cai necessariamente no maneirismo, ou seja, na adulteração do ver­
dar conta de um rema que reaparece mui tas e muitas vezes nas dadeiro»37.
páginas da Storia pittorica, e ao qual geralmente não se tem dado o
relevo que merece. A existênc i a de comp radores múltiplos, e por­ O ponto máximo é representado pelos vénetos, e em parti­

tanto de um mercado, influi, como vimos, de maneira positiva cular por Giorgione, que «desdenhou aque la minúcia que ainda

sobre a produção attfstica. Mas esta é para Lanzi apenas uma face resisria a deixar-se vencer; e substituiu-a por uma cerca liberdade,

da medalha. Ele vê de facto o risco, deplorável, de que um artista, um quase desprezo que é para ele o ponro alto da arte». E deste
para satisfazer as encomendas e bater a concorrência, se ja i mpelido mod � , trabalhando « não tanto por empastamento como a golpes
de ptncel » , os vénetos suscitaram contra si por parte dos estran­
geiros a acusação de ter cedido a
;4 Ferguson, Saggio .ropra .ta storia, cit., II, pp. 74-75.
3) 'tan�i, I, 1 5 , Sobre o conceito de «Sociedade civil» vn o vocábu lo em
"' l.ill l'l. i I T I , p. 2:�4.
M. Rddd, «'GeseHsdtafr, bmger!ichen, in Caschithtlichc Gnm,ll,tgl'([(c, {·• l . por ' 1 T.;ul'l.i , I, p. I 10 , . 1\CII.I. '2. Vcjn· s•· <�inda S. St·l'l is, «Qui mtdras
facie�
O. Br1.1nner, W. Cooze e R. Kosdkrk, 1 1 , Esttl)',:ll'<b, 1 ' >1'>, f'P · '/ I ') HOO. 1 1 1 < 1 ( l t i VI'Il , I X , l ·l t , ) � , in 1\t.·m t ' a,,,,, ,, n. �i . , X V , I ')J t l ,
1 ' 1 '· l i '/ 2 1 .
p i i l/-\ i t
HISTÓRIA D A ARTE ITALIANA CAPiTULO I 25
24

«uma rapidez que atamanca, que despreza as normas, que não outro tipo) e centros d e elaboração arrística. É com estes proble­
acaba o trabalho presente devido à ânsia de passar rapidamente a
mas (se bem que po stos em termos inevitavelmente diversos) que

outro trabalho, e ass im a outro lucro»38. nos debaremos ainda hoje.


Comecemos pe la questão geográfica. Tem sido evidenciado por
Desta acus aç ão Lanzi absolve Ticiano, de quem diz que «no vozes autorizadas que entre Qui nhentos e Setecentos, entre Tasso e
aperfeiçoamento dos seus trabalhos sabe-se que se afad gava gran­ � Metasrasio, passando por Marino e Cravina, se estabelece no âmbito

demente e que t.inha grande cuidado em esconder a fad1ga>> e tam­ da c u ltura literária italiana o pleno equilíbrio entre o Norre e o

bém Veronese, no qual a celeridade era acompanhada de « sup rem a Sul40. Recorda-se, por outro lado, quão diverso e desequilibrado
inte l ig ência » : mas critica a falta de d i Ligência de Tintoretto, os era o quadro traçado por Lanzi. É Hcito pôr a questão de saber se
quadros de Palma il Giovane, que parecem esboços devido às en­ esta distorção de que Lanzi, como vimos, estava consciente, seja de

comendas demasiado numerosas, a rapidez tornada incúria de Piaz­ atribuir por inteiro à escassez e falta de c red ibi lidade das suas

zetta, para concluir, a propósi to do cremonense Giuseppe Bottani : fontes de informação sobre a Itália meridional, e não à ausência de
indagações direc tas .

«Ü leitor pode enfim ter notado no decurso desta história que Que a pi ntura do Reino e das ilhas estej a ainda em grande

a pressa é o escolho mais funesto à reputação dos pintores. São parte por des cobri r, isso não deixa dúvidas. Igual mente não deixa
poucos os que p odem fazer depressa e bem.»39 dúvidas que a duradoira negligência da hi s toriogr afi a artística em
relação a esra parte da Itália se inscreve num complexo que se
A «Sociedade civib analisada por Rousseau e por Ferguson é a pode condensar na de sig nação de «questão merid.ionah>' í 1. E toda­

sociedade burguesa fundada na concorrência. Não se pretende carregar via - para antec ipar uma conclusão que acabará por ficar óbvia
- as desejáveis pesquisas sobre a p inru ra meridional não poderão
de implicações exces sivas uma referência isolada à «Sociedade ci­
vil>> feita por Lanzi: mas é certo que ele sublinhou quer os efeitos trazer à luz uma rede de centros artísticos comparável à do Centro
propulsores da co ncorrênc iasobre o desenvolvimento da pintura, e do Norte da Itália. Neste sentido, é lícito dizer que a distorção

quer o alastrar da «mecanização>> em prejuízo da qualidade dos constante da Storict pittorica de Lanzi reflecre substanc ial me nte uma

produtos devido à crescente comercialização da actividade artís tic a. distorção, ou melhor, aquela di sto rção que caracteriza a hi s tóri a
(não só pictóri ca) da Itália.
Falámosduma conclusão óbvia, mas a distribuição geográfi ca dos
centros artísticos iralianos não é óbvia. Valerá a pena analisá-la.
7. Os desequilfbrios territoriaiJ
Vamos considerar os cenrros artísticos italianos como uma espéci e
Esta leitura da Storia de Lanz i seguindo o fio das re laç ões entre de clube. Quais eram as condições para a inscri ção neste clube e

cenrro e per iferia fez emerg i r duas ordens de problemas ai nda não quando se fecharam as inscrições? Sem me táfora: porque é que os

resolvidos e, como veremos, in terdep end entes . Do ponto de vista


geográfico, o de seq ui líbrio entre a parte dedicada à I tália centro­ •o Cf. C. Dionisoni, «Culcw-e regionali e lecreracura nazionale in Italia», in
-setentrional e a dedicada à Itália meridional e às ilhas; do ponto Lettet'e itctliane, XXII, 1970, p. 142.
de vista historico-genético, a importância decisiva atribuída à con­ "' Cf. G. Previtali, «Teodoro d'Errico e la •questione meridionale'», in
Pmj!eiÚtJa, Outubro 1976, n.0 3, pp. 17-34; idem, na recensão de L. G. Kalby,
corrência não só entre artistas mas também entre consumidores -
<<Clnosicismo e maniera nell'ofGcina meridiona[e,, in Prospettiva, Janeiro de 1976,
e daí um nexo pouco claro enrre centros de p oder (p oLític o , ou de
n.'' 4, pp. 5 1.-54; G . Previ tali, «II Vasaü e !'Itália meridionale » , i n I/ Va1ari
1/oriogl'lljil u tlrthltt. J\Jti tM C()TJ!!,I'�.l"Jo neL IV cculcnett'Í() del/a morte (Arezz()-Firmze,
.' li .w/lr'!ltlm• 7 'l /.1 ), Flor1.' ll\''·• I <l7<í, P l' · ()<) I < )<); kiNn, I .ct piltllf<J de! CinqttecmltJ
}S Lan:z.i, II, pp. 47-48.
, f N.Jj>o/, <' /IPI ,.;,.,.."'""· ' l 't i i Í t l l , I <J'lH.
I ÓH <' .'.ll0.
19 lhidern, pp. 70, 107 , R9-90, 1 2 1 -.�). ,

li
26 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 27

centros artísticos italianos foram, histOricamente, aqueles e não ampliaram-se, cingindo-se de muralhas, e numerosas comunidades
outros? E quando (e porquê) deixaram de aparecer centros novos? saíram do estado tribal para passarem a uma vida social de tipo
Para responder será necessário partir de muiro longe. A anti­ urbano. Esras iniciativas municipais verificaram-se em rodo o Centro­
guidade e a persistência dos centros urbanos é na realidade uma -Sul, com a excepção (significativa, pelos motivos que veremos) da
das caracterísricas mais salientes da hisrória da península. Segundo faixa central, onde anteriormente tinha havido fixações etruscas: a
Sereni, numa amostra de oiro mil centros mais de um quarro (2684) Etrúria e parte da Úmbria hodierna.
vem fundado da época romana ou pré-romana, pouco menos de Mais ou menos no mesmo período foi-se realizando a coloni­
·
um rerço é fundado enrre o século VIII e o século XII, e menos de zação romana da Gália cisalpina. Também ela foi acompanhada
um oitavo no período posterior ao século XIV42. Mas este dado da fundação de centros urbanos, mas segundo modalidades muito
quantitativo, em si mesmo impressionante esconde um outro, , diferentes das praticadas no Cenrro-Sul. Não só porque o núme­
qualitativo, mais carregado de consequê ncias para a história iralia­ ro dos novos centros foi consideravelmenre menor, mas sobretudo
na, mesmo nas suas dimensões arrísticas: e é que um contrasre porque a sua fundação decorreu em conformidade com um verda­
fundamental entre os centros urbanos da península já se rinha deiro plano regulamentar, que implicava uma reorganização do
delineado no decurso do I século a.C.43. rerritório, a construção de obras hidráulicas e coisas no género44 .

De um lado, pottanto, uma espécie de «urbanização selvagem» ,


gerida isoladamente pelos munícipes; do outro, uma urbanização
8. Questões de longa duração regulamentada e planificada por Roma. Consequenremence, dife­
rentes, e diferentemente equilibradas, relações entre a cidade e o
Neste período tiveram realmente lugar dois processos paralelos campo.
mas de sentido diferenre. Após o fim da guerra social (88 a. C.), Há anos, expondo de maneira mais precisa uma velha ideia
um grande número de camponeses empobrecidos do Cenrro-Sul sua, Salvarorelli sustentou que de hisrória da Itália em senrido
tendia a abandonar os campos e deslocar-se para Roma. A classe próprio podia começar-se a falar a partir do século I a. C., e pre­
dirigenre de Roma reve por isso de ver com bons olhos as renrati­ cisamente a partir da guerra social, seguida da concessão da cida­
vas maciças de reconstrução e renovação de instalações promovidas dania romana aos itálicos4�. As considerações agora fei tas trazem
pelos municípios ex-aliados. Ainda que a hipórese de uma clarivi­ elementos ulteriores em favor desta tese. A história da I rália, rão
denre política de absorção da mão-de-obra disponível por meio da pobre em revoluções, teria portanto nascido sob o signo de uma
edilidade seja de excluir, o resultado foi de qualquer modo o de revolução meio vitoriosa.
aliviar a pressão migratória em direcção a Roma. Antigos centros Com istO não se quer dizer, evidentemente, que a quesrão
meridional tenha começado agora. É no enranto verdade que o
desequilíbrio fundamental que caracteriza a história da península
42 Cf. E. Sereni, «Agricoltura e mondo rurale>> , in Storia d'Itála i Einar•di. I,
(e sem o qual essa história teria sido diferente daq uilo que foi e é)
I caratteri origina/i Turim, 1972, pp. 176-77.
,

43 Para tudo o que vem a seguir, cf. E . Gabba, «Urbanizzazione e rlnnova­


tem as suas remaras raízes nas divergentes vicissitudes do século I
menro urbanlsríci nell'Italia cenrromeridionale de! I secolo a. c . , , in Studi clas­
sici e orienta/i, XXI, 1972, pp. 73-1 12; idem, «Considemzíoni politiche ed eco­
"" Cf. G. Tibílerci, «La romanizzazione della valle padana» , in Al'te e âviltà
nomiche sullo sviluppo urbano in italia nei secoli li e I a. C.», ·in Helleni.rmu.r
!'nllltt/UI ndl'ltttlia .rettemrio�ta/e dal/a Repubblica alia Tetran·hia,
im Mittelitalien, ed. por P . Zanker, Abh. d. Ak. d. Wiss, in Gottingen, li, Got­ Bolonha, 1964, I,
pp. 27-;16 .
tingen, 1 976, pp. 3 1 7-26; C. Violante, «Primo contributo a una sr01·ia delle
' " Cf. L Salvaco relli, Sj1iriti e jig11re de/ Risorgimmto, Florença,
istítuzioni ecclesíastiche nell'Icalia cenrrosercenrrionale durance il Medioevo: 1961, pp. 3-
\ '• ; <' t m n l 11�m, idem, «L'tanità c.Jella scori� cl'.lcal in»,
province, diocesí, sedi vescovili», in Miscellanea hi.rrorir�e �.-desia.rtkcte, V (CoJio­ in Pétn, I, 1933-34 ,
que de Varsovie . . . sue la canographic, t· rc.), T.ovaina, l ')71\ . pp. I .Ó�J• . !()IL
1' 1 ' · l'> / 7,!,

l'
28 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAPITULO I 29
a. C . As perturbações e os traumas sucessivos puderam alterar este
ginária, um meio cemitério de centros urbanos46; a
norte, uma
desequilíbrio, mas não eliminá-lo.
. . série de cidades atingidas de maneira por vezes muito
No fim da Antiguidade a rede dos centros urbanos 1tahanos grave, mas
quase nunca definitiva. Corfinium ou Marruv ium, ao contrár
apresentava pois um aspecto dúplice: no Centro-Sul (exceptuada a io de
Bolonha ou de Placência, já não iriam ressurgi r. Atrás desta
Etrúria e parte da Úmbria actual), uma malha apertada, no Norre, dico­
tomia transpatece (exceptuadas algumas divergências
na faixa que
um reticulado muito mais aberto. A resistência dos dois sectores,
abrange o Lácio setentrional e a Úmbria meridional)
já então fortemente enfraquecidos, à convulsão que se seg �u foi
que tinha vindo a acentuar-se, a partir do século I a.
a oposição
C., entre as
muitíssimo diferente. Pata ficar ciente disso basratá exammar o
fixações urbanas nas várias partes da península.
mapa das dioceses italianas no início do século VII. Como se sabe,
A sorte de Bolonha ou Placência relativamente a Corfini
um ou
as sedes episcopais coincidiam de facto com os centros urbanos: a
Marruvium explica-se naturalmente à luz da história italiana
destruição ou o despovoamento destes últimos acar eca a, ap s um
:_ �
� sequenre. Detenhamo-nos agora sobre este ponto. Tentem
sub­
os dar
lapso de rempo às vezes basranre longo, ou a transferenc1a da dHcese
� um salto de alguns séculos. Depois do Milénio , há em roda
para um centro contíguo, ou a sua supressão. P este m t1v s, a Irália
?� � ? � um resurgirrienro das cidades, mas no decurso de
um século as
um exame das dioceses suprimidas fornece uma set1e de md1caçoes
vicissitudes do Centro-Norte, por um lado, e do Sul,
pelo outro,
bastante significativas.
divergem mais uma vez. A Itália das comunidades contrap
O que logo salta aos olhos é a grandeza do fenó eno: em õe-se
ii_l uma Itália feudal. O desenvolvimento aurónomo das cidades
.
232 dioceses existentes no início do século VII, 106 (mclurndo meri­
dionais deixa de existir: Amalfi, para lembrar apenas um
caso exem­
crês incertas) foram suprimidas. Quase metade, portanto. Note-se
plar, entra em decadência. Palerma prospera e reforça-
se, mas fá-lo
que as dioceses transferidas de um centto em ruína para um centro
porque é sede de uma corte. O panorama que se ia
esboçando,
contíguo de recente fundação (de Luni para Sarzana, por exemplo,
análogo ao da Itália centro-setentrional, ricamente policên
ttico, dá
ou de Roselle para Grossero) não figuram entre as s upnm1das: o
lugar a um outro completamente diferente, caracterizado
.
quadro dos centros desaparecidos ou reduzidos a alderas
.
ass1m fie� magamento das cidades menores em detrimento das
pelo es­

aproximado por defeito. Mas, a par da grandeza �


o fenomen ,
� É costume atribuir esra viragem decisiva a facrores exógenos: a
mertópoles.

impressiona a sua distribuição geográfica. Das 106 dwceses supn­


conguisra notmanda primeiro, a dominação sueva depois.
midas, 1 5 pertenciam ao Norte, 42 ao Centro e 49 (quase metade) Mas as
explicações do tipo «invasão dos H.icsos» são sempre
simplistas. A
ao Sul e às ilhas. O reticulado urbano mais espesso revelou-se por­
geografia da Itália comunal convida antes a reflectir sobre
tanto o mais frágil. É verdade que, não obstante a mortandade o peso
dererminanre que puderam ter elementos mais profund
os e mais
ocorrida o número das dioceses meridionais continuou elevadíssimo:
antigos. A área de difusão das comunidades coincide largame

mas rrat va-se e trata-se ainda hoje, de dioceses na sua maioria nte,

:
pequeníssimas coincidentes com localidades de importância muitas
de facto, com aquela parte da lrália em que o reticulado
origem romana ou pré-romana se revelou mais resisten
urbano de
te. Trata-se,
vezes diminuta.
(:. ctrco, de uma coincidência imperfeita: se sobrepusermos
as duas
Bem diversa foi, por outro lado, a resistência que opôs o reti­ líreas, fica de fora uma faixa da Itália central, a sul da
zona Roselle
culado urbano relativamente mais aberto do Norte (e de parte do ( , rosseto)-Chiusi-Perugia-Ancona, onde todavia se desenvo
lveram
Centro). Desapareceram, é cerco, ou decaíram gravemente, ce�tros
. <·idncles comunais como Orvieco ou Virerbo Mas é precisam
. ente
costeiros ou próximos da costa, tais como Aemon1a, Aqurleta,
<:SI a faixa de não coincidência que é significativa,
porque remete
Altinum, Vicohabentia, mais expostos às invasões: mas o quadro 1 1 1 : 1 i s u rna ve'/. para uma dicotomia mais antiga:
o contraste entre
não sofreu gl obalmente modificações demasiado graves. Poder-se­
-ia com base nisto traçar uma linha que ligasse Rosel.le (ou, prefe­
"' A ('�P''' "'�•l•> c· .1,· E. Sc·sra1l (v<:ja-sc a O(H:•t
rindo, Grosseco), Cbiusi, Peru g ia, Anc.:ona. A su I desta linl�;, i r na- bihliognífica no suhcapírulo
•11 � 11 11 1 1 1 ' ),
30 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAP{TULO I 31

as duas partes da península gerado no século I a. C. Mais de mil depois destes limites pode merecer a qualificação de centro artísrico.
anos depois, aquele con rras te mostrava-se ainda actuante. Como se vê, o número dos possíveis candidatos continua a restrin­
gi r-se. Se continuarmos esra operação de apuramento, chegamos à
conclusão seguinte: as inscrições no clube dos centros artísticos
9. Deslocação dos centros artísticos italianos, abertas em princípio a rodas as sedes episcopais, fecha­
ram no fim do século XI. Findo este período, as novas sedes
Estas connadições de longo (ou longuíssimo) período têm de - quer se tratasse de Alexandria ou de Livorno, de Carpi ou de
estar presenres se quisermos compreender a deslocação geográfica Praro, de Foggia ou de Civiravecchia - encontraram as porras
dos centros artísticos italianos. Entre eles encontramos de facto trancadas.
muitos cenrros de origem romana ou pré-romana: mas isro não Até aqui temos delimitado fo rtemente as condições cronológicas
constitui uma condição necessária (e rambém não suficiente) para necessárias à admissão: mas não apurámos ainda as condições sufi­
a admissão no clube de que acima falávamos . Basra pensar em Ve­ cientes. Por ourras palavras: rodos os centros arrísticos italianos
neza ou em Fertara para perceber qu e devemos procurar noutra di­ corresponderri a outras tantas sedes episcopais existentes no fim do
cecção. Ter sido sede de diocese? Talvez esta deva ser considerada século XI; mas a recíproca não é verdadeira. Porque é que Andria,
uma condição quase necessária, na medida em que é difícil encon­ Matelica, Venosa, Taranro (para cirar alguns nomes de sedes esco­
traç um centro artístico italiano que não tenha sido também sede lhidas ao acaso) não conseguiram rornar-se centros artísticos no
episcopal. As excepções - como Saluzzo ou Fabriano, que só tar­ pleno sentido do termo?
diamente se tornaram sedes episcopais - são pouquíssimas: quan­ Aquilo que finalmente nos permite determinar as coordenadas
to aos mosteiros, rrata-se de centros sui gmeris, caracterizados pela geográficas e cronológicas dos cenrros artísticos i ralianos é a deci­
ausência de uma periferia própria. Mas não se trata com certeza de siva contraposição entre as duas Itálias - a comuna! e a feudal -

uma condição suficiente: os centros de diocese que não tiveram que surge exactamenre no decurso do século XI. Na Itália cenrro­
papel de relevo na história artística são inúmeros - desde Sarsina -setenrtional (à parte os casos srú generiJ de Veneza e, obviamente,
a Numana e às miríades de centros episcopais menores do Mezzo­ de Roma) os centros artísticos identificam-se com as cidades que
giorno. É pois no âmbito dos centros de diocese que devemos em desenvolveram uma intensa vida comunitária - rodas, sem excep­
regra procurar os centros artís ticos italianos. Mas quais os elemen­ ção, sedes episcopais48. Na Itália meridional (salvo a excepção de
tos (históricos, bem entendido, não formais) que definem esre Mess.ina), identificam-se com as cidades posteriormente sufocadas
subconjunto? pelo centralismo normando-suevo (Amalfi, Bari) e com as que foram
Avancemos por elimi nações sucessivas. Examinemos em pri­ sedes de corte (Palermo, Nápoles). A fronteira entre estas duas
meiro lugar os centros desaparecidos ou decaídos (e não mais res­ Itálias artísticas policêntrica uma, oligocêncrica a ourra - re­
-

taurados) desde o início do século VII. Enrre eles, nenhum (com a produz aquela que se formou no século I a. C. e que nunca foi
possível excepção de Aqui leia) pode ser definido como centro artístico elimi nada por vicissitudes posteriores.
em sentido próprio. O campo de pesquisa restri nge-se imediata­
mente. Passemos agora em revista as sedes episcopais insricuídas
depois do século VI I É possível identificar uma fase de intensa
.

reorganização da geografia eclesiástica i tal i ana que começa no Sul ,

a partir dos séculos XI e XII e no Cenrro-Norre a parrir dos meados '1'1 Cf.
.E. St·stan, «La ci ttit comunale italiana dei secoli XI-XIII nelle sue
do século XIV47• Todavia, nenhuma das sedes episcopais instituídas roo1c c;ttr: t l rnisdche risperro ai. movimento comttnale europeo», in XJh'" Cong,·es
llllt'IIIIIIÍIIIItl! , ;,., Sumll'r l[i.rlo1'iqttUJ, l?tt/J/101'1.1 , r n , Estocolmo 1960, pp. 75-95.
�'''' 1 .
pnrrir111iu· p . H'
'17 Vejam-se a proptis iw os volum e.� p01hl inulos d:os l<. tlimuo.r ,/r:ritll.t/'f/111.
32 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 33

10. As cid�Uks cornunais ptóptios que poderão traduzir-se em expectativas e exigências


específicas.
É claro que sublinhar a importância decisiva das cidades comu­ Trata-se, como é evidente, de uma definição o mais possível
nais no desenvolvimento da arte italiana não significa reeditar genérica - mas, ao mesmo tempo, historicamente restritiva. Com
divagações retóricas de sabor oitocentista sobre a comuna livre, efeito, não se vê como seja possível, por exemplo, encontrar uma
rústica ou não. Aquilo que conta aos nossos olhos é, acima de pluralidade de consumidores no âmbito de um mosteiro da Alta
rudo, a presença simultânea de uma série de centros urbanos com Idade Média capaz de provocar conflitos semelhantes àqueles que,
um poder comuna! e um poder episcopal, por vezes aliados, mais mesmo no campo das opções artísticas, opuseram bispo e capítulo49.
frequentemente opostos, que deram lugar a um dúplice consumo, Mas é claro que as noções de «centro» e <<periferia» têm, referidas
alternativamente laico e eclesiástico, de duração não episódica. à Europa monástica, um significado muito diferente daquele que
Em segundo lugar, a exacerbada tensão municipalista - explo­ se lhes pode atribuir nos séculos posteriores ao milênio. Além disso,
dindo na época comunal com particular violência mas destinada a a definição que apresentámos é contraditória com a noção de cen­
uma duração muito mais longa - que constitui um fortíssimo rro exclusiva�ente artístico. Só poderá ser centro artístico um centro
impulso à diversificação artística. De um lado, portanto, uma si­ de poder extra-artístico: político e/ou econômico e/ou religioso. Por
tuação de potencial concorrência no interior de cada centro; do isso a mera presença, ou mesmo a concentração de obras de arte
outro, a existência de uma situação análoga entre centros diversos. numa determinada localidade não basta para fazer desta um centro
Isto significa que nos movemos, ainda hoje, no âmbito do modelo artístico no sentido acima indicado. Os castelos, as vivendas ou os
concorrencial delineado por Lanzi . Também para nós, com efeito, santuários poderão eventualmente ser considerados projecções físicas
a presença ou a ausência de uma situação de concorrência entre ar­ locais de um poder político, econômico ou religioso situados nou­
tistas e entre consumidores é índice da existência ou da inexistên­ tra parte.
cia de uma tendência à inovação artística. Não iremos ao ponto de
identificar sem mais nada inovação e qualidade - com o que
cairíamos na tautologia das palavras de Kenneth Clark citadas 1 1 . Centros de inovação e áreaJ retardadas
no início. É fora de dúvida, porém, que as condições que tendem
a favorecer a inovação artística se verificam em regra nos referidos Se o centro tende a configurar-se como lugar de inovação artística,
centros. Os centros artísticos, na verdade, poderiam ser defini­ a periferia, correlativamente, tende a configurar-se (embora nem
dos como lugares caracterizados. pela presença de um número ra­ sempre) como lugar de atraso. É deste fenômeno - decerto o
zoável de artistas e de grupos significativos de consumidores, mais frequente nas relações entre centro e periferia - que vamos
que por motivações variadas - glorificação familiar ou individual , tentar delinear uma tipologia sumária. É possível distinguir um
desejo de hegemonia ou ânsia de salvação eterna - estão dispostos atraso plurissecular, como no caso da produção artística dita «po­
a investir em obras de arte uma parte das suas riquezas. Este últi­ pular>> , muitas vezes elaborada por camponeses para camponeses;
mo ponto implica, evidentemente, que o centro seja um lugar ao um atraso plurigeracional, como no caso de produtos executados
qual afluem quantidades consideráveis de recursos eventualmente por artistas profissionais mas para uma clientela de camponeses; e
destinados à produção artística. Além disso, poderá ser dotado de
instituições de tutela, formação e promoção de artistas, bem como
49 Veja-se, por exemplo, o que acontece em Lausana no fim do século XII,
de distribuição das obras. Por fim, terá um público muito mais
q11ando o cónq�o Encique Albus, agiado em nome do capítulo na qualidade
vasto que o dos consumidores propriamente di tos: um público não
d,• i l l t t·lldt·tlll' da eonscn tçiio, despede os mestres ehamados pelo bispo Rogério
homogêneo, certamente, mas dividido em grupos, cada um dos d•• Vi( • > piS>I>Jn: �f. M. ( ; rand jean, L�.t �·athMrrtle di: 1-"ttt.rarnw, J.al!sana, 1 8 7 7 ,
quais poder{! ter bábi tns d<' p<.:l"<:c-pr,:âo <' critérios de valori za<,Jin I •fl · 1 { ) :.:L
34 HlST6RIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 35

um atraso de poucos anos, que apesar disso é sentido como traumático que eu posso fazer?" Mas eles continuaram a espicaçá-lo com poe­
porque coincide com momentos e situações carac terizadas por súbitas mas e vilanias em público.
mudanças de gosto. Isto é, teremos respectivamente: produtos como Depois, já velho, tendo partido de Florença e regressado a
berços ou colheres decorados, leitos, arcas, tecidos de vário género, Perugia, realizou alguns frescos na Igreja de São Severo ( . . . ). Tra­
utensílios construídos pelos próprios utentess0; ciclos de frescos balhou igualmente em Montone, em Fratta e em muitos lugares
pintados por oficinas de pintores itinerantes, dedicados à decora­ do condado de Perugia.»52
ção de oratórios campestres ou de igrejas de pequenas cidades; ou
finalmente obras de pintores de renome que de um momento para Aos diversos níveis que esquematicamente dist inguimos cor­
o outro se viram postas à margem do mercado artísrico. respondem, portanto, diversos graus de viscosidade (e correlativa­
Tomemos um produto campesino, seja um utensílio ou um mente uma maior ou menor possibilidade de localização cronológica).
objecto litúrgico. As formas fundamentais baseiam-se num repertório Não será arriscado concluir que numa situação de autoconsumo
limitado (espirais, círculos, estrelas, etc., combinados de várias artístico como a dos camponeses o incentivo à inovação é pratica­
maneiras) que permanece quase imutável durante séculos, a ponto mente nulo.' Numa situação de semimonopólio como aquela em
de alguns deles parecerem remontar mesmo ao período neolítico. que trabalhavam os pintores itinerantes verceleses dos meados de
A viscosidade, a persisrência tipol�gica são neste domínio particu­ Quatrocentos podia-se fazer uso de modelos em certos casos bas­
larmente forres. Se, pelo contrário, atentarmos nos produtos das tante antigos sem correr o risco de iludir as expectativas de um
oficinas itinerantes - por exemplo aquelas equipas de artistas que público que não tinha nenhuma possibilidade de confronto. Numa
trabalhavam no Vercellese por volta de 1450-70, a que se deve situação de concorrência como a de Florença por volta de 1505, é

'I
entre outras coisas a decoração pictórica do oratório de São Betnar- a crítica exercida pelos <<novos artífices» colegas e rivais que leva
fig. 1 do em Gattinata51 -, vemos que eles retomam com variações Perugino a transferir-se da cidade (embora não definitivamente)
mínimas modelos que talvez remontem aos últimos decênios de para o condado úmbtio. Não se pode neste caso falar de «atraso
Trezentos. Como exemplo do terceiro tipo poder-se-á lembrar o periférico» em sentido próprio: mas é na periferia que o pintor é

I
que escrevia Vasari a propósito de algumas pinturas de Perugino obrigado a refugiar-se para poder continuar a trabalhar e a receber
encomendas para uma produção que no centro deixou de satisfazer.

I
para a Igreja da Santíssima Anunciada, em Florença:

«Diz-se que quando a dita obra foi mostrada rodos os novos


artistas a censuraram; e concretamente porque Pierro se tinha servido 12. Periferização e desqual�ficação
daquelas figuras que já outrora tinha posto em obra: pelo que os
seus amigos diziam, pata o provocar, que não se havia cansado e Outras vezes, inversamente, é a deslocação material das obras
que tinha abandonado o bom modo de trabalhar ou por cobiça ou do centro para a periferia - geográfica e/ou social - a deixar en­
para não gastar tempo. Aos quais Pierro respondia: "Eu pus em trever que esta última é identificada com um gosto artístico retar­
datário. Tome-se o caso do púlpito da Catedral de Cagliari, escul- fig. 2
obra as figuras que vós outrora elogiastes e que vos agradaram
infinitamente: se agora vos desagradam e não as elogiais, o que é p.ido por um mestre de nome Guglielmo entre 1 1 59 e 1 162 para
a catedral de Pisa, e transportado para a Sardenha na altura em

50 Mas muito mais frequentemente por artesãos em contacro estreito com o n Le ''/"'l'e di G. Vmm·i ron nmwe annotaúoní e C01Jm'.tnti di G. Milaneú, Flo­
próprio público. Cf. S. Orconelli, << L'arcigianaco ligneo nelle Valli Occirane r<·nça, 1 �06, Ill, p. 5H6 ss. (as outras círações das Vidas de Vasaci serão daqui
Piemoncesi», in Quadet·ni storici, 1976, n.0 3 1 , pp. 280 ss. •·m o l ianrt: rdi·ridus n esta edi.,:�o. indí<:adas do modo seguinte: Va.sari, vindo
" Oj1ere d'a1·te a Vercel/i, cir, p. ) . dq>nÍtl o� l l l o l l lt 'l'll'i do vulurne c tht página).
36 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 37

ng 3 que se i naugura em Pisa ( 1 3 1 2) o púlpito de Giovanni Pisano . não pelos governantes de Siena a quem originariamente se destina­
Uma inscrição em versos foi aposta para recordar o evento: va, mas por um público de baixo nível sociaP4• Por outras pala­
vras, pode acontecer que monumentos, alfaias e o b ras do pas sado a
«Castello Castri concexit certa altura sejam cedidas ou deitadas para um canto como peças
Virgini Matri direxit de vestuário usadas. Uma recolha sistemática deste tipo de testemu­
Me templum istud inuexit nhos seria grandemente reveladora das relações instáveis que histo­
Ciuitas Pisana. » n ricamente ocorreram entre cada centro e as respectivas periferias.
O que foi dito até aqui é quanto basta para mostrar que o
O novo público a que se destinava o púlpito era o da colônia nexo centro/periferia não pode ser visto como uma relação inva­
de Pisa estabelecida em Cagliari, no bairro da colina dominada riável entre inovação e arraso. Trata-se, pelo contrário, de uma
pelo Castelo de Castro. Nas proximidades deste, símbolo e fulcro relação móvel, sujeüa a acelerações e tensões bruscas, ligada a
do domínio pisano, tinha sido construída a nova catedral. O velho modificações políticas e sociais e não apenas artísticas. Valerá a
púlpito da catedral de Pisa devia portanto ser, para a colônia tos­ pena anaLisar a este propósito o panorama traçado por Vasari, dado
cana, como que uma venerável relíquia da rerra de origem, uma que nas Vite ele apresentou um modelo canônico, imporrante e
referência a um património cultural comum, um meio de identifi­ duradoiro, da periferia como atraso.
cação e um factor de coesão. Note-se, além disso, que na altura em
que o púlpito era transferido estava a concretizar-se uma grave
ameaça ao domínio pisano, visto q ue o pontífice tinha concedido 1 3 . Vasari
ao rei de Aragão a investidura do reino da Sardenha. Mas não
deixa de ser significativo que o reforço dos vínculos culturais com Para Vasari, a única solução para um artista nado e criado na
a mãe-párria fosse feiro com o envio de uma obra que rinha mais província é a de estabelecer contacto com o centro: só assim po­
de cento e cinquenra anos: sempre é verdade que se atribuía à derá entrar no jogo da inovação e do progresso. A vocação he­
colônia um gosto mais atrasado que o da metrópole. gemónica que era a de Florença desde os fins do século XIII virá
Outros casos do mesmo género, embora menos clamorosos, a ser assumida, a partir do segundo decênio de Quinhentos, por
mostram que esta minha interpretação não se baseia numa petição Roma. E é a Roma, impelidos por uma espécie de irresistível
de princípio. Entre Quinhentos e Setecentos, os polípticos de tropismo, que rendem a dirigir-se de qualquer parte da Itália artistas
Trezentos são retirados das mais famosas igrejas de Siena e relega­ que mais ou menos vagamente se apercebiam donde soprava o
dos para longínquos oratórios ou capelas rústicas: o de Pietro vento. Assim foi o caso de Parmigianino, que
Lorenzetti, antes no Carmine, acaba em Santo Ansano de Dofana.
Por vezes a desqualificação é mais social do que geográfica, como « desejoso de ver Roma, como que ri a aperfeiçoar-se e ouvia
...

no caso da Anunciação de Ambrogio Lorenzetti, que passa da Sala louvar muito as obras de bons mestres, particularmente as de Rafael
do Consistório do Palácio Público para «Um compartimento (... )
-ao lado da cozinha, onde os pajens costumam jantar» . Deste modo, )-i C. Brandi, La Regia Pir�t:Jcoteca di Sima, Roma, 1 9 3 3 , pp. 1 3 5 ss. Quanto
uma obra que tinha sido encomendada por Francesco, monge de ao retábulo de Carmine, cf. idem, «Ricomposizíone e res rauro della Pala de!
São Galgano, camarlengo da Biccherna, acabava por ser usufruída, Carmine di Piecro Lorenzerti», in Botletino d'a1·te, XXXIII, 1948, pp. 68 ss.
Um caso interessante de obras que se tornaram o bsoletas e foram por isso rele­
};:ldas il pcrikria é o elas <<armilas>> da coroação de Frederico Barbarroxa (hoje
H <<A cidade de Pisa construiu-me - a mim - este templo, deu-me o JH> LC>nvn.· ( ' crn NUJ:cmlwrga) que o imperador mandou dar ao grão-prínc ipe
Castelo de Castro, dedicou-me à Virgem-Mãe» : D. S<:aon, Strwir.t dell'cme in Sa1·def!,llct 1\1Hir•·l ll"!'. "lj"kky, riJI Vl,>d í rn i r: cf. A. J:\ o eh ler, ccZur Geschichte der deurs­
dctli'Xl ttl XIV Jecnln, C:agliari -S>1Ssari. 1 907, pp. :�'>:> s.s. ' i l l ' r l ) ( , . J , J , .. LJ , · r l >ndtvi l » , I n / ),,,r 11111m'lill', n ." . � / , 1 97/f., pp. 40R-9.
38 HISTÓRIA DA ARTE ITALZANA CAPITULO I 39

e de Miguel Ângelo, revelou o seu propósiro e desejo aos velhos Face às revelações romanas , arriscas já afirmados repudiam a
tios»�� . sua primeira formação e recomeçam do princípio. Também este -
o do arrisra já célebre que se torna de novo discípulo uma vez
Assim o de Niccolô Soggi, que descoberra a boa maneira - é um topos que reaparece frequence­
mence em Vasari: um exemplo notável é o de Rafael , que, rendo
. . . ouvindo dizer que em Roma se faziam grandes coisas, partiu visco o debuxo da Bataglia di Cascina de Miguel Ângelo, fez aquilo
de Florença, pensando nas aquisições artísticas e no dever de pro­ que
gredir alguma coisa . . . . »56
«um ourro que rivesse perdido a coragem, parecendo-lhe que
Ou ainda o de Píerino da Vinci, que tinha deitado fora o rempo decorrido até então, nunca teria feito,
ainda que dorado de belíssimo talento . . . »

« . . . enquanto assim se sentia, muitas vezes e a diversas pessoas


tinha ouvido falar das coisas de Roma respeicantes à arte, e exaltá­ e foi que
-las, como faz toda a gente, pelo que se acendeu nele um grande
desejo de as ver, esperando tirar proveito delas, não vendo apenas «purificando-se e desembaraçando-se da maneira de Pietro
as obras dos antigos mas também as de Miguel Ângelo, e a ele para aprender a de Miguel Ângelo, cheia de dificuldade em to­
mesmo, então vivo e residenre em Roma>> 57• dos os aspectos, de mestre se rornou quase um novo discípulo, e
com incrível aplicação se esforçou por fazer em poucos meses, sen­
Isro é igualmente válido para Giovanni da Udine, que, en­ do já homem, aquilo para que seriam necessários aquela tenra
quanto escava em Veneza com Giorgione «a aprender a arte do idade em que tudo se aprende melhor e um espaço de muitos
desenho» , anos»60.

«Ouviu tanto louvar as coisas de Miguel Ângelo e Rafael que O mesmo topos, com expressões análogas às de «purificar-se»
decidiu ir para Roma de qualquer modo» 58 . de uma formação anterior ou «de mesrre tornar-se discípulo>> , reen­
contra-se na vida de Garofalo, que, chegado a Roma,
Ou para Battista Franco, que
« . . . ficou quase desesperado, se não maravilhado, ao ver a graça
« . . . tendo-se dedicado ao desenho na sua primeira infância, foi e a vivacidade que tinham as pinturas de Rafael e a profundidade
aos vinte anos para Roma, como alguém que aspira à perfeição do desenho de Miguel Ângelo; pelo que amaldiçoava as maneiras
naquela arte; aí, depois de, com muita aplicação, se ter dedicado da Lombardia e aquela que com tanto escudo e afinco tinha apren­
ao desenho durante algum tempo e depois de ter visto os estilos dido em Mântua; e, se pudesse, de boa vontade se reria purificado
de vários, concluiu que oucra coisa não queria estudar nem imirar delas. Mas , já que outra coisa não podia fazer, decidiu tentar desa­
senão os desenhos, pinturas e esculturas de Miguel Ângelo»59. prender e, depois de tantos anos perdidos, de mestre cornar-se
Jiscípulo»61.
A maldição das maneiras da Lornbardia faz -lembrar as «blasfé­
» Vasari, V, p. 221.
mias da Lombardia» com que se encerra o Dialogo del/a língua, de
)6 Ibidem, VI, p . 18.
)7 Ibidem, p. 123.
'8 Ibidem, p. 550. 1'1
lbidlull, lV, (1. "1/ tl .
'9 Tbidt:m., p. 57 1. "' J/,,,f,,,,,, V I . l ' · 1 (1 1 .
40 HISTÓRIA DA A RTE ITALIANA CAPITULO I 41

Maquiavel, dando testemunho de uma concepção igualment� mo­ «Mas se acaso vemos nascer em qualquer província um ftuto
nocêntrica - muito mais evidente quando se repara que a v1da de que não costuma nascer lá, ficamos maravilhados; regozijamo-nos
Garofalo, nos prop6sitos de Vasari, era destinada a fazer muito mais com um bom arrisca quando o encontramos num sítio
onde não nascem homens de profissão semelhance.»66
<<uma breve recolha de todos os melhores e mais excelentes
pintores, escultores e arquitecros que nos nossos tempos tem havi­ Nem sempre é a província esta tegião desolada onde não medra
» 62 a planta dos artistas; mas quando eles aí aparecem será melhor que
do na Lombardia. . .

não fiquem lá por muito tempo, porque nela faltam exemplos,


Nem é caso único porque, falando com Vasari, Girolamo da emulação, concorrência - ou seja, alguns dos elementos funda­
Carpi meneais para o desenvolvimento da capacidade inventiva. Arezzo,
terra natal de Vasari , encontra-se nestas condições. Para Giovan
« . . .lamentou muitas vezes ter consumido a sua juventude e os Antonio Lappo!-i este é um
seus melhores anos em Ferrara e em Bolonha e não em Roma ou
noutro lugat, onde sem dúvida teria tido mais proveito»63. «lugar onde nem sequer podia aprender por si, ainda que fosse
dotado de incli nação natural»67,
Chega-se, portanto, a Roma partindo de Parma, de Flore?ça,
de Veneza ' de Mâncua ou de Ferrara; e quem, tendo-a conhec1do, nem de outro modo Montorsoli considera Perugia - estar lá
é coagido a abandoná-la, sofre profundamente, como Polidoro de não o favorecia em nada ( «não se sentia animado e não aprendia»)
Caravaggio, que, em Messina, - ou Daniele Ricciarelli considera Volterra, onde se nota

Roma que agita cons­ «não haver ( . . . ) concorrência que o impelisse a subir a mais
«ardia sempre no desejo de rever aquela
s anos quando se en- elevado nível e não haver naquela cidade obras antigas ou moder­
tantemente aqueles que lá estiveram muito
64 nas com as quais pudesse aprender alguma coisa»68.
contram noutras reg10es» ,
· -

ou como Garofalo, que, em Ferrara, Não apenas Arezzo, Perugia ou Volterra: mesmo Siena é con­
siderada uma província pouco es timulante aos olhos de Vasari, que
<<ao fazer aquelas obras, quando alguma vez se lembrava de conta como Ant6nio Sodoma
que tinha deixado Roma, sentia uma dor viva e resolvia voltat
para lá de qualquer modo»6). . « . . . não encontrando qualquer espécie de concorrência naquela
c1dade, nela trabalhava sozinho: o que, embora lhe fosse de cerra
mais afastado se possa utilidade, acabou por lhe causar dano: porque, estando como que
A imagem da província é tudo o que de
e es : imulante. Um caso adormecido, não estudou nunca}}69.
imaginar da imagem do centro, prestigiosa
Card1sco, acerca do qual
extremo é o da Calábria, párria de Marco
Vasari escreve: Da mesma opinião é Beccafumi que, ainda segundo Vasari,

62 M· ibidem, V, p. 2J. l.
Ibidem, p. 457.
M Ibidem, V ! , pp. 5 s s .
6� Ibidem, pp. 472 ss.
"' 1/lirlmt, V i l . p. 'i!l.
c.� Ihidom, V, p. 1. 5 I..
,,., //Ji,/,!111. V I , 1 '• lHO.
1'' Tllid.1mt, VI. p. tl<í�.
42 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAPITULO I
43
« . . . não tinha desejo maior que o de aprender e sabia que e m De resto, o desafio que
. encerram as obras dos gra
Siena perd1a o seu tempo» 70 , conduzem automaticamen ndes não
te à emulação. Em certos
casos o artista
«desafiado» deixa-se ficar
para rrás porque não se sen
e do mesmo modo serão consideradas Bolonha e Ferrar , no caso � cidade para tanto. Assim
te com capa­
é Franciabigio que
de Vignola ou no caso, j á citado, de Girolamo �a Carp1.
.
Trata-se de casos em que o artista - no dizer de Vasar1 - «nã o quis sair nunca de Flo
teria quase sempre tomado consciência da situação. N utras partes � obras de Rafael de Urb
rença; porque tendo visto
algumas
ino , e parece ndo-lhe que
ele limita-se a observar que o artífice de que fala, se nvesse a s­ ?� brear com tão grande homem
não podia om­
. nem com muitos outros de
sibilidade de sair da sua província, teria feito coisa s ex:traord 1 n r as �� nom e, não se quis pôr em grandíssim o
. confronto com artistas tão
(impossíveis a quem permaneça na periferia). Ass1m é a proposrto tão raros» 74. excelentes e
de Luca de Longhi que
Ou Morto da Feltre, que
teria tido a intenção de aba
pin turas grutescas, que eram ndonar as

«Se tivesse saído de Ravena ( . . . ) teria um sucesso rarrss1m0»71 , a sua especialidade, para
se dedicar à
/

pintura figurativa:

ou de um grupo de escultores lombardos que ficaram aqué � �as «E quando tinha este des
suas possibilidades precisamente porque trabalharam em M1lao. ejo, sabendo do renome
arte Leonardo e Miguel Âng que nessa
elo tinh am adquirido em
Florença com
os seus debux:os, imediatam
« . . . Mas se houvesse nesse lugar o estudo das artes, q e há em � vendo as obras, não lhe par
ente se pôs a caminho de
Florença; e,
Roma e em Florença, estes grandes homens teriam feuo co1sas . eceu que pudesse atin gir
o mesmo grau
de perfeição que na profiss
estupendas.»72 ão anrerior tinha atingido:
a trabalhar nas suas pin tura por isso voltou
s grutescas. » 75
Particularmente difícil de admitir por Vasari é o caso de quem
Outros não renunciam, mas
deli beradamente não se move, como Cola deU' Amatrice, provin­ protelam o confronto, com
no da Vinci que o Pieri­
cial voluntário:

« foi, portanto, acompanh


« .. . o qual, sem se preocupar em ver Roma ou mudar de sítio, ado de alguns amigos, e
Rom a e tud o o que desejav tendo vist o
ficou sempre em Ascoli», a, voltou para Florença; pen
as coisas de Roma eram aind san do bem ,
a demasiado profundas par
viam ser vistas e imi tada a ele, e de­
quando é cerro que s não assi m, nos com eço
s, ma s após um
maior estudo da arte» 76•

«ele só teria feiro coisas apreciáveis se a sua arte fosse pratica­


A em ulação entre artistas
da em lugares em que a concorrência e a e � ulação o obrigassem a expectativas do púb lico
e os estímulos que possam
vir das
dedicar-se mais ao estudo da pintura e a exerCitar aquele belo engenho são, para Vasari, molas fun
damentais do
progresso artístic o. Ora, a
de que a natureza visivelmente o dotara>>73. falta de elementos de con
fronto e o fácil
contentamento do público
fazem com que os artistas
na província
sejam menos esti mulados.
70 Ibidem, V, p. 634. É o que acontece a Donatello, em Pád
ua:
71 Ibidem, VII, p. 420.
72 Ibidem, VI, p. 5 1 7 . 7� Ibidem, p. I 9H.
·
7)
Ibidem, V , pp. 2 1 4- 1 5 . Mas veja-se r . Zerí, "I�� $O!Ti� an.t�dllS$1Ca · d I' 11 IIJi!fqm, p. 2<>1.
Cola dell' Amacrin· ... , i n Dirwi di l.tJv/lro , l-lf.r.V.IIJ11o, 1 1) 7 1 , Pl'· 7-1 11' iiJidtwl, V I , p. 1 .' \ ,
�.-.
CAPiTULO I 45
44 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA

«. . vendo pouco estimado o seu engenho, decidiu afastar-se


«. . . senrindo-se maravilhosamente aqui e sendo louvado por todas
.

daqueles que tinham em melhoc conta um cavalo que saltasse do


as pessoas entendidas, deliberou voltar para Florença, dizendo que,
que alguém que com as suas mãos fizesse parecerem vivas as figu�
se ali esrivesse mais tempo, teria esquecido tudo o que sabia, pelo
ras pintadas»81•
facro de ser cão louvado por todos; e que de boa vonrade voltava à
sua terra onde viria a ser continuamente criticado - crítica essa
O caso de Nápoles é apresentado como um caso limite mas
que lhe daria motivações para estudo e consequentemente para
uma glória maior»77.
também a Roma quarrocentista, com os seus avultados i n estí­ �
mentos artísticos, parece a Vasari a expressão de um gosto atrasa­
do e periférico:
Donatello sabia, segundo Vasari, que em Pádua lhe faltava o
estímulo da crítica; outros não se davam conta disso, como Sodo­
ma em Siena, que, sem concorrência, vivia adormecido, ou como «Se o Papa Eugénio IV, quando deliberou fazer de bronze a

os emilianos Barrolomeo da Bagnacavallo, Amico Aspertini, Giro­ porta de São Pedro em Roma, se tivesse preocupado em enconrrar
homens excelentes para aquele trabalho, como no seu tempo facil­
lama da Corrignola e Inocenzo da Imola, que
mente poderia ter feito - sendo vivos Filippo di Ser Brunellesco,
« . . . não se interessaram pelas engenhosas particularidades da arte Do �atello e outros artistas distintos - não teria sido aquela obra
como é devido. Mas como em Bolonha naqueles tempos não havia real1zada de tão infeliz maneira, como se pode ver nos nossos tempos .
pintores que soubessem mais do que eles, eram considerados os Mas talvez se passasse com ele o que costuma passar-se com uma
melhores mestres da Itália pelos governantes e populações daquela boa parte dos príncipes, que ou não são entendidos em obras de
cidade»78• arre ou têm por elas pouquíssimo interesse. Mas se considerassem
a importância que tem o estimar nas coisas públicas as pessoas
Nem é diferente a sorte de Marco Cardisco em Nápoles, excelentes por causa da fama que se lhes deixa, não seriam cerra­
mente tão desleixados, nem eles nem os seus ministros; porque
nto entre os artífices
«pois que não havendo emulação nem confro quem se entrega a artistas rudes e inaptos dá pouca vida às obras
s senhores e das suas alé � de
da pintura ' foi sempre adorado por aquele e à fama; que assim se causa injúria ao público e à época
entos c l1orudos» 79 .
coisas fez-se sempre recompensar com pagam em que se v1veu, fazendo acreditar a quem vem depois que se
naquela época tivessem existido melhores mestres, aquele príncipe
A função exercida pelos consumidores é assim estrategicamente ter-se-Ia servido deles e não dos inaptos e rudes . , 82
decisiva. E do consumo napolitano apresenta Vasari, na vida de
Polidoro, uma imagem bem mais negativa do que aquela que acaba O estigma de provincianismo mostra-se parric ularmenre evi­
de ser dada. Depois de rer chegado a Nápoles, Polidoro dente num papa como Sisro IV, alvo tradicional da polémica cul­
tural florentina. Segundo Vasari, o pontífice, preferindo Cosme Roselli
«sendo aqueles fidalgos pouco curiosos das coisas excelentes da a Boticelli, a Guirlandaio, a Signorelli, a Perugino, reria revelado
pintura, esteve quase a morrer de fome» ,80 a sua incompetência pessoal, mostrando preferir as cores caras e
vistosas de Cosme às engenhosas criações dos outros,
pelo que
«porque aquelas cores, tal como Cosme tinha previsto, logo
77 Ibidem, II, p. 413.
IR Ibidem, V, p. 177.
'" ibirkm, p. I 'i I
79 Ibidem, p. 2 1. 2 .
" ' 1/Ji./�J/1, 1 1 , I 'J•. h \ -��.
"'' Ibidnm, p. I �O.
HISTÓRIA DA A R TE lTALIANA CAPITULO l 47
46

deslumbraram de tal maneira os olhos do papa - não muito en­ a um ambiente retardado - para Vasari, bem entendido - como
tendido nestas coisas embora bastante se delei tasse com elas - era o da Roma quatrocenrisra. Periferia social e periferia geográfica,
que não hesitou em concluir que Cosme tinha trabalhado melhor ma1s uma vez, sobrepõem-se.
que rodos os ourros. E, tendo mandado dar-lhe o prémio, ordenou
aos outros que rodos cobrissem as suas pinturas com os melhores
azuis que encontrassem e as debruassem a ouro, para que fossem 14. Fim do policentri.rmo e nascimento d,a « terceira via»
semelhantes às de Cosme em colorido e em riqueza. E assim os
pobres pintores, desesperados por terem de contentar a pouca inte­ Radical, portanto, a operação realizada por Vasari. Uma situa­
ligência do Padre Sanro, se puseram a estragar tudo o que tinham ção como aquela que estava então a aparecer na Toscana - um es­
feito de bom»8�. tado absoluto com base regional, caracterizado pela subordinação e
espoliação dos vários centros em benefício da capital - era projec­
Para entender bem este passo, será oportuno lembrar uma outra rada no passado:. o papel de Siena ou de Pisa era diminuído, o de
anedota, que Vasari inseriu na vida de Miguel Angelo a propósito Pistóia, Volretra ou Luca elimi nado, salvando-se Arezzo por cari­
de Menighella, dade pata com a tetra natal. Mas esta projecção do presente no
passado ou, se se quiser, esta adequação (que era afinal uma defor­
«pintor rude e desajeitado de Valdarno, pessoa divertidíssima, mação) do passado ao presente não se tinha limitado como vimos
que vinha por vezes a Miguel Ângelo a pedir que lhe fizesse um à Toscana. À ;
distância de alguns decénios, Vasari ex raía a súmul �
desenho de São Rogue ou de Santo Antônio para ele o pintar aos de um processo que, no início de Quinhentos, tinha provocado
camponeses. Miguel Ângelo, que se fazia rogado em trabalhar para uma dúplice ruptura, política e artística, na história da península,
os reis, punha de lado todos os trabalhos e fazia-lhe desenhos simples, reduzindo drasticamente o policentrismo anterior em benefício de
acomodados à maneira e preferências de Manighella: e, entre ou­ poucos centros que estavam em condições de poder conservar uma
tros, mandou-lhe fazer um modelo de Crucifixo, que era belíssimo, certa autonomia. Os anos do início de Quinhentos, que, como se
por cima do qual abriu um buraco, e com ele fazia quadros e sabe, vêem a súbita periferização de Perugino, coagido a abando­
outras combinações e ia vendê-los ao campo, de modo que Miguel nar Florença devido às polémicas dos «novos artífices», são anos
Ângelo fartava-se de rir; principalmente quando apareciam belos decisivos, em que está a nascer e já a impor-se um novo paradig­
casos como o de um camponês, que mandou pintar São Francisco ma, «a terceira via que nós » , escreve Vasari, «queremos denomi­
e, não gostando da veste parda que Menighella pintou, e que ele nar moderna» : a de Leonardo , de Giorgione, do «graciosíssimo
queria de mais bela cor, Menighella pôs às costas de São Francisco Rafael de Urbino» e do «divino Miguel Ângelo Buonarroti>>, que
uma capa de asperges de brocado e assim o contenrou»84. «entre os monos e os vivos tem a palma e os transcende e obs­
curece a todos>>. A «terrível» variedade e a riqueza da «terceira
O passo tem um evidente valor de topos, embora a existência via» faz de repente parecer antiquada aquela <<beleza nova e mais
de Menighella esreja averiguada. Mas não é isto o que interessa viva» que tinham começado a usar o bolonhês Francia e Perugino,
aqui. Importa ames notar que aos olhos de Vasari os gostos da e mostra «O erro» daqueles que <<ao vê-la se puseram a correr
clientela campesina de Menighella, que encomenda quadros com como loucos ( . . . ), parecendo-lhes que nunca mais se pudesse fazer
os santos típicos da devoção rural, coincidem com as predilecções melhor» .85
de um papa como Sisro IV, de cultura e formação fradesca, Ugado Estava precisamente a impor-se a «terceira via>> acompanhan­
do um processo de reestruturação da geografia artística i taliana -
8·1
Ibidem, III, p . 1 89.
' 11!/tlmJ, IV, I'P· I I · J \
M 1/;itlam, vn, p. 2H2.
CAPITULO I 49
48 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
Jacopo Siculo, em 1 5 4 1 , para a Igreja da Anunciada, perto de
processo que Vasari regista e contribui para acentuar projecran­
Norcia87•
do-o no passado.
Um outro fenómeno característico é a constituição de dinastias
locais, particularmente observável a partir da segunda metade do
século XV. O mecanismo parece ser mais ou menos o seguinte. A
15. Um caso exemplar: a Úmbria
prindpio há a consti tuição de uma oficina familiar na qual traba­
lham pai e filhos. Os produtos desta oficina são acima de tudo
Sigamos este processo através de um caso exemplar - o da
bastante acrualizados e apoiam-se em fórmulas e esquemas recen­
Úmbria. Centros como Perugia, Gubbio, Foligno, Todi, Assis,
tes que desfrutam de um grande sucesso. O chefe da oficina pode
Monrefalco, Spoleto, Orvieto, que entre Duzentos e Quatrocentos
ter uma experiência bastante vasta devida a viagens, a uma forma­
tinham tido uma produção arrísrica complexa e diversificada, fo­
ção fora da terra ou a uma aprendizagem junto de um pintor fo­
ram durante muito tempo vitimas da óptica cenrralizadora de Vasari,
rasteiro trabalhando naquele lugar. Assim a estada em Norcia de
a tal ponto que só a partir de alguns decênios atrás a pintura da
Niccolà da Siena pôde influenciar o aparecimento dos Sparapane
Úmbria anterior a Perugino se tornou objecto de análises espedficas86.
ou de Domenico da Leonessa88. A dinastia dos Sparapane começa a
Mas no decurso do século XVI este panorama t-ão variado tende
sua carreira pintando na .iconostase da Igreja de São Salvador, em
cada vez mais para a uniformidade e para a repetição. A inovação
Camp.i (perto de Norcia), a Madmw co! Bambino, smlti e storie delta
parece ter-se tornado privilégio e característica de poucos centros
·t;ita di Cristo, deixando-nos data e autoria: «Isto pintou Johani de
maiores.
Spa �·apane e o seu filho António da Norcia em 1464.» Depois, a
Um elemento significativo desta situação é a fidelidade a uma .
utürzação dos cartões e do repertório formal do mestre torna-se o
ng. 4 fórmula. Veja-se o futuro de um quadro como a Coroação da Vir­
gem, de Domenico Ghirlandaio. Pintado em 1486 para os Obser­

hab rual moclus operandi da oficina, segundo um procedimento que
podJa assegur�r a sobrevivência de certos esquemas mesmo através
vantes de São Jer6nimo, perto de Narni, é imitado mais vezes por
de gerações. E precisamente o caso dos Sparapane de Norcia ou
fig. s vontade expressa dos interessados: na Coroação da Virgem da Igreja
dos Angelucci de Mevale89. A medida que o tempo passa alarga-se
dos Reformados de Montesanro, em Todi, que Spagna se empe­
nhara em fazer «pictam de aura cum coloribus et ali.is rebus ad
speci.em et similitudinem tabulae factae in Ecc. Sancti Jeronymi 87 G. B. Cavalcaselle e ]. A. Crowe, Storia del/a pittm·a in lfalia, X, Floren­

ng. 6 de Narnia» , e que foi acabada em 1 5 1 1 ; na Coroação pintada pelo ça, 1908, pp. 83 ss., noca 3, e p. 117, nora 1 .
88 B. Toscano , «Barrolomeo di Tomaso e Nícola da Siena», i n C(Jffm/Qttari,
mesmo Spagna para os franciscanos de Trevi.; e na que foi feita por
XV, o. s., 1964, pp. 37-51; ver também G. Chelazzi Dini, <<Lorem.o Vecchiec­
ra, Priamo della Quereia, Nicola da Siena», in ]acopo del/a Quercia tra Gotico e
Rinasámento, Florença, 197 6, pp. 203 ss. Sobre o arranjo de um sistema de
86 P ri mi­
Cf. B . Toscano, ,,La forruna della pirrura nmbra e il silenzio sui fórmnlas esrilísricas por parte de cercos mesrres da província, sobre a sua crista­
rivi » , in Pa1·agom , XVII, Março 1966, n.0 193, pp. 3 ss. Não prerende ndo dar
longa, dos esrudos receares sobre lização e subsequeme abandono no sentido de novas actualizações, vejam-se as
uma bibliografia exaustiva, que seria basrante obsetvações de F. Zeri a propósito de nm aoó ni mo pinror úmbrio de Quarro­
rraça­
a pintura trecenrista da Ú mbria, será oportuno lembrar que, no caminho cencos, o Mesrre de Eggi, in «Tre Argomeoci Umbri », in BoilettirJo d'm·te, XLVIII,
culrura fi­
do pela nova abertura com que R. Longhi enfrenrou o problema da 1963, pp. 40-45.
(cf. «La pitcu­
gurariva úmbria daquele período no curso florentino de 1953-54 89 A. Morioi, «Cascia. Chiesa delie Capaooe in Collegiacone», in Ra.uegna
metà del Trecenr o artcaver so le dispens e redatre da Miua
ra umbra della prima d'ttrte, IX, 1909, pp. 173-74; G. Sordíni, «Gli Sparapaoe da Norcia. Nuovi
Paragone, XXIV,
Gregori dei corso di Roberro Longhi nell'anno 1953-54 >>, in dipinti e nuovi clocumenri», in Boliettino d'arte, IV, 1910, pp. 17-28; A. Morini
281-83, pp. 3 ss.), rem havido nos úlcimos anos
Julho-Serembro, 1973, n.0 c P. Pirrí, <<Una sc on os ci u m dinastia di acristi umbri», in Arte e s torit�- , 1911 e
mais densas, par.ticula rmente por pane d<! M. [loskovJts,
interven ções cada vez
'1 '> 1 2 ; P. Pírri, uDi un� r!�•dizionc pit mrica in Norcia», ibidem, 1914, pp. 5 2 1 -
, C. Volp\', F. /.1.•r i , wa<.:<�S
P. P. Donari, G. Prev i cal i , U . Scurpc l l i n i , H. 'J'o�<.:nno
.:! 'J; ( Vn; o n i , <t( ; l i ;�ll l·(·�· h i <Jilil l l f(ICÍ11l i ll!!ntc�c·hi m:Jla t:hiesa di Santa Maria
�icou.�üo pode ser \IV;d iadn na 'ua lll'lllld1· <"omp!.-x
id:ldr.
a
'

às qllais
50 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 51

o hiaco entre a repetição de modos c fórmulas, tornados enrão ob­ como Domenico della Marca d'Ancona, provenientes de localida­
soleros, e a produção dos grandes cenrros. Estas dinastias eram uti­ des remotas, talvez igualmente periféricas, acentua-se no decurso
lizadas por consumidores individuais para pinturas votivas, por con­ do século XV: Giacomo Sancori di Giuliana, perto de Palerma,
frarias ou ainda por comunidades rurais, podia acontecer que à mais conhecido como Jacopo Siculo9�, rrabalha entre a Úmbria e a
sombra de um santuário ou de um lugar de peregrinação se esta­ Sabina; rambém na Sabina esrão activos, na primeira metade do
belecessse uma dinastia de artistas, como a dos Lederwasch, que século, os veroneses Lorenzo e Bartolomeo Torresani; em Basilica­
em Tamsweg, no Salisburghese, passando de pais para filhos, se ta, no mesmo período, encontramos Simone da Firenze94. Paralela­
dedicou à produção artística para o esplêndido santuário de São mente, pintores de renome são afastados ou reafastados do centro
Leonardo, e cuja casa, conrígua à igreja, ainda hoje se visira. para a periferia, porque incapazes de acertar o passo com as pro­
Num primeiro tempo esra prolífera pintura periférica, ligada a postas dos <<novos artífices» e com a consequente mutação verifica­
consumidores socialmenre homogéneos, não apresenta ainda os da no gosro e nas expectativas do público. Além do caso já men­
caracteres nitidamente retardatários que assumirá em seguida, quando cionado de Perugino, que partindo de Florença encontra refúgio
o fosso enrre cenrro e periferia se tiver alargado. Mosrra até mais em Montone e em Frata, temos o percurso não diferente de Signo-
vasta propensão e disponibilidade para investimentos artísticos por relli ou, anteriormente, o de Antonio da Virerbo, que, depois de n� 9
parte de grupos socia.is que até enrão não tinham manifestado grande ter trabalhado em Roma em empreendimentos importanres como
interesse nesse sentido. Valeria a pena traçar um quadro das deco­ os frescos de Santa Francesca Romana, acaba por ser devolvido ao
rações levadas a efeito no decurso de Quatrocentos, com claros agro viterbense pela actividade dos pintores úmbrios e florentinos
intuiros edificanres, por igrejas e oratórios campestres: limitando­ chamados por Sisto IV, limitando-se a pintar em Gorchiano9).
-nos a alguns casos piemonreses, entre muitos, pode-se pensar em
Domenico della Marca d'Ancona - que cobre de frescos a ábside
lig. � da Igreja de Santa Maria de Spinariano, perto de Cirie90 -, em 1 6. Refluxo e atraso na periferia
Jtg. a Giacomino da Ivrea - activo no Canavese e no Valle d'Aosra por
volta de meados do século91 -, em Giovanni Massucco - que Os fenómenos que remos enumerado, a saber: a) a constituição
trabalha no Monregalese92. A instalação na província de artistas de dinastias locais com o consequente perdurar de certos esquemas
através d o uso de cartões e de desenhos; b) o estabelecimento na
Apparen c e a Capanne di Colle Gíacone presso Cascia » , in L'Ane, LXII, 1963,
pp. 41-58 e 289-92. pp. 35 ss.; A. Griseri , }acquerio e i/ realismo gotico in PittJlUJ,Jit Torino, 1965,
9o A. Morerco, lr1d<Jgi ne aperta sugli af
freschi de/ Canavesc, Saluzzo, 1973, passim; C. Garder, De la peintrm dti Moyert-Age en Savoie, li, Annecy, 1966;

PP· 9 ss. Z. Birolli , <dl formars i di uo dia!etco pittorico nella regione !igure-piemon­
9 t A. Lange, «Notizie sulla vira di Giacomo da lv rea » , in Bollettino del/a tese», i n Bolleltino delta Società piemonwe di archeologia e di bel/e <trti, XX, 1966,
Soetetà piemontese di archeologia e di bel/e ar-ti, XXII, 1968, pp. 98-102. pp. 1 1 5 ss.; E. Rossetti-Brezzi, «Momen ti della pirrura piemoorese » , ibidem,
92 Cf. A. Ralnel, Antichi affrescht nel Monregalese, Cuneo, 1965; G. Romano, XXV-XXV!, 1972, pp. 35 ss.; G. Romano e A. F. Pari si , Catálogo d.ella Mostra
«Documenrí figurarivi per la Sroria delle campagne nei secoll XI-XVI>., in ckl Gotico nel Pi.emot1te centro-occidentale, Torino-Pinerolo, 1972; G. Romano, vocábulo
Quademi Storiri, 1976, o.• 3 1 , pp 134 ss. Sobre rn1,1iros produros de ciclos do «Giovanni Canavesio», in Dizionario biografico degli italiani, XVII, Roma, 1974,
gótico tardio de carácrer mais ou menos popularizanre, muiras vezes encomen­ pp. 728 ss.; Valle di Susa, cir.
dados por comunidades rurais ou alpestres , confrarias, pequeno e médio clero, �-' Cavalcaselle-Crowe, Storia del/a pittllra in Italia, cir . , X, pp. 1 1 2 ss.;
localizados na área alpina oc ide ntal, executados quase sempre por mestres itine­ L Mortari, Opere d'am in Sabina daii'Xl ai XVII seco/o, Roma, 1957.
rantes que conrinuam a servir-se por lo ngo tempo dos mesmos esquemas, ve­ � A. Rizzi, «Un pirrore rinascimenrale in Lucania, Simone da Firenze , , in
jam-se: M. Roques, Les peinwrn mttrttles dtl S11d-Est de lr.t Frmzce, Paris , 1 9 6 1 ; N,,,,oii twbiiú.tt11üt, IX, 1970, pp. 1 1 ss.; 1dem, «Altre opere lucane di Simone da
E . Brezz i, «Precisazioni sull'opera di Giov�nni Cru1nvcsio. Re:visioni criticht·». Firen:.lt ' » , in Antirhitr2 11iwt, XV, 1976, ] , pp. J 1 ss.
ttfd?qrJiop,i<t (I di "�"� li'/ i, X v llJ I !)(,tf,
i u Do/lettino del/a Sm:ietà pie11Umtcsc tÜ o
I
'1' I. l1;ll c l i , l'illori ,,;,,.,.b,�,; di âmtttu .waili, Homu, 1 970, p. L9.
52 HISTÓRIA DA ARTE . ITALIANA CAPÍTULO I 53

periferia de arriscas de longínqua proveniência que não se tinham gosto mais severamente litú rg ico do que aquelas que o s mesmos
imposto nas respectivas regiões natais nem nos cenrros artísticos artistas aprontam para a metrópole; ·
mais importantes; c) o refluxo para a periferia de arriscas já céle­ d) enquanto no século XVII se nora uma relativa capacidade
bres postos em crise pelas murações estilísticas acmanres - repre­ de a província reagir face à cultura metropolitana, ou sintonizan­
sentam um processo de periferização que relega muiras regiões do-se ou elaborando variantes, acontece no século XVIII que «Os
italianas para uma condição de subalternidade cultural destinada a retábulos vêm de Roma para a p rovíncia como um produto espe­
prolongar-se no decurso de séculos sucessivos. A consolidação do ci ali zado e já sem encontrar concorrência, por vezes ao pomo de se
estado absoluto com base regional, o estrangulamento das autono­ mobilar com peças perfeitamente ajustáveis toda a bateria de alta­
mias locais e a acentuada estratificação hierárquica da sociedade res de uma igreja ou de se transformar a nave em galeria da pin­
tiveram repercussões importantes no plano artístico. tura romana daquela época.»97
Dada a falta de indagações quantitativas à escala regional e a Nesta imagem de dependência, rornada incondicional e irre­
extrema raridade, relativamente ao período anrerior, de indagações versível pela divisão do trabalho e das funções no interior do Esra­
sobre os arriscas <<provinciais» , recorreremos ao excelente volume do, poderá deter-se a reflexão sobre <<a periferia como arraso». A
Ricerche in Umbria96 , que analisa os resultados de um vasro inqué­ este nível o problema que toma forma não é já ramo o do atraso
rito sobre a pintura de Seiscentos e Serecenros numa área da Úmbria como o da dominação simbólica, sobre o qual teremos ocasião de
meridional. Procuraremos resumir os elementos significativos que volrar a reflectir.
emergem desse inquéri ro e que nos parece terem valor para além
do âmbiro local.
I 7. Atraso periférico ou atraso de método?
a) Nos séculos XVII e XVIII a regtao fica a ser parte inte­
grante do Estado da Igreja: em c on seq uê nci a, a província tende a Mas se nem rodos os atrasos são periféricos - como mosrra o
adaptar-se à metrópole de que depende, dela recebendo os impul­ caso d e Perugino, expulso do centro para a periferia - nem todas
sos através de comissões de personalidades enviadas à capital em as periferias são reratdarárias. Admitir o contrário significaria adaptar
diversos momentos. É no encanto necessário não
considerar a área uma visão linear da hisrória da produção arrísrica que, por um
provincial como ampliação pura e simples da situação dominante lado, julga possível apurar uma linha de progresso (em rodo o caso
no centro de influência. É com efeito possível encontrar, ao lado motivada do ponto de visra ideológico) e, por outro, racha auto­
de presenças d efi n i tivas , indícios ·de siruações raras e destoantes; maticamente de atraso qualquer solução diferente da proposta pelo
b) o processo de refeudalização tem i mportantes consequências cenrro inovador. Desre modo acaba-se por procurar na arte da periferia
no interior da regi ão , no que diz respeito quer à mudança das aqueles elementos, aqueles cânones, aqueles valores que são esta­
comissões quer ao tipo de exigências. A procura de obras de arte belecidos tendo precisamente como base os caracteres das obras
inte ns ifica-se na cidade e rarefaz-se no campo (salvo excepções e produzidas no cenrro; e no caso de se reconhecer a existência de
casos particu lares) . Continua todavia onde existem áreas de peque­ cânones diferentes, esses são examinados só em relação ao paradig­
na prop riedade ou formas associativas ele propriedade colectiva, ao ma dominante, com um procedimento que leva facilmente a juizos
passo que desaparece em zona de latifúndio; de decadência, de cormpção, de baixa de qualidade, de rudeza,
c) as ob ras enviadas à peri feri a pelos artistas do centro têm um etc. Foi este, por exemplo, o caso da pi ntura bolonhesa ou da pin­
tura t1mbria de Trezentos, reduzidas durante muito tempo à cate­
gmia clt: rudes e medíocres imitações da arte florentina ou senense.
96 V. Casale, G. Falcidia, F. Pansecchi e B. Toscano, f<kbm·he i11 I J ,!Ibrit� , I,
Treviso, 1976.
'1/ Jhidt'l!l, p, 1 1 .
54 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 55
Escrevia Jacob Butckatdt em 1 85 5 : fica, em últim a análise, resignar-se a escrev
er eternamente a história
do ponto de vista do vencedor de round.
«Claramente independentes (de Giotto] ficaram apenas os
incapazes. Entre os setentrionais, tiveram os bolonheses que ser
excluídos, completa e absolutamente, da influência da escola 18. A periferia como alternativa
florentina. Mas a sua actividade e habilidade pictórica durante
o século XIV são espantosamente desajeitadas e insignificantes.
Até mesmo Jorge Vasari , criador e defensor de um modelo
O mais amigo de entre eles, Vicale, contemporâneo de Giotto,
historiográfico monocêntríco, admire a possibilidade de uma ela­
num quadro da Pinacoteca de Bolonha (Madonna in trono con dtte
boração autónoma por parte da periferia. O desafio da emulação
angeli, de 1 3 20) é pelo menos doce e gracioso à maneira senense,
pode, em cercas ;=ircunstâncias, ser determinante para atingir gran­
de modo a fazer-nos lembrar Duccio. Os outros, meio giottescos,
des resultados. E sob o signo da emulação que se realiza a forma­
são na maior parte tão inábeis nas suas obras sobre madeira que
ção de Mantegna:
em Florença nem sequer se ouvia falar deles. E o mesmo modo de
trabalhar, a mesma falta de talento continua a ser o sinal distinti­
«Também a concorrência de Marco Zoppo, de Bolonha, de Dario
vo da escola até para além dos meados do século XV.»98
da Trevisi e de Niccolõ Pizzolo, de Pádua, discípulos do seu mestre
e pai adoptivo, lhe foi de não pequeno auxílio e estímulo na apren­
dizagem.» 101
E Bernhard Berenson em 1 908, a propósico da pintura úmbria
antes de Perugino: «Nelli was and remains an idiot.»99 O mesmo
Berenson em 1 9 1 8 incitulava um ensaio sobre o orvietense Cola
Semelhantemente, a afirmação artística de Galasso é vista como
Pettuccioli A Sienese little Master in Ne-w York a?Jd elsewhere, o que,
uma �spécie de réplica municipal ao sucesso obtido em Ferrara por
como notava R. Longhi,
um pmcor «esrranho» como Piero della Francesca:

li
«diz bastante quer sobre o baixo grau em que é colocado o
<<Quando a uma cidade onde não h á excelentes artistas vêm
artista, quer sobre a sua supostamente incondicional subordinação
forasteiros a fazer obras, sempre se despert� o engenho de alguém
à escola senense. De facto, tinha nessa altura grande voga a obses­
que, aprendendo aquela mesma arre, se esforça depois por fazer
siva exalração dos produtos de Siena do século XIV e a automática
com que a sua cidade daí em dianre não precise mais de estrangei­
subordinação a eles de tudo o que lhes fosse semelhante (. .. ). Uma
ros para a rornar bela e mais rica de capacidades; ele próprio se
cultura pictórica especificamente orvietense na segunda metade do
e �penha em conquistar e em merecer com a sua energia aquelas
século XIV parecia inadmissível, ou ames, impensável. E, no en­
nquezas que tanro admira nos forasteiros. Isto foi claramente
canto, ela rinha exiscido•>100.
�anifesto em Galasso, de Ferrara: o qual, vendo Pietro dal Borgo
tao recompensado por aquele duque das obras e das coisas que
Identificar pura e simplesmente a periferia com o atraso signi-
rcal1zou no Samo Sepulcro, e além disso honrosamente tratado em
F<:rrara, foi por este exemplo incirado a dedicar-se à pintura de tal
91:
J. Burckardt, Der CicerfJne, Basileia, 1 8 5 5 , p. 780, referido no «Commen­ modo que em Ferrara adquiriu fama de bom e excelente mes-
to antologico alla fo rtuna critica de! Trecenco bologuese » , in Paragqne, I , l950, 102
1 n:. »
n.0 5, p. 25.
99 B. Berenson, The Central [talúm Pailllcrs ()f the l?er�<�i.l.l'rlll<'t:, Nova l orq u<"­
-Londres , 1 909, p . V; cf. Tosca.no, l.r.1 ji�rttma dtllrt j>iltt/1'rY 11111ln�t. ri c . , p. ..!(>,
noto 7. '"' Vu• .. lri, 1 1 1 , p. �HCJ.
""' lt Loi\J\hi, . .'l't.ll t ' Í u w ( ) J vH'II\Ilm·, in """·!!:"'''". X I I I , l ' l(,•, 11.'' 1 •1 '1 . p. ' " ' Jl,nfo' l/1, 1'1'• H•) •.,
56 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 57

A presença de urna forte emulação pode mesmo permitir que sentido próprio e língua artística é tudo menos pacífica e , ainda
se modifique a situação subalterna de uma área provincial. Acon­ por cima, claudicante104. Se apesar de tudo nos servimos de termos
tece de facto que, como «código» e <<língua», fá-lo-emos com a consciência de intro­
duzir metáforas que mais contribuem para agravar um problema
« . . . começando um só, muitos se põem a fazer-lhe concorrência; do que para o resolver. Não obstante tudo o que aurorizadamenre
e tanto se esforçam , sem olhar para Roma ou Florença ou outros tem sido escrito sobre a «gramática» da linguagem artística, não
lugares cheios de pinturas notáveis, que se vêem sair deles obras estamos acrualmente em condições de fazer de maneira rigorosa a
maravilhosas. Isto vê-se ter acontecido em Friuli particularmente, distinção entre <<variação» e scarto (alternativa), entre contributos
onde - coisa que não se tinha visto na região durante muitos sé­ lexicais e estruturas sinrácticas. O que todavia conra é que uma
culos - surgiu nos nossos rernpos uma grande quantidade de pin­ distinção desse género, mesmo que formulada de modo diferente,
103.
tores excelentes mediante um processo deste género» estava na menre de um público de entendedores numa dada situa-
ção histórica .. Assim entendia com efeito Vasari quando, a propósito r.g. 111
Em certas ocasiões raras, «mediante um processo deste géne- de Ponrormo, escrevia:
1"0 » , podem pois nascer «obras maravilhosas>>, «Sem olhar para Roma
ou Florença» . Na sequência do discurso, Vasari acaba no entamo «Nem se julgue que Jacopo seja digno de censura por rer imi­
por atenuar os juizos inteiramente posirivos exposros no proémio e tado Alberto Dütet nas inovações - porque isro não é erro, e fi­
por restringir várias vezes (relativamente a Ticiano, a Beccafumi, zeram-no e fazem-no continuamente muitos pintores -, mas por
etc.) a obra de Pordenone. Aquela espécie de milagre que tinha ter adaptado a genuína maneira alemã em todas as coisas: nas rou­
permitido o nascimento de <<obras maravilhosas>> fora do centro pagens, na expressão dos rosros, nas atitudes - naquilo que devia
não irá até ao ponto de fazer da periferia um lugar alternativo do evitar, servindo-se apenas das inovações, uma vez que dominava
105
centro; no sistema vasariano não há espaço para soluções deste tipo. com graça e beleza a maneira moderna.»
Na realidade, esre é um caso que pontualmente e por diversas
vezes se apresentou; a periferia pôde ser, além de lugar de arraso , Para Vasari a contraposição entre «maneira» e <<inovação» é
sede de criações alternativas. , . .
? JCJda: a <<manel[a moderna» está perfeitamente apta a assimilar as
Esta afirmação exige um breve esclarecimentO terminológico: �novações dos alemães. O erro de Pontormo, na óptica normariva
diferente e alternativo não são sinónimos; nem toda a variação é de Vasari, estava em abandonar as formas típicas da <<maneira
definível como alrernariva, como scarto. Utilizamos este último termo
�oderna>> para assumir a «genuína maneira alemã» . Para nós, as
na acepção particular de «deslocação lateral repentina relativamente <<movações » , ou seja, as composições, podem ser elemenros mais
a uma trajectória dada » , que se usa, por exemplo, falando de cer­ profundos e caracterizantes de um estilo do que as roupagens, as
tos movimentos dos cavalos: o scarto é, em suma, urna espécie de t•xpressõ �s dos rostos e as arirudes. Mas isro, aqui, pouco importa.
<<movimento do cavalo» e o uso deste termo permite evitar expres­ < ) t'ssenCial é que Vasari disringa entre elemenros que podiam ser
sões conotadas negativamente, tais como <<desvio» e semelhantes.
No domínio dos factos artísticos pode-se entender por «trajectória
1114 .
.. . p . J unod
Cf 7.
'ransparertce et opaczté, lausana, 1 976, particularmenc
dada» a linguagem artística corrente. ,
e
j>j>. '1 � ? 1; 'J06-7 .
Fórmulas como <<língua» ou «linguagem artística» entraram
" " Vnsarí, V I , 27 0 . Sobre como o problem
a Poncormo-Dücer é encarado
d e tal modo em uso que a sua natureza metafórica foi por assim I'"' . Vn\.t r í , <f. W. Fri<·cllan d�r, «Tbe Anticla ssical Sryle», in
MmmeriJrn and
dizer eliminada. Na realidade, porém, a analogia entre l íngua em . 1 1111 M.m11rri<111. in lt.t/i,m PaiwirJ!{, 2'. ed.,
Nova Iorque, 1957, pp. 3 e 2 5 ;
1•. I lo I I I H I IUI J l 1 or•·. ··.'iuí r:oppur(i Í'I\L l 'opt·ra
�rtistica del Va.o;ari e del Dtirer»
'
"• 1/ � .tt.n•i Jllll"i tl/!1"'(/i l ,. ,,·ti.rttl, rir., pp. 7 0 1 1 '> .
1 '" lbidt.'lll, V, 1'1'· I OI s.
58 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 59

impunemente comutados e outros que não podiam sê-lo sem des­ e colegas pintores. Em outras situações encontramo-nos perante
pedaçar o quadro de referência. casos de uma periferização que é suportada e sofrida, ou então de­
No caso de Ponrormo tratou-se portanto de um verdadeiro scar­ liberadamente aceite. Mas o problema não se esgora nos casos de
to. Não foi, como se sabe, um fenómeno isolado. Num escorço resistência individual que, face a um centro que não deixa espaço
fulminante, Roberto Longhi aproximou do «maneirismo» de Gen­ �
à d �ersidade, conseguem encontrar uma saída, ou apenas uma pos­
ga, de Beccafumi, de Rosso e de Pontormo a obra de Aspertini, .
Sibilidade de sobrevivência, na área periférica. Ele deve ser posto
em termos mais vastos, de modo a abranger os casos em que o
«verdadeiro nó de comunicação espiritual entre os movimentos scarto, a alternativa, a oposição a certos modelos sejam atitudes
do Centro e os que lhes eram afins no Norte da Itália; igualmente predominantes em toda uma área.
importante, em suma, para entender a brusca deserção do «classi­
cismo cromático» de Giorgione e de Ticiano jovem por parte de
um grupo de vénetos (em especial de Friuli, de Btescia, de Vicên­ 1 9 . A resistência ao modelo
cia, de Tremo e de Cremona) no decurso do segundo decénio» 106•
Na reconstrução da Catedral de Chartres, destruída por um
Os protagonistas desta guerrilha antidássica trabalham em �
i �c ndio em Junho de 1 1 94, um artista ignoto utilizou soluções
situações excêntricas ou servem-se das armas importantes de uma nltldameme inovadoras, unificando e estandardizando os suportes,
cultura periférica como a alemã. Pelo menos assim parecia a Vasa­ reduzindo ao máximo a tridimensionalidade das paredes, com a
n, que notava sarcasticamente: eliminação das galerias internas e a diminuição da profundidade,
cttando, em suma, um modelo de reduto bidimensional gue abriu
« . . .são as caras de todos aqueles soldados feiros à tudesca, com o caminho àquele invólucro diáfano destinado a rer aplicações ex­
ar esquisito, que despertam em quem os olha compaixão pela cepcionais na Ile-de-France no decurso do século XIII . Mas um
simplicidade daquele homem que com tanta paciência e tanta fadiga certo número de arquitectos, trabalhando entre a Borgonha, a bacia
procurou saber o que outros evitam e procuram perder, para aban­ do lago Leman e o vale do Ródano, não concordaram com esta so­
donar aquela maneira que em qualidade excedia todas as outras e lução e propuseram outras, ou antes (se desprezarmos diferenças
que a toda a gente infinitamente agradava. Será que Pontormo não contingentes), uma outra. Perante esta situação, os historiadores
sabia que os alemães e os flamengos vêm a estas partes pata apren­ da arquitectura continuaram durante gerações a falar de arraso; só
der a maneira italiana, que ele, com tanta fadiga, procurou pôr de em tempos relativamente recentes se reparou que não se tratava de
lado como má ?»107 atraso, mas antes de resistência coerente108.
É evidente que resistência e atraso são fenômenos muito
Não se tratava só de preconceito italocêntrico de Vasari, como < liferentes, activo um, passivo e subordinado o outro. A solução
mostra o comportamento de Dürer face à cultura figurativa italia­ elos opositores a Chattres não estava aliás meramente apegada a
na durante as suas viagens a Veneza. modelos mais antigos: tratava-se mesmo de uma elaboração extre­
No caso de Pontotmo, a sua opção em direcção periférica conjuga­ rn;t mcnte original, de uma espécie de segunda parede leve e
-se, como se depreende do seu Diario mais que dos dizeres de pc·rfurada posta em frente da outra, de modo a permitir uma re­
Vasari, com uma autêntica auto-exclusão do consórcio dos amigos I r t pcra(�Lo perceptiva dos efeitos da parede tridimensional. Face à

t06 R. Longhi, «Officioa ferratese» , in


"'" J . li ouy, « 'J''I 1 1 · h' l'.� 1s1
. : 1n<:e w Chartres .
Oj>ere cwJj>letc r./i Roberto I.JJI1J(hi, V, 1n Early Tbirrccnth-Cencury Ar-
• 1 1 1 1 1'1 1 1 1 11• •·, 1 1 1 'I'IMjiiiii'IMI rlrlw l'l·riti.lb (l nhu.el!IJ!. tWI 1\.rsoâaJi.nn, XX-XX
Flotença, l956, p. 1 5 1 . J, 1957-
Hi, f\ J I , f, •, '
'"7 Vasa r i , VI', p . Hl/
60 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAPÍTULO I 61

inovação chartriana, esta proposra alternativa procurava conservar,


A primeira consequência que teve em Florença e na Toscana a
transformando-os, elementos que a nova solução pelo contrário eli­
implantação do paradigma giottesco foi a de periferizar um bom
minava. Graças à posição central que a Ile-de-France veio a assu­
número de artistas e mesmo de ant igos cenrros111. Num primeiro
mir no plano político, foi o modelo de Chartres que prevaleceu.
tempo coexistiu todavia em Florença, com Giotto e giottescos de
estrira observância, um grupo de pintores heterodoxos, que, acei­

20. Modelo e novo paradigma tando embora alguns elementos basilares das propostas de Giotto
- o que os salvou do risco de periferização imediata -, diver­
Ora se voltarmos à Irália, e precisamente a Florença nos i nícios giam do novo paradigma em alguns pontos e, por exemplo, tenta­
de Trezentos, deparam-se-nos soluções de resistência, soluções de vam levar por diante a experiência de Cimabue no domínio da
proposras alternativas e, finalmente, a periferização de alternativas expressão. Esta d.issidência foi a princípio tolerada; mas depressa
que podem ter algo de comum com o caso da resistência � Ch� rtres. as coisas mudaram, como mostra à evidência a situação florentina

'j
As soluções pracicadas por Giotto no campo pictónco nnham por volta de 1 340-50, se confrontada com a que existia pot volta
tido um efeito ainda mais surpreendente do que as avançadas pelo de 1 3 1 0-20.
mestre de Chartres. Efeccivamente com Giotto aparecera em Flo­ Próximo da década de 1 340-50, depois da morte de Giotto
: }
I
rença um novo paradigma que havia bruscamente alte ado a s t�a­ (1337), o seu tipo de visão continuava a condicionar de tal modo
ção, relegando imediatamente para as margens da galrooa arnsnca os pintores florentinos então activos na cidade que a ortodoxia
quem quer que a ele não aderisse. giottesca não só era dominante mas até repelia qualquer alternati­
Utilizamos a expressão « novo paradigma», adoprando a acep­ va à sua linha. Dos primórdios do século até aos anos 20, pelo
ção que tem na historiografia da ciênc ia 109 para indicar o apareci­ contrário, a pintura florentina fornece um espectáculo que está longe
mento de uma linguagem que não só é nova mas que tem tal de ser unitário: ao lado dos giottescos de estrira observância (Maestro
prestígio que se impõe como normativa e exerce uma acção ini­ della Santa Cecilia, Pacino di Bonaguida, Jacopo del Casentino)
bitória sobre aqueles que, por qualquer razão, dela são excluídos. havia casos de aberta dissidência, protag onizados por mestres (Maesrro
Uma descrição impressionante da acção que um novo paradigma di Filigne, Lippo Benivien.i, B uffalmacco, Maestro del Codice figs I I e

pode ter é dada por Vasari quando fala do efeito desconcertante di san Giorgio, etc.), que tentavam uma abertura aos modos mais
que as obras romanas da «terceira via>> tiveram sobre aqueles que nitidamente góticos ou uma recuperação das antigas tendências
as viam pela primeira vez: expressivas e patéticas112.
Trata-se de um episódio de «resistência a Giotto» por parte de
m�da de país ou de lugar parece q u � muda de natu­
« . . . quem um grupo de pintores que, retendo embora certos aspectos funda­
reza, de estado de espíri to , de costumes, de hábitos pessoa1s, de mentais da lição de Giotto, não só não pretendem renunciar à
e comple­
modo que às vezes não parece o mesmo, mas um outro, pesquisa expressiva dos fins do século XIII mas até afirmam
a sua
tamente acnrdido e estupefacto. Isto pôde acontec er a Rosso na anualidade. É, portanto, claro que não se trata de atraso ou d e
das que viu de acqui­
atmosfera de Roma, onde as coisas estupen apego a um modelo ultrapassado mas de uma proposta alternativa
de Miguel Angelo o
tectura e escultura e as pinturas e estátuas
sem lhes deixar
tiraram fora de si; coisas que também fizeram fugir,
e Andrea Donnci, «Per la. pittura piscoiese del Trecenro,
realizar nada em Roma, Fra Bartolomeo di San Marco
" ' Cf. P. P. h, in Paragone,
X X V , 1 n � , n ." 295, p. 5 .
del Sarto» 1 1 0 • 1 1 ' 1 . . 1 1 -llw:i, /1,4/;dwttt.·,·o
< e i/ N·úmji1 dellct morte, Turim, 1974, p . 7 3 . Para
d l l':l ""' ''•t" " ' " hknn· d1· f'wncla giottesca cf. C. Volpe, «Frammenci di Lippo d i
t09 C f.
T. S. Kuhn, Lo .rtmttura Jc/Le 1'ivoluzioni Jârmtifhhc, T 1 1 rirn, 1 9(,9, 1 14 '! 1 1 vi• • I I L > , i 1 1 /',!!,t)!J!I!I', X I I I , 1 1)"7:1. . n." 267, p p . :)- 1 3 , e «ltistucliando il maestro
"" Vnsari , V, pp. 'U} I ss. > l i l ' ll' l i t w � , ,;,;r/,.,,, :>: X l Y , 1 '!7 \, 11.'' ,! 7 7 , pp. -� . _! 'i .
62 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 63

que prerende mostrar que desenvolvimentos se podem obter a partir 2 I. A alternativa d.e Avinhão
de certas premissas cuja fecundidade se prevê. Sob certos aspectos
a situação poder-se-ia equiparar à dos arquitectos que actuam no Entre estes pintores de ftonda houve um, o Maestro del Codice
sentido da «resistência a Chartres» e que proclamam a actualidade di San Giorgio, que teve de procurar um ponto de apoio em Avi­
de um sistema derivado do «muro espesso» anglo-normandou3• nhão 1 1 7. Falar de Avinhão - que era em Trezentos sede da corte
Quando num centro se impõe um sistema de formas e de papal - como de uma periferia é evidentemente um absurdo e
esquemas que recebe o apoio de um poderoso grupo de consumi­ um contra-senso. Será todavia conveniente entendermo-nos sobre a
dotes e que assim acaba por determinar a procura e as expectativas significação dos termos: se a relevância económica, política e reli­
do público, os «diferentes» devem curvar-se ou expatriar-se para giosa subitamente assumida pela cidade provençal é indiscutível,
situações culturais menos determinantes. É precisamente quando duranre um certo tempo continuou a ser, no que respeira à arte,
as tendências «irregulares» desaparecem em Florença que cessam de quem a apanhava. Quanto à pintura, tratou-se de italianos,
as notícias sobre a acrividade de Buffalmacco na cidade e começam senenses ou florentinos como Simone Martini ou o Maestro dei
as referências a esre pintor em outros centros114. Buffalmacco, que Codice di San Giorgio. Mas a ausência de uma tradição que de
representa uma linha de scarto em relação à de Giotto, será pois algum modo os vinculasse favoreceu o desenvolvimento de uma
coagido, no decurso do terceiro decênio de Trezentos, a abandonar pintura bastante afastada dos cânones e dos esquemas habituais
o centro mais prestigioso para trabalhar em Arezzo, Pisa, Bolonha; nos maiores centros iralianos. A sorte excepcional e a linguagem
analogamente poderá uma fronda expressionista encontrar recepti­ personalíssima de um artisra de Viterbo, de certa maneira excên­
vidade e desenvolvimento em Pistóia1 15. Recorda-se neste ponto o trico tanto de nascimenro como de cultura, como Matteo Giovan­
quadro geográfico deste processo, ou seja uma netti, pintor dos papas durante mais de vinte anos, pode assim
encontrar uma explicação. Algwnas soluções propostas por ele não
« . . . Itália municipal, não regional, com uma existência multis­ teriam cerramenre sido aceites numa átea onde estivesse activa uma
secular, indómita, demasiado vigorosa e áspera para toscamente se forte tradição . Confirma-o o facto de os scarti de Matteo Giovan­
contentar de si própria, para se poder fechar na sua concha, mas netti - que tiveram um 6ptimo acolh i men to na nova capital e
também incapaz de aceitar uma dócil subordinação política ou um relevante impacte europeum - terem sido pos terio rmente igno­
literária à região ou à nação» 1 16. rados por uma tradição historiográfica nascida e desenvolvida em
Florença, e vocacionada para aceitar e exaltar normas e cânones
Política, literária ou artística, a produção artística é na verdade diferentes e mais ortodoxos. O próprio nome do pintor viterbense
tuna componente importante da identidade municipal tão ciosa­ desapareceu até fins do século XIX; e, mesmo quando foi encon­
mente g uardada. A periferia que proporciona ao eventual JCarto trado nos arquivos do Vaticano, as obras de Giovannetti não deixa­
uma base territorial não é nunca uma periferia amorfa ou indife­ ram de suscitar profundas desconfianças 1 1 9.
renciada. Pelo contrário.
1 17 Cf. L. Bellosi, "Moda e cronologia. B) Per la pittura del pri mo Trecen­
to», in Pt·ospettÍ!Ja, Oucubro 1977, II, pp. 14 s.
1 1 " Cf. H. Kreuter-Eggeman, Das Skizzenbuch des «]aques Daliwe», Muni­
lJIIc, "l964 , particularmente nas pp. 2 7 , 44 e 6 5 .
1 1 ' L.Gtodecki, Architettura gotica, Milão, 1976, pp. 1 5 1 ss. 1 1 9 A propósito da decoração da Capella di San Marúale, no Palácio dos
ll< Bellosi, Buffalmacco, cit. ll:tp>t�>. C'M'I'�·via E. Munrz, a quem se deve rer sido achado nos arquivos do
m Donari, "Per la piaura pístoiese del Trecento, f » , cir.; U, in Paraf{one, Vutii ,IIIO •> nomo· d1· M<lt rl·n Giovannetri: «Do ponto de vista da harmonia,
XXVII, 1 9 76, o.'' 3 2 1 , pp. 3-1 5 . .lo 1 t i l o H ) I' dos ii11o1 w:• d1·cora1 ivos (' impos$Ívd imaginar um conjuntO mais
<

' "' Dionis()l. t i , Culttwa r�p.ionttli. cir., p. I 17 . 1 lioo '" 11 1', JOIIli•: dc"•J:nu iosn.
» Solu·1· a lon�a n-.��·rva rdari van ol"l ltt: rt obm de
64 HIST6RIA DA ARTE ITALIANA
CAPÍTULO I 65
Com efeito, à luz dos hábitos artísticos de Florença e de Siena,
pôde mesmo favorecer o aparecimento de zonas �charneira - lugar
as_ soluções de Avinhão representam varianres substanciais; a sime­
de encontro de culturas diversas e pomo de partida para experiên­
tria, o equilíbrio, a coerência das figurações, a sequência das cenas,
cias originais. Tinha sido esre o caso do Piemonte alpino nos
a expressão e o rosto das personagens sofrem modificações sens.íveis,
primórdios do século XV, nos tempos do ducado de Amadeu VIII,
mesmo d1storções - todavia destinadas a tornar-se, como geral­
quando, graças ao entrecruzar de artistas de diversa origem cultu­
mente se admite, um ponto de partida para a pintura do gótico
ral (Itália, Borgonha, Alto Reno), esta área se tornou um haut liett
internacional.
do gótico internacional.
Estes scarti, que forneciam à pintura europeia uma abertura
Para muitos centros e regiões italianas, desde Roccaforte Mondovi
para o futuro, foram possíveis em Avinhão por diversas razões, e
até Ripacandida em Basilicata, a linguagem do gótico tardio re­
em primeiro lugar pela mutação ocorrida nos consumidores e no
presentou um último momento de integração, de homogeneidade,
público. Por volta de 1 340-5 O, a fisionomia da corte papal revela
de participação em pé de igualdade na produção artística. O que
profundas transformações comparativamente ao início do século.
veio depois · não teve, durante mui to tempo, uma credibilidade
O papa e a maior parte dos cardeais provêm da França meridional,
comparável: só aquilo a que Vasari chama a «maneira moderna»
o públic� que rem acesso ao palácio é o mais possível heterogêneo;
- cuja aceitação ou rejeição traçou uma primeira linha de discri­
os própnos artisras realiz am as suas obras em condições diferentes
minação entre centros e periferias - deu lugar a um novo para­
das então praticadas na Itália. As equipas que trabalham sob a
digma que pôs o anrigo definitivamente fora de jogo. As primei­
direcção de Matteo Giovannerti compreendem roscanos de vária
ras fo rmulações renascentistas tinham rodavia coexistido , sem efei­
origem (Siena, Luca, Arezzo, Florença), virerbenses, parmenses,
tos paralisanres, com as formul ações do gótico tardio 1 2 1 . Mas foi
p 1 emonteses, p rovençais, lioneses, ingleses, alemães120. A rede de
p recisamente o alargamento do fosso entre centto e periferia no
referências disponíveis inclui enfim elementos góticos (mestres da
interior da península que tornou possível o facto de a Itália se
Inglaterra ou do Norte da França) e elementos de uma cultura fi­
constituir centro artístico relativamente a uma periferia europeia.
gurativa occitânica que entrara em grave declínio depois da guerra
No Piemonte ocidental manifesta-se ainda outro caso de scarto
contra os albigenses, mas que continuava a existir. Todos estes ele­
que tira partido da situação de «dupla periferia» da região. É o de
m�ntos fa:e� da Avinhão daqueles tempos um caso de «dupla peri­
Defendente Ferrari, que reeelabora, em formas que terão um eco
fena» artlsnca: no ocaso da cultura occitânica os pontos de refe-·
notável na área alpina122, elementos de diversas origens (proven-
rência são a pintura da Itália central e o desenho gótico do Norte.
121 Cf. as observações de R. Longhi a propósito dos frescos de Andrea
Dilitio («Primi:de di Lorenzo da ViterbO>>, in Vittl arti.rtica, 1926) em que apon­
22. As zonaJ de fronteira
ta «aquela amiga confusão mediante a qual um internacionalista podia ser posro
no mesmo plano dum renascentista, ou, com agravante mental, ser considerado
Não se trata de um fenómeno único. Em vários momentos se passível e aré desejoso, segnndo um preconceiro evolucionista, de se aproximar
encontraram as regiões fronteiriças italianas em siruação análoga: e das formas do RenascimentO. Na realidade, a divertida «Composição do mun­
o carácter de «dupla periferia» peculiar a estas marcas de fronteira do» dos internacionalistas bastava-se a si própria, era uma visão figurativa, e
portanto espiritual, petfeitamente completa, e incapaz, ou melhor, desmteressa­
Ja, Je aspirar à sínrese, à profunda analogia nacuralista do chamado Renasci­
Giovannetti em Avinhão, cf. E. Castelnuovo, Un pittore italiano alfa corte di menlo. Anc:lrea Delicio poderia ter vivido mais cinquenra anos sem que o seu
Avignom, Tnrim, 1961, pp. 54 ss. e 1 3 9 ss. l l luildo a.rrfsr.ico lhe pa�:ecesse falaz, sem que, em snma, lhe surgisse o desejo de

120Sobre as equipas inrernacionais em Avinhão, cf. ibidem e jMJ.rim; E. Kane, :: 1 · 1 r.lll�;n,,ltnl' <:m Lourenço de Viterbo» (agora em Opere complete di Roberto Lon­
<<A Docnment f�t the Fresco Techoique of Matteo Giovanne�ri i 1 1 Avigllon», /l,hi, 1 i l . , fi: S.t!:!:i c ·rilhenhtt, :Florença, 1 967, I, p. 6 1 ) .
1 1J ( )j J)'H', d< · 'i'kkndt'llt<" m•
Jfi SttJ,-/te.r. Au Inrh QurJ1·t,1-/y l?.wicTII, 1 nvt�rnn [97 '> . d a s u a ofl r i na foram tamb�m encomendadas
1'111.1 1M11 1 d1 1·1 A l j w·. h:i "� 11;1 Cllft·dnll dl" il,ll l i > r l l n , 11<1 Í)•,n:jn. nh>KÍ:d de H.au-
66 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 67

çais, flamengos, renanos, lombardos), propondo modelos significa­ Aquilo que se propõe a quem olha não é pois a reacção ime­
tivamente distantes dos paradigmas que esravam já a ser seguidos diata e como que fisiológica perante a imagem sacra, mas uma
em toda a Itália. Esta distância não ficava a dever-se a ignorância projecção muito mais complexa. A memória vidente de Maria, que
ou informação tardia sobre os acontecimentos artísticos de Flo- descobre no futuro o suplício do filho, é apontada como modelo à
fig. 13 rença ou de Roma. Obras de Rafael como a Madona d'Orléam (ac­ memória de quem vê a imagem. As «insrruções para uso » , expres­
tualmente em Chantilly) tinham circulado no Piemonte: o duque sas numa língua rica de latinismos, convidam um público verosi­
Carlos II, que a possuía, havia dela mandado fazer, em 1 507, uma milmente clerical a ler cumulativamente as implicações psicológicas
cópia (perdida) a Martino Spanzotti; as cópias que restam, feitas da imagem.
. 14 c: 15 por Defendente ou por Giovenone, evidenciam suficientemente a De modo pontual a devoção neogótica de Defendente Ferrati
difusão do protótipo. Mais tarde, mas antes de 1564, uma cópia do levá-lo-á a aproximar-se das pesquisas de alguns maneiristasm. De
Juízo Final, de Miguel Ângelo, virá a ser pintada nas paredes de facto, reculer pour tn.ieux sautw parece ser um elemento ressurgente
Nossa Senhora dos Bosques de Boves 1 23. O caminho de evidenre na elaboração do JCarto periférico. Convergem neste sentido, por
regoricização seguido por Defendente não é pois o produro de um um lado, as expectativas do público e dos consumidores e, por
atraso periférico mas antes de um scarto deliberado - e nesta outro, a vontade de contornar uma situação sem saída enveredan­
deliberação pesa indiscutivelmente o carácter devoto de grande parte do por vias longínquas no tempo e no espaço.
da sua produção. E é precisamente neste plano que se revela a
mistura de arcaismo e inovação que tantas vezes caracteriza a penosa
elaboração das alternativas periféricas. A inscrição que acompanha 23. O exílio de Lotto
fig. 16 Cristo Despedindo-se de Sua Mãe diz com efeito:
Surgem ainda casos em que a busca de uma alternativa se rraduz
«Tu che conte(m)pla del viso lo perspicace et acuto potere nel fisicamente no exílio. Tomemos o exemplo normativo de Lorenzo
deifi I co simulacro del sacrato intuito destina il vivo radio et ne la Lotto. A sua vida decorre quase toda fora de Veneza, e fora de
I mente sigilla quanro in ver de la dilecta matre pare che com Veneza se encontra a maior parre das suas obras: em Treviso, em
summa hu I milita te la inefabile sapientia clementissimamente si Bérgamo e vales de Bérgamo, nas cidades, burgos e povoações ao
exhibischa et I com quale gratia la materna compassione al cores­ longo da costa e nas colinas das Marcas, desde Ancona a Recanati,
ponder si monstra I con affanato cordoglio (resultante et maiore) a Fermo, a Jesi, a Cingoli, a Monte San Giusto, a Loreto, onde o
per la memoria I del parato suplício che nel cuore fixamente I pintor morreu recolhido num convento.
inpresso teneva considerato bene. » 124 É certo que por volta de 1 5 1 5 Bérgamo não podia ser conside­
rada uma periferia. A acrividade in loco de Lorenzo Lotto poderá
tecombe ou na Catedral de Saint-Claude, no Jura (para este último caso veja-se quando muito ser considerada uma parte da penetração da cultura
A. Chastel e M. Lecoq, «Le Récable de Pierce de la Baume à Sainc Claude», in figurativa véneta numa cidade que até poucos anos atrás tinha
MorJUment.r at Métnoire.r, Fondation Eugene Pior, LXI, 1977, pp. 1 65-204). visto trabalhar Bramante, Filarete, Amadeo. Por outro lado, em
12' M. Perorei, «Il Giudizio miche1angio1esco di Madona dei Boschi di Boves»,
Veneza, por esre tempo, como também em Florença nos anos 1 3 10-
in Crmeo provirJci.a granda, Agosto, 1964, n.0 2.
124 Cf.
A . Boschetto, La ColleziorJe Robet·to Longhi, Florença, 1 9 7 1 , rab. 3 1 .
-20, ainda não se rinha imposto um paradigma único. É neste
<<Tu, que contemplas n o deífico simulacro o perspica:t e agudo poder do rosto,
extrai o vivo senrido da inrenção sagrada e grava na mente em ver como a
m Como se pode ver parcicubrmenre em alguns pedestais da Igreja de
dilecta mãe parece manifestar-se clementissimamenre com suprema humildade
S�o .Joilo, em Avigliana. Cf. L. Mallé, «Fucina piemoncese: Sodoma Giovane,
a inefável sabedoria e com que graça a compaixão materna, wrre�pondcndn, s<::
C; .lu�kn�.Í<J, Ddendmte Ferrar i, Getolamo Giovenone» , in Bo//ettiuo de/la Società
mostra nn.r:usciada pela dor (rCSL\lta.ote e wrnada n1aior) pda n n J cv i sün do s u p l ício
jl/t'!llllrJIP.ru di dl'lheolrJJ< ir.t e di ho.llu Mti, VJ ll-XI, 1 951\-57, pp. 63-64.
prcpal';lc.fo q11e t i n l·1>1 f·l x:ullçnu· i mprv::::n no ,· ora�·i-t"·"
68 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 69

lig 1 7 fundo que se situa a decoração da Capela Suardi, em Trescore, nos za. A mais extraordinária é o pequeno retábulo de San Zanipolo,
vales de Bérgamo ( 1 5 24) 126 . Aqui módulos iconográficos arcaizan­ pintado para um convento amigo onde por longo tempo estivera
tes (passos da vida de Cristo ou a sequência narrativa em que, alojado, ao passo que, como escreve Lanzi, que entretanto aprecia­
como num Monte Sagrado, se desenrola toda a hisrória em muíras va «os novos géneros do quadros» em que Lotto tinha sido <<dos
estações, palácios, pórticos, proscénios) encontram-se sotopostos a ptimeitos e dos mais engenhosos»,
uma audaz tee1aboração naturalista. Dos dedos de Cristo partem
vergônteas que enquadram mártires, confessores, profetas, padres «O seu declínio pode norar-se a partit de 1 5 4 6, ano inseri to no
da Igreja. Os dois planos da representação - o histórico (cenas da quadro de San Jacopo dell'Orio» .128
vida e do martírio das santas) e o meta-histórico ( vinha de Cristo
assaltada em vão pelos heréticos) - sobrepõem-se, ambos prospec­ Esta obra foi executada durante a última estada de Lotto em
tivamente enquadrados, mas radicalmente distintos nas proporções. Veneza. Tinha saído de Trev.iso, onde, dizia ele, «não ganhava
Mais uma vez a proposta alternativa pressupõe um uso despreo­ para me sustentar», e procurava sobreviver adaptando-se ao gosto
cupado de elementos nitidamente arcaicos dos quais se vêem as e aos modelos de Ticiano, tornando-os mais despojados e mais
potencialidades inovadoras. devotos.
Em Veneza, evidentemente, nada disto teria sido possível; mas Encerrado este período, e abandonada definitivamente Veneza
até uma obra como o retábulo dos Carmini, que não apresentava pelas Marcas, Lotto encontrará em Loreto, longe dos modelos
efeitos tão desconcertantes, parecia a Ludovico Dolce <<destas más dominantes, a liberdade de expressão que irá fazet parecer tão
r.intas (. . . ) exemplo bastante notável» . Juízo depreciativo que se moderna a inacabada Apresentação de }est1s no Temp/o1 29. fig. tH

seguia, quase como uma exemplificação, ao arrazoado, posto na


boca de Aretino, em que se .insistia sobre as convenções a respeitar Depois de Bérgamo, são portanto as Marcas que concedem
no uso das cores: a Lotto um espaço para a sua pintura. Uma região tradicional­
mente ligada a Veneza, pelo menos na faixa adriática, para a qual
<<É verdade que estas cores se devem variar, e ter .igualmente os pintores venezianos tinham trabalhado desde o século XIV,
em consideração os sexos, as idades e as condições sociais. Os sexos mas que no decurso de Quinhentos perde gradualmente a sua
porque uma cor convém à carnação de uma jovem e outra convém .importância política e económica. Isto significa que as produ­
à de um jovem; as .idades porque o que se espera de um velho não ções mais modernas de Lotto encontrarão aqui um lugar de liber­
é todavia o mesmo que se espera de um jovem; as condições so­ dade mas não de futuro, e que a sua linha não tetá continuadores
ciais, porque não fica bem a um camponês aquilo que pertence a nem propagandistas, a não ser em algum caso local e muito li­
127
um fidalgo. » mitado130.

A reacção negativa de um ambiente de consumidores e de críticos


orientados pata Ticiano é bem testemunhada pela pequena quanti­
dade de obras, e com intervalos de longos anos, feitas para Vene- 12�
L. Lanzi, li, 53-54.
1
29Sobre ela irá escrever B. Berenson (Lormzo Lotto, Londres, 1 9 0 1 , p . 236),
evocando Maoet e Degas e qualificando-a como «perhaps rhe most modem
126 F. Corresi Bosco, in I Pittorí Bergamaschi. l: li Cínq11ecento, Bergamo, pic-rure ever pai oted by ao old Italiao mas ter».
1 97 5 , pp. 49 e 56; idem, «f.a lttceracura religiosa devcninnHie e l'iconograila Ji 1;" lbid1tm, pp. 243 ss.; G. Fabiaoi, «Un maocato allievo di L. Lotto,

aku n i d i pinti di T.. tortn», in Berf!.O!Ttlllll 1 LX X, 1.976, n."' 1 21 pp. 3 ss. Simon•· ck M�tj.� isrris», in Arte íÚStiarut, XLIII, 1 9 5 5 , pp. 1 5 9 ss.; P. Zampecti,
I /) 1 .. l lllla, ni.do;:o ddlct J!illlll\1 Ífl jJ'.t/1.1/Í tl'ul'll ' '"" (.'!liljlil'l t'll/1/, <·d. por f r • i l t(lri di Cnldi l'oht » , i n /ltti rM Cimp·e.r.w CNR di stot·i<:, dell'arte, Roma,
•.

l'. l iiii'OIT l l l , l. 11:1 1' 1 , IC)(I(), I ' l H I .


· 1 1 r1H, 1 1 1j,1 l'"hl iuu,:"ío l)('orrt·•-<i ('lll hn:v•·.
70 HIST6RIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 71

24. Urbino e Barocci 25. Seisce-ntos e Setecentos

Alguns anos depois da morte de Lorto, Federico Barocci deixa­ No século. XVII os scarti periféricos assumem formas menos
va Roma no auge do sucesso para se abrigar prematura e precipi­ dramáticas e menos vistosas. Com o avanço da reestruturação política
tadamente na terra natal, uma Urbino em declínio. Na origem da e econômica a situação tende a estabilizar-se, ace n tuando o hiato
sua retirada reria estado, na versão dos biógrafos, a doença, que se que no século anterior se abri ra entre centro e periferia. Cons ide ­
seguiu a uma tentativa de envenenamento. Não se pode excluir ravelmente reduzidos o número e a autonomia dos antigos centros
que, por detrás deste gesto, houvesse motivações mais complexas 1 31: municipais, acabam por impor-se códigos diferenciados, válidos uns
o que é certo é que a fuga foi definitiva. Durante decénios Baroc­ para a metrópole e outros para a província. Numa província assim
cí, criador de imagens sacras admiradas por São Filipe de Neri, submetida e resignada, as possibilidades de scarto diminuem mui­
ancião dispéprico procurado por duques e cardeais, incansável de­ to 1 3'i . E rodavia as obras de Tanzio nos Abruzos, as de Getileschi
senhador atento à natu re za , pintor intelectual que procurava na nas Marcas, o regresso de Bassetti a Verona, de Niccolõ Mussa a
harmonia musical o modelo da harmonia cromática, continuou ob­ Casale Monferrato e, entre todos memorável, o do próprio Tanzio

lllg;. 19 e 20
sessivamente a i nserir nos seus quadros a imagem de Urbino para
representar aquela «cidade de Jerusalém à vista» acompanhada do
«magnificenríssimo palácio» do duque como fundo das mais varia­
- que então se afasra decididamente de Morazzone e do contex­
to lombardo - a Valsesia, devem set interpretados a esta luz. Um
quadro como o <<ex voto proletario)> de Tanzio, com os camponeses fig. 22

das cenas evangélicas. de Camasco juntos em torno do Divvo Racho in Adversis Inrerces­
sori, retoma a tradição dos estandartes processionais, desde o de
Esta opção em favor duma cidade já destinada a ser breve­ Foppa em O rz in uovi manifestando com clareza como o velho fundo
,

mente marginalizada pareceu a Bellori uma autêntica deserção: devoro da província se podia rornar um refúgio para os naturalistas
da diáspora romana. Trata-se de uma resistência que vai prolon­
<<Ditei ainda algo que parecerá incrível de contar: nem dentro gar-se no tempo.
nem fora da Itália se encontrava pintor nenhum - havendo já O mais belo retrato de grupo do século XVIII italiano, I cano­
muito tempo que Peter Paul Rubens tinha levado pela primeira nici di Lu, de Pier Francesco Guala, está imerso na penumbra de
vez as cores para fora da Itália - e Federico Barocci, que teria uma Igreja de Monferrato, o exército dos queux de Ceruti estende­
podido restaurar e socorrer a arte, definhava em Urbino e não lhe -se sobre os muros das vivendas da região de Bréscia. Existe na
prestou nenhum auxílio., 132 província, pelo menos numa certa província dispos ta a investimen-

O exilado periférico assume desta vez as vestes de salvador 1�1 Um inreligenre retraro-tipo do pinror provincial entre Quinhentos e
frustrado. Num espíri to que talvez não seja difere n te supôs-se que ,
Seiscentos poderá encontrar-se no ensaio de B. Toscano, «Andrea Polinoci o la
o facto de Lotto se afirmar na terra natal teria encaminhado «a provincia perplessa», in Arte antica e rnodema, 1 9 6 1 , n.0' 1 3- 1 6 , pp. 300 ss.
atte veneziana (e talvez não apenas a arte . . .) em direcção de Sobre os problemas da selecção culrura1 tais como se apresentam a um pintor
Rembrande e não de Tintoretto» 1 3 3 . da província que entre em contacco com um centro artístico importante veja­
-se, pata um período anrerior, a análise realizada poc F. Zeri sobre o retábulo
que contém a Sagrada Família, santos e anjos do Conservawrío di Sanca Maria
131 Cf. o ensaio introdutório de A. Emiliani no catálogo da Mostra di Fede­ dq:li Angiolini em Florença, in «Eccencrici fiorencini, Ih, in Bollettino d'ane,
rico Barocci, Bolonha, 1975, parricularmente pp. XXIX ss. XLVfT, s . IV, 1 962, p. 31R. Para ourras observações sobre problemas análogos
Ill
Bellori, Le vite, cit., p. 32. dl' n n • l nmu;rto no pri ndpio de Qninhencos, veja-se: idem, <<Una congiunzione
1 ll
R. longhi, Vit1tiro per cinqtle .rendi di /)illtwr.l 1Je/JIIÚtm<t, fllorçn \·a , I <)46, 1 1 11 1 1 i 1·c··1wc· c : l'mn<:ia. 1 1 Mac�tro <.lc-�1 cassooi Campan�l», in Dicwi di /avaro 2,
p. I H. ' 1 \ u·i ' ' ' · i < ) / ( , , 1 '1' · f'> �:�.
n
I 72 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 73

li tos simbólicos, uma procura com


pendentes dos ditames da metrópole.
prefe rênci as relativamente inde­ entanto graças a eles que as cidades recebem a estima e as honras
de todo o mundo ! » 137
A retoma da tradição municipal constitui um dos factos cen­
trais da cultura do século XVIII. Deste renovado fervor fornecem No mesmo sentido se exprimem Ratti e muitos outros corres­
as Lettere pittoriche - recolhidas por Bottari, acrescentadas e reedi­ pondentes. Motivo que aflora mu.itas vezes nestes discursos é a
tadas depois por Ticozzi - mais de um exemplo. «Em Ce n t o» , exaltação das artes, que, «embora em grande parte exercidas por
escreve Algarotti a um seu correspondente veneziano, «posso bem artífices de obscura e às vezes baixa linhagem» , atraem sobre as
dizer-vos que teríeis ac hado onde apontar o vosso binóculo. » 1 35 cidades a atenção de «doutos viajantes » , «príncipes inteligenres>> ,
Luigi Crespí, que encoraja a publicação de descrições e guias «eruditos e estudiosos » , «doutos escritores » .
rurísrícos, crírica a descrição da I rália mais difundida naquele rempo A reconstrução histórica das glórias das pequenas pátrias,
por não mencionar Volterra, Cortona ou Pescia e lastima a ausên­ sejam elas Cento, Faenza, For! i ou Pescia, Corto na, V ol terra, ocorre
cia de escritos sobre as cidades da Romanha: nos mesmos anos em que se procuram as antigas tradições, pré­
«Se assim se tivesse feito relativamente às pinturas de tantas -romanas\38 ou medievais. Parecia abrir-se, portanto, um novo
cidades da Romanha, numerosos profissionais de g ra nd e valor que espaço para a periferia: mas isso não deveria acontecer senão a
aí floresceram não teriam ficado aré agora em g rande parte ignora­ certas áreas mais afortunadas. Em grande parte da Itália a situação
dos e muitas das belas obras que fizeram não se teriam disp ers ado não irá permitir recuperação alguma 139.
ou não teriam ficado esqueci das, com grave dano para as respecti­
vas cidades, para os profiss io nai s e para as famílias; teriam antes
estado, e estariam ainda agora, conservadas com a devida estima. 26. Centro e periferia, persuasão e dominação
E seriam admiradas e seriam visitadas por viajantes!
Tem V. conhecimento, por exemplo, de um certo Cristofano Não é certamente uma novidade afirmar que as imagens po­
Lanconello? De um Gio Barista Bertuccio? De um Palmeg­ dem ser .instrumento de persuasão e de domínio na relação, nunca
giani ?» 136 pacíf1 ca, entre centro e periferia. Por vezes , quando se trata de pôr
em destaque a efígie do soberano e as suas i ns ígnias , estaremos
Para Crespi perante uma utilização ditecta: e basta recordar como Bonifácio
VIII utilizara a mandara utilizar o seu simulacro para confirmar,
«todas aquelas coisas que de qualquer modo podem rornar ilus­ de Orvieto a Bolonha e a Anagni, o domínio da Igreja e o seu
tre uma cidade devem sempre manifestar-se, para perpetuar o mais próprio poder pessoal; como a estátua equesrre de Azzone Vísconti
possível a memó ria daqueles que foram os seus promotores ou seus se impunha a súbditos e fiéis do cimo do alrar-mor de São João,
autores ( . . . ). E se isto é verdade ac erca de qualquer coisa valorosa em Conca; como as armas encimando as portas das cidades eram
em geral ( . . . ) , quanro mais o não será tratando-se das três artes pintadas e apagadas consoante as mutaçõ es senhoriais, ou como os
nobilíssimas, pintura, escultura e arquitectura, das quais se pode apararos para as entradas triunfais confirmavam o poder e a magna-
dizer que é só graças a elas que se distinguem as cidades que vêm
a ser vi si tadas por doutos viajantes ( . . . ) e, embora em grande parte
exercidas por artífices de obscura e às vezes baixa linhagem, é no 1 37 lbid••m, p. 7 7 .
• :·• A. Momigliano, <<Ancienc Hiscory and che Anriquarian», in jotJma/ o/
tlw W,lfilllt'J!. �md Courtatdd lrutit11tes, XIII, 19'50, pp. 285 ss.
tn G. Botmri e S. Ti<:ozú, l?ttfmÜct dí /ett�re mlla pitttmt, .l'mlttmt ed a·nhi­ 1 -"' Na J nglal'!'fra, o final do século XVIII é o momento do take-ofl econ6mi<:o
lcttllt"a. . . , VJl, Milão, I H 2 2 , p. (.6. ,. 1 u l n 1 r:d . l a pt'nv(nci:l. í,f. f. D. K)ingender, A.rte e t'i11oimimw indwtriale,
1·1''
lhitkm, pp. •)!( :.x, ' J ' • ll'l l l t , i 'J U . ' I ' , 1111WI'I'I I , 'J'ht• 1{/,re 1!( th11 ll7!gliJh Prwincictl A rr, Oxtórd, 1.974.
74 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 75

nimidade do senhor. Muito frequentemente o uso das imagens pode alguns elementos que compõem o campo artístico: as obras, os
ser menos directo, entrando num discurso político mais geral: e arriscas, os consumidores, o público. Entre eles o público faz figu­
também aqui não faltam exemplos, desde as façanhas dos lombar­ ra de elemenro imóvel na consranre deslocação dos outros três,
dos pintadas no Palácio de TeodoUnda, em Monza, os padres da mas é ele ao mesmo tempo o menos estudado e por isso o mais
Igreja que Ma rt inho I mandou pintar nos muros de Santa Maria difícil de agarrar; a nossa atençãoirá pois incidir de preferência
Antiqua, depois do Concílio de Latrão de 649, para combarer a sobre os outros e, acima de tudo, sobre as obras.
heresia monotelita apoiada por Constantinopla, até às cenas do Podemos distinguir aqui várias situações que vão desde o acco
Risorgimento pintadas por Cesare Maccari, Amos Cassioli e com­ puramente negativo da destruição, autêntico grau zero na escala,
panheiros na Sala Vittorio Emanuele do Palazzo Pubblico de Sie­ até ao envio do centro para a periferia de obras de elevadíssimo
na, ou a episódios ainda mais próximos, de que a produção artística nível, passando através de fases diversas.
do período fascista nos dá grande número de exemplos.
Nourros casos rrata-se de interpretar os conflitos políticos através Não insistiremos naquilo a que designámos por grau zero; grosso
de mutilações das imagens, mostrando bem como um cerro esrilo e mod{), as destruições devidas ao conflito centro-periferia podem ser
certas fórmulas de representação podem ter sido imposras. A Ruch­ de dois tipos: ou directamenre decorrentes da vontade de eliminar
well Cross ou os capitéis de São Domingos de Silos revelaram a os testemunhos da cultura da área submetida, ou mais indirecta­
existência de autênticas batalhas simbólicas em que, durante a Idade mente resultantes da pouca consideração em que são tidos nas cidades
Média, um novo estilo, apoiado por uma autoridade polírica ou súbditas os produtos ela sua própria culrura antiga. São exemplo
reUgiosa, era imposto contra a resistência duma cultura aucóctone l40. do primeiro caso as destruições das antigas «delícias» ducais atira­
A adopção obrigatória de modelos estilísticos e iconográficos das para fora das muralhas de Ferrara depois da devolução dos
provenientes do centro, a elaboração no cenrro de códigos estilísricos estados dos duques de Este à Santa Sé: eliminação radical dos
diferenciados, válidos uns para a metrópole e outros para a perife­ testemunhos arquitectónicos do antigo poder justificada por um
ria, o sequestro dos bens simbólicos do país dominado, o fluxo dos hisroriador de Ferrara, atendendo a que
melhores talentos da periferia para o cenrro e o fluxo, em senrido
inverso, de produros de elevado potencial simbólico do centro para dispêndio inútil que teria de fazer a Câmara para as conser­
«O

a periferia - tudo isto são formas episódicas em que se manifes­ var e as fortificações das muralhas naturalmente opostas a semelhan­
tam os modos de dominação. Na impossibilidade de os tratar ex­ tes delicadezas não lhes permitiam duração mais longa >> , 141
tensivamente de maneira organizada, procederemos a uma espécie
de enumeração ripológica que permita a exemplificação de casos e e são exemplos do s egundo as lamenra<tÕeS sobre a situação do
problemas. património artíst ico das cidades da província tão frequentemente
Jocumentadas nas Lettere pittoriche.
Discurso mais longo merece a razia dos bens simbólicos. Desde
27. A dominafão simbólica Catlos Magno, que transporta de Ravena para Aix-la-Chapelle a
c:-Lácua equestre do chamado Teodorico, aré às requisições estendi­
Para identificar alguns aspecros significativos da relação de
das a toda a Europa para a consciruição do Musée Napoléon142 e às
domínio simbólico poderão seguir-se, uma por uma, as posições de
111 /1.. Jlrizzi, Mewwic per lrt Storirt di Fermra, V, Ferrara, 1809, p. 64;
1'0 M. Schapico, «The Religious Menning of che Ruchwell Ccossn , in The
c l. l.llll i>(:m 1�. Riccom i n i , /I Sciremn fen·arese, Milão, 1969, p. 10.
Arl BtJilctin, XXVI, 1944, pp. 232-45; idt'flt, «Fwm Mm:nrabic tn Rornanc;squt· t iJ C. ( ; , ) l rl . J , 'J'rojJh'Y tl <.'ontflltl.o/. The Mwéc Nr.�pnléon tmd the Crcation of the
in Silos», i/;id. , XXl, 1 9:'\9, pp. 1 1 2-74, prr·scrll:l·nwrH�· r·n1 M . Sclr;q1im, Sclur:..
I �tflt'"'• t .ond r I'''· I ')(rÍ.
tt!tl Pupnr.r. l?om.t�nv.rqllt' 1\rl, Novn forq 1 1<', 1 ')/ I. 1'1' ' H :>:..
CAPiTULO I 77
76 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA

. . - do supermuseu de L'mzl43 , 1 6 1 7 , as igrejas espoliadas de mui tos dos seus melhores quadros,
requisições hitlerianas com vista à cnaçao
saídos das mãos de Dossi, de Ortolano, de Garofalo, de Carpi, de
a história destas romanescas e aventnrosas rapinas encontra-se lar­
Ticiano, de Gio Bellino, de Manregna e de outros insignes pinro­
gamente divulgada. Bibliorecas (como a Biblioteca Palatina de
. . res nacionais e esrrangeiros, e serem substituídos por cópias, de
Heidelberg, subtraída pelo duque da Baviera ao elenor palauno
resto estimáveis, feitas por Bononi, Scarsellino, Bambini, Naselli e ftgs. LJ " 2 4
após a batalha do Monte Branco e oferecida depois ao Papa co:no
. outros. Quem e para onde os transportou não nos é dito, mas
sinal de vitória sobre os protestantes e de reverenre submtssao),
sabemos que, de entre os nossos preciosos monumentos desse género
colecções de arte, estátuas equestres, retábulos de altar, retratos,
e manuscritos e antiguidades, muitos, em diversos tempos, foram
esculturas, abandonam os seus lugares de origem para serem � rans­
a enriquecer a capital.»
feridos para as capitais cujo primado simbólico é necessário wcre­
mentar144. O facto produz-se de maneira exacta no decurso do
Girolamo Baruffaldi dá testemunho destas espoliações ao es­
processo de periferização de muitas regiões i talia�as depois da . crever a vida de Niccolà Bambini, um dos artistas utilizados em
reest ruturação do século XVI. Caso exemplar e, , mats uma vez, o
copiar os quadros que foram objecto de rapina:
de Ferrara, aguando da extinção da dinastia de Este e da devoluç.ão
do estado à Santa Sé. Escreve Lanzi, evocando as consequênCJas
«No tempo da devolução desta cidade ao governo eclesiástico,
artísticas destes acontecimentos:
ou seja, no ano de 1 5 98, era ele um dos mestres que trabalhavam
em Ferrara, e nessa qualidade foi encarregado de copiar várias pinturas
«A mudança do governo deu-se no tempo em que era sumo
preciosas de mestres excelentes para se poderem mandar para Roma
pontífice Clemente VIII, em cuja entrada solene trabalharam pa�a
, os respectivos originais, desejados pela corte pontifícia que ali se
os fes tejos públicos Scarsellino e Mona, escolh1dos como os pmcets
. encontrava. De duas posso eu dar conta segura, e são o quadro da
mais hábeis em fazer muito em pouco tempo. Foram mais tarde
Ascensão de Crisro de Santa Maria in Vado e o quadro de Santa
ocupados vários pintores, especialmente Bambini e Croma, a co­
Margarida na Igreja da Consolação . Este era de Orrolano e o outro fi�. 2.1
piar vários quadros escolhidos na cidade, que a corte de Roma
, as e aos de Benvenuto da Garofalo.»147
quis transferir para a capital, deixando a Ferrara as cop 1
historiadores de Ferrara as lamentações. » 145
Ferrara pode valer como modelo de uma situação gue se pode­
ria corroborar com outros casos. Não muiro diferentes, por exem­
Entre as «lamentações » dos historiadores de Ferrara será bom
plo, foram as consequências da devolução à Igreja dos bens dos
recordar a de António Frizzi116:
Della Rovere148• Uma análise destes momentos negativos da história
artística italiana seria rica de ensinamentos sobre as vicissi tudes da
«Foi um desgosto para os nossos concidadãos ver, no ano de
relação centro-periferia; nem ficariam esquecidas neste contexto as
colossais dissipações de obras de arte de que a Itália foi objecto nos
14� D. Roxan e K. Wanscall, The Jackthw of Li111.. The Story of Hit/er's Art
últimos cento e cinquenta anos.
Thefts, Londres, 1964.
, . . ,
1�4 E. Mumz, «Les annexions des colleccions d are ou de b!bhorheques et
leur rôle dans les reladons internacionales» , in Revrte d'Histoire Diplomatique,
VIII, 1894, pp. 48l-97; IX, 1895, pp. 375-93; X, 1 896, pp. 481 -508; W.
Treue Krtmtraub. Uebe�· die Schicksale von KrmJituerkm m Krteg, Revoltttttm tmd
Fried:n, Düsse ldorf, 1957; H. Trevor-Roper, Tbe Plutzder of the Am ht the SL'Ver!­ 1'11 ( ; , l'ian,
rra ldi, Vite de'p ittnri t smlttli'Í .fet'raresi , !1, Ferrara, 1846, p. 27.
tee11tb Cemury, Londres, 1970. 1 '1 11 A , H m i l i a n i , (,'i,l!l J lru11rr1.rw G'itqj'rieri. rf,t Fr,.r.rombrr mc, Urbino, 1958,
14l
Lan:t.i, Ul, 169.
l '• · l .' '
IM. flrizzi, Mcmo'l"ic per la .rtrwirt di 11111'1'<11'" • \'i t . , V, I ' · cít1 ,
78 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 79

28. A dinâmica das obras Tomemos um ourro caso de envio de obras, ainda no século
XIV e ainda na área de Siena. Não se rrara agora de uma cidade
De diverso ripo e grau pode revelar-se rambém o envio de imporranre e rica como Massa, mas de algo que é hoje uma humilde
obras pcovenienres do centro. Ainda aqui poderemos distinguir vários povoação, Roccalbegna, nas faldas do Amiara. A igreja paroquial
casos. conserva três quadros de grande qualidade assinados por Ambro­
Tomemos por exemplo o de Massa Marítima, no decurso do gio Lorenzerri, e isto levantou a quesrão de saber que circunsrân­
século XIV. As obras importantes de Siena foram aqui um instru­ cias reriam levado um dos maiores artistas daquele tempo a criar
mento de penetração da cultura senense antes da definitiva sujei­ uma obra de tal valor para um burgo tão remoto149. A resposra
ção da cidade, ocorrida em 1 3 36. Os primeiros decénios do século esrá provavelmente na importância que os Senenses atribuíam ao
XIV são inteiramente domi nados pelas importantes encomendas pequeno centro mineiro, situado na fronteira meridional do estado
arrísricas confiadas a arriscas senenses: em 1 3 1 6, os senhores Nove que tinham adquirido e consolidado nos finais do século XIUI50.
del Consiglio di Massa fazem pressões sobre o responsável da O caso destes quadros deve portanto ser relacionado com a criação
obra de São Cerbone para que seja termi nado o grande painel para de uma cidade nova e com o empenho - que se concretiza na
o alrar-mor da catedral, segundo o modelo da Maestà de Duccio e concessão de numerosas facilidades - de para ela fazer convergir
certamente executada no atelier do grande artista senense. Em 1 324, cidadãos de Siena, relativamente aos quais as pinturas prestigiosas
como indica uma inscrição, o sarcófago de São Cerbone, obra­ de um dos maiores arriscas da sua terra deveriam funcionar como
-prima da esculrura g6rica i taliana, encomendado a Perucius, arrí­ instrumentos de identificação e agregação. Tudo isto está interli­
fice da catedral, foi termi nado pelo mestre Goro di Gregorio, «de gado com a proliferação de obras e de encomendas artísticas que
Senis» ; alguns anos depois, mas talvez ainda ames da conquis­ durante o século XIV ocorrem nas cidades e burgos da Maremma
ra senense, é executada a Maestà de Ambrogio Lorenzerri, guarda­ meridional, de Grossero a Paganico, ou seja, na zona de recente
da outrora em Sant'Agoscino e presentemente no Palazzo Comu­ expansão senense.
nale. Em oucros casos o envio de obras revela e acentua um estado
Obras que se conram enrre as mais significati vas da arte se­ de dependência cultural que pode coincidir com uma dependência
nense são pois realizadas para a cidade mineira de Massa Maríti­ económica e polírica. Na igre ja paroquial de Calvi, na Córsega,
ma, que se mosrra toralmence dominada por Siena mesmo anres um grande políptico que orna o alrar-mor está assinado por Gio­
que esta assuma o seu controlo político e que Agnolo di Ventura vanni Barbagelara, «de Janua» (uma compi lação dos casos em que
sele a conquista com o novo disposirivo de fortificações. Contraria­ o lugar de origem segue na assi natura o nome do arrisca poderia,
mente a outras cidades, como Volrerra e San Gimignano, a opu­ confrontado com os lugares de desrino das obras, fornecer indica­
lenta Massa Maririma, pese embora a ampli rude das encomendas, ções bastante úteis). Os documenros informam-nos de que o políprico
não teve nunca uma tradição arrística autónoma e sujeitou-se a foi encomendado por dois cidadãos de Calvi, que o q uiseram feiro
uma hegemonia culrural exrerior imposta por obras de excepcional à semelhança daquele que foi pintado por Giovanni Mazone, em
qualidade, que antecipavam o domínio político. Se de novo aten­ 1 46 5 , para Santa Maria do Castelo, em Génova1 5 1 . É significativo
rarmos nos critérios de entrada naquele clube de centros artísticos
italianos que imaginámos, não deixará de ser significativo que os 149 E. Carli, Dipinti Jenesi de/ Conta® e del/a Maremma, Milão, 1 9 5 5 ,
bispos de Populonia só nos inícios do século XII acabem por pp. 8 4 ss.
uu
encontrar em Massa uma sede estável, como aconteceu em Grosse­ W. M. Bowsky, The Firtaru·e of the Commurte of Siena 1287-1355,
Ol<fmd, 1970, pp. 25 ss.
ro (também ela roralmenre dominada pela produção anística sc­
' 5 1 ( ; , V. Cascclnovi, <<G·iovanni B;ubagelata n , in Bollettirto d'm·te, 1 9 5 1 ,
nense), para onde o bispado de Rose1le foi ddl n i tivarncnt( ' t ransf!' pp . . � I 1 - / · 'Í ; 1 1 . A I Í�•:ri, NMiú11 dú fmlj'e.r.rori de/ c/.iJe;..,.w
., ú1 U.ptr-ia dal/e origini td
rido em 1 1 3H. .ro•colr1 .\' VI, 1 1 . Co�lllll'·', I �UO, pp. I H�) ss.
CAPÍTULO 1 81
80 HIST6RIA DA ARTE ITALIANA
Isto não quer dizer que não afl u íssem
arriscas a Veneza vindos
o fascínio exercido pela obra mais antiga (caso análogo àquele -
de Cadore, das margens do B re nra ou do Á dige; quer simples­
de que se falou - das cópias feiras em Narni rendo como modelo
mente dizer que não foram destruídas, antes pelo conrtário, as
o quadro de Ghidandaio) e significativo também o facto de o
condições necessárias a uma actividade local.
protótipo ser genovês e de ser encarregado da encomenda um pintor Noutros casos, porém, continuarão no lugar pintores de mo­
genovês. Nesse momento a ilha é política e economicamente
desta envergadura, que poderão encontrar trabalho nas encomen­
dominada por Génova, mas a s ubordi nação c u lt u ral pode perdurar das de um público pouco exigente. Um pintor corso como Maes­
mesmo quando se interrompe a subordi nação polírica. Disto dão tro Antonio di Simone di Calv.i assinará, em 1 5 0 5 , um políptico
testemunho na Sardenha os envios de obras provenientes de Pisa para a igreja de Cassano (perto de Calvi)m, ao passo que, como
(esculturas, polípticos, sinos)152 que continuaram mesmo quando a
vimos quanto à paroquial de Calvi, o políprico do altar-mor vinha
ilha escava firmemenre nas mãos dos Aragoneses, mas não ainda
de Génova. Por :vezes, enquanto os mestres locais se ocupam de
aflorada por aquela onda mediterrânica «gótico-hispano-napolita­
cerras produções típicas - como é, por exemplo, a pintura de rec­
na» de que conserva significativos documentos1l3. O m esm o é do­ ros - as obra$ em quadros vêm de longe. Este é um caso que se
cumenrado por obras de Pisa ou de Génova frequentes na Sicília
verifica em Palermo, no século XIV, quando Masrru Simuni pin­
no decurso do século XIV, assim como por obras véneras
·
dos s é- ruri di Curigluni, Masrru Chicu pinruri di Naro ou Masrru Dare­
culos XIV e XV frequentes na Apúlia. nu, de Palermo, pintam o tecro do Steri, enquanto Barrolomeo da
Camogli ou Niccolo da Volrri da Genova, Jacopo di Nicola, Turi­
no Vani e ramos ourros enviam de Pisa quadros e polípricos para
29. A dinâmica dos artistas
igrejas e orarór.ios'l6.
Situação rípica dos arrisras das áreas periféricas é a de serem
Paralelamente às obras, mas, como veremos, às vezes em senti­ atraídos pelo cenrro politicamente homogéneo. É este o caso de
do oposto, podem movimentar-se os artistas. Será rodavia necessário Ni cc olo di Lombard ucc io di Vico, um dos maiores artistas activos
distinguir as situações. O facto, por exemplo, de o domínio véneto na Ligúria no século XV, que era originário da Córsega e precisa­
se estender não parece ter conduzido a uma suhmissão culrural mente por isso conhecido como Niccolõ Corso; ou ainda o do genial
generalizada. Poderemos aplicar à pintura nos esrados conrinenrais art is ta Tuccio d'Andria, «de Apulia», que pintou, em 1487, um
da Sereníssima República de Veneza tudo o que foi dito a propósito t ríp ric o para a Catedral de Savona representando os esponsais de
da persistência na Verona do século XVIII de uma cultura literária Sanra Carar.ina (as relações com o Mediterrâneo ocidental foram
local: p rovavelmente facilitadas pela origem provençal dos senhores �e
Andria, os Del Balzo); o de outros artistas da Apúlia, como Regt­
«É uma rradição literária municipal que quatro séculos de naldo Piramo di Monopoli, que ilustra manuscritos em Nápoles e
dominação veneziana não conseguiram tornar submissa e mu ito em Veneza1�\ o de mtútos calabreses, como o m iniarurista Cola
menos servil à tradição literária da capital, Veneza ( . . . ). Disse que
Rapicano, o arquitecto Francesco Mormando, o pintor Marco Car-
quatro séculos de dominação veneziana não conseguem fazer ver­
gar Verona, mas fique bem claro que nunca, da parte de Veneza, t n G. Moracchini, Trésors oubliés des églises d� Corse, Paris, 1 9 5 9 , pp. 22
houve o propósito de a fazer vergar . . . » 1 )4 .
e 1 1 4 ss.
o
"6 R . Longhi, <<Prammenro Siciliano, , in Pm·agone, IV, 1953, n. 47, pp. 3
ss.; F. 13olo�nn, 11 soffitto deL/a Sala Mag11a alio Steri di Palermo e la cultura
m C. Maltese, Arte in Sardegna de/ V a/ XVIII seco/o, Roma, 1.962.
'll
Cf. F. Zeri, <<Pcrché Giovanni da Gactn c: non Giovunni S(l/� itauo», in ·
{Ctit/,�/,· ikitianct ndl'rmtl/.lrmo dei Mediowo, Palermo, 197 5 .
.

. D'Hiia, C:.ltálogo da Mo.!tl"tl d'cwt� iu P11glia dai tctrdo A ntico al Rococb,


Pcwago11e, XI, 1960, n." 1 29, p. 5 3 .
, ,, M .
I lu ri, I <)(t.1,
l l < Dioni�o!:ti , C:tillllrc re/!,irm11li , c i 1 . , p . I �·I,
82 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 83

disco e mais tarde, entre Seiscentos e Setecentos, Maccia Preti ou ou Veneza: com as maciças e repetidas penetrações de artistas es­
Francesco Cozza1)8; o de sicilianos como o messinense Agostíno, trangeiros (pisanos, piemonreses, lombardos) constitui um caso de
conhecido como Sarrino em Génova, em 1400, ou Pavanino da cenrro-relais onde se recolhem e donde são retransmitidas e am­
Palerma, na segunda metade do século, na região de SalernoD9• pliadas experiências diversas.
Isto para não falar dos dois mais célebres emigrantes sicilianos,
Anronello da Messina e Francesco Juvara. Nestes dois últimos casos,
Veneza (nos finais de Quatrocentos) e Turim (nos primórdios de 30. A dinâmica dos wnsumitlores
Setecentos) fo rnecem bases a partir das quais os modelos propostos
poderão ter uma difusão italiana ou mesmo europeia. Restam os consumidores. Também aqui se propõe, como no
Outras ci rcunstâncias podem impelir os artistas a realizar a caso das obras, um grau zero - o de uma total exaustão de gru­
fuga numa di recção oposta à do centro político: é o que acontece, pos de consumidores. Assim acontecerá em Casale Monferrato,
por exemplo, em Pisa depois da conquista florentina. Ao contrário quando Guglielmo Gonzaga sucede à antiga dinastia dos Paleólogos
do que tinha sucedido nos centros continentais ocupados por Veneza, e motiva com a sua política a liquidação de cercos grupos sociais
uma grande parte dos pintores pisanos deixa a cidade e refugia-se citadinos e de uma tradição pictórica que neles se apoiava � tra­
em Génova. O seu número é de tal modo relevanre que uma as­ dição que será posteriormente retomada, mas em direcção dife­
sembleía da arte dos pintores genoveses em 1 4 1 5 - onde em rente161. Casos semelhantes poderão apresentar-se em Urbino162 e
vinte participantes três são genoveses e nove pisanos - decide nourros centros italianos.
modificar o estatura da corporação no sentido de favorecer os mestres Caso diferenre será o dos consumidores que, provenientes de
estrangeiros que venham a trabalhar na cidade160. um centro importante, deixam traços da sua passagem na perife­
Um outro exemplo a tomar em consid eração nesta tipologia ria. São bispos, lugares-tenentes, governadores, abades comendarários
sumária será o dos artistas que se deslocam do centro para áreas que se comprazem em encomendar para a sua temporária sede
que, mais que periféricas, se poderiam chamar subordinadas. Deixan­ obras que manifestem a sua origem, as suas viagens, a sua elevada
do de parte o caso dos senenses, que não só mandam obras mas até posição social e cultural. Os frutos desre zelo mecenático, fora de
no século XIV vão trabalhar para Massa, para San Gimignano, qualquer conrexro e de qualquer repercussão ou expectativa locais,
para Paganico, etc., exemplos em larga escala vêm da acrividade cairão quase como meteoros. Este será o caso do ferrarense Philos
dos venezianos nas cidades do continenre enrre Quatrocentos e Roverella, que volta do Concílio de Trenro, em 1 5 45, à sua dio­
Qui nhentos e do autêntico rush dos pintores lombardos na Ligúria cese de Ascoli Piceno trazendo atrás de si um dos artistas mais em
depois que Génova se colocou sob a protecção de Filippo Visconti, foco na corte do príncipe-bispo de Tremo: o friulense Marcello Fo­
em 142 1 . Tratar-se-á neste último caso de assegurar melhores golino, a quem encarrega de decorar com cenas bíblicas o seu palácio
encomendas - e posições - num centro que é economicamente episcopaP 63. Não diverso - pela sua falta de con texto - será o
um gigante, mas culturalmente (e nesta altura politicamente) um caso de quem, nativo de uma área periférica, ascenda a grandes
anão. De resto o caso de Génova nos séculos XIV e XV é anómalo honras numa capital, como acontece a muitos prelados, médicos,
em relação à fisionomia de centros artísticos como Florença, Siena

16 1 G. Romano, Casalesi de/ Cinqttecmto. L'a11vento dtl maniemmo in una città


•�e F. Bologna, prefiício ao catálogo A1·1e in Calabria, ritro11amerzti, ·re.rtarwi, f�adana , Turim, 1970.
remperi, Cosenza, 1976, pp. 6 s. '"2 Cf. as obsecvações de Emiliani, Gian Francesco Guerrieri da Fossom­
1 19 F. Abate, «La pi ttura in Campania prima di Colanco n i o » , in St.twia di h�ol\1.', cic., e na introd uçã.o ao catálogo da Mostm di Lttdovico BanJCci, cir.
Na/JOti, IV, I, Nápoles, 1 974. 11'' C. Man·hi n i , « U n inco•1cro i m prevedibile: il Fogolino ad Ascoli Pice­
> r. o F. 1\lizl'ri, NoiÍ7:;,:, c i 1 . , p. :1. 1 0 . fl o • , i 11 1\ntkhit,) l'i-t•rt, V, 1 966, n . " I. pp. � ss.
84 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 85

burocratas e juristas uo decurso dos séculos XVII e XVIII. Pode sociais. Bastante significativo é o que se passou numa zona restrita
acontecer que se preocupe em enviar pata a terra natal uma ou da serra de Norcia, onde se encontra uma singular concen tração de
mais obras que atestem o seu amor pátrio, o seu gosto afinado, o

I
quadros florenrinos do gótico tardio ou renascentistas, desde Gio-
seu êxito social. Assim acontece que, residindo em Cento como vanni dei B.iondo a Neri di Bicci, a P.ie to di Cosimo, a Filippino tig. 2'

governador por volta de 1636-37, um natural de Spolero, alto Lipp.i. Estas presenças compactas e isoladas, que acabam por for-

I
funcionário papal, frequente assiduamente o atelier de Guercino, mar um contexto bastante homogéneo, explicam-se pela relação,
adquira as obras e até faça delas presente a uma confraria da sua prolongada no tempo, que um grupo de terras desta zona apenina

I
terra natal164. mantinha com Florença, onde os montanheses úmbtios eram tradi­
Há ainda out ras situações: aquela, por exemplo, de consumido­ cionalmente empregados como carregadores na alfândega167. As
res periféric os que manifestam nas suas preferências uma subordi­ relações económicas entre áreas de emigração periféricas e um local

i I
nação cultural em relação ao centro. Um exemplo típico neste sentido, de trabalho si tuado no centro deram lugar a uma forma de sujei-
e extremamente sintomático pata estruturas de tipo feudal como a ção cultural. ·
da Calábria, é o da encomenda dos Sanginero, senhores de Alto­ Um último exemplo virá da Apúlia, onde os centros da costa

li
monre165. Encontrando-se Filippo di Sang.inero, em 1 326, a atra­ adriárica são caracterizados pela concentração de obras vénetas do
vessar a Toscana no séquitO de Catlo di Calabria, encomenda o San século XIV ao século XVI (depois substituídas pela penetração
Ladislao de Simone Mattini e um políptico a Bernardo Daddi.
I
Jl de obras napolitanas), que acompanham a presenca militar, política
Mais tarde, um membro da mesma família, enconcrando-se desta e comercial de Veneza168 Estas obras são muitas vezes as ordens
vez a reboque das preferências de Ladislao di Durazzo, encomen­ religiosas que as adquirem: o políprico de .Jacobello di Bonomo,
dará em Nápoles um políprico com histórias da Paixão ao obscuro do Museu de Lecce, veio da igreja das monjas beneditinas de São
mestre chamado Antonio Onofrio Penna. Nos dois casos as esco­ .João Evangelista de Lecce: o São Pedro Mártir de Giovanni Belli- ltg. 2(•

lhas dos Sanginero seguem as dos Angioini di Napoli, nos dois ni, da Pinacoteca de Baria, veio da igreja dominicana de Monopo-
casos as obras encomendadas vêm a ser recolhidas na Igreja de li; Savoldo e Pordenone pintam quadros para a igreja franciscana
Alromonte, sede do poder feudal, onde existe uma grande concen­ de Tetlizzi. Mas o prestigio de Veneza é grande em rodos os grupos
tração de símbolos culturais em comparação com o deserto do sociais: enquanto Muzio Sforza, um l iterato de Monopoli, dedica
território circundan te. A disparidade na distribuição dos bens um poema a Tinroretro, Lorenzo Lotto recebe, a 1 6 de Junho de
artísticos e a sua heterogeneidade indiciam uma situação que não 1 542 , Alouise Caralano, mercador de Barletta, enviado a ele por
é só periférica mas até colonial, e que se repetirá em Teggiano, «OS homens de Juvenazo» a fim de lhe encomendarem um rrfptico
o feudo dos Sanseverino, que nos confins da Campânia domina o para a sua Igreja de San Felice169·
Vallo di Diano, ou em Galarina, no Salento, onde Raimondello
Orsini dei Balzo e a sua mulher Maria d'Enghien fundam e man­
dam decorar pelas mais diversas equipas de pintores a Igreja-San­
tuário de Santa Catarina166.
Esta subordinação cultural em relação ao centro pode manifes­
tar-se mesmo em consumidores que pertençam a outros grupos tó7 A. Fabri, «Areis ti fiorenrini sul territario di Norcia>> , in Rit;ista d'arte,
XXXIV, 1959, pp. 109-22; idem, Pt'eá e la Valle Ca.rto1'iar1a, Spolero, 1963.
lloll H.. Cessi, «Venezia, le Puglie e l'Adriatico», in Archivo
i St01·ico delle Pu-
164 Casale, Falcidia, Pansecchi, Toscano, Ril·1!1·che in Umbria, cit., p. 34.
8/h·, Vlll, 1966, fase. 1-4, pp. 53-59; M. S. Calo, La pittura dei Cínquecmto e de/
16) F. Bologna, I pittori alfa corte angioina di Napoli, Roma, 1969, pp. 173,
(l'l'illlo Sr•iu'lllo in term di B,�.ri, Bari, 1969.
349; idem, prefácio a Arte i11 Caiabri,z, ci t., p. 7. "'" J>. ( ;j;lll l l t%.z i, ,.(Jrw pnla di pinta ela Lorenzo J.otro per la cattedrale di
t (.r, Antonaci, \,/i 4/fi·e.rchi di ((uJ,,riwt, Mili'lo, 1 1JM, . < : loviii.V/.1 1 • • , in 1\r/t.' 11 .1'/llrÍ(I, X fl l , I H 91\, p. 9 1 .
CAPITULO I 87
86 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA

transformações das esrruturas culturais, não só no que resperra ao


3 1 . A Igreja depois de Trento
seu fu ncionamento mas até mesmo quanto ao seu quadro de refe­
rência geográfico. O facro de a província do Píemonre se inserir na
A reestruturação centralizadora e burocrática dos estados terri­
problemática arquitecrónica da área alpina europeia é disso um
toriais e a reorganização da Igreja depois do Concílio tridentino
sinal tangível: mas esta situação favorável não pode, contudo, ser
implicam, no decurso de Quinhentos, novas formas de dominação
generalizada.
do centro sobre a periferia, que se manifestam num acentuado
A 1 4 de Setembro de 1 7 5 5 , um arquitecto periférico, um certo
processo de tipificação e de codificação das imagenst 70 e das arqui­
Lorenzo Daretti, escreve de Ancona a Vanvitellí pedindo-lhe auto­
tecturas: processo que é solici tado e ao mesmo tempo revelado
rização para continuar a construção da igreja dos Agostinianos, e é
pelo desenvolvimento da literatura rratadística. Num per.íodo m� is
desta maneira humilde que se apresenta:
próximo de nós, na Alemanha de Guilherme, um reg�amento preC1so
impunha que nos centros de menos de cinquenta mil habrtantes as
«Depois de a esta cidade de Ancona, minha terra natal, ter
estações dos correios fossem de estilo Renascimento alemão, en­
regressado de modestos estudos feitos sobre a arquitectura, tendo
quanto as grandes cidades de mais de cem mil habitantes devt �m
ocasião de fazer modestamente várias pequenas consrruções que
ter estações de estilo românicom. Ora, se a minuciosa casuística
encontraram uma certa indulgência ... »
dos regulamentos da Contra-Reforma não prévia um recurso dife­
renciado aos estilos históricos, tendia pelo menos a constrlllr uma
Responde altivamente de Nápoles o arquirecto do centro:
tipologia hierárquica distinguindo e prescrevendo soluç ões e pre­
.
ceitos particulares consoante a igreja fosse caredral, colegtada, aro­ p
quial, sufragânea ou monástica e o oratório fosse ou não desttna o � <<Ignoto chega até mim o seu nome, como V . diz, e muito
mais ignota chega até mim a sua capacidade em arquitectura, sen­
à celebração da missa. Por ourro lado, a constituição de lugares desti­
do certo que quando eu esrive em Ancona não encontrei lá ne­
nados a formação como as academias, cuja voga se impôs no século
nhum, nem mesmo nessa província. Nesta cidade porém encontrei
XVIII, tem um relevante peso específico na consecução de um
um grande número de desejosos de adqulrir esta capacidade no
controlo cultural preciso. No entanto, a codificação da ripologia e
meu estúdio; mas depois, apercebendo-se das dificuldades, com
a centralização do ensino também irão ter efeitos opostos aos de
mais amadurecida ponderação acharam melhor seguir as comodi­
uma generalização mecânica de qualquer conformismo periféric � ,
dades, os ócios sem excluir divertimentos, do que dar-me o inc6modo
facilirando a circulação de experiências internacionais e o conheci­
de os manter a estudar em minha casa; e desde então até agora
mento de um repertório mais vasto. Disto nos oferece um exemplo
nunca tive notícia de que algum tivesse tirado proveito desta di­

I.
a obra de Bernardo Vittone, uma das maiores figuras do século
ficílima ciência, que reúne em si todas as outras ciências . » 172
XVIII europeu, o qual, rrabalhando embora quase exclusivamente

I
na província do Piemonte e principalmente na construção de igre­
jas de povoações e de oratórios campestres, apresenta soluções i ?o­
32. As contas com a Europa
vadoras que díaloaam
o
com as mais avançadas experiências europeras.
.
Através das mutações que se verificam na formação d os arttstas
Se é verdade que no século XVIII a arte e a cultura italianas
e na circulação das informações, o século XVIII assiste a profundas
tiveram larga circulação europeia, também é certo que, desaparec i-

l 7ó Cf. S. Marinelli, i n La pittura a Ve!'011/t tra Sei e Settectmto, catálogo da


11> E. Rnflni, «Ricerche sull'arrività del Vanvi telli nelle Marche», in
exposição, Verona, 1978, p. 3 5 .
. t\1/i tli:II' X I mn.c:1r·.uo rli Sltwia detl'An·hiteftllrct. Marche, 6 - 1 3 de Setembro de 1959,
1 71 N. Pevsner e outros, 1:/i.rt(l,.i.rmm mui bi/r.l.arul� K�trw, Mun•q1.1�·.
.
I Y67,
H o o1HI, I ()(i ') , 1'1' · lj(,(; �;�;.
p. 89.
88 HISTÓRJA DA A RTE ITALIANA CAPÍTULO I 89

dos Piranesi e Canova, nenhum arrisca italiano viu depois, durante Paris que se lhe afigura periférico e confessa ao seu discípulo Wicar,
muito tempo, a sua obra ascender à categoria de modelo. A fase encorajando-o a permanecer na Irália:
sucessiva foi a de um longo eclipse, que já de resto há tempo se
fazia anunciar. Nos meados do século XVII tinha-se encerrado uma «Neste pobre país eu sou como um cão arirado à água conrra
era plurissecular. Por uma simbólica coi ncidência, o mesmo ano vontade que se debate para chegar à margem e não se afogar. » 173
(1 665) em que Poussin morre em Roma vê em Paris a falência do
projecro Becnini para o Louvte. A crise profundíssima da socie­ Se para os estrangeiros a Itália é um passado em que se descor­
dade italiana, e mais ainda a debilidade da corte romana no qua­ tina o futuro, a relação dos artistas italianos com a Anriguidade
dro geral das potências europeias, impedem que daí em diante um está bem longe de ser dramática ou explosiva. Depois da morte de
paradigma artístico global se imponha a partir da península como Piranesi, que no reconhecimento das ruínas romanas e nos carceri
I I tinha acontecido num passado não muiro distanre, quando o presrígio tinha criado protótipos de interpretação sublime e visionária da
artístico e extra-artístico de Roma, capital da cristandade (cristan­ colossal grandeza da Antiguidade, nenhum italiano soubera seguir­
dade carólica de nome, embora não de facto), era de molde a poder -lhe as pisadas. Em cerro sentido, o paradigma neoclássico acabará
assegurar o sucesso mundial dos dois paradigmas que, em conflito, por aringü a Itália somente de ricochete, através da hegemonia
se tinham desenvolvido. Este foi o caso primeiramente de Rafael e política e militar, ainda antes da hegemonia arrfsrica, da França
Miguel Ângelo e mais tarde de Carraci e Caravaggio: o paradigma napole6nica. Nos anos da Restauração permanecem ainda os dife­
aparentemente virorioso e a sua alternativa. Isto não mais se re­ rentes centros regionais , reforçados pela presença das academia
s
pete: poderão surgir quando muito códigos secroriais como o dos que tinham dado estrutura .institucional às diversas escolas regio­
« Vedutisti», ligado à posição privilegiada que a Irália tinha no nais, mas a sua capacidade é bastante diferenciada. Parma ou Modena,
Grand Tour. Uma prova adicional desta posição é dada pelas vicis­ Luca ou Mânrua encontram-se já a reboque dos centros maiores,
situdes do paradigma neoclássico. Se as suas raízes eram italianas, Veneza atravessa uma crise bastante profunda, que se prolonga

só em parte podem dizer-se tais os seus protagonistas. Teve-se até por decénios, enquanto Milão reforça o seu papel cultural, ao lado
a situação paradoxal de artistas estrangeiros rrabalhando em Roma do seu papel político como capiral do Véneto Lombardo. É em
bastante alheados da vida artística local no presente, e empenha­ Milão, precisamente, que vem estabelecer-se o veneziano Francesco
dos anres em procurar nos monumentos do passado as chaves de Hayez, esse Nestor imperturbável que dominará a paisagem arrística
um futuro novo. Aqui elabora o anglo-suíço Füssli os preâmbulos lombarda aré depois dos anos 80, recebendo as encomendas dos
do seu estilo visionário, aqui estudam e executam trabalhos ingle­ com atrio tas lombardo s, as certidões de boa conduta do imperador
p
ses como Barry ou Runciman, suecos como Sergel, dinamarqueses da Austria e as honrarias do reino de Itália. Turim mantém os
como Abildgaard e depois Thorwaldsen, americanos como Benja­ seus laços privilegiados com a França, mas num clima atormenta­
min Wesr, suíços como Abraham-Louis Ducros, franceses como do e bearo, onde um Gioacchi no Serangeli , depois de ter sido
Jacques-Louis David. É em Roma que é executado e pela primeira discípulo de David e de ter recebido da Convenção o encargo de
vez exposto ao público ( 1 7 84) o manifesto da nova pinrura, o gravar a grande ícone revolucionária de Marat assassinado, acaba
}ttramento dos Horácios, de David: mas aqui, não obstante a curiosi­ por pintar uma Virgem Aparecend.o a São Bernardo para a Abadia de
dade suscitada, a obra só encontra fracas ressonâncias. Roma já não Hautecom be, reconstruída por Carlo Felice como monumento da
é, neste momento, o cenrro propulsor que tinha sido no passado e dinastia de Sabóia. Graças à presença de importantes colónias
nem sequer a podemos definir como um cencro-·relais: é ames uma
espécie de centro fantasmárico onde se concentram os desejos, as
11'
Carta de David a \'Vicar de 14 de Junho de 1789. Reproduzida em
esperanças e os projectos de mui c os (.'Stmngc:i ws. U ru mês
an:iscas
< >. t' ( : . WiJdcnswin, Dm'/1/llcnt.r t'IIIIAJ!Iémcntaii'U.I' a1t ccttalogtte de l'oelltJt'e t!e Lotús
apenas antes da tomada da nas t i l h;t, David J r.ll> .•: , · r\'sir11:1 :t u.rn I >,lf'itl, Pu ri:;, I ')7 5 , pp. ;�7 s.
90 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 91

artísticas estrangeiras, Roma, Florença e Nápoles perpetuam rela­ napoLitana, que, apoiada e encorajada a nível internacional por arriscas
ções ainda incensas com as culturas transalpinas, mas (analoga­ rão diversificados como Goupil, Forruny, Meissonier, acaba por
mente ao que acontece na língua literária, como mosrra o caso de desaparecer do panorama artístico europeu. As etapas deste per­
Carducci) enconrram sérias dificuldades em adequar as linguagens curso são conhecidas: das límpidas paisagens da escola de Polisipo
artísticas, onde é particularmente forte a permanência de estrutu­ à abertura à França dos Palazzi, do ambíguo realismo simbólico de
ras do passado, aos novos conceitos e aos novos conteúdos. Assiste­ Domenico Morelli ao breve parêncese da «escola de Resina>> ter­
-se nos centros italianos a uma espécie de exaustão dos códigos e a minando com o roque empastado e as lantejoulas de Mancini, a �risra
wna incapacidade de os renovar. de grande sucesso europeu, «olhar agudíssimo, mas não educável » .
Nesta siruação de arraso, de omnípreserire hipoteca do passa­ Não é difícil reconhecer as causas dos incidentes d e percurso e dos
do, abre-se com a unifkação política o problema da unificação resultados finais desta progressiva derrapagem: uma actualização
lingu.ísr.ica da arte italiana. O processo irá surgir, antes de rudo, a com base em experiências francesas mal seleccionadas e mal com­
nível temático com a proliferação e a difusão de uma iconografia preendidas, ur�a perene tendência ao compromisso entre realidade
patriótica comum que celebra a história italiana recenre, desde os e idealização, entre verdade e símbolo, uma subserviência às ex­
feitos de Garibaldi até às guerras da independência e às campanhas pectativas quer de um público de largas disponibilidades financei­
coloniais - processo em que se encontram envolvidos artistas de ras e gosto fácil, quer de mercadores internacionais em busca de
diversas origens culturais e geográficas: lombardos, véneros, tosca­ virruosismos récnicos e luxos profissionais. Tudo isro denrco do
nos, meridionais. Uma outra remática unitária, não já comemora­ quadro da crescente decadência económica da cidade.
tiva mas crítica, foi a do inquérito social: também aqui artistas de Os equívocos de que é feita esta crajecr6ria estão resumidos na
diversa origem se dedicam a trazer à luz as realidades ocultas e biografia de Vincenzo Gemico, potencialmente um dos grandes
obscuras do país, procurando realizar uma espécie de inquérito esculrores europeus do seu rempo. Por um lado, representa com
antropológico que apresente os aspectos peculiares, ainda os mais eficácia e vigor extraordinários toda uma galeria de pescadores, de
sombrios, de cada cultura regional. Em ambas as vias, porém, o garotos, de «doentinhos>> , procurando no bronze com virtuosismo
comum objectivo temático é acompanhado pela procura de uma os efeicos das obras-primas helenísticas; por outro lado, faz o cerra­
unificação que também é linguística, só em parre satisfeita pela co de Fonuny, admira incondicionalmente Meissonier e obtém o<>rande
difundida exigência de realismo. Reafirmam-se os particularis­ sucesso nos sa/ons. A longa crise psicológica que o mantém segre-
mos locais: por um lado, os centros tradicionais, como Veneza gado durante mais de vinre anos pode ser vista como o desfecho
(emergindo de uma crise de decénios), Milão, Turim, Florença, do desencontro entre esperanças e realizações, enrre dotes artiscicos
Roma, Nápoles; por outro lado, as regiões esquecidas, como os excepcionais e ausência de horizontes estilísticos adequados. Para
Abruzos de Michetti, que pela primeira vez se apresentam à luz evicar cair no esbocismo, Gemico procura um correctivo na grande
da ribalta. tradição: mas a sua tentativa desesperada de rivalizar com os bron­
Precisam-se as relações com a Europa: e trata-se, quase exclu­ zes helenísticos do museu de Nápoles rem um cunho inconfundível
sivamente, de relações com os arriscas, os críticos e mercadores que de auto-segregação provincial. Gemi co exemplifica, a elevado nfvel,
gravitam em torno dos salom oficiais, não com os grupos mais a culrura artística napolitana no seu processo de afastamento da
avançados e de ponta. Num período de conflito de classes, de tensões Europa moderna.
ideológicas, de lutas entre paradigmas como foi o século XIX, esta Roma e Milão em breve se rornam os dois centros hegemónicos:
opção é particularmente grave. Quando o aparecimento das van­ Roma é a sede das principais instiruições culrurais do reino, e é
em Mi l:"io que nasce o 1x.i meiro mercado de arce iraliano, que apoia,
guardas desencadear em França a crise da arre dos salons, muitos
arriscas, e até mui tos centros arcísricos i talianos, irão encontrar-se < l l t a�<: 1womove, a expe riênci a divisionista. Segantini e Pellizza da

completamente marginali zaclos. Um caso c x 1 · 1Y 1 p l ar ( o < l a cscoh1 Volp<·do .�;in, pr6xir1 1 1 > do Fim do s<·: c u l o , pintores de garra, de n ível
92 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAP ITULO I 93
e problemática não provinciais, e tudo o que acontece entre Milão
italiano, mais uma vez, revelava-se mais forre do que qualquer
e Roma nestes anos de aspirações libetrárias e socialistas, de espe­
tentativa centralizadora.
ranças vastas como as que pulsam no lento e imponente avanço do
Policenrtismo ou poliperiferia? Poderia aplicar-se a este dile­
Quarto Estado - o «grande quadrO>> que fecha a pintura italia a
� m a um passo célebre de Lewis Carro!:
de Oitocentos -, tem marca e qualificação europeias, talvez mats
do que aquilo que se segui rá quando em Milão, em torno do co­
? «- Quando dizes •monte' . . . - i nterrompeu a rainha -, po­
grama de Marinerti, o movimento fututista for ular o propostto
� � . deria mostrar-te montes ao pé dos quais considerarias este um vale.
de repor a arre italiana no âmbito das expenenCJas ma1s modernas
- Não, não consideraria - disse Alice ( . . . ). - Um monte
da Europa, ou antes, de a colocar precisamente à frente �elas. Em
não pode ser um vale. Isso seria um absurdo .... » 176
certo sentido, o futurismo, ao mesmo tempo ft!ho do fasCismo e de
uma industrialização retardada174, pode ser visto como um caso
De facto o problema da cultura italiana - e não só a figura­
exemplar de scarto periférico - o que pode contribuir para expli­
tiva - continua a ser neste período o da relação com a Europa.
car o sucesso que obteve na Europa, especialmente nos sítios onde
Esta Europa rem uma capiral - Paris -, mas rraca-se de uma ca­
cerras propostas e cerras aritudes deixaram de ser possíveis. A sua
pital em latga medida fantasmárica, isolada por uma historiografia
modernolacria optimista e provocarória só �ra realmente concebível
não menos sectária do que a historiografia de Vasari.
num país em que a revolução industrial esrivesse apenas no início1 7�;
. Mas fazer as concas com a Enropa significa, pata a Itália, fazer
uma síntese dinâmica que desroasse de experiências europe1as
as contas com o seu próprio passado. Com uma tradição tão pres­
recentes, ralvez mesmo contraditórias (do pointillisme ao expressio­
tigiosa i rremediavelmenre atrás de si, é impossível que não se sinta
nismo e ao cubismo), era também inco ncebível onde esras expe­
periférica. Sair da periferia pressupõe, portanto, fazer as contas com
riências tivessem conhecido um desenvo lvimento orgânico. Acres­
a tradição, com o museu. E aqui sobressaem as duas propostas
cente-se a isto que os futuristas, enquanro propunham uma política
mais radicais - a dos futuristas e a de De Chirico: deitar fogo ao
e uma acção de grupo, privilegiavam o aspecto heróico e demiúrgico
museu ou afastá-lo para longe, numa luz irônica e sublime.
do rrabalho artístico, colocando na sombra a moderna problemática
das «artes aplicadas » , que já, no encanto, alguns na Irália tinham
compreendido correctamente.
A exaustão da primeira vaga futurista, a deslocação para Roma
do centro do movimento, a breve duração da pintura metafísica,
alteram ainda mais a geografia dos centros artísticos italianos.
A tentativa futurista de criar um eixo Milão-Roma não dá resulta­
do. Os decénios subsequenres, até à queda do fascismo, vêem o
ressurgir de tendências municipais mais ou menos ligad s às expe­

riências europeias: dos Seis de Turim ao grupo mdanes de Cor­
rente da escola romana da Via Cavour às experiências solitárias de

li
i
Rosa , em Florença, de Morandi, em Bolonha. O policentrismo

1 74 Moore BarringtOn Jr., Le orighú sor.iali de/la dillatura e del/a democrazia.


Proprietari e contadini m//a frmnazione dei rmm do moderno, Turim, 1966.
m M. Schapiro , «Nacure of Abscracr Are», 111 MarxtSt Q11artedy, Nova
"r. 1.. C:1rrnl, A/i({• rÚI OrtlriJ Lc�tl" do B.rj;e/ho, crad. porr. Publicações Dom
Iorque, I, n.• 1, Janeiro-Mtll'ÇO de 1937.
()lliXO(I', J.ishou, ( ' IHH, p. }1.
1 . Mestre da Paixão de Cristo, Crucificaçtío (pormenor) . .:. 15�0. MuSllll, l l orgo111HI, V<.!rrolli
(proveniente da Igreju de S . lll:rnnnlo tlc: ( iattinarn).

.' , C i l c p. l w l c o c c o , l'colpifco, o l lc>(l, ( 'n1o'dr:d do · c 'tctdilu l ( I 'I "YI' II I<�nh' da I 'nlnlrnl de· l 'irtll),
d , I >wnrnlru < lhirlunduil), ( 'orn11r1lfl d11 Virl{I.JUJ, Pnlil<.:io Comuna! de Narní
:l. Giovnnni Písnnn1 . l'lilplltl, I.)J.l, (. 'ah'tlml d•· l'isa.
(ptliVI'II i<•tiiC <la lf:I'<'Jil <ln•i I ))l"!lf llllll h;'' dt· S . .lcr·íutil\lo).
.'i . Giovannl di l'ictro, dito /,o SJllllllla. ( 'omll\'·'io tlu Vi'1l<'l!l, l 'i l l . l'inucnlt·t�lt <k Todi h. Olnvanni tli l'ktro, dito Lo S[lfl/lllll, ( 'omu�·Jtn c/u Vir/:UIII, l'inacott�<.;a dt: Tr�wi
(pruvrni<'lllt' du lflrl'!ll tioK l{l'forn md"" <k Monl<.' Sunlp), ( p1 •JVI1 1 tl<·nlr du 11\111]11 l'rundKI/11111 dt• S M a 1 l n 1 h 1 1 ) .
Domenico della Marca d'Ancona, Cinco Apóstolos, (pormenor elos frescos d;t :ll>side),
IgreJa de Santa Mana de Spinariano de Ciric.
'1. i\nlt�nio tlll Yitnht>, .<;, llnh no 'l"mJto, IJ(H'JII paroqni;,l d11 ( 'orchituttl (Vitnho).
ll. Oim;olllino d11 lvn:a, I'illltll"il Muml cl:1 fu dJac/1 1 , l tl(>:l, 1�\t'l'j:t dn Mndnluna dt• < in•1:nnn (i\(lsta).
10. Jacopo da Pontorroo, Cristo perante Pilatos, Claustro «delta Certosa», Florença.

11. CoiHhnracl�lr arcnlino de Buffalmacco, Virtelll com o Menino,


lr·.r�·p, dt" S . Dt>11a1o l i< ' PCfJ'O)\Illlllo.
I ) Mtl�h·1· di· 11ip.lhH), S. J11M llnpti.� t:•. < 'ul<:r�üo privndtl dc Jlcrrant.
111. J kkndt'IIIC Jo"i:rrnri, (' tJpiu tlu «MIIdOrlllll "'' Orlt•:1u.�» de /{;�litt:l. 1 ;)26.
1:'. Rafael, M11d0111111 tlt• Orldt·s, Mmwu ( 'ontl(' de < 'hnnlifly.
ltijk�nllllll'l l l n dt· A umlndatt.
15. Girolamn Giovenonc, Cópia <1:1 «M:td<JIIIl/1 de: Orlc!i<'S» lic R11/11d,
Wullor.� /\ri t.;l/ll;ry, HlillilliOJ'c•.
1 7 . l .on:ll't.o i AIIIo, Vir/a ,, / /i.�ltíflu rlt> MuJ•I(Jiol ;k Suul11 llllrhl u H . (poi iiii'Hor ) , l '1.l.1 ,
I H, f .tHI'II'/il I Hllo
1)1.1 1')11 ck Suu 1 liHI'II!IIII 1 h · l l C lli(l, Vo·IH'tll /\f'IC'�t·ulll\'111 1 1111 Mt•ulu,, "" 'fhllf'/n, l'ahkio 1\ rn·hi�pi tl dt'· I .OI'olo.
.
: ....
··�·

20. Fl'cdcl'iw llnro!'r;i, AnunciJ1r.1c1, l'inacr)lcca do Vaticano.


\ C). Fn·.d.,ri.:o ll:tn><·t·i, ( J 1':�/:ki" I l!w;JI d<' l l l'hino, (JHiflll< 'llllr),
Pln:u•nlt'l'll Nat·iflual dt• Ho\nnhn .
22. Tanzio da V<lrallo, S . Roque c devotos, 1631, Pinacoteca de Varallo
(prov\•ni•mk• da lgn;ja paro<tuial).
2 1 . Fdicc Darniani, A Virgem <lo Cinto, I S1(1, I J', <'<'j ll < lt• Sunto Âf\<l�l i n h o , Follgno.
24. <liaromn l)�mllini, Cc'ipin da «S<ml;t M<�rtpri<l;l» de l'Ortolmto,
23. L'Ortolano, S'Hnrn M:rrgnrid<t, 157.11, Musu11 dt: < 'npt·nlia)',< l . lgrt;ja d� Santa M a l i a clnlla lnttsolazionl' dt• Fnmr;t.

I

25. Picr() di Cosimo, Pietlf, Onlerla Nucionul de tJmbria, l'urul-\iU (r"�rovenic·nlc !lc AhcL1>). 2CJ . Giuvunni fkllinl, S. l'l;dro Mlfrtir, Pi11:woh·�·;1. de Oari.
CAPÍTULO U

Das trevas medievais çT.O black-out de Nova Iorque

IDA E VOLTA

l . Uma das obras mais populares de Isaac Asimov, auror famo­


so de romances de ficção científica, é a trilogia dedicada às peripé­
cias do Império Galáccico (Foundation, Foundation and Empire, Second
FoundatiM). Asimov começou por publicá-la sob a forma de con­
ros, desde 1942 acé 1949, e esres foram recomados em volume em
195 1 -195 3 . Tal como ele próprio revelou, a ideia deste trabalho
tinha vindo da leitura de Decadence and fali of the Roman Empire, de
Gibbon. Na descrição que Asimov faz do Império Galácrico, as
componentes que relevam da antecipação conjugam-se eficazmente
com as componentes medievaisl. Esta mistura oferece-nos uma chave
para a interpretação do extraordinário sucesso que têm tido desde
há anos livros de história, romances, filmes e bandas desenhadas
cenrrados sobre a Idade Média. Que à sombra de obras de boa ou
excelente qualidade produtos medíocres tenham beneficiado desta
boa sorte, é coisa evidente - mas não é disso que vamos ocupar­
-nos. E com efeito mais in teressante analisar rapidamente as razões
que levaram tanras pessoas a ver na Idade Média um «espelho lon­
gínquo» (a disJant mirror) do nosso tempo, segundo o título de um
livro que se .inseriu com sucesso nesca moda2. Foram procuradas e
encontradas analogias mais ou menos pontuais entre a sociedade
em que vivemos e a sociedade medieval: o que, evidentemenre, não
apresentava grandes dificuldades, dada a extraordinária variedade

1 Cf. P. Co(dasco, «Fantascienza e Sroria, Asimov e Gibbon», Q111UkrtJi tne­


diwali, 2, Dezembro ele 1976, pp. 184.-192. Esta revisca publica em cada número
unta ruhrica intiwlncla «A Ourra Idade Média» consagrada ao destino que têm
os n·nm� medievais IHlS rotllóllt('<·s, nos l!lulifl , et(;.
.,,.,,, .,Wtre e
· < :f. 11. 'J'udtt tt:Hl, I Im> .rf'"' hio lu/1/,flm. 1/11 Jtmlo rli di ,u.lamitr):
i/ 'J'rl'f l'litll. rr,1, l i t . . Mil:111, 1 ' 1 1'>.
1 20 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO II 121
de formas que esta última assumiu ao longo de mais de mil anos máquina que regula todas as funções duma civilização futura ima­
de história. Mas a busca dessas analogias pressupõe a presença difusa, ginária e tecnologicamente muito evoluída4 .
em contextos sociais e culrurais muito variados, duma imagem glo­ O black-out de 196 5 , como é de crer, forneceu a Roberto Vacca
bal da Idade Média: um estereótipo de conjunto, tanto mais pode­ - um engenheiro especializado na automatização do cálculo e tam­
roso quanto mais permanece inconfessado, onde inexn:icavelmente bém autor de romances de ficção científica - a ideia que foi o
se entrelaçam o passado e o futuro, como na trilogia de Asimov. ponto de partida do seu brilhante ensaio ll Medioevo prossimo ventu..,
ro (A Idade Média de amanhã) publicado em 197 1 , traduzido e re­
2. No dia 9 de
Novembro de 196 5 , às cinco horas e vinte e editado várias vezes desde então. A congestão que se realiza dos
sere minutos da tarde, os habitantes de Nova Iorque, Bosron e to­ grandes sistemas organizados, tecnológicos ou associativos, acresci­
da a costa nordeste dos Estados Unidos viram-se, como se sabe, da da excessiva complexidade a que chegaram, induzia Vacca a
subitamente mergulhados na escuridão. Uma avaria nas instalações prever a possibilidade de um «processo catastrófico que iria para­
duma central eléctrica siruada não longe das cataratas do Niágata lisar o funcionamento das sociedades mais desenvolvidas e impli­
tinha sido o ponto de partida duma série de reacções em cadeia, caria a morte de milhões de pessoas» . Em todo o caso, escava imi­
provocando o maior blac·k-out da história. Só passadas dezasseis horas nente um período de crise generalizada, a que Vacca dava o nome
puderam as instalações eléctticas funcionar de novo. O New York de Idade Média, e era possível determinar com alguma precisão o
Time do dia seguinte, editado por meios artesanais improvisados,
s
seu começo (entre 1985 e 1 995) e a sua duração («menos longa
descrevia em largas colunas o pânico que tinha ati ng id o os hospi­ que a da Idade Média precedente, sem dúvida um século e não um
tais, o terror daqueles que haviam ficado prisioneiros nos elevado­ milénio>>)5. A paradoxal impassibilidade de tom com que Vacca
res ou nas carruagens do metro, a coragem e o espírito de inicia­ formulava as suas catastróficas profecias ceve impacte - certa­
tiva de que tinham dado provas os cidadãos em face duma situação mente porque exprimia inquietações difusas. A prova disso é-nos
de gravidade sem precedentes'. Imediatamente, naquela altura em fornecida por um editorial publicado alguns anos mais tarde, a
que Nova Iorque acabava de ser lançada bruscamente nas trevas, 9 de Dezembro de 1973, num jornal de larga i nfluê nc ia La Stam­ ,

muitos tinham pensado num ataque atómico dos soviéticos, alguns pa de Turim. A crise perrolífera estava no auge, dando sequência à
numa sabotagem levada a cabo pelos oponenres à intervenção guerra do Kippur. «Crise Económica e não Catásrrofe>> , anunciava
americana no Vietname, e um aviador que sobrevoava a zona acre­ o título do arrigo. O edirorialista anónimo fazia uma grave adver­
ditara simplesmenre que havia chegado o fim do mundo. Num tência: « E preciso dizer claramente que a sociedade industrial não
instante, escrevia um editorialisra anónimo do New York Times, «a está a caminhar para a catástrofe, não existe nenhum risco de que
capacidade humana de enviar foguetões à LLta, de voar em torno uma crise económica, mesmo gravíssima, degenere em cataclismo
do globo terrestre em condições de imponderabilidade, de produ­ geral capaz de destruir a civilização. A Idade Média não é para
zir sem esforço quantidades ilimitadas de bens materiais - tinha amanhã, nem mesmo para depois de amanhã . . . ,,. E prosseguia,
sido anulada>). Face à demonstração inesperada da extrema vulne­ consolador: «A catástrofe ecológica, que poderia ser provocada pela
rabilidade da sociedade industrial mais evoluída, um ourro jorna­ explosão demográfica, pelo esgotamento dos recursos essenciais, pela
lista lembrava como, nos anos que precederam a Primeira Guerra poluição coral do ambiente, até os mais pessimistas de entre os
Mundial, E. M. Forster, num conto intitulado The Machine Stops, ap6stolos do novo milenarismo a encaram como um acontecimento
rinha feito a descrição profética do colapso (lenro, neste caso) duma

1 Cf., i/!idtllt. , p. l lt, 't'im�, 1.9 de Novembro de 1 96 5 , p. 20; W. Sullivan,


3 Os artigos publicados no New York Times j·(>ram mli1�idos no volume
" l ' : t i l- .11: 1 1<· Syndront(:", '! 'l.w NiJ!.ht, pp. IO:H 0 5 .
The Night the UKb!J Wcnt 0111, ed. por A. M. Hos<·nrh:ol l' A. C,·lh, Nov�• Iorque,
·· H . V.ll'<:>, / / Ml•dim·f)IJ jwo.r.ri111o I'Wtttro, M i l í'ío, I < mo , p . I 1 , e f'CI.r.dm. Ed ição
I ')(i S .
l hl l tu·•,n : / ), ,,Mill lt' tl-i ")'< 'li l\8''· t\ l l > i t l M id><'i, I'.1 1 Í 11, 1 ')7 1 ,
122 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO li 123

susceptível de atormentar a humanidade num horizonte de várias deixar-nos-ia morrer. E eu, é ce rto que não tenho soluções, o u pelo
gerações, e não nos anos 70 do nosso século.>>6 Tanto pior, em menos não conheço senão uma: dizer e repetir aos homens que eu
suma, para os nossos ne tos e bisnetos. vi as colinas de Wessex como as tinha visto Alfredo quando pôs
Mas a atenuação, cujas razões são conhecidas, da crise energé­ em debandada os d inamarqueses.» A mesma ideia repete-se em
tica depois de 1973 não afastou o medo (e a possibilidade) duma tom enfático no fim da narrativa, no momento em que a máquina
catástrofe ecológica: pelo contrário. Foi sobre o pano de fundo destas pára, arrastando na sua próp ria perda toda a humanidade subterrâ­
inquietações, partilhadas por grupos cada vez mais importantes , e nea, que sufoca nos esforços que faz para tentar respirar: «Morre­
não já apenas por alguns profetas de desgraça isolados, que a moda mos», diz o filho à mãe, «mas dep oi s de termos reconquis tado a
da Idade Média prosperou. Procura-se obscuramente decifrar nesse vida. A v id a tal como era no Wessex no tempo em que Alfredo
passado os rraços ameaçadores dum futuro possível. pôs em debandada os dinamarqueses. » 7 A sobrevivência da espécie
humana está confiada aos raros exilados que, sobre a terra, entre os
3 . Todavia, isso é apenas uma face - a face escura - do es­ fetos, esperam· o fim da civilização fundada na máquina.
teriótipo. A outra é bem difere nte . Neste conto, como se viu, retoma-se, ampliado a uma escala
Retomemos The Machine Stops, o conto de Forster evocado pelo cósmica, o velho tema de F ranke ns tein - o aurómaro que se rebe­
New York Times no dia que se segtúu ao grande black-ottt de 1965. la contra o homem que o criou. No contraste entre a artificiali­
Não se rrara, dúvida, do que há de melhor em Forster, mas a
sem dade tecnológica, assente na recusa do corpo, e a naturalidade da
sua importância simbólica é conside ráve l. Os acontecimentos rela­ vida sem corrupção podemos ver o tema central dos grandes romances
tados desenrolam-se num futuro indeterminado. Os seres humanos de Forster, desde The Longest }ottrney ( 1 907) até Passage to India
vivem debaixo da terra, numa atmosfera artificial. Todas as rela­ (1 924). Mas é s ignificati vo que a fuga para a natureza não coma­
ções são reguladas pela máquina: ning ué m, ou quase ninguém, minada pela peste tecnológ i ca se traduza por uma evocação da
ousa aventurar-se fora do seu próprio habitáculo, as palavras e os Idade Média - o rei Alfredo que derrota os di namarqueses nas
pen samentos são transmitidos de um ponto a outro do globo por colinas de W essex. No mesmo ano em que escrevia The Machine
uma espécie de videorelefone (o conto dara de 1 908). Poucos são Stops, Forster anorava no se u diário, com a data de 27 de Janeiro
os que se arriscam a aparecer à s uperfíc ie da Terra e, quando o de 1 908: «Na passada segunda-feira, um homem - um certo Far­
faz em , devem munir-se de máscara que os proteja do oxigénio: os man - voou numa distância de três quartos de milha em um
seus pulmões j á não toleram o ar pu ro . Os que cometem infracções minuto e meio. Isto vai depressa e se eu chegar a velho ainda hei­
graves são condenados ao Exílio Perpétuo , ou seja, abandonados -de ver o céu tão sujo como estão hoje as ruas. Trara-se realmente
sobre a terra, onde o ar lhes é fatal. Mas o filho rebelde da heroína de uma nova civilização. Nasci nos finais da idade da paz e não
do conto decide subtrair-se ao domínio da máqui na: deixa o mundo posso ter esperança em qualquer coisa que não seja um senrimento
subterrâneo, aventura-se numa zona que ele identifica com o Wessex, de desespe ro. A ciência, em vez de lib ertar o homem - pela rec­
resiste ao concacto doloroso com a atmosfera hostil e consegue tidão do seu comportame nto os Gregos quase o tinham libertado
sobreviver. Depois volta para jun to da mãe e transmite-lhe a sua -, está a torná-lo escravo das máquinas . . . Meu Deus, que perspec­
mensagem. E lutar conrra a máquina: «Fomos nós mesmos
preciso tiva! As pequenas casas a que estou habituado serão dentro em
que a criámos para que cumprisse a nossa vontade, mas agora j á breve d emoli das , um cheiro a gasolina evolar-se-á dos campos e as
não nos obedece. Se ela pudesse prescindir d e nós para funcionar aero naves destruirão as es trelas . . . ,R É neste sentimento de desespe -

' Cf. F.. M. Forster, L'01rmilm.r celeste, contos, tmd. it., Milão, pp. 1 1 5-154.
6 Encrevisrado nesta época pelo quotidiano StmnjJa Serr�, Roberto Vaccn de­
" Cf". E. M . Forsn·r, Uowartl'.l' l'.ll.t, Londres, l9HO, introdução de O. Stally­
clarava que a rdse petrnHfent rr�t Cl]uivnltnt.., ao wme�o da ll<lVa Id>�de Múlia,
hrnss, I'· I O . .'iohn· 'l'be' M,trhim• Sttif'r, r f'. M. H . l i i l kwts, Thu F11tm·e oJ Night-
pelo qu:l! tnl tH"c <"'>s:írio c·sl""�"'tr " i lida urn < > t i dois cl('< , : , , ios (i/ii,/., p. /.()fl).
124 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO li 125

to, hoje facilmente tachado de ptoto-ecologismo, que a nostalgia decadência compreendido entre o fim do Império Romano e o
de Fotster pela Idade Média tem a sua origem. Não é sem dúvida Renascimento das artes e das letras. Sabemos que este estereótipo
um exagero ver aí uma das primeiras manifestações dum estado de dificilmente cedeu o lugar a uma .imagem mais positiva e arti­
espírito cada vez mais difundido nos dias de hoje. culada da civilização medievaP0 Subsisre o facto de que a própria
ideia de Idade Média estava inseparavelmente ligada a uma deca­
4. A Idade Média como símbolo do medo difuso duma derro­ dência que se observava a partir do cume de um progresso -
cada iminente da sociedade industrial, ou como símbolo da nostal­ ambos de ordem cultural. Bastará recapitular rapidamente, através
gia, também ela cada vez mais difundida, de uma sociedade pré­ de alguns testemunhos muito conhecidos, a história de uma das
-industrial não contaminada. O estereótipo parece profundamente componentes fundamentais do estereótipo: a Idade Média como
contradit óri o e, à primeira vista, não rem nada de inédito. Mas época das trevas.
uma abordagem menos superficial deixa claramente transparecer o A oposição simbólica entre a luz e as trevas é um elemento
que há de novo numa e noutra versão d este estereótipo corrente que se enconti:-a nas culturas mais diversas - sem dúvida alguma
sobre a Idade Média. porque esrá substancialmente ligado à relação física da espécie
Vimos estiolar-se sob os nossos olhos a ideologia novecenrista humana com o meio ambiente que lhe é próprio. As conexões luz­
que considerava inevitável e benéfico o progresso científico e tec­ -conhecimento e trevas-ignorância estão igualmente muito difun­
nológico. Poucos anos foram necessários para isso: basta pensa·r­ didas11 . Mas, no que respeita ao nosso obj ectivo, é possível apurar
mos, por contraste, na otgia de declarações entusiastas suscitadas elementos de análise mais precisos e mais pertinentes. A imagem
pelos primeiros passos dos astronautas americanos sobre a Lua. Re­ das trevas medievais tomou forma no decurso das polémicas dos
trospectivamente, pode-se ver nessas declarações os últimos sobres­ humanistas contra a cultura escolástica. Em 1 5 1 7 , Budé escrevia a
saltos duma ideologia moribunda que tinha sido partilhada (e que Cuth bert de Tunstall que Erasmo, com a sua edição dos textos
seguramente ainda o é em cetra medida) pelas diversas ideologias sagrados, tinha feito sair a verdade das «trevas c.imer.ianas» (ex
que têm um nexo de filiação com o pensamento do século XIX, «Cimmeriis illis renebris » ) que a envolviam 12• Disto se fazia eco
desde as liberais às matx.istas9. Mas o duplo receio duma catástrofe Rabelais, em 1 5 3 2 , quando observava, no prefacio dedicado a André
nuclear e duma catástrofe ecológica instalaram no proscénio (e é Taquereau da edição l.ionesa das Epistolae Medicinales, de Giovanni
de crer que por largo período) o tema dos custos e dos riscos do Manatdi, que algumas pessoas «in hac tanta saecu l.i nostri luce»
progresso. (nesta tão grande luz da nossa época) não podem ou não querem
Entre os efeitos colaterais da mudança de clima cultural, pôde­ erguer os olhos para o sol libertando-se assim «e densa illa Gothici
-se assistir a uma modificação da imagem da Idade Média. É pre­ temporis caligine plusquam Cimmeria>> (desse denso nevoeiro mais
ciso não esquecer que a noção de uma media tempestas (e mais tarde
de medium af:Vum), formulada pela primeira vez pouco depois de 10
Sobre estes remas a bibliografia é, naturalmente, infinita. Aqui basta
1450, conseguia impor-se porque estava carregada de um conteúdo remerer o leitor para o livro de G. Palco, La polemica sul Medio EtJO, nova edição
muito negativamente conotado. A Idade Média era um período de apresentada por F. Tessicore, Nápoles, 1974 (a primeira edição data de 1933).
" Para uma primeira abordagem, purameme bibliográfica, cf. o capitulo
«Licht>>, in Historisches Worterbuch der Philosophie, hsg. Von ) . Ritter, V, Basel­
rnat·e: H. G. We/ts and the Anti-Utopians, Ox:ford, 1967, passim; C. Pageni, <<Una -Estugarda, 1980.
utopia negativa di E. M. Focster», in Stttdi ingteii, I ( 1 974), pp. 203-230 (arti­ '" A carta de Budé é publ icada por P. S. Allen, Opm epistolamm Des. Erasmi
go útil, abstraindo a conclusão inacei tável e graruira). l�fJlG't'fldctmi, li, Oxonii, 1910, p. 5 6 7 ; a dedicará ria a Tiraqueau iu Rabelais,
9 Ver a este propósi w o ensaio pertinente, ainda que, sem dúvida , dema­ 01!1Jt"e.l" romjJ/tteJ, ed. P . Jomda, Paris, 1962, II, pp. 461 e �s. Esses tex:cos são
si.ado optimist<�, de H. M. Em.ensbt·rl:t:(, «Per hl c ri t ica ddl"c-rologia pol iti(a ·· irados por L ViHJ�ll, Oe/..1' S,h!tt8WI!ft '/IOlll •l'in.,·tn·rll Mittelolten• , Baden-Wicn­
( 1 97 :1 ) » , in l'tdrm<�·. Conxido'1"<1Útmi políth·bu. rrad. Íl'., Turim, 1 '}7(>, Pl '· "1-19 }0-1. . ] .t·ip�il: l l r u n n , 1 'l \.�. pp. H') 90.
126 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO li 127

que cimeriano da época gótica). Dentro do mesmo espírito inicia­ vermelha, não decerto contínua mas quebrada e múltipla, que
va Vasari a primeira das suas Vite dei piu eccelenti pittori, scultori ed um dia terá de ser reconstituída anal i ricamente, nas suas varian tes
architettori (15 50), a de Cimabue, com estas palavras: «Ü intermi­ metafóricas1 6 .
nável dilúvio de males que tinha inundado e sufocado a infeliz
Itália não só havia arruinado todos os edifícios dignos deste nome, 5 . Há j á muito tempo que não se encontra investigador que
mas também, o que era mais g rave, tinha reduzido a nada o número tome a sério a metáfora das trevas medievais. Só recentemente -
dos artistas. Foi então que a Providência fez nascer, na cidade de depois do black-out que ruergulhou Nova Iorque nas trevas, para
Florença, no ano de 1240, "para trazer as primeiras luzes" à arte escolher um acontecimento metafórico também - foram criadas
de pintar, Giovanni, que tinha o nome da nobte família dos Cima­ as premissas para uma abordagem da categoria historiográfica de
bue . . . ». A significação da expressão «trazer as primeiras luzes» Idade Média em termos nitidamente alheios à oposição entre deca­
torna-se precisa no confronto com o passo equivalente que se encontra dência e p�ogresso no interior da qual se elaborou. Isto não equi­
na vida de Giovanni e Nicola Pisano: «A Giovanni como a Nicoia, vale de modo algum - digamo-lo claramente - a valorizar de
seu pai, deve-se realmente muiro: nesses tempos em que o bom qualquer maneira as revisirações da Idade Média que podem efec­
desenho fal tava , "eles trouxeram, nas trevas, uma luz apreciável" à tuar-se aqui e além em moldes reaccíonátios. Mas que a Idade
escultura e à a tquitecrura , que praticaram da melhor maneira para Média seja hoje percepcionada sob a forma de um «miro ecológico» ,
a época.>>n Dois séculos mais tarde, no Essai sttr les moeurs, Voltaire como observou Paul Zumthor17, não é um facto destituído de
irá reromar pontualmente o mesmo tema: «Mas embora nos sé­ significação. Esta percepção (ambívalente, corno vimos) coincide
culos XIII e XIV alguns iralianos «começassem a sair das trevas», com as questões levantadas pelos investigadores. Em 1966 já Lynn
toda a populaça estava ainda mergulhada nelas» 1 4 • Aqui Voltaire Whíte J r. se interrogava sobre as «raízes históricas da nossa crise
não reflecte sem dúvida Vasari, mas muito provavelmente um passo ecológica» e propunha, em conclusão, que se considerasse Francis­
das Antiquitates ltalicae de Muratori (que, no entanto, está isento co de Assis o santo patrono dos ecologistas (vinte anos antes tinha
da imagem das trevas)15• Mas de Vasari a Voltaire, da condenação vis-to nele o iniciador indirecto duma reflexão· científica sobre a
quatrocenrista das trevas que precederam o renascimento das narureza, porque concreta e igualitária, não abstracta e hierarqui­
letras e das artes à exalração setecencista das Luzes corre uma linha zada)l8. Em 1 97 3 , no momento mais grave da crise petrolífera,

B Cf. G Vasari, Le vite. . . , ed. G. Milanesi, I, Florença, 1973, pp. 247, 3 1 9;


16 O ensaio de R. Morcier, «Lnmiere et Lumieres. Hisroire d'une image et
tradução francesa, Les vies des meillettrs peintres, wrlpteurs et architeaes, ed. crítica
sob a direcção de André Chasrel, 2, Paris, 1 9 8 1 , pp. 17 e 61. Sobre o pri meiro d'une idée aux XVII''"" et XVIII1""' siedes » , in Clartés eJ ombres du sücfe des Lu­
exceno, cf. E. Panofsky, RenaisJance and Renetscences in Western Art, Uppsala, mie,-es, Genebra, 1969, pp. 1 3 - 5 9 , constitui um bom ponto de panida: ignora,
1965, p. 1 1 4 (e sobre as duas redacções da vida de Cimabue por Vasari, cf. E. no entanto, o nexo com a metáfo ra complementar das «trevas medievais,.
Benkard, Das litel'ati.rche Portrat des Giovanni Cimabue, Munique, 1 9 1 7 , pp. 65 e A este propósiro, L. Varga, Das Schalgw(JI·t, cit., fornece apenas uma recolha de
ss.). Sobre o paralelo entte as dnas passagens, cf. André Chastel, Fables, fomm, citações separadas dos conrexros respectivos e não analisadas. Entre os temas
figttre;, Paris 1978, I, p. 380. que deveriam ser tomados em conta para uma investigação aprofundada, bas­
14 Cf. Voltaire, &sai s11r les moeut's, ed. R. Pomeau, I, p. 770. tará lembrar o sucesso do termo <<gótico» e o adágio «veritas filla temporls»,
I $ Cf. L A. Murarorl , Antiquitates ltaficae Medii Aevi, II, Mediolani, 17 .� 9. sobre os quais é de consultar, respectivamente: E. S. de Beer, «Gorh.ic: origin
«Dissertaclo vigesima quarta: de arribus I talicorum post inclinationem Romani and diffusion of the term » , in ]ournaf of tbe WarbtJrg and CourtarJfd lmtitutes,
Imperii» , co!. 360: «Illud ergo sratuendum, saeculo tantum XIV picrurrun, IT, 1948, pp. 143 - 1 62; e Carla Ginzburg, <<In marglne al morro "Veriras filia
sta-cuarirun, calligraphíam, aliasque anes iis afines una cum litreris exsmgere Temporis"», in l?itlúta strwú'tt itt.lliantt, 78, 1 966, pp. 969-973 (com bibliografia).
1 1 C.f. P
coepisse: quo eodem saeculo floruit .Jottus Flocencinus picror magni nom i n is . . . » , . Zumrhor, l.t�':.c;l'r� U M�dior:vo, trnd. i t . , Bolonha, 1 980, p. 34.
I K < J. L. W b i 1 , . Jr .. <<The 1 Tistorical Hoots o f ou r Emlor.ic Crisis», i n Sâmre,
A relação com as Antiqttitclte.r ltalicae (: anocnda por Pomeau a pwpósiw citam
capítvlo preçcdente do l:.r.rcú .\'!Ir le.r moem·:,. (nl. r i t . , p. 7 "! 7 , nm:1). vol 1 "'"1 . J •)(,"f, p)'. 1 .m 1 I �o·; (c• ,, n'Ni"'Sli\ d1• 1 .. W . Mollo'l'id, ·<'l'lw Cu l l 1 1 1':l.l
1\.111 of· c,ur Envir""'"''lll l 1 1 'd·i•· , }/,},/,,,;,, vol I T I � l • l /0, (•fl '10H 'l i /). A 1 u• h1 < l • ·
128 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPÍTULO li 1 29

Le Monde publicava extractos da lição i naugural pronunciada no Estes pensamentos de B uffo n - e muito particularmente a
College de France por Emmanuel Le Roy Ladurie, sobre o tema da questão que formulam a concluir - não podem hoje ser lidos sem
«história imóvel>> - imagem provocarória que iniciava a análise inquietação. A capacidade de autodestruição a que chegou a hu­
do ecossistema desde a grande peste do começo do século XIII manidade (delegada presentemente nas mãos incontroladas de alguns
até à revolução industrial 1 9 • Em convergência parcial com o espí­ dos seus representantes) constitui uma conquista sem dúvida irre­
rito desta análise, Jacques Le Goff avançava em 1978 a ideia versível. Quem faz investigações sobre a história não pode deixar
de uma Idade Média «longa», a começar nos séculos II-III e ter­ de ter em conta este ponto de chegada. «Ü termo da nossa carreira
minando no decurso do século XIX, no momento em que se impõem é a morre, é ela o alvo necessário dos nossos desígnios»; as palavras
as sociedades industrializadas20• A necessidade de fazer o apura­ que Montaigne pronunciava em nome do indivíduo22 não deverão
roemo sobre os efeitos a longo prazo provocados pelo corte radical passar a ser ditas em nome de roda a espécie?
que se operou durante o século XVIII vem indubitavelmente A consciência de que a possibilidade do fim da história (e
estimular essas buscas e essas novas reflexões. E esses efeitos re­ da espécie) humana faz patte dos frur os do progress o é coisa muito
lacionam-se com o progresso científico e tecnológico, e também diferente das fáceis nostalgias reaccionárias. Não viria à cabeça de
com a explosão demográfica, as armas nucleares, a poluição do ninguém querer regressar a uma sociedade como era a sociedade
ambiente. Tais fenómenos trazem consigo um efeito rerroac ri yo medieval, exposra às epidemias, às fomes, ao flagelo da mortali­
que não se pode confundir com uma banal leitura anacrónica do dade infantil. Uma parte importante da humanidade, sabemo-lo
passado. Vamos ler, decorridos dois séculos, o que escrevia Buffon bem, sofre ainda esses horrores . Mas não está excluído que pro-
sobre os «animais selvagens» - esse mesmo Buffon que se com­ . gtessos tecnológicos imprevi sív eis (a dessalinização da água do mar,
prazia em poder exaltar «O domínio legítimo que nenhuma revo­ a utilização generalizada duma energi a nuclear «limpa>>) possam
lução poderá destruir>> exercido pelos homens sobre os animais: assegurar no futuro a sobrevivência da população humana, ainda
«Quanto mais a espécie humana se multiplica e se aperfeiçoa, tanto que numericamente muito superior ao que é hoje. Mas aquilo que
mais eles (os animais selvagens) sentem o peso de um domínio os ptóptios ecologistas têm muitas vezes tendência para subesti­
tão terrível como absoluto - domínio que, deixando-lhes apenas mar, e mesmo para não tomar em conta, é o grau de coacção po­
a existência individual, lhes rira rodos os meios de liberdade, toda lítica que poderia ser necessário para assegurar um equilíbrio entre
a noção de sociedade, e lhes destrói a inteligência no próprio ger­ a espécie humana em expansão e o meio ambiente2}. As cam­
me. Aquilo em que se tornaram, aquilo em que ainda virão panhas para a esterilização que foram tentadas na Índia, e ai nda
a tornar-se talvez não manifeste suficientemente aquilo que foram mais aquelas que se começaram a realizar na China com a finali­
nem aquilo que poderiam ser. Se a espécie humana fosse aniqui­ dade de impor o controlo dos nascimentos, constituem outros tantos
lada, quem sabe a qual de entre eles pertenceria o ceptr<> da presságios sinistros. Pode-se apenas desejar que, num futuro ecos­
Terra?»21 sistema ameaçado, os reg imes fascistas do século XX não façam a
sua aparição, retrospectivamente, como modelos precoces de domínio
Wh.ite, relacionar com o ensaio «Narural Science and Naruralisric Art» ( 1 947), integral da sociedade (mesmo que se orientassem mais para uma
reeditado na colecrânea Mb:iieval Religion (md Tech1Jology, Berkeley, 1978,
pp. 37-39.
19 Cf. Le Mondt de 2-3 de Dezembro de 1973. A lição inaugural de Le Roy p. 62. Outros passos são trazidos à discnssão numa perspec t iva diferente por
Ladurie foi reeditada em Le territoire de l'hist�ie11, Paris, 1973. C. J. Gh• cken , Traces 011 the Rhodía11 Shorc, Berkeley, 1976, pp. 672-679.
Zl
2° Cf. a introdução a Po1<r rm arttre Moyen Age, Paris, 1978 ( c a s minhas Moo caig ne , Eswis, I, 1 , cap. XX (<<Que phi losopher c'est apprendre à
próprias observações em Critiqrte, 395, Abril de 1980, pp. 345-354) e La civi­ rnourir» ) , ed. A. Thibaude(, Paris, 1 950, p. 106.
11
lisatio11 de l'Occidmt Jtddieval, nova eJ., Paris, 1 9R2, p. 1 . Algumas ohsnva�·ék s oricnwdas lJ�·:; I t· st·tllido t·m E. Ga.lli, li mondo con­
l ' (:f. B u ffi111 , fli.rtoi1·e Naturelle, I( , Pari�, I / '1 'I , 1 • . ' 1 7 0 , t· ú , P;�ris, 1 756, totll/ltll'lillt'O ( / 11th J < )i·W), llol1111ht<, l ')tl ' , 1 ' 1 ' l•i·1 '' 1 / ')

I
1 30 . DAS TREVAS MEDIEVAIS

política de expansão demográfica do que para o controlo dos nas­


cimentos).
Os psico-historiadotes do Império Galáctico imaginado por
Asimov estavam em condições de prever o futuro com cinco sé­
culos de antecipação. Mais modestamente, os historiadores terrfcolas CAPÍTULO III
podem procurar decifrar o passado à luz dum futuro possível,
esperando que este não possa nunca vir a ser realidade. Os pombos abriram os olhos: .
Compiração popular na Itália do sécttlo XVII*

Quando _se fala de mediadores culturais, parte-se do princípio


de que exisre uma série de clivagens de tipo cultural n-qma dada
sociedade; tais clivagens sugerem, por seu turno, a existência de
um conjunto de relações de poder.
O papel desempenhado por um mediador, nesre contexto, pode,
por isso, assumir diversas formas, conforme a posição que ocupa na
sociedade e a àrirude perante a culrura do grupo social a que pertence.
Como exemplo de mediadores culturais, podemos apontar os mis­
sionários jesuítas, ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII e, por
outro lado, as aristocracias de trabalhadores durante o mesmo período.
Embora em ambos os casos se trare de um fenómeno de acultura­
ção, uma diferença sobressai: enquanto os missionários jesuítas re­
forçavam a aculturação, as aristocracias de trabalhadores eram, por
assim, dizer vítimas dela. E muiros outros exemplos poderiam ser
dados.
Há, no entanto, um factor que é consranre nesre tipo de situa­
ções. Se considerarmos que o mediador cultural é comparável a um
filtro, torn�-se desde logo evidente que não há filtros neutros. Tanro
o pregador como o missionário, por exemplo, são obrigados, em
maior ou menor grau, a adaptar a sua mensagem ao público a que
se dirigem:· basta lembrarmo-nos da controvérsia sobre os «tiros
chineses » . o efeito do mediador pode ser, por ourro lado, total­
mente inconsciente. É o que se passa quando fenómenos do subs-

• O presente texto é uma versão revisca e alargada (mas ainda assim provisória)
de um ensaio pcimeirameoce publicado em icaliano, «La colombnra ha apeno gli
('l<.: c h i , , i n Q#(tdemi .lt()l·iâ, 38 ( 1 978), pp. l'í3 l ·.'l9, co-autoria de Marco Fercari.
11. ro t t l rib 1 1 i ���o dC's(c (utna diss<:rl a�fio snhrr· brmh of.r8•l'OIJ) é supcjmjda por escar
Í l il:<'l'ldu no r:mbolho c i tado 1 11 1 Dol.t 1 �.
I
t

132 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO III 1 33

trato (empregando uma metáfora geológico-Jinguística) atingem o dino nunca foram encont radas: restam apenas fragmentos das
processo de mediação culrutaP . O mediador tem, de qualquer modo, acusações contra ele formuladas e cuja reconsti tuição tem apenas
um papel acrivo e não passivo, e as suas acrividades podem rer por base testemu.nhos indirec;ros (denúncias e relaros publicados
éfeiros diversos: ele pode atenuar, reforçar ou distorcer os conteúdos depois da sua morte). De qualquer modo, os documentos que
culturais. Especialmente interessante é o tipo de distorção que conduz chegaram aré nós abrem algumas pisras de inves tigação que segui­
a uma inversão pura e simples do significado dos símbolos cultu­ rei de forma su2inq1..
;ais. Haverá, pois, casos em que a criatividade do mediador domi­ Embora as duas profissões de Saccardino, bufão e alambiquei­
na por completo o material que transmite. É essa a situação que o ro, possam à primeira vista parecer incongruentes, elas acabam por
episódio seguinte claramente concretiza. se fundir na sua real personalidade de charlatão e impostor. Em
Em Novembro de 1 62 2 , no meio de enorme multidão, quatro algumas páginas famosas da sua Piazza ttnitJersale de!le profmione del
homens eram levados à forca (e em seguida provavelmente à fo­ mondo, Tomaso Garzoni é claramente de opinião de que a commedia
gueira, tal era enrão a sorte dos penitentes hereges condenados à dell'arte não. nasceu na corre (como muitas vezes se tem afirmado),
morte) na praça do mercado da cidade de Bolonha. Eram acusados mas sim na praça pública3. É, pois, da piazza, da culnira carnava­
de terem conspurcado com excrementos as imagens sagradas, bem lesca de que nos fala Bakhtin4, que emergem as principa-is perso­
como de nelas terem afixado cartazes contendo blasfêmias e obs­ nagens da commedia (Brighella, Frittellino, Dr. Graziano), e é com
curas ameaças contra as autoridades políticas e religiosàs da ci­ o palávreado e as pantominices dos charlatães que irão a�rair a
dade. Um desses cartazes vaticinava a aniquilação do poder papal atenção de um público céptico e embasbacado . Saccardino, pre­
pelo eleiror do Palarinado - expectativa que haveria de ser muito goeiro de remédios milagrosos, gue representava o papel de
rapidamente frustrada. Seduzido por recompensa avultada, um dos Dr. Graziano nos banquetes dos Anziani de Bolonha5, era, na ver­
companheiros dos quatro conspiradores acabaria por traí-los, per- dade, um perfeico charlatão. Poderá talvez por isso dizer-se que os
. mitindo a sua caprura pelo Santo Ofício. Eram eles Constantino aspectos fecais e blasfemos da conspiração que lhe custou a vida
Saccardino, de Roma, o irmão deste, Bernardino, e os dois irmãos têm origem na pr6pria cultura carnavalesca, por sua vez enraízada
de Tedeschi, gue trabalhavam na portagem do moinho. A figura no obsceno e excremenroso, tal como nos demonstram o já clássico
proeminente entre eles era claramente Saccardino, o verdadeiro estudo de Bakhtin e, mais recenremente, o trabalho de Piero Com­
' mentor da conspiração. Judeu converrido e em tempos bufão pro­ poresi6. As pantomimas nocturnas de Saccardino e dos seus com­
fissional ao serviço dos grão-duques da Toscana e mais tarde dos panheiros convidam-nos, assim, a analisar mais cuidadosamente as
Anziani de Bolonha, Saccardino era, por seu lado, dono de uma relações entre rebelião e fesra7, entre carnaval e subversão.
destilaria. Possuía, no entanto, uma enorme fama como curandei­ O que resta dos escritos de Saccardino é o Libro nominato la
ro. Alguns anos antes de 1622 fora denunciado ao Santo Ofício de
Veneza e acabaria por ser julgado por heresia em Bolonha2.
Lamentavelmente, as acras do processo inquisitorial de Saccar- 3 T. Ganoni, La pazza
i univcrsale di tu.tte /e professioni de! mondo, Ve neza ,
1588, pp. 741-48 («De' formacori di spetmcoli in geuere, et de' Cererani, o
ciurmatori mass ime . Disc. CIII»).
1• No meu livro The Cheese and the Womu: the Cosmos of a Sixtemth-Centu.ry • M. Bakhrin, RabelaiJ and Hi.r Wl)r/d, Cambridge, Mass . , 1968.
Miller, tenrei estudar o modo pelo qual a cultura oml podia servir de filtro in­ � R . Campeggi, Racconto, p. 69. Ver também, para compa.ração, F. Giorgi,
consciente arravés do qual se liam os livros. Un btiffone degli Anziani di Dologna m/ seco/o XV, Bolonha, 1929 (reeditado do
2 R. Campeggi, Racconto de gli heretici Í77con()Tniasti gi11stizirtti in Bolog11t1, Bo­ L'Anhigirmasio, 24, 1929, 1 3 pp.).
lonha, 1623; L. Monranari, «Contesratori d'altri tempi » , in Smmna .rtoriw bologrt�se, (, M. Bakhcin, R.abelai.r mui bis World; e P.C�.rnpur�i, La maschet·a di Dertol­
24, 1974, pp. 135-61, baseia-se quase integralmente em Canl pt'RJ� i. Pa�srt)tCns r/fl, (;, C. (.'riJCr. c la lett�et.ttwa wmat•dlrXt'fl Tudm 1 <)7(,.
do J<ac,·m7to sã.o rccJi1aclns na <t ni:O!Oi�Í<l , J.: 11 . Pros pw· i , ],t .llori11 nmdum.1 <�fim·· ., Y. M. Jkrd, /1lltu 111 nftl/l{t,• I >rr 1111Wirditfr fmfutlttin·r rl1r XVI�"' (til XV!ll1"'
tJtN:rn i dortmt.ollti, Bolonha, 'I <)7/j , 1'1'· 7:)0 .' I . .rli'rh•1 J '•ll'a�. I l }'f(,.
1 34 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO lll 135

· verità di diverse cose, quale rniruztame-nte tratta di mrtlte salutifere opera­ Maiorini, com a alcunha de Policinella; Francesco, com a alcunha
tioni spagiriche et chimú-he1 que foi publicado em Bolonha, em 1621 de Bi.scottino·; Pietro Muzzi, cGnhecido como ·o Bolonhês, e tantos
(existe uma cópia única deste livto na Biblioteca da Universidade outros. Entre os autores destes panfletos temos assim alguns que
de Bolonha)8 e que é em certos aspectos um produro de puto char­ funcionavam como inte�mediários entre a cultura das classes popu­
latanismo. Apresenta como conclusão uma Lista detalhada de pes­ lares e a cultura da clas�e média superior. Esta parece ser a si tua­
soas curadas por Saccardino, mencionando mesmo os escrivães que ção de Saccardino, dividido entre a corte e a piazw . O seu Libro,
poderiam comprovar os seus sucessos na cura desses doentes. Mas, com apenas trinta páginas e publicado pot um editor de opúsculos,
na verdade, estes poderes tão promissores de Saccardino não são usava o prefácio a D.ioscóúdes do médico P. A. Manioli e o tratado
senão a cobertura para uma enciclopédia médica popular - um Della física de outro médico, Leonardo Fioravanti 1 0 . A utilização
desses «livros de segredos» com enorme circulação entre os finais destes textos faz supor um nível mais elevado de conhecl.mentos,
do século XVI e os meados do século XVII, que continham recei­ por parte de Saccardino, em relação aos seus colegas Biscottino ou
tas e conselhos práticos de medicina, alquimia, veterinária, fisiog­ Pohcinella. Mas o que disti ngue Saccardino é a criatividade. com
nomonia, arte da perfumaria, erc.9 De entre esses pequenos livros, que usa esre ripo de fonres. Logo no seu subtítulo, o Libr<J pro­
escritos em vernáculo e dirigidos a um público socialmente bas­ mete «argumentação prática que revela as muitas fraudes que, devido
tante heterogêneo, destacam-se alguns, que foram, sem dúvida, a interesses particulares, frequentemente ocorrem tanto na medicina
escritos por .indivíduos da laia dos bobos e charlatães: Tommaso como nos materiais medici nais» . De facto, são incluídas passagens
do médico Marrioli numa violenta polêmica acetca da medicina
galénica, em oposição, por um lado, à arte experimental «espagír.ica»
" Este título pode ser ri:aduzido: <<Livro chamado a verdade de várias coisas, (alquímica) de pendor paracelsista e, por outro, à medicina popu­
que discute minuciosamente muitas salurares operações espagíricas e químicas.» lar. Fioravanti havia declarado que a arre de curar «pertencia a
A cota é Sala V, Tab.I, I, K. II (4). A cópia foi descoberta por Rossana Vet­
todas as criaturas do mundo . ..uma parte aos animais irracionais,
tillo, no decurso de um seminário dirigido por mim, durante os anos lectivos
de 1975-1976 e 1976-1977. Há uma nota do possuidor, na página do título,
ourra aos camponeses , uma terceira às mulheres e outra, por fim,
da cópia da Biblioteca da Universidade de Bolonha: <<Pertence a Mat·escalco>> aos médicos racionais)> 1 1 • Saccardino adopta esta hierarquia ascen­
(que aré ao momento coutinua por identificar). As palavras que se seguem dente, mas inverte-a na prática: enquanto os animais rêm capaci­
foram escritas pela mesma mão depois do nome do autor: <<Um pobre homem dade para se curarem a si próprios, como acontece com as mulheres,
que foi queimado na fogueira com o filho, no ano (não mencionado) e que
os camponeses e os que vivem nas montanhas, certos «tnédicos
tinha um estabelecimento peno do pelradaro numa pequena loja onde havia
uma Madona muito bem ad ornada.>> (0 pelradaro é naturalmente o barbeiro.)
modernos estúpidos» perderam essa capacidade, por se preocupa­
Como podemos ver, a nota do mauuscrito deixa transparecer compaixão, se não rem unicamente com «a ciência de fórmulas lógicas suavizantes e
mesmo uma verdadeira simpatia por Saccard ino, ele que fora condenado por outras teorias retóricas» . Eles são, sem dúvida, radicalmente dife­
profanar imagens sagradas e que possuía <<uma Madona multo bem adornada>>. rentes dos <<sábios filósofos» dos «bons velhos tempos » , ·que «visi­
Actualmenre de Sacca.rdino conhecemos apenas uma outra obra que tenha sido
tavam os enfermos sofredores e desinteressadamente lhes rr.aziam
impressa: Sonetto in morte dei Sn-enissimo FerdiiJando Medici, Gr. Dr�ca di Toscana,
dedicato ai mo SereniHimo Figliuolo Cosimo Medici, Gran DtJ.ca di Toscana, dalt'tlmitlú­
remédios preparados pelas suas próprias mãos; sem ambição nem
simo servitore di S. A. Constantino Saccardíni detto il dottore, Florença, 1609. Cf. G. vaidade, sem mesmo qualquer desejo de pompa ou grandeza, visi­
Cinelli Calvoli , Biblioteca 11olante... continuata dai dottor Dionigí Andrea Sancassani, tavam com a mesma humilde dedicação os ricos e os pobres. Não
Veneza, 1747, 4, p. 192. perdiam tempo com palavreado ou discussões estéreis, que é preci-
9 Para uma tentativa de enquadramento deste tipo de literatura no seu

contexto histórico, ver N. Z. Davis, <<Printing and the Peoplc» no seu Socíety
10
and Ctdtrtre in E�1rly Modem FratJCe, Stan ford, 1 975, pp. 189-22<-1, 126-36. Para L. Fioravanri , Delta fi.•-kcr., Veneza, 1 5 82, livro J , cap(t�l los 80-90, WO;
a respcçtiva bibliogmfia, vel" J 1�erxusnn, /Jibliflf!.mf,hicttl Not�l' 1m 1 I i.rtori•·• oj'Jn..
.
C. Sat:c1rd ino, l.ibn,, raps. I I .>') , ?.7.
' 1 1 . . JlioraV•I I I I i , IJc/ l't'Jl/:iiiiOI/11 ,fdf,, fmlt•, Vc·nc•t.l, I '> 1 > � . I . 7 v.
.

1't'ni)mJJ ttnd BMk.r tif Sc<n'tJ, L(\ndrcs, I ')'\1),


136 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO IIl 137

samenre o que alguns médicos fazem agora, de ral maneira que o Fioravanti, que bavia declarado, no seu Spech io di Jcientia universale
pobre doente, na sua presença, sucumbe e acaba por morrer» 12• Se {
(«Espelho de; onhecimento universal»), que «bem-aventurados»
o fosso entre a arirude desres «médicos de pé descalço>> (como eram os médicos de antigamente:
poderiam chamar-se hoje) e a dos que praticavam medicina oficial­
mente já rranspatecia em rírulos de panfletos mais ou menos char­ «Nessa alrura as pessoas acreditavam em tudo o que eles que­
laranescos - cais como Con il poco farete assai («Com pouco conse­ riam: porque nesse rempo havia uma grande falra de livros e sempre
guirás muito>>) ou Jl medico dei poveri ovvero lo stupore dei mediei («O que alguém mostrava que sabia falar sobre isro ou aquilo era venerado
médico dos pobres ou o espanto dos médicos») -, no Li!n·o de como um profera e tudo o que dizia era rido como verdade. Mas
Saccardino esta diferença torna�se explícita e intencional, tal como desde que a abençoada imprensa foi criada, multiplicou-se o número
já acontecera nos escritos de Leonardo Fioravan ri. Podemos even­ de livros e o número daqueles que os podem ler, porque na sua
tualmente descobrir, nesre confronto verbal, expressões de origem maioria são publicados na nossa língua materna. E assim os gati­
paracelsisra. Mas, para já, pouco se sabe sobre o grau de prolifera­ nhos abriram os olhos . » 1 5
ção das ideias e escritos de Paracelso na Itálian.
Saccardino não limitava à arre médica a sua organização criati­ De «garinhos» a «pombos» foi apenas um passo, que signifi­
va de mareriai s de «alta» cultura. Diversas denúncias .i nquisiro­ cou nada mais nada menos do que a transposição da metáfora da
�!ais mostram como Saccardino viajara por Veneza, Ferrara e esfera da medicina para a esfera da religião, do domínio dos médicos
Bolonha, para arranjar partidários entre grupos de artesãos (carni­ do corpo para o dos médicos da alma. Tal aproveitamento por
ceiros, impressores, etc.), convencendo-os de que a religião e muiro parre de Saccardino implica necessariamente familiaridade com a

especialmente a noção de inferno eram pura falsidade: «Sois burros rese, então corrente em círculos libertinos cultos, de que a religião
se acreditais neles . . . Os príncipes querem a vossa fé para poderem �ra mera impostura. Os libertinos pensavam, no entanto, que ral
manobrar à vontade, mas . . . os pombos abriram finalmente os C?_nvicção devia continuar na posse de uma élite intelectual e política,
olhos . » 1 4 Saccardino faz-se aqui eco de uma passagem de Leor;ardo de modo a impedir o colapso do edifício social. A religião, com as
suas mentiras nuas e cruas, era, assim, necessária para manter a
populaça sob conttolo16. Saccatdino adoptava a mesma tese, màs
1 2 C. Saccardi no, Libro, p. 14.
invertia-lhe o significado político: os «pombos» (ou, pondo de lado
ll Notar que «Filippo Aureolo Teofrasto Parace lso» é um dos poucos nomes
a metáfora, a populaça, o segmento mais h timilde da estrutura
introduzidos por Saccardino numa longa lisra de «nomes anrígos e modernos
social) estariam agora suficientemente esclarecidos para poder te­
de filósofos e botânicos hábeis e famosos» (Li/n·o, p.l8) exrraída, na sua quase
roralidade , do prefácio de Matioli a Dioscórides. jei tar a religião, que eta usada pelos ptíncipes para manterem
Sobre os «livros de segredos» como possíveis veículos das ideias de Para­ os seus ptivilégios. Estamos, pois, perante um caso de <<liberti­
celso em círculos populares, ver M. Ferrari, «Alcune vie di diffusione in Icalia nagem popular» - caracterização que não é de modo nenhum
di idee e di resri di Paracelso», in Scimza, credenze occtlte,
t live/li di cttltrtra, Flo­
rença, 1982, pp. 21-29; P. Galluzzi, «Morivi paracels ia ni nella Toscana di Co­
simo li e di Doa Anronio dei Medici: alchimia, medicina chimica e reforma
em «High and Low: rhe Theme of Forbidden Knowledge in rhe Sixteenrh and
»
del sapere , ibidem, pp. 33-34, que ilustra o caráccer por vezes eli risca e aris­
Sevenceench Cenruries » , in Past and Presenf, 73, 1976, 35-36.
ll L. Fiorava nci, Del/o specchio dr mentia rmiversaie, Veneza, 1 5 7 2 , ff. 4 1 r.v.
cocl:ácico des ce tipo de liceracura, cri tican do a visão unilateral desenvolvida por
(alusão identificada por P. Camporesi) . Cf. P. Camporesi», Cultura popolare e
Ferrari. Devemos também evitar a outra forma de parcialidade: um caso como
o de Saccardino convida-nos a repensar os laços que podem unil: esfeG\S que
culcma cl'éli ce fra Medioevo e ecà moderna», in Storia d'ltalia. Amzali, ed. C.
Viva.n ci, Turim, 198 1 . 4, pp. 87-88, que qualifica as palavras de Saccardino
normalmente consideramos incapazes d� com un ica r �
. ocial e cultur:tlmcote.
1 4 Arch i vi o di Smco, Vel'leza, S. Ufilzio, h.72 («Con s r a n r i no Sarnrrd ino»). como "apan.·nrvrocncc» l i �·J'I itms.
) f, n. Pi n r ;I)'< I, I J! lilm-t Í/1. /./l,r: émrlif. dtiTIJ ltt jtr•&miiJr� IIUiitit! d
tt XVII1"'' .ricde,
O FJscículo con cém np<:'n:ts d. .n ú 11ci.1� e dl'poimr·111ns rolil(i do� pdns j rd�.l"l da
:� vols. 1 ' 111'11•, I 1)11 I .
!nquisiç1ío Jc Vt•no.a. Fiz rc·l'(•l't 'tl< w " , .•;r,. duo l l l t ll ' l l f n . 1 1 1 1 1 1 1 l llllll'�fn o l r f (·f !'l l f t ·,

Il
/
138 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO lll 1 39

graruita17. O tipo de afirmações que Saccardino repetidamente faz �


nossa ínvest gação enconrra-se dificultada pelo desaparecimento das
acerca das origens da raça humana é prova bastante do seu conrac­ acras dos processos. É particularmente grave a ausência de do­
to com as ideias e os escritos dos li bertinos culros. No seu Libro, cumentação respeitanre ao terceiro julgamento: o seu relator, Frei
Saccardino, mais uma vez remetendo para Fioravanti, fuz alusão à Jacinto Mazza, escrivão do Santo Ofício de Bolonha, lamentava
geração espontânea de cerras espéci.es animais (ratos, tou eiras)18• p numa carta ao cardeal Millini, em Roma, por volta de 1 622, que
Nas discussões que alimentava pelas ruas e oficinas de Bolonha e o julgamento tinha sido «enorme» e pedia uma compensação pe­
Ferrara, Saccardino pretendia chegat a uma dedução radical: os cuniária pelo seu trabalho20. Não deixa de ser espantoso como um
primeiros homens não haviam sido criados por Deus, tinham antes julgamento destes assumiu tais proporções; ao fim e ao cabo a tão
nascido do barro, tais como ratos ou rãS rastejando no lodo no remida conspiração resumia-se ao gesto blasfemo de um punhado
1
pino do Verão. A mesma rese defendeu Giulio Cesare Van.ini, tor­ de homens de baixa condição e passado obscuro.
nando-se muito possivelmente um lugar-comum da teoria liberti­ Contudo,· nem o cardeal Millini, membro da Congregação
na. O ponto de partida para ambos (expLícito no caso de Vanini e Romana do Santo Ofício, nem o próprio Papa, Gregório XV Ludovisi,
fmplicito em Saccardino) pode ter sido um passo famoso da Historia que fora arcebispo de Bolonha, estavam na disposição de tratar
de Diodoro Sículo19. este assunto com ligeireza. Em 1 7 de Agosto de 1622, M.ill.ini es­
Através de que canais terão estas ideias chegado a Saccardino? creveria assim ao inquisidor de Bolonha, Frei Paulo da Garessio:
Esta é uma pergunta que também se deve ter postO aos inquisido­ «Recomendo a rodos esta causa com quanta energia tenho, porque
res, que o julgaram em rrês ocasiões distintas: primeiro em Ferrara ela constitui para Sua Santidade e para mim uma preocupação tão
»21
( 1 6 1 6) e depois em Bolonha (1616 e 1622). Lamentavelmente a grande como a glória de Deus ou a segurança da nossa cidade.
Através destas palavras solenes apercebemo-nos das implicações

17 G. Spini ( «Nocerelle libertine", in Rivista storica italiana, 78, 1976, religiosas e políticas que esra conspiração de bufões inesperada­
pp. 792-802) também fala de «libertinagem popular>> a propósiro de Domeni­ mente levantava.
co Scandella, o moleiro a quem chamavam Menocchio e que é o prota�onista Tais implicações aparecem pela primeira vez confirmadas numa
de The Cheese aud the Wonm. Mas essa afirmação é roralmente infundada. Uma carta, escrita pelo embaixador bolonhês em Roma, Francesco Cos­
comparação entre as ideias e os antecedenres de Menocchio e de Saccardino
pi, a 1 3 de Agosto (alguns dias antes da carta de Millini) e cujo
(para não mencionar as respectivas claras) demonstra claramente acé que ponto
é legítimo falar de «libeninagem popular>> .
objectivo era informar os magistrados da cidade de que um tal
18 L F
ioravanri, De/la fi.Jir:a, pp. 1 1 2-114. Walloon, no seu leito de morte, em Livorno, havia confessado a
'9 Acchivio di Sraro, Veneza, S. Uffizio, b.72 («Constantino Saccardino») sua participação, juntamente com outros conterrâneos seus, em «um
depoimento do carniceiro veneziano Nicolo Srella (6 de Abril de 1617): «Ele conventículo teológico, uma virtual escola herética em Bolonha»,
também disse que a natureza produz homens que são diferenres e varlados entre
que, entre outras coisas, profanava imagens. Foi o Papa em pessoa
si, tal como a terra produz diversas plan tas e que Deus não se impona nada
que informou Cospi deste facto22.
com esras coisas»; R. Campeggi, Racconto , p. 88: <<Mas estranha e rfdicula era a
ideia que (Saccardino) tinha na sua menre confusa e corrupta sobre a origem Presentemente nada mais se sabe acerca das doutrinas desta
dos homens (negando que Adão e Eva tenham sido os nossos primeiros proge­ «escola herética». Ignoramos, por .isso, se e em que medida elas
nitores), pois declarava que os homens tinham nascido da rena fecunda, ral
como tantas rãs ou os sapos de Agosto, com a ajuda dos raios solares.»
O mesmo conceito aparecia formulado em Vanini, nestes mesmos anos, no seu 20 Biblioreca Comuna!, Bolonha, ms. B 1866. Esre volume de correspon­
De admi.randiJ naturae arcanis, 1616; ver L. Corvaglia, Le opere di Gi11lio Ce;r.tre dência (tal como o -anterior, B 1865) conrém muitos documenros relacionados
Vanilú e le loro fomi, Cicrà di Casrello, 1934, 2, pp. 178-79. Saccatdino pode rer com esres factos. Usá-los-ei numa f:�se subsequente desra investigação.
lido a passagem de Diodoro Siculo, reco rdada por Vilnini na tmdução em vem:ículo, 21
l/lid�1/l..
publicada por Gio1ito (Diodoro Siculo, HiJtnria rmerr1 libra-ri<�. histnricrt, Vc:ne:t.a, n Archlvio di Stilto, llolollh.,, Alllilllcri" di ll'l.t!:ÍJir.tli. !.t!lltn• J*II'Am!J//Jl"i
tt­
1575, 1, pp. 7-8). lon• .t_l!fi ti tw11ti ,ft,' M·'illl!r.ttl. I o: I I I • ' I.
140 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPÍTULO III 141

tinham alguma coisa a ver com as ideias de Saccardino, o qual infelizmente d e nos contentar com conjecturas porventura pertur­
pertencia naturalmente a esta «escola» . Sabemos, no entanto, que bantes mas insuficientemente documentadas.
por altura do último j ulgamento Saccardino declarou que tinha Nas primeiras décadas do século XVII, intelectuais europeus
vivido em erro durante catorze anos - de 1609 em diante23. Nesse das mais variadas origens tomaram consciência de que uma grande
ano ele estivera empregado como copeiro (tinellante) de Don Anto­ crise estava latente. A polémica de Galileu contra os aristotélicos,
nio dei Medici, em Florença24• A biblioteca deste homem, que se os projectos de Bacon no sentido da reorganização da ciência, o
interessava pelo estudo da metalurgia e da alquimia, continha, pa­ apelo à renovação política, religiosa e cultural formulado por
ra além de texros de Paracelso, o primeiro manifesto dos rosa-cru­ Tommaso Campanella, bem como a literatura de Rosa-Cruz, re­
zistas, o Fama fraternitatis.25 Somos levados a pensar que, na corte fl�ctiam, assim, a necessidade de ultrapassar os limites de uma
de Don Antonio, Saccardino aprendeu mais do que a profissão culruta que todos sentiam esrar a afundar-se. O próprio Discours de
de alambiqueiro que mais tarde exerceria em Veneza, Ferrara e la méthode, como mui to bem se sabe, nasceu de um impulso seme..:
Bolonha. lhante.
Talvez não por mero acaso era o eleitor palatino, invocado pelos O caso aqui descrito evidencia esse tipo de sensibi lidade -
conspiradores bolonheses nos seus cartazes, um importanre defen­ nomeadamente consciência da crise e esperança num renascimento
sor de reformas políticas e religiosas da sociedade - as mesmas político, religioso e culrural. Mas trata-se da sensibilidade de um
ideias que tinham dado forma aos programas dos rosa-cruzistas, charlatão profissional e não da sensibilidade de um intelectual -
cujos pressupostos assentavam no pensamento de Paracelso26. Sem o que rorna a situação .invulgar e mostra como, neste período, a
as acras do último processo inquisitorial de Saccardino27, remos · relação entre uma cultura superior e a culrura das classes inferiores
podia implicar trocas em círculo, cuja mediação assentava em códigos
diferentes, muitas vezes opostos. A troca, no enranto, era .intrinse­
\ camente desigual - o fim trágico de Saccardino é disso exemplo
23 R. Campegg l, Raccortto, p. 94.
2 Ver Historia di Bologna, ca1Jata da ttna cro11ica pmso li signot·i Guidotti,
4 claro.
Biblimeca Universirária, Bolonha, ms, 1843, f. 29; Archivio di Staco, Florença,
Mediceo dopo i/ Principato, Guardaroba, n.0 279, f. 24, 1606, e n.0 3 0 1 , f. 23,
1609.
25Sobre Don Ant6nio ver o excelente esrudo de P. Galluzzi, Motivi paracel-
siani, pp. 3 1-62; sobre o Fama fraternitatis, ver pp. 44 ff.
26
Sobre tudo isto, ver F. A. Yares, The RoJi�itm Enlighte�7-ment, Londres, ano, escrevi ao cardeal Seper, que é o responsável pela Sagrada Congregação
1972. I para a Dourrina da Fé (anrigamenre Santo Ofício), pedindo autorização para
27 O processo original não se encontra enrre os poucos que sobreviveram à çonsulrar apenas os documentes de interesse imediato para mim. Em Janeiro de
dispersão dos arquivos da inquisição de Bolonha. Sabemos, no entanto, arravés 1980, foi o próprio cardeal que genrilmenre respondeu, informando-me de qne
de um a carta do cardeal Millini darada de 27 de Agosto de 1622 (Biblioteca não fora possível encontrar o julgamento de Saccardino e dos seus companhei­
Comuna!, Bolonha, ms. B. 1866), que foi enviada uma cópia daquele à Congre­ ros - devia rer-se perdido em consequência dos estragos infligidos ao Arquivo
gação Romana do Santo Ofício. pela sublevação napoleónica. Em 6 de Março de. 1980 recebi outra carta, desta
O Arquivo do Santo Ofício em Roma é, como se sabe, inacessível aos vez da Secretaria de Estado (pror. número 27 3 3 7), assinada por E. Martinez:
estudiosos, embora a parre que passou a pertencer ao Trinity College, de Dublin, «Sem qualquer desconsideração pelo seu pedido - o qual se afigura perfeira­
possa ser consultada sossegadamenre, em microfilme, na seçcão de manuscriros mente compreensível vindo da parte de ttm inrelectual dedicado ao esrudo da
da Biblioreca Vaticana. Tive ocasião de sublinhar o absurdo de tal situação em história -, é meu dever informá-lo de que o material arquivado em quesrão é
carta de 1 7 de Omubro de 1979 enviada ao Papa João Paulo li, na qual soli­ de naturc·ut cont)den<:ial, não parecendo por isso convenience o livre acesso ao
citava a aberrura do Arquivo Romano do Santo Ofício, para que uma i nvestiga­ mc.:smo.» O sencido d:os dm�� cu·t:�:; (ntdn uma i1:noraodo a omra) é bastante
ção séria pudesse finalmente ser (e i t:a. Não tc·ndo obddo <p talqm:r n:� pu�!n, daro: (IS doetiOl('ll[()S de < j l lt' 1 ' 1 1 Jll'<•l'is:l\lil ('wrdc•r:lnt :;c; m;l$, m�·srno <JUC não S(•
fiq\td-mc por liOl objcct ivo rm:nos :1111 h icioso . .1 '.111 h no; dr ])l'�.c · t H h W do 11ll'�lllll l i V\'�\l'lll pc·rdiclo, ('11 1 1 1 1 1 1 • . 1 c�><o l •"' l" l ill c r·1 vi·:ln.
CAPÍTULO IV
'
S aques rituais
Preâmbulo de uma investigação ern curso

1 . São conhecidos os f.Ktos que se desenrolaram em Roma nos


fins de Agosto de 1 5 5 9 t . Mal se espalhou a notícia de que o Papa
Paulo IV Catafa estava no fim da vida, uma multidão «ptesa de
uma exultação furibunda»2 assaltou o palácio do Santo Ofício na
Via Ripetta, destruiu grande parte do arquivo que ali estava g uar­
dado, libertou os prisioneiros e lançou fogo ao edifício. Dois dias
após a motte do papa, a multidão fez em pedaços a estátua que o
representava, situada no Palazzo dei Conservatori. A cabeça da estátua
foi exposra em público, ornada por um judeu com um barrete
amarelo (a marca infamante imposta aos judeus pot Paulo IV) e
por fim lançada ao Tibre. Foi emitida uma proclamação oficial,
que, em nome do povo romano, mandava destruir por toda a parre
as i nsígnias de Catafa. Tumultos, saques e homicídios seguiram-se
ininterruptamente durante rrês dias. Grupos armados agitaram-se
por muiro tempo na cidade, comerendo homicídios e violências3.

1 Esras páginas - antecipação de um trabalho mats amplo - provêm de


uma investigação iniciada em 1983. Nela têm participado: Valena Balbi, Dora
Anna B_arelli, Silvia Campanini, Si lvia Evangeli�ri, Lorena Grassi, MireUa Plaz­
zi, Raffaella Sarri, Anna Maria Semprevivo, Maria Teresa Torri e, com funções
de coordenação , Cado Ginzburg. O texro que se segue foi redigido por esre
último, com base nas discussões em comum.
2 A expressão é de Philibert Babou d'Angoulême, embaixador em Roma,
numa carta ao cardeal de Lorena (cf. G. Ribier, Lettre.r et Mémoires d'Etat,
de.r Roys, p,·inces, Ambm.rctdetws. . . II, Paris, 1666, pp. 827-28.
' Cf. L.von Pastor, Storia dei papi . . . , trad. i t . , VI, Roma, 1943, pp. 584 ss.,
e lam hl'm P. Nores, «Sroria ddla guerra dcgli Spagnu<>.l i contro papa Paolo
l V » , i n 1\ n·hh•io .rtorio·" ir,t!ic�nll, �; . l , X l l , I H'Í i , pp . .�7 < • 7�; G. Du(uÍ, Le wrdi­
n,.tl C:11drl (,m4t . . . , Pari·., 1 1'.'1 ' . I'P · \Otl W'i.

li
1 44 SAQUES RITUAIS CAPÍTULO IV 145

Nesres episódios turbulentos cem-se visco geralmente a expres­ ao presidente da Câmara de Ossiglia, Galeazzo Anguissola, que
são dramática das tensões e dos rancores provocados pelo pontifi­ «pessoas arcevidas e temerárias ( . . . ) iriam considerar lícito» saquear
cado do Papa Carafa. Pouco ames de morrer, Paulo IV tinha pri­ as propriedades de Ercole. Os funcionários eram por isso convida­
vado os próprios sobrinhos de roda a responsabilidade política e dos a emitir uma proclamação que obrigasse aqueles que tinham
administrativa e havia-os mandado para o exilio4. Mas do compor­ praticado roubos nas propriedades do duque a restituir o roubado.
tamento arrogante que eles tinham era o velho papa (83 anos quan­ Em caso de recusa, teriam de ser enviados a Mântua, sob a ameaça
do morreu) considerado o principal responsável. A política ancies­ de penas· adequadas6. Na realidade, a carta do duque era uma pro­
panhola, que tinha contribuído para reacender a longa guerra entre fecia post ez�tntum: em Sermide e ourras localidades os saques já
a França e os Habsburgos, e a perseg uição fanática da heresia eram tinham começado no dia anterior. A 19 de Outubro, Camillo Suardo,
largamente impopulares . O deswncentamenro relativamente ao papa presidente de Secmide, tinha escrito ao duque de Mânrua informan­
escava difundido, embora alguns testemunhos de contemporâneos do-o de que mal as notícias da eleição de Ercole se haviam espa­
sugiram a possibilidade de que as desordens tivessem sido atiçadas lhado rebentaram tumultos em frente da igreja e em corno dos ban­
pelos principais oposirores de Carafa - os Farnese. cos dos judeus7. Vinte pessoas armadas de espingardas, chefiadas
A 5 de Setembro começou o conclave para eleger o sucessor de por um cerro Mario Miari, expulso de Ferrara algum tempo ames,
Paulo IV. Entre os cardeais considerados elegíveis, Ercole Gonza­ tinham procurado assaltar os prestamistas hebreus: o presidente da
ga, filho de Isabella d'Esre, rinha aparentemente as maiores proba­ Câmara em pessoa havia protegido esces, pondo em fuga os saquea­
bilidades de vir a ser o novo papa. Este refinado humanista, por dores. Também os caseiros da abadia beneditina de Felonica {que
muitos anos bispo de Mânrua, ti nha o apoio da França e da Espa­ fazia parte dos benefícios de Ercole) tinham sofrido um saque8.
,
nha, e também de muitas corres italianas menores. Mas a hostilida­
de que lhe moviam os Farnese veio a ser decisiva. No dia de Natal 2 . Por um lado, acontecimentos notórios, tendo como pano de
de 1 559, o conclave, desusadamence longo, terminou: Ercole Gon­ fundo a capital da cris tandade; por outro lado, obscuros episódios
zaga, juntamente com a maior parte dos cardeais, votou a favor de de pequenos centros da planície do Pó. A ligação entre estes casos,
Gian Angelo Medici, que tomou o nome de Pio IV'. O conclave separados por um intervalo de poucos meses, prende-se com uma
escava ainda a decorrer quando, a 20 de Novembro, Guglielmo série de usanças muito mais amigas, sobre as quais se deteve R.
Gonzaga, duque de Mântua, sobrinho de Ercole, escreveu a Ca­ Elze num denso ensaio9. Limitando-nos de momento à hierarquia
millo Suardo e a Galeotto del Carrecro, respectivamente presidente
da Câmara de Sermide e comissário de Revere - duas pequenas 6 Arquivo do Estado de Mântua (daqui em dianre ASM), Archivio Gonzaga.
localidades sit uadas nos arredores de Mâncua, na margem direita Libri de/ Copalettere,
i b. 2945, livro 349, cc. 182-v.
do rio Pó. Nas duas cartas o duque de Mântua informava rer sabido 7 Um deles chamava-se Rafael Vigevano: cf. S. Simonsohn, HJtory
i of the

que Ercole («O ilustríssimo monsenhor nosso tio») tinha sido eleito jews in the Duchy of Mantua, Jerusalém , 1977 (1." ed. 1962), p. 223, nma 87.
Aquele que ti nha o banco de Revere era por sua vez Vira (Haim) Massarano,
papa. A notícia devia ainda ser confirmada, escrevia o duque (tra­
cuja irmã era casada com o célebre literato e filósofo Asarià de Rossi (p. 218).
tava-se na realidade, como se viu, de um boaro sem fundamento).
Veja-se ainda E. Casrelli, «l banchi fenerarizi ebraici nel Manrovano (1386 -

Ele porém previa, conforme o que já tinha escrito no dia anterior - 1808)», in Atti e memqrie deli'Accademia Virgiliana di Mantova , XXXI 1959,
pp. 235-40 (sobre Revere), 250-55 (sobre Sermide). Sobre esta última locali­
dade, cf. V. Colorni, «Gii ebrei a Sermide. Cinque secoli di sroria», in Sct·itti iu
� Os acontecimenros pri ncipais são exposros por R. De Maio, Alfonso Cara­ memoria di Sttily Mayer (1875-1 953), Jerusalém, 1955, pp. 35-72.
fa, Cidade do Vaticano , 1961, p. 63 ss. " ASM, At'chivio Gor;zaga, Cor·riJjJondenza fra Mantova e i Paesi dei/o Stato ,
l H. fig li o
Cf. Jed i n , ,,IJ di Isabella d'Este: i l cardinnle Erc:ole Got1�:1g<l», b. 2567 ( L 9 dt: Out·\1bro de 1.559). Sobt·t: Fdooi<:a, veja-se a palavra in Diction­
in Chiesct del/a fede. ChieJa cletla stm·ict, trad. ir., mm 1m:hkio dt� G. Allx�ri}{o, rJ.airu eJ'fhrtoirt• e! ( ,·úi,/!.rttfJ/:Jie l!rdé.rimtiqm•.\'.
Bréscia, 1.97<'í, pp. 499-'5 1 2 . ., cr 1( . l ;.l.t,<' , «Sir 1 1'1\ll�; i l gloria 1 \ l l l l td i : hl 111<11'11' dc·l papa no·l Ml·dioCVO » ,
146 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 147

eclesiástica, encontramos, por um lado, o costume de espoliar o namentos, vestes douradas, jóias e até a preciosÍssima cruz de ouro
cadáver e saquear os bens dos bispos, cardeais e papas defuntos; oferecida por Belisário. A cantina e o celeiro haviam sido esvazia­
e, por outro lado, o de saquear os palácios dos papas recém-eleiros dos: para prover ao sustento dos pobres o pontífice ceve de recorrer
(e por vezes de outros cardeais), e até a cela que tinham habitado ao património dos seus progenitores13. Menos de vinte anos depois,
durante o conclave10• o concílio convocado em Roma pelo Papa João IX para reabilitar
Os testemunhos mais antigos dizem respeito ao costume de a memória do Papa Formoso (904), censurou o costume de pôr a
saquear os bens móveis dos bispos aguando da sua morte. Segundo saque, depois da morte do pontífice, não só Latrão mas toda a
as actas do Concílio de Calcedónia (4 5 1 ) eram clérigos aqueles que cidade e os arredores, observando que este péssimo costume, pra­
se maculavam deste crime11. Um século depois, na Espanha, o ticado também nas outras dioceses à morte do bispo, estava já
fenómeno assume uma fisionomia mais complexa: o Concílio de inveterado (inolevit)14. A menção da proliferação dos alvos e a au­
Llerda (524) lamentou a presença frequente (portanto, não exclusi­ sência das particularidades contidas nos concílios precedentes (clé­
va) dos clérigos nos saques; o Concílio de Valência (546) afirmou rigos, parentes do bispo defunto) deixam supor que os saqueadores
q 'ue neles tomavam parte, além dos clérigos, os parentes do bispo constituíam já uma multidão promíscua. O mesmo ressalta de resre�
defunto. A uns e a outros era ordenado que se abstivessem de munhos posteriores tanto referidos a Roma como a outras dioceses.
roubar os móveis guardados na casa do bispo ou na igreja e outros­ Em 1 0 5 1 , o Papa Leão IX enviou uma carta duríssima (redigida
sim dinheiro, utensílios, vasos, trigo, rebanhos e manadas 12. A ex­ talvez pot Pier Damiani) aos habi tantes de Osimo, que tinham
tensão deste costume à diocese de Roma ofereceu a possibilidade invadido e pilhado a habitação do bispo defunto, haviam cortado
de despojos variados e incomparavelmente mais ricos: em 1 8 8 5 , as videiras e os arbustos e pegado fogo às casas "dos camponeses.
como se depreende da biografia incluída no Liber pmttificalis, o Papa Actos de ferocidade selvagem - assim os definia o papa, deixan­
Estêvão V, ao entrar no palácio de Latrão depois de ter sido eleito, do perceber que eles tinham s.ido motivados (embora nem por isso
havia descoberto que do vestiarium tinham sido roubados vasos, or- justificados) por alguma injus tiça comerida pelo bispo antes de
morrer: de qualquer modo não excepcionais, visto que eram consi­
in Amta!i de!I'Istituto storico itct!o-germanico in Trmto, III, 1977, pp. 23-41 ( = cf. derados «cosrume perverso e execrável de uma certa plebe» 15. De
também Papste - Kaiser - Ko11ige tmd die mitte!a!r.erliche Herrschaftssymbo!ik, por
B. Schimmelpfennig e L Schmugge, Londres, 1982).
10 A respeito de tudo isto veja-se a documenração recolhida por G. Moroni, 13 Cf. Le Liber Pontifica!is, por L Duches ne, II, Paris, 1 9 5 5 , p. 192. No
Dizionario di erttdizione .rtorico-ecc!esiaJtica, XI, Veneza, 1841, vocábulo «Cella,, vestia1'irtrlt guardavam-se, além das vestes, cambém jóias e din heiro (cf. Du Cange ,
pp. 66-68; XX, Veneza, 1843, vocábulo «Difensori» ou «Difensore», p. 45; esse vocáb ulo). O saque do vestiarium efeccuado em 640 por Isacio, exarca de
L, Veneza, 185 1 , vocábulo «Palazzo» ou «Palagio», pp. 198-99; LXIX, Vene­ Ravena, logo após a eleição do Papa Severino, é um episódio de género com­
za, 1854, vocábulo «Spogli eccles ias rici » , p. 4. Muitos são os resremunhos literá­ pletamente diferente, ligado a circunstâncias políricas específicas , embora pro­
rios, a começar pela novela de Boccacio sobre Andcenccio da Perugia (Decame­ vavelmente facilirado pela situação de sede vacante: cf. Le Liber Pontificalis ci t . ,
ron, II jornada, nov. 5). Cf. rambém D. Gnoli, La Roma di Leon X, Milão, pp.328-29; O. Berrolini, Roma di froTJte a Bizancio e ai LongobrJt·di, Roma 1941,
1938, p. 81 (sobre a espoliação do cadáver de Estouteville). Ao assalto da habira­ pp. 312 s�; idem, «I l patcizio Isacio esarca d'Italia J (625-643)», in Scritti s,·elti
ção do recém-eleiro é associada justamente a destnüção do baldaquino do bispo di stm·ia medioeva!e, I, Livorno, 1968, pp. 65-68. De opinião difecenre, G . A.
(ou do papa) na cerimónia que se seguia à sua eleição: cf. G. Belvederi, «Ceri­ Ghísalberri, !I diritto di regalia srti bmefiá ecclesiastici in Ita!ia (spog!i e vacanze),
monie nel solenne ingresso dei Vescovi in Bologna durance i1 Medio Evo», se­ Pavia, 1914, pp. 8-9.
parata de Rassegna Gregoriana, Março-Maio de 1913, p. 172. 14 Cf. Mansi, XVIII, pp. 225-26.
1l
Cf. G. D. Mansi, Sacrorttm co-nci!iorum rl(wa et amplissi1na cof!ectio, VII, Florença, l l Cf. Baronio, Annales P.cclesia.rr.ici, XVII, Luca, 1 7 4 5 , pp. 59-60; F. Dresler,
1762, cal. 390 (daqui em diance abreviado em Mansi). Petrm D�•mir.mi l,uben und Werk, Roma, 1954, p. 105. E veja-se cambém V .
t2 Mansi, VIII, pp. 614-15, 619 ss. Cf. camhém, ibid''�"• pp. R3<'í (Cone.
PPCra, Cmrtmt11tm·kt ad Ctlmtitllliorm AjJnJto!ir:a.r .Ct'/1 B111lm inwda.r Smn11Wrtnn PMI­
Aurelianense, a. 533); X, 541-42 (C<>nc. P�ris iens<:, u. (d 'i; Cm1c. Cabilontl l.�(·, ti/it'l!lll, l, Hntw�, 1 7 C I 'l , pJl. I 'SfÍ �s. DltS «rea!-'\'•�·s PPI'III;trc•s ;to indi}\ 10
1
a. óSO); XI, 2R .�9 (Cone. Tolc::mnum, a. 0'i5). t'�iJ•c·; I.Íc nlo tl(t r rtllic p qut" r.r· futin ' Ol ) t ··� l > t'fl• da lgft"JH " , l,tltl, .':nn Jpnd.llll!'ll·
148 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 14 9

facto, à morte do mesmo Leão IX, os habitantes de Roma invadi­ do uma «torpe usança», a cela que ele ocupara durante o conclave,
ram Latrão <<segundo o costume habitual» (como escreveu um bió­ apoderando-se das poucas pratas, dos livros e do vestuário; entre­
grafo pouco tempo depois), roubando todos os móveis16. Que estas tanto, uma reles populaça ( «vilissima plebs atque infamis») saquea­
violências acabassem por assumü formas quase institucionais é con­ va-lhe o palácio, levando os mármores e fazendo-os em pedaços19.
clusão que decorre mesmo dos formulários da chancelaria apostólica Também esta rápida recapitulação faz entrev er um fenômeno
do século XIII: «citadinos» (sem qualque r especificação) costuma­ (ou uma série de fenômenos entrelaçados) desconcercante pela
vam apoderar-se dos bens móveis do bispo defunto, impedindo o amplitude, a difusão e a continuidade. E cerro que desde os tem­
sucessor de assumir o cargo enquanto não tivesse jurado respeitar pos do Concílio de Calcedónia o costume de saquear os bens do
a ttadiçãoli. A extensão dos saques à residência do papa recém­ bispo defunro tinha vindo a rransformat-se, sobretudo em Roma.
-eleito começou ralvez cerca dos finais de 1 300 - se bem que uma Mas em rodos os casos evocados até aqui o alvo dos saques (muitas
bula de Leão X, em 1 5 16, fale simple smenre de usança estabelecida vezes, como se viu, acompanhados de destruições) era co ns titu íd o
«há algum tempo» enrre o vulgo de Roma18. Nas suas memórias re­ por bens móveis. Fenômeno diferente, embora também l igado a
corda Enea Silvio Piccolomini como os servos dos cardeais, sabida a situações de vacatura do poder, é a confiscação dos bens imóveis
sua eleição para o sólio pontifício ( 1 458), ti nham despojado, seguin- dos bispos defuntos feita pelá nobreza feudal. Durante o século
XII, no clima da reforma gregoriana, rais accos susci taram resis­
tê ncias crescentes da parte da h ierarquia eclesiástica. «Nenhum
to, S. Prece, «S. Pier Damiani, le chiese marcbigiane, la rifonna del secolo XI».
in Srudia Picena, 19, 1949, p. 1 2 3 ; a identificação do bispo Osimo co m Gisle­
pr íncipe , nenhum casrelão, nenhwn leigo se atreva a invadir, de
rio (p. 1 24) impõe, se exacta, uma modificação da data da morte deste úlrimo maneira total ou parcial , os bens do bispo (à s uâ morte)» , escrevia
- 1057 - proposta por L.Banoccerri, ibidem, 1 5 , 1940, p. 108. por exempl o o Papa Adriano IV (falecido em 1 1 59) a Bere nga rio ,
16 «
. .. Romani, aesrimames illum (i. e . Leão IX) morruum esse, Lateranense arcebi spo de Narbonne, reprovando aquilo que definia <<Um per­
adeunc palacium , quatinus more solito omnem illius deriperen c suppelleailem»
verso costume que j á há tempos se levantou contra Deus e a vossa
(cf. S. Borgia, Mem()YÚ i.Jt()Yiche del/a p1mtijicia âtttl di Benevento, II, Roma, 1764,
p. 327, nota).
igreja»20. Perco do fim·dos anos 200, a atitude da Cúria com eço u
1 7 Cf. G. Mollat. «A propos du d roi t de dépoui lle» , in Revue d'histoire ecclé­ a assumir formas abertamente agressivas relativ ame nte ao pode r
sia.rtique, XXXIX, 1953, em parricular p. 323. Sobre a participação de clérigos laico: a Câmara Aposrólica estendeu as suas pretensões, pelo menos
nestes acontecimentos vejam-se as páginas muito mais tardias (não relacionadas em teoria, às propriedades pessoais de todos os cl érigo s (não só
com Roma) do jurisconsulro napolitano S. Marrei, Saggio di risoluzioni di diritto
bispos mas rambém cardeais), independen t eme n t e do tà.cco de te­
pubb/ico ecclesiastico, 1, Turim, 1745, pp. 1 -9, em particular p . 16: «Quem qui­
rem deixado ou não restamento2 1 •
sesse ver uma viva imagem da licencios idade militar no saque de cidades ini­
migas deveria estar presenre na morte do bispo, para obsexvar aré onde vai a
avidez duma classe que se considera sóbria, con r inence, etc.» Embora escrita
1 9 Cf. Pii li Commentarii remm memorabilium quae temporibus mis contigemnt,
com intuitO polémico, a desccição é fidedigna.
18 por A. van Heck, I, Cidade do Varicano, 1984, pp. 106-107. Os dois passos
Cf. Vanel, Histoire des cone/aves depuis Clément V jUJqu'rt présenJ, Colónia,
encontram-se erroneamente fundidos em Vanel, Histoin des Cone/aves cit., I,
1703 (3." ed.), I, pp. 15-16 (sobre o condave de 1378 em que foi eleita papa
pp. 47-4&. .
Urbano VI). Esta obra, que contém numerosas referências a saques, recorre lar­
20
Cf. Mansi, XXI, pp. 826-27. Veja-se também, ibid. , XX, pp. 5 1 8-19
gamenre a crónicas manuscrica5: por exemplo, as páginas sobre os aconrecimen­
ros que se seguiram à morre de Sisto IV (1, pp. 55-56) rtadtuem o Diario
(Cone. Claromontano, 1095); XXI, pp. 227 (Cone. Tolosano, convocado, em
1 1 19, pelo Papa Calisro li): «Pri m i tias , decimas, oblaciones, coemeter i a, damos
Rer11.m Roman()YJJIIl, de Srefano Infessura (veja-se a edição feita por O. Tom masi­
etiam ct bona caetera deficicntis <"pÁscopi, et clericorum, a pri ncipibus vel qui­
ni, Roma, 1890, pp. 1 6 1 -62). A bula de Leão X é reprodnzida em Bttl!amm
bu�libt:r laicis diripi et tl'lll;ri, ���·t1itus incerdicimns.»
jJrivilegiomm ac diplorwmm Romanomm pomifimm ampliuimrJ collutio, Ili, 3 , R oma ,
n Cf. G. Mn l l m , vodh 1 d o <d )(·pouille (droit de),,, in Dictiormaire de
1743, pp. 42:>-24. Cf. também o ck>creco «Con tra i n vad c n tcs domo� cardina­ droit
lr/7/llt!Ít{IIV; ir/<'771, ;\ /Jm{JOf ,/11 11!11/l, < < I ; «T..';tpp\i<.:ation d 1 1 droit ele dGpouille SOllS
lium», elo Concílio de Lardio V, in Conri/im'/11/1 (J�L'tirt/CI/ÍI:IW/1111 rl(!l.�·cttJ, por
.J<·1111 X X I I " , i 1 1 1(1'//f/1' clt< ,\, J,•I/1 • 1 1,',,/,gitllft'l. I �) , 'I<J1<), I ' · '!O ss.
G. Alb<-rÍ)�o c outros, Bolonhn, 1 ')/?>, P l '· �viO-'SO.
150 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 151

Pata legitimar: esta prática elabora-se a noção de «direito de bens pessoais e bens da ecdeJia, ou seja, da comunidade, se mostra­
esp.ólio» (jus spolii) - embora, ao que parece, a expressão só tenha va problemática24• Em Veneza, de resto, o costume de abandonar o
entrado em uso nos fins de 400. Elze sugere com prudência a palácio ducal ao saque da multidão logo após a morte do doge
· hipótese de que o jus spolii tenha derivado historicamente dos saques durou até 1 3 282�.
de bens móveis perpetrÇJ.dos por clérigos, por parentes dos bispos Os saques que, após a conclusão do conclave, atingiam o palácio
ou por multidões anônimas aguando da morte dos bispos ou dos do cardeal elei to (ou, por um erro que era demasiado frequente
papas22. O certo é que as multidões de saguedores estavam con­ para não ser deliberado, os palácios de outros cardeais)26 parecem,
vencidas de que exerciam um diJ;eito, relegado para o plano dos numa primeira aproximação, um fenómeno diferente - ainda que
princípios (embora em parte tolerado de facto) pelas autoridades não seja senão porque envolviam os bens de um vivo. De uma
laicas. e eclesiásticas. «Poderia facilmente acontecer que houvesse série de sondagens, incidindo sobre crónicas, correspondência e
atreviçl.os e temerários que cons.iderassem lícito roubar e saquear os ptocessos criminais, depreende-se que acontecimentos análogos se
aposentos de Sua Senhoria Reverendíssima. . . '', escrevia o duque de verificavam também fora de Roma. Os saques e tumultos suscita­
Mântua na carta já cirada. Mais de seis séculos antes, o concilio dos pela falsa notícia da eleição de E rcole Gonzaga não eram uma
romano de 904 tinha falado de abuso, de praesumptio. Quais eram extravagância isolada: podemos aproximá-Los de outros aconteci­
as raízes deste obscuro, persistente direito consuetudinário ao sa­ me ntos do mesmo género, latgamente previsíveis nas formas e nos
que, reivindicado em ocasiões tão específicas? objecrivos, esperados e deutro de certos limires tolerados pelas
autoridades. Tais se mostram, por exemplo, os saques verificados
3. Segu ndo o cronista Wipone, os habitantes de Pavia, acusa­ em Mântua, em 1 5 22 (quando se espalhou a falsa notícia da elei­
dos de terem destruído o palácio régio depois da mórte de Henti­ ção de Sigismondo Gonzaga ao pontificado; em Bolonha, em 1 5 90,
que II ( 1 024), tinham-se justificado perante o sucessor deste, Con­ em 1 62 1 e em 1 740 (após a eleição, respectivamente, de Urbano
tado II, dizendo: «Não podemos ser acusados de ter destruído a VII, Gregório XV, Benedito XIV). Em todos estes casos o cardeal
morada do rei, visto que o rei estava morto. '' Um navio sobrevive recém-eleito (ou assim cÓnsiderado) era também o arcebispo local,
à morte do seu timoneiro, havia retorquido Conrado II: «0 rei com a única excepção de Urbano VII, que no sécul o rinha o nome
estava morto, mas o reino continuava ainda (si rex periit, regnum de Giovan Battista Castagna. Mas ainda este, depois de se ter
remansit). » Este diálogo memorável terá sido reelaborado pelo cro­ doutorado em Bolonha, aí tinha voltado como governador, em 1 5 76-
nista, ao menos formalmente. Mas a substância da argumentação -77, e depois como núncio, em 1 584-85. Parece lícito admitir,
atribuída aos habitantes de Pavia talvez lance alguma luz, por ana­ provisoriamente, que também fora de Roma se verificavam saques
logia, sobre os saques que se seguiam à morte dos bispos e dos por ocasião de eleições papais, mas somente (embota não necessa­
papas23. Pata quem vivia a relação com a autoridade como um riamente) em localidades às quais, por razões de nascimento ou de
vínculo puramente pessoal, era óbvio considerar os bens do morto carreira, o recém-eleito tinha estado anteriormente ligado. Tais cir­
como res rtullitts, coisas ao dispor do primeiro que aparecesse: so­ cunstâncias desencadeavam comportamenros como aqueles que em
bretudo quando, como no caso dos eclesiásticos, a distinção entre

1° Cf. F. Porchnow, Das Spolienrecbt und die Testierfabigkeit der Geistlichen im


22 b.z. 1 3 ]b, 1 9 1 9 .
Cf. R. El-ze, Sic tramit,
Abendland
cir., pp. 3 1 -34.
ll
· Cf. E. Muir, Civic Ritual irt RertaiSJance Venice, Princeron, 198 1 , p. 269.
2� Cf. R. E1ze, Sic tramit, cic., PP· 35-36; à bibliografia cit. acrescenrar
Z6 Cf. ibidem, p. 29, nora 19. Sobre este tema ti nha-se debruçado D. Can­
A. So1mi, «La dismrLione de! palazzo regio in Pavia nell'anno 1024», in Ren­
diconti d�l R. IstittHO Lombardo di rciinze, /eth'f'e e ctrti, LVII, 1 9 24 , pp. 3 5 1.-364; timori JHrn1 scn1i n!írio 9ue n·:dizara em Nápoles so bre D1' cM·tlir!ctlatll, ele Paulo
Cort·cst·: cf. S. L\ntT i l i , .-. 1\ l l ' l':;r· i n r l·o fral iano per J•, l i studi Storici » , in Belfagr>r,
M. Bloch, L.a société féodale. LeJ clmse.r et te [!lltltJtfllement de.t hrmmm. Par i s , 1.940,
p. 1%. X X I I , 1 1JIÍ7, 1'1'· '. I �) I<J. Sc·t')lio llr·n d l i flti' nw :;ukr qut :; o l • n o nwsnH> •��stm

10 J >llhiH>Ilil dt'I I I J ( H'I I I f ,t•t ·Vr• 1 1 1 1 1 I J',rbJdho Í l l l l l ,lllll'llil' <'<1111 11111 / \1'1 1 1 " 1 d1• ,i]IIIHI'• ·
(

152 SAQUES RITUAIS CAPÍTULO IV 1 53

Bolonha, em l740, se seguiram à eleição de Benedito XIV (Pros­ quenta ovelhas, oitenta cavalos, vinte vacas, linho, camas, lençóis,
pero Lamberrini): a multidão em festa, depois de ter assaltado e trastes de cozinha, num valor global de 2 5 0 0 escudos. Mas dos
desbaratado, «sob a aparência de transportes de júbilo» , o corpo interrogatórios feitos por um pretor a mando de Suardo resultou
da guarda instalado na Piazza Maggiore, dirigiu-se para o palácio um quadro diferente. Após um litígio entre os nobres do lugar, os
Lamberrini «considerando-O>>, como se lê no Diario do Senado saqueadores tinham chegado a acordo quanto aos critérios de par­
bo1onhês, «apropriado nessa ocasião»27• Sim, mas porquê «apro­ tilha: esta deveria ser feita «segundo as pessoas e não segundo o
priado>, I E porquê «nessa ocasião» ? valor», dividindo os despojos em quatro partes: uma para a Câma­
O decreto «de non spoliando eligendum in papatu» aprovado ra, outra para os nobres, outra para o pároco, outra para o rendei­
na quadragésima primeira sessão do Concílio de Constança ( 1 4 l7) ro. O comportamento da presumível vítima, ou seja, o rendeiro,
afirmava que «cercas pessoas, reclamando-se de um abuso licencio­ não tinha sido - concluía Suardo - «nem bonito nem bom».
so, pretendem falsamente que os objectos e bens do novo eleito, O cônsul de Felónica, Giovanni Francesco Andreasi, justificou
que teria atingido por assim dizer o cume da riqueza ( «quasi cul­ perante o pretor que o interrogava o comportamento da comuni­
mine diviriarum adepto»), pertencem a quem os tomar»28• A con­ dade (e o seu próprio) nestas circunstâncias . Com a notícia da eleição
denação do costume dava-se por assente: o spolium praticado nestas de Ercole Gonzaga, gente provinda da vizinha Sermide ou do Fer­
circunstâncias era um abuso, não um direito. Mas o inciso «quasi rarese tinha ameaçado saquear a abadia. Mas, «devendo as coisas,
culmine divitiarum adepto» testirui-nos claramente uma justifica­ não tiradas a ninguém, reverter a favor duma comunidade, como é
ção (verdadeira ou presuntiva) em favor dos autores do saque. Po­ costume em semelhantes eleições de sumo pontífice, era mais honesto
deríamos traduzi-la nestes termos: a apropriação violenta dos bens que fossem para esses homens do que pata quaisquer outros: tanto
do novo papa confirmava a imagem de uma sociedade harmoniosa­ mais que, em caso de restituição, essa comunidade era responsável
mente hierarquizada, na qual os desníveis de riqueza deviam ser pot tal dano, quer estes o cometessem, quet fosse cometido por
contidos dentro de limites definidos. A análise de alguns casos ourros, mesmo forasteiros. Portanto, foi por conveniência e honra
concretos de saque não desmente esta interpretação, antes a enri­ da comunidade que o cometeram » . O despojo ficava assim em
quece de novos elementos. depósito na Câmara, que estava pronta a restituí-lo no caso de a
notícia da eleição não se revelar verdadeira29.
4. A 20 de Outubro de 1 5 59, Camilo Suardo, presidente da Na realidade, a restituição não se realizou: as tentativas feitas
Câmara de Sermide, deslocou-se à abadia de Felónica, onde, che­ pelo duque para recuperar a posse dos bens roubados na abadia re­
gada que foi a falsa notícia da eleição como papa de Ercole Gon­ velaram-se infrutíferas, certamente devido também à escassa cola­
zaga, se tinham verificado saques. Foi acolhido por duzentos homens boração das autoridades locais. Em 20 de Abril de 1 560, seis meses
armados (como referiu o próprio Suardo numa carra ao duque de depois do saque, Raniero Rarnieri, o juiz mantuano encarregado
Mântua) com evidente hostilidade. O rendeiro da abadia contou de se ocupar do caso de Felónica, escreveu ao duque propondo
que o cônsul e os sábios de Felónica, à frente de um grupo muito uma absolvição geral, até porque «O dito Magnífico Presidente da
numeroso, tinham ex.igido que entregasse as chaves; haviam esva­ Câmara..nessaaltura não negava que a dita abadia, como coisa do pon­
ziado completamente o celeiro e o palheiro e levado cerca de cin- tífice, se pudesse com boas razões saquear; antes disse no meio daque­
le júbilo palavras que eram pelo menos de consentimento tácito»30.

27 Arquivo do Estado de Bolonha (daq ui em di ame ASB), Ammteria di sede


vacante. Díari di sede 7JacarJte 1 730-1 775, fase. 1740; Senato, Diario ( 1 7 1 4 -1 749), 1.9 ASM, Arcbwio Gnnzaga. Corrhpondertza fra Mantova e í pcr.e.ri del/o Stato,
n. 1 2 ; Gi()rTla/e di quanto Ji efatto dai Smato. . . , apensado e numerado à parce, c. I v. b. ?.567 (20 r� 2 1 de Setembro de l559).
28 Cf.
Mansi , XXVII; veja-se rambém I-I. B. P., Tt·aicté wmmaire de I'dctlitm tle.1 '" ASM, An-hivio ( :mrwwt. < :orri.rjlllltdmt.'l /m Memtova e i fwe.fi de/In Stato,
fJctfles, Paris, 1<105 (3." ed. nmplittda), pp. 14- 1 5 . h . .''1óH CW dr l\l11·il de I �'\')).
154 SAQ UES RITUAIS CAPiTULO IV 1 5.5

Com efeito, à parte a confusão inicial com o rendeiro, o saque em 1 5 59, o presidente da Câmara teve de proteger os bancos he­
processou-se com muita ordem. Toda a comunidade tinha nele braicos do assalto da multidão; o mesmo aconteceu em Mâncua,
participado: não só por cálculo racional ( «conveniência»), mas em 1 5 2 2 , quando se espalhou a falsa notícia da eleição de Sigis­
também por considerações de natureza simbólica ( « honra,). Per­ mondo Gonzaga32• A violência dos saqueadores era verosimilmente
mitir que forasteiros se apoderassem dos bens do novo papa teria motivada pelo vínculo especial, feito de opressão e protecção, que
sido, sob todos os aspectos, uma vergonha geral. Através do rito ligava o papa (assim como, em França, o rei) aos hebreus. Estes
do saque era reafirmada a identidade local e reforçad a a hierarquia poderiam ser considerados <<gente do papa» e em cerco sentido
social da comunidade. propriedade sua: os seus bens, naquelas circunstâncias, estavam por­
tanto à mercê do primeiro que aparecesse. Mas nem mesmo a escolha
5 . Mas por vezes a violência dos saques que se seguiam à elei­ da padaria a saquear tinha sido casual: a padaria anexa à Abadia
ção papal não era apenas simbólica. A 1 6 de Setembro de 1 5 90, de Santo Srefano gozava há séculos de privilégios pon t ifícios espe­
quando se divulgou em Bolonha a notícia da eleição de Urbano ciais, que haviam sido confirmados em 1 5 8 7 e 1 588, no tempo em
VII (Giovan Battista Castagna), uma centena de pessoas, na maior que o abade comendatário era Alessandro Perecei, sobrinho do papa
parte <<miúdos pequenos» , gritando «aos judeus, aos judeus ! » , dirigiu­ reinante, Sisto V. Tratava-se da única padaria de Bolonha que tinha
-se para o gueto onde os judeus se tinham instalado três anos o direito de vender, a preço mais caro, pão branco da melhor
antes. A sinagoga da Via dell'Inferno foi saqueada; as janelas ar­ qualidade, teoricamente reservado a estudantes e a doentes. <<Trai­
rancadas; livros, utensílios e bancos arirados para a rua. Uma caixa dor, que só queres. dar três onças de pão por um bolognilzo! » , grita­
que conrinha esmolas acabou nas mãos de quatro transeuntes - vam os saqueadores. (Com um bolognino compr�vam-se geralmente
um taberneira, um maceiro, dois tecelões - que, após alguma in­ quatro a seis onças de pão comum.) Na impossibilidade de exercer
decisão, a entregaram ao vice-legado (Camilo Borghese, o futuro o seu direito consuetudinário sobre o palácio do recém-eleito
Paulo V). Três deles foram detidos e obrigados a resriruir o des­ (o cardeal Castagna não tinha um palácio em B olo nha), a multidão
pojo - dez bolog1zini, uma pequena soma - aos representantes da desforrava-se em alvos substitutos mas sempre conotados com o
comunidade hebraica. Mas entretanto, ao grito de «Viva Castagna, poder do pontífice.
viva o papa ! n , uma outra multidão, composta de jovens e adultos
(talvez duzentos, talvez quatrocentos), corria ao longo da Via Santo 6. Sem dúvida que nas violências contra os judeus ou contra a
Stefano. Depois de terem lançado pedras à padaria de San Bi-agio, padaria de Santo Stefano e os seus privilégios desabafavam-se sen­
cercaram a padaria de Santo Srefano, arrombaram a porra e apode­ timentos de agressividade latente, a que a exultação geral assegu­
raram-se de tudo o que estava dentro - pão e dinheiro. «Três rava uma impunidade temporária. Este elemento avulta com clare­
onças por um bolognino! Queremos pagá-lo agora! O padeiro não za nas tumultuosas vicissi tudes que ocorreram, em Bolonha, a 1 1
fechou! Ao saque, ao saque ! » , griravam. Alguns dos respons·áveis e 1 2 de Fevereiro de 1 6 2 1 . A notícia da eleição de Gregório XV
foram identificados e sujeitos a processo31• (Alessandro Ludovisi) tinha chegado ao fim da tarde de 1 1 . Entre
A linha invisível que separava, aos olhos das autoridades, vio­ a multid,ão que se congregara na Piazza Maggiore estava um fidal­
lências toleradas de violências inadmissíveis tinha sido portanto go de Verona, Domenico Brugnoli. Enquanto ele· conversava com
ultrapassada. Mas os alvos escolhidos pelos sa,lteadores não eram alguns. amigos, um homem de rosto coberto por uma máscara atacou­
casuais, assim como não era casual, provave.lmeme, o facto de naquele o, disparando um tiro de pistola. No processo que se seguiu veio
ano a colheita ter sido má. É de Lembrar que também em Sermide, a saber-se que a emboscada tinha sido urdida por um nobre bolo-

.> t ASB, T,.ibunolu de/ Tor?mie, b. 2?38, cc. 207 v., }. Hl v., .�:1-'Í· v., 264. v., ,.. ASM, Anbiuio Cwrz.tg,t. Copi,,/cJ/CI'I', l1. 2927, tivro 2(,9 (5 e 9 de Janeiro
282 'l . , 2 8 9 v . de 1 '1 , ,0.

[
/

156 SAQUES RITUAIS CAP[TULO IV 1 57

nhês, Giulio Sanuti, que, sabendo do novo papa, decidira aprovei­ Borgo Santa Caterina, um bairro de má fama onde habitava Vitto­
tar a ocasião para vingar uma velha ofensa (e por este motivo foi ria Piccinini, uma cortesã de Modena que eta notoriamente a amante
primeiro mandado para o exílio e depois agraciado)33. Numa outra do chanceler. Atrás das janelas das casas vizinhas algumas prosti­
parte da cidade um ourives entrou em casa de uma rapariga para tutas assistiram à cena. Assaltantes com o rosto enegrecido de fuligem
a raptar, aproveitando-se do facto de naquelas horas (como depois arrombaram a porta da casa de Vittoria. Guiava-os Giacomo Vac­
recordou a vítima) «todas as coisas andarem de pernas para o ar»34. cari, proprietário duma mercearia próxima da praça. Gritava, com
Na manhã seguinte os camponeses que vinham para o mercado a espada desembainhada: «Viva o papa! Mataram sangue nosso!
eram detidos e roubados; as padarias esvaziadas, entre gracejos e Pilhem todos, pilhem rodo s ! » Durante meses e meses os j uizes de
risadas3). O alcaide decidiu restabelecer a ordem e desceu à praça Torrone continuaram a seguir o rasto dos vestidos roubados a Vitror.ia
com doze guardas. Um grupo de rapazes começou a atirar pedtas Piccinini37.
e bolas de neve (caíta um grande nevão). A multidão tornou-se
mais compacta; alguém começou a gritar «morra Sfreghino!» (era 7. A sumária exposrçao destes casos sugere algumas conside­
o apelido de um guarda particularmente odiado). Um homem renrou rações. Que nenhum saque seja igual a outro é coisa natural, tra­
arrancar ao alcaide o cordão de ouro que trazia o pescoço. Um dos tando-se de evenros por natureza aleatórios: mas as semelhanças
guardas disparou um tiro de arcabuz, ferindo gravemente um artffice que apesar de tudo se entrevêem parecem atribuíveis às circuns­
(que morreu algumas horas depois). Neste momento a multidão tâncias específicas em que rais eventos se verificavam. Era sobre
descontrolou-se. Nos dias seguintes várias pessoas interrogadas pe­ as propriedades do novo pontífice ou sobre um grupo que ele
los juízes do Tribunale del Torrone conraram ter visto o vice-lega­ ambiguamente protegia (os judeus) que se c9 ncentrava a viol ncia �
do aparecer fugazmente a uma varanda e fazer um gesto - que dos saqueadores. A sua pretensão declarada de exercer um due1to
foi interpretado como uma autorização ou um incitamento. As casas consuetudinário, ao mesmo tempo arreigado e transitório, ligado a
do alcaide e dos guardas foram assaltadas e postas a saque. Cava­ uma situação completamente excepcional, inspirava gestos e com-
los, jóias, vestidos, quadros, móveis, porras, janelas: tudo foi leva­ portamentos onde se pode ver uma componente rirual.
do. Nos compartimentos vazios - contou uma testemunha - . .
Termos como «tito» ou «titual» contam-se entre os ma1s m­
ficou apenas um cheiro forte de vinho entornado. Ao alcaide e aos flacionados das ciências sociais. Ao lado da acepção lireral de
guardas não restou mais do que apresentar wn minucioso inventário «cerimónia de culto>> encontramos uma série de usos cada vez mais
daquilo que tinham petdido36. metafóricos - até chegarmos aos «rituais de namoro>> que os etólogos
Entretanto a multidão furiosa procurava outros alvos. Um as­ atribuem a determinad� espécies animais38. Uma carga metafórica,
salto ao gueto estava excluído: os j udeus tinham sido expulsos de embora obviamente mais débil, está também contida na expressão
Bolonha em 1 5 9 3 . Umas cinquenta pessoas dirigiram-se para o «saques riruais» . Naturalmente «tiro» não designa aqui uma fórmula
preestabelecida, a seguir com exacridão escrupulosa: antes um
_ del!,arte.
esquema aberro, um esboço de enredo como os da commed1a
ll
ASB, Tribtmale de/ Torrone, vol. 5111, cc. 94 r., 103 v., 1 67 r., 1 8 3
272 v., 2 9 9 r., 3 4 8 v.
v., 2 5 2 r . , Poderíamos comparar os saques a um « contrateatro» apresentado
3 " ASB, Tribtmale de/ Torrone, vol. 5 1 00 , cc. 191 r., 7
1 9 3 v., 3 4 r., 399 sob formas improvisadas no «palco da rua»39• Certamente, estes
v., 404 r.
J; ASB, Tribuna/e de/ Tomne, vol. 5 1 20, cc. 85 r., 80 v., 349 r.v. ll
ASB, Tribttnafe de/ Torrone, b. 5 1 1 0, cc. 1 2 3 v., 1 2 5 r., 1 6 3 r.v., 204 v.,
36 ASB, Tribuna/e de/ Torrone, vol. 5 1 10, cc. 103 r., 108 v., 1 1 3 r., 1 2 3 r., 2 2 1 r., 224 r., 231 v., 2 3 2 r., 2 3 5 r., 236 r., 240 v., 246 r., 251 r.
7
1 2 5 r . , 1 3 0 v., 140 r., 1 5 2 v., 1 2 r., 1 7 3 r., 194 r., 197 v., 201 r., 204 r., 223 >• CF. «Ritualization o F Behaviour in Animais and Man>>, por ]. Huxley, in
r.v., 2 3 2 r., 235 r., 2 3 6 v., 240 v., 243 v., 244 v., 246 r . , 253 v., 280 r . , 289 �
Phi/o.rophi<'•l/ Trâll.l'<ll'tirm o( the Royctl Soâely o( Lrmdmt, 196 , vol. 2 5 1 , n.
.
77 � .
r., 297 r., 3 1 4 v., 322 v., 325 v., mais <JU8tro p8péis solcos e uma folha vo­
''I Cf. r:.. P. 'fl t o 1 n p:;on, «Folcl or<", nntropolof�Í:J <' sl'oi'Ja SOCirtk», t ll Souettl
hme; vol. 5120, cc. 19 r . , 27 r., ."> 1 r., 4 5 v., )8 r.v.
/iillrlârJ, utltllr!l filrl•r', l, rl';�<l. i c . , ' l 'tii'Í J J l , l •lH I , p . l 'l �i . Oh�wrviHJws úttis de
158 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 159

acontecimentos desenrolam-se em formas que deixam transparecer algum tempo depois - «duma iluminação interior que de repente
uma componente simbólica, não redutível ao puro e simples desejo tinha dissipado a escuridão em que vagueava há dez anos» 42• Mas
de apropriação. Vimos que os padres do Concíl io de Constança a realidade era um pouco diferente. A «iluminação>> de Van Gennep
tinham reconhecido, no diteico reivindicado pelos saqueadores sobre não teria sido possível sem a leitura do ensaio de R. Hertz, publi­
os bens do papa recém-eleito, uma forma d e compensação mais ou cado, em 1907, no Année Sociologique com o título <<Contribution à
menos .simbólica relativamente a quem havia chegado ao cume do l'étude sur la représentation colleccive de la mort » 43. Numa página
poder. dos Rites de passage, Van Gennep aludiu de forma enigmática a este
Num ensaio famoso, E . P. Thompson definiu «economia mo­ contributo: aquilo que ele próprio no passado (Tabou et totémisme à
rah> como o complexo de valores que legitimavam, aos olhos dos Madagascar, 1904) tinha considerado como um conjunto de práticas
seus autores, os tumultos por causa do pão que se verificavam na negativas destinadas a circunscrever a impureza dos cadáveres, agora
Inglaterra dos anos 7 00'í0. Também os fenómenos que estamos con­ aparecia-lhe como «um estado marginal» através do qual os sobre­
siderando parecem inspirar-se em valores análogos. Resta ainda ex­ viventes, e · por vezes o próprio morto, são primeiro separados e
plicar porque se manifestavam eles precisamente naq uelas circuns­ depois reintegrados, respecrivamente, na sociedade dos vivos e no
tâncias determinadas. Haveria aos olhos dos saqueadores qualquer mundo dos monos. E m nota, Van Gennep remetia para os escudos
coisa de comum entre a morte do bispo ou do papa e a eleição etnográficos realizados por ]. A. Wilken na Indonésia, cujas con­
deste último/ clusões tinham sido «generalizadas» por Hertz�4. O lei cor da nora
Elze sublinhou que entre ambos os casos há uma passagem a não podia ter uma ideia da amplitude da generalização proposta
nova condição, a uma nova identidade - simbolizada até, no caso por Hercz: aos ritos de dupla sepultura �le tinha aproximado os
ela e lei ção papal, com a assunção de um novo nome. No entanto, que se ligam à iniciação, ao nascimento, ao matrimónio, acabando
não interpretou como «ritos de passagem» os saques que multas por concluir que <<a morte, para a consciência social, é apenas uma
vezes acompanhavam estes acontecimentos" 1 • Outtos historiadores, espécie particular de um fenómeno geral»45. Veremos den tro em
mais propensos ao uso de categorias antropológicas, não hesitariam breve que coisa teria sugerido esta extensão: mas pode-se observar
em enveredar por esse caminho. Ele implica, porém, uma dificul­ desde já que a análise da passagem por excelência (a morte) tinha
dade que a contraposição um pouco demagógica entre história «tra­ levado Hertz a formular claramente, no âmbito do rico, a sequên-
dicional» e «nova» história tende a camuflar. Até que ponto é
lícito (ou útil) utilizar, na análise histórica de situações específicas,
'2 Cf. N. Belmonr,. Ai·nold van Gennep, trad. ingl., Chicago, 1979, p. 58
categorias elaboradas em conrextos culturais completamente dife­
(o texto francês é de 1974)'.
rentes? A questão que estamos a discutir lança alguma lnz sobre 43 Cf. R.. Hertz, St�lt<l mpprmntazione colletti·va della morte, com inrr. de
as implicações desta pergunta. P. Angelini, Roma, 1978 (o volume conrém ainda Lct preminertza de/ia mano
destra, do mesmo Hercz). Sobre Hercz veja-se ainda o ensaio de R. Needham
8 . A categoria «ritos de passagem» anda geralmente associada que precede a colecrânea (por ele feira) Right and Left ESJays on Dual Symbolic
C/assifi.€ation, Chicago, 197 3 .
ao l ivco que A . Van Gennep publicou em 1909 com esse título (Les
44 Cf. A. Van Gennep, Les rites de pmsage, Pa ris, 1909., Pl) · 210-2 1 1 ( = I
rites de passage). O livro era proveniente - declarou o seu autor
riti di passagio, rrad. it. de F. Remoti, Turim, 1 9 8 1 , pp. 128 e 201, no tas 1
e 2).
4> Cf. R. Herrz, Sul/a rappresenJazione, ci r. , p. 89. Esta afirmação assim rer­
carácrer geral no vocábulo «Rira , , de V. Valeri, in Enciclopedi<� Einattdi , 12,
minance contradiz a opinião de N. Belmonr, segundo a qual caberi a a Van
Turim, 198 1 , pp. 2 1 0-243.
Ge nnep (e não a Hertz) o métito de ter deslocado o acenco das semel hanças de
4° Cf. E. P. Thompson, <<L'economia morale del le classi popolari ingl esi nd
COIII c·údo p:u�t ;tS semelhanças formais encre os vários riros (Arnold 11an Germep,
secolo XVIII>>, in Societc) jMt1'izia, cit., pp. 57-J.%.
tir., pp. ().1 (,'1). Nn n:ulidadc:, H•·rl�. . c:o,,o sr· w·r:'Í ,, :-w1�tdr, rorna :.unh: 1s em
" Cf. Elze, Sic Prcr.nsit, c i r . , l'P· 2R-2)l.
('OII':i,lc•rLu,llll,
/

160 SAQ UES RITUAIS CAPÍTULO IV 161

cia separação-marginalidade-agregação, depois retomada e sistema­ ( 1 704): «Logo que a morte d o rei se torna d o domínio público,
tizada por Van Gennep46. cada um porfia em roubar o próprio vizinho e arrebata descarada­
Esra sequência teria, segundo Van Gennep, uma validade rrans­ mente tudo o que pode sem que ninguém renha o direiro de o
cultural, esrando ligada a escalões necessários da vida associada punir, como se a jusriça tivesse morrido com o rei . o� furros con­
(nascimento, puberdade social, matrimónio, erc.): da idenr.idade do tinuam até que seja eleito um novo soberano . . . »49 E impossível
fim derivaria a analogia dos meios (rituais) urilizados47• Mas trata­ não pensar nos saques que se seguiam à morre dos bispos ou dos
-se de uma analogia puramente formal ou também de conreúdo? papas. Mas remere também para o ensaio do reverendo L. Fison
Uma página do ensaio de Herrz sugere mesmo a segunda possibi­ sobre os costumes funerários nas ilhas Fiji (1880), que encerra uma
lidade (certamente mais embaraçosa). «A morte de um chefe » , analogia ainda mais surpreendente. «A morre do chefe a gente
sublinha Herrz, «determina no corpo social uma desorientação pro­ corre para a cidade, faz chacina de gado, rouba, .incendeia as habi­
funda que, sobretudo quando prolongada, é fértil em consequên­ tações: mas esta usança (difundida também na Aftica Cenrral «e
cias. Parece de facro que, em muitos casos, o golpe que atinge o noutros sírios») está a cair em desuso, como mostra o facto de nu­
vértice da comunidade na pessoa sagrada do chefe tenha tido como ma localidade o furto indiscriminado atingir apenas os bens móveis
efeito a suspensão temporária das leis morais e políticas e a explo­ do morto, e ser numa outra praticado apenas pelos parentes do mor­
são de paixões normalmente contidas pela ordem social»48• Numa ro.» Segundo Fison (uma interpretação não recolhida por Hertz), o
longa nota, Hertz temere para testemunhos de missionários ou vazio do poder fazia aflorar uma anriga ideia comunitária ( «the old
viajantes referenciados a domínios culturais hererogéneos: as ilhas communal idea» ): numa localidade, Navarq, essa ideia exprimia-se
do Pacífico (Fiji, Sanduíche, Carolinas), o arquipélago das Maria­ de forma não violenta, através duma rroca 'recíproca de dádivas50.
nas , a Gu.i né. A propósito desta última cita um passo de Bosman
9. Muiros historiadores não tomariam de modo algum em
consideração a eventualidade de práticas consuetudinárias do­
46 A prioridade de Hertz foi já no tada por H. S. Verso el num ensaio
cumentadas em Roma ou em Bolonha nos séculos X ou XVI po­
muito rico, que será d iscutido mais ampl ameme na versão defini ti va deste tra­
balho (um vivo agradeci men to a Xavie r Arce pela ind icação): cf. «Desrcucrioo, derem ser aclaradas por um confronto com usanças difundidas nas
Devorio aod Despair io a Si ruation of Anomy: the Mouroing for Germanicus ilhas Fiji. Outros aceitariam uma comparação entre dados tão
in Triple Perspecrive», in Pere1mitas. Studi in honore di Angelo Brelich, por hererogéneos para fins exclusivamente turísticos - observar de
M. Piccaluga, Roma , 1 980, pp. 541-618, em particular p. 5 8 1 , nora 182
um ângulo insólito uma documentação familiar. Só alguns, prova­
(e veja-se ainda a nora 55). E. E. Evans Prirchard, por sua vez, limitava-se a
velmente, se aventurariam a .interpretar as eventuais convergências
sublinhar a utilidade de um confrontO encre os dois estudiosos (cf. a in trod ução
a R. Herrz, Death and the Right hand, nad . de R. e C. Needham, Glencoe, III . ,
entre as duas séries como um fenómeno unitário, baseado em ele­
1960, pp. 15- 1 6) . Segundo M.Giuckman, que considera Les rúes tk passage «bastante mentos transculturais5 1. Em rodo o caso, a comparação com os
enfadouho», Van Gennep partiu das passagens rerriroriais para construir um
modelo válido para rodos os ricos de passagem (cf. «Les cites de pa.ss:age», in Il
rituale nei I'Opporti sociali, por M. Gluckman, trad. it., Roma, 1972, pp. 19, 2 1 , 49,.Jbid., p. 106, nora 127. A citação foi verificada e in teg rada na tradução
25, 29; e veja-se também F. Remott i, i ut r. cir., p . XVIII). Mas, como se viu, francesa (Voyage de Guinte, Urreque, 1705), para a qual Herrz remere. Sobre o
a exposição da «descoberta» de Van Gennep n� coincide, de modo algum, rexro de Bosman (que é utilizado por Bayle), cf. A. M. Iacono, Teorie de/ feticis­
com a sua génese. mo, Milão, 1985, pp. 13 ss.
47 Cf. A. van Gennep, I riti di passagio ci t . , p. 5 . N. Belmon r (Arnold Vem )u C f. Rev. L. Fison, «Notes on Fijan Burial Cu sr oms » , in The }ot�rnal of the
Gemup, cir., p . 45) afirma, por seu lado, que para Vao Gennep os «ritos de A11thropological Instil'llte, X, 1H80, pp. 137-1.49, em particular pp. 140- 1 4 1 , que

passagem» são um esquema puramente metodológico, que procura pôr em ot­ re mete �a�1bém p;tra T. W i l l iams, l'iji anti thc Fijanx (est<1 úlci m11 ci tação oã()

d em a massa. confusa dos factos ernográficos . 11li conff'rida).


" 'l'rnr.:o-s•· dr· r tnrol rl,t•r l i n h:111 l l l r < •rpr'r•r:ol'ivrt� (lo l < ' rr' r• l h r , J >llil'll':'-m ÍlliÓI�it'a (•
�H Cf. R. Henz, S11tla rapj�rc.rentaziorw, <:it, pp. 'SR ') t).
nllrrllplllfÍII Í • rr) �·''Jl l l idn•l ! " " 1 1 , S. Vr·r 11d, l >t•r/P!Ir ll/1 11 • 11
('·

162 SAQUES RITUAIS CAPITULO N 1 63

dados ernográficos, quer na sua versão mais prudente (que procura Daggett aproximava as lendas sobre a criação difundidas nas i lhas

simplesmente motivações para novas perguntas), quer na sua ver­ Havai das lendas hebraicas (sem excluir uma remota origem co­

são mais audaz (que não exclui a possibilidade de descobrir novas mum) e encontrava na mirologia indígena figuras paralelas a Helena,
·

respostas), impõe uma crítica preliminar dos testemunhos. Páris, AgamémnonH.

Há um dado que salta imediatamente aos olhos: a partir das Hertz, que não cita Daggett, pode ter formulado a comparação

suas fontes, Hertz, que declaradamente trabalhava sobre elementos com as saturnais de maneira independente. Semelhantemente, a

de segunda mão, atingiu descrições impregnadas de elementos alusão ao «Carnaval» e às «Saturnalia» feita por M. Sahlins a

valorativos - não só factos, portanto, mas interpretações. A ob­ propósito de outros ritos praricados nas ilhas Sanduíche não evoca

servação sobre a «Suspensão temporária das leis morais e políticas» Hertz necessariamenre55. Mas o exemplo de Daggett sublinha de

na sequência do desaparecimento da pessoa sagrada do chefe reto­ maneira quase caricatural o evidente paradoxo implícito em qual­

mava, reelaborando-a, a observação de Bosman: «Como se a justi­ quer interpretação e até em qualquer descrição: uma realidade des­

ça tivesse morrido com o rei. » A indicação, aparentemente neutra, conhecida pode ser abordada apenas através de esquemas (necessa­

da existência em certas sociedades de um «período de anarquia» riamente aproximativos e potencialmente deformantes) extraídos

após a morte dos chefes réproduzia literalmente uma frase do da realidade conhecida56. A projecção dos esquemas culturais fami­

reverendo Fison sobre a «anarquia deveras selvagem» ( «wildest liares ao observador é, numa primeira fase, necessária para organi­

anarchy») que se instaura em tais circunstâncias. Poder-se-ia ob­ zar os factos se não mesmo para ter a percepção deles. Ao debru­

jecrar que «anarquia» é aqui um simples sinónimo (com conota­ çarem-se sobre civilizações de outros continentes, os viajantes e os

ções claramente negativas, pelo menos para o reverendo Fison) de estudiosos europeus serviram-se muitas ve'zes, e nem sempre de

desordem social. Mas a comparação que vem logo a seguir na nora forma consciente, dos conhecimenros e das categorias provenientes

de Hertz - «uma espécie de saturnal» - era mais compromete­ da Antiguidade Grega ou Romana ( «rito», por exemplo) como de

dora, porque arrastava consigo uma série de referências implfcitas um indispensável meio de orientação57: deste modo se lançavam as

a rituais de inversão social, a periódicas transgressões e coisas no bases de.uma projecção em senrido inverso, ou seja, da observação .

gênero. Acontece que essa mesma comparação foi proposta num da Antiguidade Grega ou Romana numa perspectiva antropológica.

llvro - The Legends and Myths �f Hawaii ( 1 888) - que rrazia no Até a análise global (e transculrural) dos ritos associados ao nasci­

frontispício os nomes de Sua Majestade Kalakaua, rei das ilhas mento, ao matrimón.io e à morre como riros de purificação tinha

Havai, e do d iplomata estado-unidense R. M . Dagget. Este úlrimo sido sugerida a Hertz por uma nota dos Sibil!inische Blatter, em

(supostamente organizador, mas verdadeiro autor do livro52) afir­ que H. Diels, em polêmica com Wilamowirz, interpretava ele­

mava que «à morte do rei, durante o período de luto, que às vezes mentos da religião grega e romana numa óptica implicitamente

durava semanas, a população entregava-se a uma desenfreada sa­ antropológica proveniente de Usener, o mestre comum58. Recente-

turnal de licenciosidade e irreflexão. Violava-se abertamente qual­


quer lei, comeria-se abertamente qualquer crime»53. Noutro passo,
l< llfjcl. , pp. 33-35, 69 ss., 1 1 7 ss.
)' Cf. M. Sahlins, Historical Metaphors and Mythical Realities. Structure in the
n R. M. Daggecr, pitoresca figura de pesquisador de ouro e jornalista, a
Early Histqry o/ tht Sandwich Island.s KingMm, Ann Arbor, 1 98 1 , p. 19. Uma
aproximação específica com as Sacurnalia, in H. S. Versnel, Destruction, cit.,
conselho do seu ediror (amigo e ex-colega Samuel Clemens, alias Mark Twain),
p. 587 ss. (com oucras indicações bibliográficas).
tinha transformado o presumível informador Kalakua erp co-autor por morivos
lú Cf. as páginas esclarecedoras de E. H. Gombrich, Arte e illuJ'ione, trad. it.,
publici rários (mas o livro foi um fiasco); cf. F. P. Weisenhurger, Ido! o/ the
Turim , 1965, pp. 7 5 - 1 1 1 .
\Vest. The Fab11ior.ts Career of l?ollin Ma/101-y Daggelt, Siracusa, 1965, pp. 1 5 6 ss.
ll 57 Cf. Momi}',liano, «I l posco ddla scoriog nofia an t i ca nella storiografia
u anel Myths of Hawaii. The P�1blc.r and Fo/l.l/Qre nf (� StrarJgc Peo­
The Lege1fJ
mckll'l'rt:1 » , i n , itlrm, S11i jnml111111'11fi tldlt1 rtnri11 lffl(iro�, Turim, 1 9Hif·, p. 5:!.
f!l�, po< Sua Majestade Havaiana Kal n k ua , t:dir�odn mm un1n i n r:rod u�·iio pelo
�11 ( 'I H. l l < ·l'n, ,\'11/!tl t',!f'lu o ll'l/f,n.imu•, t i t , I ' · J .•·f, Jlllhl \ 1 '! , qnl' Jl•ll)C'I't'
hon orávc;l R. M. D:o,r>,gcr:t . . , Nov;1 lor< J IIl', I H�IH, p. 'o <) ,
.
1 64 SAQUES RITUAIS CAPÍTULO IV 165

mente, H. S . Versne1 serviu-se também do ensaio de Hertz para por vezes assassmws, «toda a espécie de víci os » - praticadas nas
interpretar como manifestações de anomia, favorecidas por uma ilhas Sanduíche à morte dos chefes), perguntou aos indígenas, cuja
siruação de caos as cenas de desespero rransgressivo (lapidação de
, Língua tinha aprendido, porque se comporravam daquele modo: a
templos, enjeite de recém-nascidos, etc.) que, segundo Suerónio, dor era rão grande que os levava à loucura - responderam62. Tra­
se seguiram à morre de Germânico ( 1 9 d. C.)l9. ta-se - comenra o anrropólogo Davenport - duma racionaliza­
ção: «É como se a licenciosidade simbolizasse o esrado temporário
1 0. Naruralmeute, há uma profunda diferença entre o etno­ de anarquia e de suspensão do mandato divino de governar.»63
centrismo grosseiro de Daggert e a cuidadosa projecção, feita por Simbolizasse. Mas para quem! Para os actores do riro ou pata
Hertz, de conexões citadas da religão grega ou romana. No segun­ os seus observadores, direccos ou indirectos? Entre o ponto de vista
do caso pode-se falar de verdadeira e adequada comparação: o esquema de uns e o ponto de vista dos outros a coincidência não é iue­
interpretativo inicial acaba por ser corrigido com a inclusão de virável64. Através da comparação é possível, em princípio, recons­
elementos novos extraídos da documentação específica. Por exem­ truir um significado não menos autênrico do que o incorporado na
plo, a associação enrre a morte do rei e a morte da justiça, que experiência vivida - a qual, por sua vez, não se identifica nem
tinha sido sugerida a Bosmaó pela observação dos ritos funerários com a experiência consciente nem com a experiência que deixou
da Guiué, é reformulada por Hertz a propósito das ilhas Sanduíche vestígios documentais. Nos testemunhos etnográficos sobre rituais
através da noção de tabu (que Prazer tinha aproximado do termo de transgressão funerária, direccos ou reelaborados, a distinção entre
latino sacer, sublinhando a ambivalência de ambos60). As transgres­ estes níveis interp retativos está frequentemente m ui to longe de ser
clara
• ·
sões (incluindo os saques) que se seguem à morte elo chefe são .

comparáveis àquelas que se seguem à violação de um rabu: «A mor­


te do chefe constitui um sacrilégio e os seus seguidores devem 1 1 . A mesma dificuldade surge quando interpretamos os «saques
sofrer as conseq uências disso. » 61 Mas esta não é uma interpretação rituais;, como ritos de passagem. Aos nossos olhos esta categoria é
dos indígenas, é de Hertz. Uma das suas fontes, o missionário pro­ a ún:ica que unifica, para lá das analogias morfológicas, a série de
tesranre W. Ellis (que nos deixou uma descrição escandalizada e fenómenos que temos tomado em consideração. Se e como a série
reservada das «enormidades» - automutilações, incêndios, saques, é percepcionada pelos saqueadores é um problema em aberto. Vale
a pena notar, todavia, que o recurso aos ritos de passagem parecia
para H. Diels, Sybillirúsche Blatter, Berlim, 1890, pp. 48-49, nota 2, observan­
do: «Trata-se porém de ver porque é que nestes crês momentos da vida é ne­
62
cessária urna purificação. » O passo de Hettz (mas não a sua fonte) é indicado Cf. Cf. W. Ellis, PotyneJian Re.rearches, IV, Londres, 1959 (4! ed.), p. 1 7 5
por H. S. Versnel, Dertmction, cit., p. 5 8 1 , nota 1 82. Sobre a difícil relação ss. Veja-se ainda o amplo ensaio introdutório d e C . W . Newbury, que antecede
entre Usener e Wilarnowirz, cf. a bela página de A.Mornigliano, «New Paths a tradução francesa: A la recherche de la Polynlsie d'aT<trefois, Paris, 1972, 2 vols.
of Classicism in the Ninereenrh Century», in Hirtory and Theory, XXI, 4, 1982, 6� Cf. W. Davenport, «The Hawaiian Cultural Revolution: Some Política!
caderno 21, pp. 35-36; na p. 37, Diels é defi nido «denrre os discípulos, talvez and Economic Considerarions», in American Amhropologist, 7 1 , 1969, p.10, que,
o mais querido de Usener» . entre as st:as fontes, cita também The Legerlfis an Myths of Hawaii, de R. M .
)9 Cf. H. S. Versnel, Destruction, cir. Daggett.
61
Cf. R. Hertz, Sulla rappreserztazione, cir., p. 127, nora 106, e o vocábulo
60 Cf. K. L. Pike, Langttage in Relation to a Unified Theory of Stmcture of
«Taboo», in Encydopaedia Brítarmica, reirnpressa in J. G. Frazer, Gamered Shea­ H/lfnan Behavimtr, 2." ed. revista, Haia-Paris, 1967, p . 3 7 ss., sobre a distinção
ver, Londres, 193 1 , p. 92. entre os pontos de vista «ético» e «érnico» (respectivarnenre externo e interno
61 A destruição do sistema do kaptt (tabu) nas ilhas Havai, em 181.9, foi a Llll'l determinado sistema linguístico OLt culwral: os dois termos são modela­
provocada pelo prolongamento consciente da transgressão ritual que se scgu.in i't dos a partir de «fonétiW>> e «fonérnico»). O autor observa (p. 39) que a disrin­
morre do rei: cf. M. Sahlins, l-li.rtoricrJl MetajJfJar.r, ci r. , p. 65 (com mui� biblio­ ,·õio tinb:1 sido, r:m n·r1:o sen1:ído, �t.m<·<·ip:·trilt por E. S8.pir (a quem o livro é de­
grafia). d í c:ldo).
---

166 SAQUES RITUAIS CAPÍTULO N 1 67

implicar à prim eira vista o risco de uma projecção mecânica sobre


Roma ou Bolonha dos dados provenientes da Guiné ou das ilhas 1 2 . Violências contra alvos definidos, em grande parte tolera­
do Pacífico. Agora acabamos de ver perfi lar-se um risco diferente: das pelas autoridades, às vezes - como em Felónica - praticadas
o d e contaminação incontrolável, mais d o que o de ernocenrrismo pela comunidade inteira, co nfiguravam situações obviamente não
às avessas. Aqueles dados, com efeito, surgem impreg nados de identificáveis com o caos ou com a anomia. Na afi rmação violenta
elementos vindos de horizontes culturais muito mais próximos de do direito de saque, ao mesmo tempo consuetudinário e transirório,
nós - elemenros que inevitavelmente (embora parcialmente) con­ afloravam de repente valores e tensões latentes nos períodos de
dici onaram a percepção dos observadores dírectos ou indirectos: a normalidade, e por isso geralmente ausentes da documentação. Daí
«justiça que morre com o rei » , de B osman , a «velha ideia comu­ o valor sintomático dum fenómeno marginal como os saques q ue
nitária», do reverendo Fison, as Saturnais, de H ertz , a «suspensão definimos rituais. A
investigação de que apresen tamos os primei­
do· mandato divino de governar», de Dave nport . Testemunhos como ros resultados pode ser comparada a uma experiência que explore
estes, em que a descrição e a interpretação se entrelaçam tão den­ as re acções dum organismo numa situação excepcional65.
samence, podem lançar alguma luz sobre os fenómenos de que
tínhamos partido/
Talvez muita; mas mais por co ntraste do que por semelhança.
O lu to e o desespero que inspiravam as transgressões funerárias
das ilhas Sand uích e, ou aquelas - de todo excepcionais - desen­
cadeadas pela morte de Germânico, avulram como completamente ..
esrranha:s aos saques que se seguiam à morte dos bispos e dos
papas. E certo que a «exultação furibunda>> manifestada pela multidão
de Roma à morte de Paulo IV tinha motivos contingentes. Mas
com esre mesmo termo « exul tações » eram comummente designa­
das as festas, muitas vezes acompanhadas de saques, com que se
celebrava a ent ro nizaç ão do novo pontífice ou a dos p rínci pes lai­
cos. Manifestações de violência e manifestações de alegria andam,
na Irália da Idade Média ou do início da Idade Moderna, estreita­
mente associadas.
A s i me tria entre os dois tipos de saques (os saques pela morte
dopapa e os saques pela sua eleição) constituem indubitavelmente
um rraço disrintivo dos fenómenos que estamos discutindo. «Morro
um papa, faz-se dele um outro»: a banal sabedoria deste provérb io
alude a um fenómeno que está longe de ser banal - a perpetua­
ção da instituição onde a continuidade biológica era por natureza
recusada. Em Roma, o vaz.io de poder criado pela situação de sede
vacante oferecia a possibilidade de dois saques consecutivos, um
encostado ao outro. Fora de Roma as ocasiões eram mais raras: mas
quand o se apresentavam eram desfrutadas conscienciosamenre - �l Cf. E. Grencl i , «Microanalisi e sroria sociale», i n Qt�aderni stot·ici, n.O 35,
tanto em Bolonha como nas pequenas localidades ela província mao­ ! •rn, fl· YL 2 ; C. G·inzburp;-C.Ponti, TI tJIIIn� u i/ come: Jcambio ineguale e mercato
cuana. .lllil'ior.r,�fiw. i/,iti., u." tj.o. I ')79, pp. I fl7 .. ! HH.
'------·

CAPÍTULO V

nome e o como
O
Troca desigual e mercado historiográfico*

1 . Comecemos por uma constatação banal. No decurso deste


meio século· as trocas hisroriográficas entre a Itália e a França fo­
ram fortemente desequili bradas. A Itália recebeu muito mais do
que deu. Sobre os motivos disto não vamos deter-nos: outros já o
fizeram no decurso deste congresso. Limitar-nos-emas a recordar
que, mesmo num caso como este, a história da historiografia, no
sentido tradicional do termo, mosrra os seus bmites. Só uma análise
fundada no «uso soóal da historiografúi» (como há alguns anos
notava, de um ponto de visra geral, K. Pomian) 1 pode reconstituir
os termos de uma relação que implica, para além de investigações
particulares e de organizações de investigação e de ensino, opções
políticas de fundo e, em suma, sociedades diferentes entre si.

2. A persistência deste desequilíbrio de fundo não significa


naturalmente que a relação entre historiadores italianos e historia­
dores franceses (mais precisamente, historiadores franceses ligados
ao grupo dos Armales) tenha permanecido, no decurso de cinquen­
ta anos, imutável. Quem nos precedeu mostrou que formas esta
relação cem vindo a assumir. É convicção nossa que se está hoje a
entrar numa fase nova, ligada ao aparecimenro - em parte ainda
embrionário - de novas tendências na investigação. É delas que
queremos ocupar-nos aqui. O nosso discurso será assim mais de
tipo diagnóstico que de ripo prognóstico.

' Repcoduz-se aqui, com algumas variantes, uma comunicação lida no con­
gresso «Le Amwle.r e la storiograria italiana», realizado, em Roma, em Janeiro
de 1979.
1 K. Pomian, «l.'h isi:Oir'l' d1· la sri<•nn· (·t l ' h i s l o i rc ele l'hiswire», i n Annctles
Hsc, \o, 1 •>n . p. 1>i -'
170 O NOME E O COMO CAPITULO V 171

3. Falámos de troca desigual e mercado histotiográfico, mas agora para o movimento da produção analisado através dos impos­
país dependente não quer dizer necessariamente país pobre. A tos e da contabilidade empresarial. A este poderoso instrumento
situação de dependência historiográfica da Itália é notoriamente de pesquisa que é a história serial devemos, sem dúvida, apre­
acompanhada de uma extraordinária riqueza daquele material de c.i.áveis conhecimentos. Por exemplo, a descoberta da mutação es­
documentação sem o qual o historiador não pode trabalhar. (Esta­ ttutural das crises demográficas: das crises catastróficas de morta­
mos a referir-nos não só aos documentos conservados nos arquivos lidade do cruel século XVII às crises de «morbilidade» - menos
e nas bibliotecas, mas à paisagem, à forma das cidades, à expressão pesadamente maltusianas - do século XVIII.
gestual das pessoas: a Itália inteira pode ser considerada - e tem­ Mas não parece arriscado afirmar que a investigação quantita­
-no sido - um imenso arquivo.) Há anos Franco Venturi falou tiva de longo período pode também obscurecer e distorcer os fac­
com amarga ironia das bibliotecas e dos arquivos italianos como tos. Preços, meios de subsistência e mortalidade são questões que
de terrenos submetidos a cultura extensiva em vez de intensiva2. têm significado no curto prazo. Principalmente se quisermos ana­
Variando um pouco a metáfora, poderemos definir os arquivos ita­ lisar o modo como o poder político reage às flutuações económicas
lianos como jazidas preciosas de matérias-primas não exploradas. e às crises de subsistência. Pensamos no controlo dos preços, na
A distância entre matérias-primas (fontes de arquivo, etc.) e formação de reservas, nas requisições, na aquisição de cereais nos
possibilidades de exploração foi particularmente acentuada no período mercados externos, etc. Na perspectiva do longo período - isto
em que um pouco por toda a parte triunfou a história quantitati­ mesmo notava recentemente Steven Kaplan - é difícil compreen­
va. As resistências subjectivas, associadas a uma tradição cultural der os problemas quotidianos da sobrevivência. Raciocina-se por
impregnada (ainda hoje) de idealismo, não deverão ser descuradas. médias decenais, médias móveis, extraídas de folhas quase lo­
Mas limitar-se a elas, como frequentemente se faz, seria unilateral garítmicas. A vida real (expressão que encerra, sem dúvida, ele­
- e, precisamente, idealista. Investigações quanritativas em grande mentos de ambiguidade) é largamente posta à margem. E a visão
escala pressupõem investimentos financeiros consideráveis, equipas de longo período pode «gerar uma abstracta, homogeneizada história
de .investigadores - numa palavra, uma avançada estrutura de in­ social, desprovida de carne e de sangue, e não convincente apesar
vestigação. Um estudo como aquele que foi corajosamente iniciado do seu estatuto científico»4.
(e até hoje não terminado ainda) por Elio Conti pode ser conside:­ Cremos todavia que a história quantitativa serial faz já parte
rado emblemático - principalmente se confrontado com aquele da «ciência normal », dando à expressão o sentido de Kuhn�, e que
que há poucos meses foi concluído e publicado por Christiane o imenso material conservado nos arquivos italianos deve em rodo
Klapisch e David Herlihy sobre o regisco cadastral de Florença em o caso ser averiguado para verificar os paradigmas e as regras da
142r. O capital franco-americano e o computador - se acertada­ análise serial, para os articular, os demonstrar, os. delimitar, os
mente utilizados - permitem empreendimentos inacessíveis a um manipular. (Precisemos que o termo «paradigma» ,tem, neste
.indivíduo isolado. (É a diferente escala dos dois trabalhos gue nos contexto, u m valor mais fraco e metafórico do que aquele que lhe
interessa aqui e não um confronto analítico dos resultados obtidos.) é dado por Kuhn; a historiografia continua a ser, apesar de tudo,
As investigações sobre a história da propriedade e da popula­ uma disciplina pré-paradigmática). Uma parte da comunidade
ção mostram que a história quantitativa está bem viva. E viva está ci.enrífica deverá dedicar-se toralmente e/ou parcialmente a este
também a história serial, a investigação quantitativa de longo período tipo de investigação.
que, partindo dos preços (antigo ponto de partida), se deslocou

� S. E. Kaplan , Bn;ad, Politics anel Political Bconomy in the Reign of Louis XV,
2 F. Veotuci , · Settecento riformatore. Da Muratori a Beam""Út, Turim, 1969, I h i n , 1 97(;, pp. XX-XXI.
pp. XVII-XVIII. l 'r. Knhn, I .tt .rlfllli ln·� � ,./f;/111 ri1mltr1.ioui .l",·ilolt�(lcbd, Tnri11 1 , 1 97H (edição ori­
> D. Herlihy c Klapiscb.. 7.idwr, l.e.r to.rr. tm 1"1 l�!IIIJ .f;tmilkr, 1':1ri·:, l l)7�l. Ji irml ).
172 O NOME E O COMO CAPITULO V 173

çam a entrever os contornos. O fim da ilusão etnocêntrica (que pa­

4. Mas outros temas e outros tipos de investigação estão já a radoxalmente coincidiu com a unificação do mercado mundial) tornou

vir ao primeiro plano. Em particular, nora-se o aparecimento de insustentável a ideia de uma história universal. Só uma antropolo­

maior número de investigações históricas caracterizadas pela análise gia impregnada de história ou, o que é o mesmo, uma história
extremamente próxima de fenômenos circunscritos (uma comuni­ impregnada de antropologia poderá repensar a aventura plurimi­

dade aldeã, um grupo de famílias, mesmo um indivíduo), o que se lenária da espécie homo .rapiens.

explica quer por motivos inerentes à disciplina quer por motivos Há trinta anos escrevia Lévi-Strauss, num artigo depois reim­
exteriores a ela. Comecemos pelos segundos, os motivos extra-his­ presso como introdução à colectânea Anthropologie structurale:
« ( .. . ) a célebre fórmula de Marx "os homens fazem a sua história,
totiográficos .
Nestes últimos anos, fenômenos muito diversos entre si, como mas não sabem que a fazem", j ustifica no seu primeiro membro a

as recentes guerras do Sudeste asiático, ou mesmo os desastres história e· no segundo a etnologia. Ao mesmo tempo mostra que os
ecológicos tipo Seveso, Amoco-Cádis, etc., levaram a repor em dis­ dois processos são indissociáveis.» 7 Mas a desejada convergência
cussão objectivos estratégicos há muito tempo considerados atingi­ entre história e antropologia deve superar mui tos obstáculos: pri­

dos - e enquanto tais não sujeitos a análise - quer se tratasse do meiro entre todos, a diversidade da documentação utilizada pelas

socialismo ou do desenvolvimento tecnológico Himitado. Não é duas disciplinas. A complexidade das relações sociais reconstituíveis

arriscado supor que a voga crescente das reconstituições micro­ pelo antropólogo através do trabalho no terreno contrasta efectiva­

-históricas esteja ligada às dúvidas crescentes sobre determinados mente com a unilateralidade dos depósitos de arquivo com que
.
processos macro-históricos. Precisamente porque não se está muito trabalha o historiador. Cada um destes · de pósi cos , proveniente de

seguro de que o jogo compensa é-se levado a reanalisar as regras uma relação social específica sancionada a maior parte das vezes
por uma instituição, pode fornecer uma legitimação ao especialis­
do jogo. Surge a tentação de contrapor aos optimismos (reformis­
tas ou revolucionários) dos anos 50 e 60 as dúvidas de índole radical mo do investigador, seja ele historiador da Igreja ou da técnica, do

dos últimos anos 70, provavelmente destinadas a acentuar-se no comércio ou da indústria, da pop.ulação ou da propriedade , da classe

decénio que se aproxima. Que os inquéritos micro-históricos te­ operária ou do PCI. Esta historiografia poderia ter como divisa:

nham, em muitos casos, como objecto de análise os temas do pri­ «Não saiba a tua esquerda aquilo que faz a tua direita.» Esta frag­

vado, do pessoal e do vivido, propostos com canta veemência pelo mentação reproduz a fragmentação das fontes Os registos civis
.
movimento feminista, isso não é uma coincidência - visto que as apresentam-nos os indivíduos enquanto nascidos e mortos, pais e

mulheres foram indubitavelmente o grupo que tem pago os custos filhos; os registos cadastrais, enquanto proprietários ou usufrutuários;

mais elevados pelo desenvolvimento da história humana. os autos, enquanto criminosos, enquanto autores ou testemunhas

Sintoma e ao mesmo tempo instrumento desta consciência é a de um processo. Mas assim corre-se o risco de perder a complexi­

relação cada vez mais estreita entre história e antropologia. (Tam­ dade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade deter­

bém neste caso se trata de uma relação desequilibrada, não obs­ minada. Isto também é válido para fontes mais ricas, de dados às
tante o crescente interesse pela história manifestado por antropólogos . vezesri.mprevisíveis, como os processos criminais ou inquisitoriais

como ]. Goody6. Aos historiadores ofereceu a antropologia não só - sobretudo os segundos - que são o que remos de mais aproxi­
uma série de temas largamente descurados no passado - desde as mado aos inquéritos in loco de um antropólogo moderno. Mas se o

relações de parentesco até à cultura material, desde os rituais âmbito da investigação for suficientemente circunscrito, as séries

simbólicos até à magia - mas qualquer coisa de muito mais im­ documentais podem sobrepor-se no tempo e no espaço de modo a

portante: um quadro conceprual de referência, do lJLI :l l se conw


'I c. f.évi SI'JilliS�• • llnl/'11/•llll!,l!ilt ,l'/rtl//lll'tlll•, M l l.ío, l 'l'/ 1 , I '· \() (çdic;:'ío ori­
J�inal).
174 O NOME E O COMO CAPITULO V 175

permitir-nos enconrrar o mesmo i ndivíduo ou grupos de indivíduos gisros paroqU1a1s e cadastros) onde deveriam estar contidos, em
em conrextos sociais diversos. O fio de Ariana que guia o i nvesti­ princípio, os nomes de rodas as famílias e de rodas as propri ed ad es .
gador no labirinto documenral é aquilo que distingue um indivíduo Por um processo análogo é possível reconsriruir, com base em auras
de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome. notariais, as estratégias matrimoniais de famílias aliadas e afins. O
percurso da investigação pode ulteriormente alongar-se procnrando
5 . A utilização do nome para abrir novos campos à investiga­ nos arquivos eclesiásticos (episcopais) as autorizações de casamento
ção histórica não é nova. É conhecida a m udança de perspectiva entre consanguíneos. O fio condutor é, mais uma vez, o nome.
que a demografia nominal (a pesqui:sa de Henry sobre Crulai8) Como já foi .indicado, este jogo de vaivém não fecha necessa­
produziu no âmbito da demografia histórica, apontando um novo riamente a porra à indagação serial. Serve-se dela. Uma série, so­
objecro de pesquisa: a reconstituição das famílias. Mas o método bretudo sé não manipulada, é sempre um bem urilizável. Mas o
onomástico pode ser alargado muito para lá das fontes estritamente centro de gravidade do tipo de investigação m.icronom.inal que aqui
demográficas. Nos regisros das paróquias ruraiS em zona de arren­ propomos encontra-se noutra parte. As linhas que convergem para
damento a meias - referência directa aos campos de Bolonha - o nome e que dele partem, compouclo uma espécie de teia de
ao lado do nome e apelido do «gerenre» e dos membros da sua malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social
família está rambém o nome da casa agrícola e da propriedade em que o indivíduo está inserido.
cultivada (Casa Vermelha, Casa Branca, Palácio, etc ) . . Tomando Uma investigação do mesmo género é possível mesmo no caso
este último nome como guia não é difícil enconrrar nos registos de indivíduos que pertençam a estratos sçciaís de elevada mobili­
cadastrais (portanto, num outro arquivo) um dado importante, que dade geográfica. Aqui, naturalmente, é necessário proceder um pouco
é o da área da propriedade . Mas ao lado do nome e da área da pro­ mais às apalpadelas, confiando na sorte; mas o nome revela-se,
priedade encontra-se no cadasrro o nome do proprietário. A partir mais uma vez, uma bússola preciosa. Tomemos um fabricante de
deste nome, é fáci l recorrer ao arquivo privado da propriedade, Jícores e bufao profissional, Constantino Saccard ino, pr:ocessado como
onde, com um pouco de sorte, poderemos encontrar nos registos herético pelo Santo Ofício de Bolonha, e condenado à morte, jun­
de admi nistração as conras agrícolas anuais e portanto, j untamente tamente com rrês sequazes, em 16229 O processo (infelizmente
com o nome do rendeiro e da propriedade que cultiva, também o impossível de encontrar) teve um eco notável : c:rónicas citadinas
andamento da produção agrkola (anual), com a discriminação do manuscritas e narrari-vas impressas fornecem particularidades ulte­
tipo de planta cultivada (trigo, cânhamo, milho, videira, floresta, riores sobre o caso .e sobre. o seu protagon.isra. Deduz-se que Sac­
etc.), a divisão por dois do produto l íqu i do e o movimento do .cardino tinha habitado em Veneza: uma sondagem no arquivo do
débito agrícola por cada propriedade e cada família arrendatária. Santo Ofício veneziano traz à luz um grupo de denúncias contr:a
Por outras palavras, encontramos dados seriais (em geral de período ele. Um sinal fugidio apresenta Saccardino em Florença, ao servi­
curro, mas nem sempre) com os quais é possíve l reconsrru.ir o en­ �o dos Medici na qualidade de bufão: e o seu nome é realmente
trelaçado de diversas conjunturas. encontrado entre os destinarár.ios dos pagamentos da corte no pri­
É óbvio que o- rrajecro pode começar em qualquer ponto da meiro dec�nio de Seiscentos. Um .controlo bibliográfico faz apare­
cadeia. O melhor ponro de partida não é, provavelmente, o arqui­ cer um peq ueno tratado da arte médica publicado por ele, que ter­
vo paroquial, mas o arquivo da grande propriedade. Isso permite mina com uma lista de clientes tratados e curados, como consta de
seleccionar nomes de camponeses e nomes de lugares qne podemos outros tantos autos lavrados po-r notários bolonheses, .indicados pelo
procurar com maior esperança de sucesso nos outros �rquivos (re-

'' Pllr:< u m a sumáriot 1Ultt·<·i p<1Ção d;< ptsquis:t aqui nw11cionada, rf. C. Gi nz­
H l. Henry, «la populati()n de C n d : � i , P•II'IIJ.��;<· nor<<l:llldc· .. , i 1 1 'J 'r.ll'. tll.': < 't l n ll'J I M . l't'ITH r i , ,,L;, • n lou d•llfl• l i.< i\1 11 ' 1 1 1 > 1 : l i 111 1 h i , , in (JII,idllmi Jl1rrici, 1 1 .'' :Hl.
dmYtments de 1'/NED, Pl,ri�, 1 9 '5 H . Á J:h'.l < l dt 1 ' )/ H , 1 •11. 11 � 1 / , ', ' 1 .
1 76 O NOME E O COMO CAPÍTULO V 177

nome. Isro é confirmado por uma investigação no depósito norarial menros e as crenças da maioria» 1 2 . Mas um exame dos processos
conservado no Arquivo de Estado de Bolonha. Mas um documen­ criminais anteriores ao século XIX (ou seja, anres de se afirmar a
to remete para urn auto análogo lavrado alguns anos antes por um figura do criminoso profissional na acepção moderna do termo)
notário de Ferrara. Pouco a pouco emerge uma biografia, seja embora leva o investigador a conclusões menos pessimistas. A esmagadora
ineviravelmente fragmenrária, e a rede das relações que a circuns­ maioria desres processos diz respeiro a delitos vulgaríssimos, às
crevem. vezes de pouca monra, cais como rixas, pequenos furtos e coisas no
género, cometidos por indivíduos absoluramenre não excepcionais .
6. As duas investigações que delineámos têm, na sua disseme­ Não é paradoxal afirmar que um cerco tipo de transgressões cons­
lhança, dois elementos comuns: serem referidas a estratos subalter­ riruía, nas sociedades pré-indusrriais, a norma (de facto, embora
nos da sociedade e terem o nome como fio condutor. Há alguns não de direito).
anos, rraçando um balanço das investigações prosopográficas, Law­ Mas ci «excepcional normal>> pode rer ainda um outro signifi­

rence Scone distingUiu duas correntes: uma, qualitativa, centrada cado. Se as fontes silenciam e/ou distorcem sistemac.icamence a

sobre o estudo das élites (políticas , culturais, etc.); a ourra, quanri­ realidade social das classes subalternas, um documento que seja
realmente excepcional (e, portanto, estatisticamente não frequente)
caciva, virada para a inquirição de agregados sociais mais amplos10.
pode ser muito mais revelador do que mil documentos estereotipa­
A nossa proposta pretende combinar a óprica não elicista da se­
dos. Os casos marginais, como norou Kuhn, põem em causa o
gunda corrente com a análise particularizada da primeira - uma
velho paradigma, e por .isso mesmo ajudam a fundar um novo ,
pro-sopografia a partir de baixo (análoga à proposta por E. P. Thom­ . .
pson), que deveria portanto desembocar numa série de case studies, mats artlculado e mais rico. Quer dizer, funcionam como espias ou
embora sem excluir, como já se disse, investigações de tipo serial. indícios de uma realid ade oculra que a documentação, de um modo
Que uma prosopografia a partir de baixo se atribua como geral, não deixa transparecer.
objeccivo uma sé rie de case studie.r é coisa óbvia: uma investigação . Parrindo de experiências diversiflcadas e trabalhando em temas
que seja ao mesmo tempo qualitativa e exaustiva apenas poderá diversificados, os dois autores desce escrito são unânimes em re­
tomar para exame entidades numericamenre circunscritas - élites, conhecer a importância decisiva daqueles traços, aquelas espias,
precisamente . O problema será então o de selecc.ionar, na massa aqueles erros que perturbam, desordenando-a, a superfície da do­
dos dados disporúveis, casos relevanres e significativos . cumentação13. Para além dela é possível atingir aquele nível mais
Significativos no sentido de esrat.iscicamente freq uentes � Nem profundo, invisível, que é constituído pelas regras do jogo , «a história
sempre. Existe rambém aquilo a que Edoardo Grendi chamou, que os homens não sabem que fazem » . Reconhecer-se-á neste ponto
sugestivamente, o «excepcional normal >>11• A esta expressão pode­ o eco da lição, diferente e conjugada, de Marx e de Freud.
mos atribuir pelo menos dois significados. Antes de mais nada, ela
designa a documentação que só aparencemenre é excepcional. Srone 7 . A análise micro-histórica é , portanto, bifronte. Por um lado,
dava relevo ao facto singula r de os únicos grupos subalternos em movendo-se numa escala reduzida, permire em muiros casos uma
que é possível recolher, em cercos casos, um bom número de infor­
mações serem «grupos minoritários, por definição excepcionais, dado
12 L. Stone, <<Prosopography», cic., p. 59.
que se trata de indivíduos que se revolram contra os comporta-
ll Cf. C. Ginzburg, <<Spie. Radici di un paradigma scientifico», in Rivistd
di storia contemporanea, 1978, pp. 1-14 (recolhido em Miti, emblemi, spie. Mmfolo­
10 L. Stone,
gia e storia, Tucim, Einaudi, 1986, pp. 3-28); C. Poni, «lnnovazione contadi na
«Prosopogtaphy » , in DaccktlttJ, n." 100, 1 97 1 , pp. 46-79
e cnncwllo padronale» (título pcovis6rio), apresentado no colóquio «Arbeics­
(F. Gilbert).
1 1 F . G�:endi, «Microanalisi prozessc:», <::m Gnttingc:n (22-2f! de junho dl· '197H), e a publicar proxima­
c Sl:l>l'iil s1wiale», in Qt/tl(/crni rtoriâ, n." 5 ', , Mn i o
mc.:t'll:c i11 J>t�.rl tlltr.l Prm'l!!/1,
- Agosto de 1977, p. 'i 1 2.
178 O NOME E O COMO

reconstituição do vivido impensável noutros tipos de historiogra­


fia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis den­
.tro das quais aquele vivido se articula. O modelo implícito é o da
rel ação entre langue e paro/e formulado por Saussure. As estruturas
que regulam as relações sociais são, como as da langue, inconscien­ CAPÍTULO VI
tes . Entre a forma e a substância há um hiato, que compete à
ciência preencher. (Se a realidade fosse transparente, e portanto Provas e possibilidades à margem de
imediaramente cognoscível, dizia Marx, a análise crítica seria «11 ritorno de Martin Guerre»1 de Natalie Zemon Davis
supé rflua. ) Por isto propomos definir a micro-história, e a história
em geral, ciência do vivido: uma definição que procura compreender
as razões tanto dos adeptos como dos adversários da integração da 1 . Extraordinária, quase prodigiosa, foi aos olhos dos contem­
história nas ciências sociais - e assim irá desagradar a ambos. porâneos a aventura de que nos fala Natalie Zemon Davis. O pri­
O te rmo «estrutura» é todavia ambíguo. Os historiadores têm­ meiro a apresentá-la sob esta luz foi já aquele que a investigou e
-no iden tificado predominantemente com a « lo nga duração» . Tal­ narrou, o juiz Jean de Coras. Montajgne evocou-o rapidamente no
vez tenha diegado o momento de, na noção de estrutura, acentuar seu ensaio Des boyteux: «Il me souvienr . . . qu'il me sembla avoir rendu
antes a característica de sistema, que engloba, como mostrou Ja­ l'imposrure de celuy qu'il j ugea coupable si merveilleuse et exce­
kobson, tanto a sincronia como a diacronia. dam de si loing nostre connoi:ssance, et la sienne qui estoit juge ,
que je �rouvay beaucoup de hardiesse en l'arrest qui l'avoit con­
8. Em nenhum caso a micro-história p oderá limitar-se a veri­ damné à estre pendu.»1 É um juizo terminante, que antecede as
ficar , na escala
que lhe é própria, regras macro-históricas (ou macro­ páginas famosas sobre as «SOrciéres de mon voisinage» , acusadas
antropológicas) elaboradas noutro campo. Uma das primeiras ex­ de crimes que Montaigne considera ainda mais inverosímeis e não
periências do estudioso de micro-história diz realmente respeito à provados. A temeridade dos juízes que as condenam à morte é im­
escassa e por vezes nula relevância das mutações de ritmo (a começar plicitamente equiparada à de Coras: «Apres tout, c'est metere ses
pelas cronológicas) elaboradas em escala macro-histórica. Daí a conj ectures à bien haut pris que d'en faire cuire un homme tout
importância decisiva que assume a comparação. A propósito pode­ vif.,�2 Sobriedade, sentido dos limites: os temas mais caros a Mon­
-se notar que a história comparada, impopular na Itália pelos motivos taigne constituem o fio condutor do ensaio. Eles tinham-lhe inspi­
que se conhecem, está na própria França, apesar de tudo, no início. rado, pouco antes da imprevista alusão a Coras, belíssimas pala­
vras: «On me faiçt hayr les choses vray-semblables quand on me
A história da Itália é uma história policêntrica, e sã.o disso les plante pour infallibles. Jayme ces mots, qui amollissent et mo-
testemunh.o, entre outros, as séries documentárias conservadas nos
arquivos da península. Pensamos que as pesquisas micro-históricas
1 M. de Momaigne, ESJais, por A. Thibaudec, Paris, 1950, III, 1 1 , p. 1 156
constituem, hoje, a via mais adequada para desfrutar esta extraor­ ( <<Rewrdo-me.-:-.de que· me parcreu que ele tornou a impostu.ra daquele que
dinária acumulação de matéria-prima. Mais adequada e mais. acessível julgou cu[pado tão. prod.igjosa e ultrapassando a caf ponro os nossos conheci­

também métodos artesanais de exploração.


a menros, e mesmo os dele, que era juiz, que achei demasiado severa a sentença
Neste sentido talvez seja lícito prever, nos próximos anos, uma que o condenou a ser enforcado»).
2 Monraigne, Essais, cir., p. 1 1 5 9 (<<No fundo é atribuir um elevado
valor
ttoca entre historiografia italiana e historiografta francesa menos às suas conjecturas is1:o de queima.r vivo um homem por causa delaS>> ). Sobre
desigual do que no passado, de modo a poder consolidlli:-S<" Hb:e­ esta fmsc.: < fehruça-se L. Sciascht, l.a .rentenza memorabile, Palerma, 1982, p. 1 1
riormente a cooperação. n 1'1 i t i 1 n ! 1 . n a ordl'llt d o l nnp!l, d:ts n;tiT:t�ik� !11.1 <.:ocn v n 1 :írios sob r(• u <;aso de
M : l l'l i n ( ; ' " ' IT!'.
I

PROVAS E POSSIBILIDADES CAP[TULO VI 181


180

derent la cemerité de nos proposi cions: a l 'avancure, aucunemenc, po jurídico foi ignorado pelos historiadores contemporâneos . Até
quelque, on dict, Je pense, et semblables . » 3 há pouco tempo a polêmica contra a histoire événenJentielle em nome
Com uma sensação de mal-estar que teria recebido a aprovação da reconstituição de fenômenos mais amplos - economias, socie­
de Monta.igne, Natalie Zemon Davis declara que sentiu, no filme dades, culturas - tinha cavado um fosso aparentemente in trans­
sobre o caso de Mattin Guette em que tinha colaborado, a falta de ponível entre indagação historiográfica e indagação judiciária . Esta
«todos aqueles talvez e aqueles pode ser a que recorre o historiador última era até apontada como modelo deletério dos requisitórios
quando a documentação é insuficiente ou ambígua•• . Compreen­ moralizances pronunciados pela velha his toriografia política. Mas,
deríamos mal esta declaração se víssemos nela apenas o resultado nos últimos anos, a redescoberta do evento como terreno privile­
de uma prudência adquirida com o trabalho em arquivos e biblio­ giado para a análise de en crechos de tendências históricas profun­
tecas. Pelo contrário - diz Nacalie Davis - foi precisamente no das (mesmo a baralha campal, como a de Bouvines estudada por
decurso do trabalho do filme, ao ver «na fase de montagem Roger Duby6) veio a repor imp licitamente em causa certezas que pare­
Planchon a experimentar variadas entoações pata o papel do juiz ciam definitivas. Além disso, e mais especificamente, a tentativa
(Coras), que me pareceu ter à minha disposição um verdadeiro e · -. atestada também por este livro de Natalie Davis - de captar
apropriado laboratório historiográfico, um laboratório em que a o concreto dos processos sociais através da reconstituição de vidas
experimentação não produzia provas irrefuráveis, mas sim possibi­ / de homens e mulheres de condição não privilegiada voltou a esta­
i
lidades históricas» (p. X). belecer de facto a contiguidade, gue em parte existe, entre a óptica
A expressão «laboratório hisrotiogtáfico» é naturalmente me­ do historiador e a 6pcica do juiz, ainda que não seja senão porque
tafórica. Se um laboratório é um lugar onde se realizam experiên­ a fonte mais . rica para pesquisas desse género é consti tuída pelo
cias científicas, o historiador é, por definição, um investigador a registo de .acras provenientes de tribunais leigos ou eclesiásticos.
quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Nesras situações o historiador cem a impressão de efecruar uma
1 Reproduzir uma revolução, um arroteamento ou um movimento indagação por interposta pessoa - a do ·inquiridor ou a do juiz.
religioso é impossível, não só na prática mas em princípio, para As acras processuais, acessíveis direcramente ou (como no caso de
uma diciplina que estuda fenómenos temporalmente irreversíveis N. Davis) indirectamente, podem ser comparadas à documentação
«enquanto rais»4 . Esta caracterís tica não é apenas própria da histo­ de primeira mão recolhida por um antropólogo no seu trabalho de
riografia - basta pensar na asrrofísica ou na paleontologia. E a campo e deixada como herança aos historiadores futuros. Trata-se
impossibilidade de recorrer a experimentações no sentido próprio de uma documentação preciosa, embora inevitavelmente insuficiente:
não impediu nenhuma destas disciplinas de elaborar critérios de uma infinidade de quesrões gue o historiador se põe - e que
cientificidade sui generis5 fundados, para a consciência comt�rn, sobre poria, se pudesse recorrer à máguina do tempo, aos acusados e às
a noção de prova. testemunhas - não as formularam os inquiridores do passado nem
O facto de esta noção ter sido elaborada inicialmente no cam- podiam fazê-lo. ão se trata apenas de distância cul tural, mas de
diferença de objecrivos. A embaraçosa conrigu.idade profissional entre
his coriaoores ou antropólogos hodiernos. e j uízes e inquiridores do
l Monraigne, EssaiJ, cit., p. 1 1 5 5 («Tornam-se-me odiosas as coisas ve­ passado a cerra altura cede o passo a uma divergência nos métodos
rosfmeis quando elas me são apresentadas como iofalfveis. Gosto das palavras e nos objectivos. Isco não impede que entre os dois pontos de vista
que adoçam e moderam a temeridade das nossas afirmações: «talvez», «de certo haja uma parcial sobreposição, que nos é clamorosamente recorda­
modo», «algum», <<d iz-se» , «eu penso» e outras semelhantes.
da oo momento em que historiadores e juízes se encontram a tra­
4 Mas vejam-se as observações de M. Bloch, discutidas por quem escreve
estas Jiuhas, no prefácio a I re taumaturght, Turim, 1973.
balhar fisicamente em con cacto, na mesma sociedade e em corno
) Cf. de guem escreve, «Spie, Radic.í di llt\1 p;mtdígmH indi�iario», i n C1·iJ'i
dd!t.t t'fiKiot�e, por A. Garg<1.n í , Tnrim, I ')7'), p. � n .
182 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPITULO VI 183

dos mesmos fenómenos7• Um problema clássico, que podia parecer sentimentos de Bertrande são infelizmente inacessíveis), mas, para
definitivamente uttrapassado - o da relação entre indagação histórica nós, duma evidência quase óbvia. Aqueles historiadores - lembra
e indagação judiciária - revela implicações teóricas e · políticas polemicamente N. Davis - que tendem a ver nos camponeses
inesperadas. (e com maioria de razão nas camponesas) desre período seres quase
As actas do processo instaurado em Toulouse contra Arnaud privados de liberdade de escolha poderão objectar neste ponto que
du Tilh, bígamo embusreiro, foram lamenravelmente perdidas. se trata de um caso excepcional, e portanto pouco representativo
N. Davis teve de contentar-se com reelaborações literárias, como o - jogando com a ambiguidade entre representatividade estatística
Avrest me-morable, do juiz Jean de Coras, e a Admiranda historia, de (verdadeira ou presumível) e representatividade hisrórica. Na reali-
Le Sueut. Na sua obsrinada leitura destes testemunhos nota-se o / dade, o argumento muda de senrido: é precisamente o carácrer
pesar (que o leitot plenamente partilha) pela fonte judiciária per­ excepcional do caso Mattin Guerre que lança alguma luz sobre
dida. Dificilmente podemos imaginar que mina de dados invo- . uma normalidade documentalmente imprecisa. Inversamente, si­
luntários (isto é, não procurados pelos juízes) aquele processo não tuações análogas conrribuem para de algum modo preencher as
teria oferecido a uma estudiosa como N. Davis. Mas ela pôs-se lacunas do acontecimento que N. Davis se propôs reconstiruir:
rambém uma série de questões para as quais, quatro séculos antes, «Quando não encontrava o homem ou a mulher que estava a
rinham procurado resposta Jean de Coras e os seus colegas do Par­ procurar, voltava-me na medida do possível para outras fontes do
lement de Toulouse. Como teria feito Arnaud du Tilh para repre­ mesmo tempo e lugar para descobrir o mundo que eles devem ter
sentar tão bem o papel de Marrin Guerre, o verdadeiro marido1 conhecido e as teacções que podem ter tido. Se aquilo que apre­
Teria havido um acordo prévio entre os dois? E até que ponto a senro é em parte invenção minha, está no entanto solidamente
mulher, Bertrande, teria sido cúmplice do impostor! É evidente ancorado às vozes do passado» (pp. 6-7).
que, se se tivesse limitado a tudo isto, N. Davis não teria saído da O termo «invenção» (invention) é deliberadamente provocatório
anedota. Mas é significativo que à continuidade das perguntas - mas, vendo bem, desorienta. A investigação (e a narração) de
corresponda a continuidade das respostas. A reconstituição dos factos N. Davis não se baseia na contraposição entre «verdadeiro» e
efectuada pelos juízes quinhentistas é substancialmente aceite por «inventado» , mas na integração, sempre assinalada pontualmente,
N. Davis, com uma excepção relevante. O Parlement de Toulous� de «realidades>> e «possibilidades >>. Dai vem, no seu livro, a proli­
considerou Bertrande inocente e legítimo o filho nascido da se­ feração de expressões como «talvez» , « tiveram de», «pode-se pre­
gunda união, visto que concebido na convicção de que Arnaud sumir», «certamente» (que em linguagem bis toriográfica costu­
fosse o verdadeiro marido (ponto juridicamente delicadfssimo, no mam significar «muito provavelmente>>) e assim por diante. Neste
qual Coras se deteve com doutos argumentos numa página do Arrest ponto a divergência entre a óptica do juiz e a do historiador rorna­
memorable). Segundo N. Davis, porém, Bertrande percebeu .imedia­ � se data. Pata o primeiro, a margem de incerteza tem um signifi­
tamente ou quase imediatamente que o pretenso Marrin Guerre cado puramente negativo, e pode conduzir a um non liqttet - em
era na realidade um estranho e não ·o seu marido: se o aceitou termos modernos, a uma absolvição por falta de provas. Para o se­
como tal, fê-lo portanto de livre vontade e não como inconsciente gundó, isso obriga a um aprofundamento da investigação, ligando
vftima de um engano. o caso espedfico ao conrexro, entendido aqui como campo de
Trata-se de uma conclusão conjecturai (os pensamentos e os possibiiiclades hisroricamente determinadas. A biografia das perso­
nagens de N. Davis torna-se de vez em quando a biografia de
outros <<horm.:ns c· tTitl lherç·s elo mesmo tempo e lugat» , reconstituí­
7 Considerações muito sugestivas en.contram-se no aitigo de L. ferrajoli
ck da com :><tp,:\e idad<· c· prH.:i0nc irL, n"cOl'J'(>ndo a fon tes notariais , judi­
sobre o chamado <<caso 7 de Abril" .(«11 rnanift'�to» , 2? c 24 de l'cvcrcíro
1 98); veja-se em particuhr a prJJlli:Ím p;ute). Mas a c p n:slrLo o l: 1 « h í s rorio1:raf'ia
e i . i i ' I : IS , J i tTJ';Í r i : l � . ·• Vnd : H k i rn •> !' (• V( ' I' OH Í I J i j J , , •' l li'OV:IS I'• L' <ipOs.� i b i ­
) l � < l l , i:í.ria•> que nele �<:: )'I H ' I I < i � > l'lil ira :;t · r "l "·of'l , l l•i:ltLI J i i L 1 • 1 < ": · · t ' l l l l'l ' l , l \ , 1 1 1 1 ·:r• . l l l l l f l r 1 1 1 1 r H lr l t' l l d •l l l ol 1 l,r�OI'O'. . L i l l l ' l l l l ' < I 1 � 1 1 1 1 1 ; I ' ; ,
1 84 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPÍTULO VI 185

Temos falado, a propósito do livro de N. Davis, de «narração » . antiga era ponto importante: o ptóprio Coras tinha comparado as
A tese segundo a qual rodos o s livros de história - incluindo os peripécias do falso Marrin Guerre com o Anfitrião, de Plauro. De
que se baseiam em estatísticas, gráficos, correspondência - têm <<tragédia» falara também Le Sueur, por duas vezes. E na parte
uma componente intri nsecamente narrativa é rejeitada por muitos que, em 1 5 65, acrescentou à nova edição do Arrest, ornamentada
(sem razão , penso eu). Todos porém estão na disposição de reco­ com cento e onze anotações (em vez de cem), Coras seguiu o seu
nhecer que alguns livros de história - entre os quais, sem dúvida, exemplo. A in trodução do termo <<tragédia» era seguida de um
li ritorno di Martin Guerre - têm uma feição mais narrativa do comentátio: «C'esroit vetitablemenr tragédie, pour ce gentil rus­
que outros. A uma opção expositiva desse género prestava-se o rre: d'autant que l'issue en fur forr funeste, et miserable pour luy.
caso de Martin Guerre, tão dramático e rico de golpes de teatro. Smquoy nul ne sçaic la différence entre tragédie er comédie. » Esra
O facro de ter sido contado sucessivamente por juristas, romancis­ última afirmação era imediatamente contraditada por uma apara­
tas, historiadores e realizadores de cinema faz dele um caso útil rosa digressão em que Coras, seguindo a formulação de Cícero,
para a reflexão sobre um problema muito debatido nos dias de contrapunha a comédia, que «descrit er représente en srile bas, et
hoje - o da relação entre as narrações em geral e as narrações hís­ humble, la fortune privée des hommes, comme les amours, et
roriográficas. ravissemenrs de pucelles>> à tragédia, na qual são «represenrées par
As mais antigas exposições do caso - a Admirandct hútoria, un sryle haut et grave les moeurs, adversites et vie calamiteuses
de Le Sueur, e o Arrest memorable, de Jean de Coras - têm, como des capitaines, ducs, roys et princes . . . »10. A esrrita correspondên­
observa N. Davis, um aspecto dissemelhante, sendo embora ambas cia entre hierarquia esril.ísrica e hierarquia social que inspirava esta
escritas por juristas de profissão. De comum têm a insistência sobre contraposição tradicional era implicitamente rejei tada por Coras,
a inaudita novidade do falso marido: mas enquanto a Admir.mda que se limirava a aceitar a equivalência (que nos é ainda hoje familiar)
hi.rtoria se inspira no filão muito em voga nessa alrura das histórias entre comédia e desfecho alegre, por um lado, rragédia e desfecho
de prodígios, o Arrest memorable é um texto anómalo, que na alter­
nância da narrativa com anotações doutas decalca a estrutura das um outro exemplar da tiragem que contém uma gralha no título (1-listotte por
obras jurídicas. Na dedicatória da primeira edição, a .Jean de Monluc, Histoire), assinado Rés. Z. Fontanieu, 1 7 1 , 1 2 . Numa reimpressão feita mais
bispo de Valência, Coras sublinhava com modéstia as limitações 1. tarde, não referida por N. Davis (Reât veritable d'un fattx et suppo.ré mary, arrivé à
literárias do livrinho - «le discours est petit, ie le confesse, mal une Femme notable, ai/. pays de La11g11edor, en ces dernien troubles, a Paris, chez Jean
Brunet, rue neufve sainct I..ouys, à. la Crosse- d'Or, MDCXXXVI: BN. 8° Ln
tyssu, rudement poly, et d'une phrase par trop agreste » , exaltando 27815), o sonero não aparece.
por outro lado o tema: «Ung argument si beau, si delectable, et si 10
Jean de Coras , An·est memorable ... , Paris , 1 57 2 , arrest. CIIll. Na introdu­
monsttueusemenr estrange . . . , R Mais ou menos por essa alrura, ó ção a esta edição acrescentada, o impressor (Gaillor du Pré), além de definir o
soneto dirigido ao leitor, que abre a tradução francesa da Historia livrinho, como releva N. Davis, uma «tragicomédie», declarava não ter <<chan­
gé un iota du langaige de l'aurheur, à. fin que plus facilement on pui sse discer­
de Le Sueur (Histoire ct.dmirable d'tm fattx et suppoJé mary), declarava
ner cerre presente coppie, avec plusieurs a tu res imprimées parcidev ant : l'au­
enfaticamente que o caso ultrapassava <des histoires prodigieuses>> theur desquelles s'eswit tellement pleu à amad izer, qu'il avoit assez maigre­
de autores cristãos ou pagãos, « les escrits fabuleux» dos poetas ment fecité la verité du faít » . O sentido desta declaração não é claro : o termo
antigos (citando logo a seguir as Metamorfoses, de Ovídio) as «peinc­ coj!jlie faz pensar em anteriores edições i ucorrec ras do texto de Coras; o termo
tures monsrrueuses » , as artimanhas de Plauto, de Terêncio ou dos am<tdizef, por outro lado , faz pensar em verdad eiras e completas reelaborações

«nouveaux comiques» , e <des plus estranges cas des arguments con1anescas do caso de Martin Guerre segundo o modelo do Amadis de Cauta .
A favo c da segu nda hipótese está o facto de os primeiros doze livros da tradu­
tragiques »9. A analogia com as substituições de pessoa na comédia
ção h·ancesa do A m�t<lis 1:cr<:m sido reimpressos, entre 1 5 5 5 e 1)60, por Vin­
n:m St'rt<:na� ,. Hsl'i<'lll)<' ( ;mulkau, ,. de o próprio Sertc::m 1s ter publicado a
H Jeau de Coras, A.rre.rt metrlltrable. . . , T.i1io, l. ) ( d , dc·clil':otc'>ri;t, 1 / htoin• .tdllli�<thll', < J , . I,,. S1wur. Aq1tvk ' ] I Il' 1 i nhn <•lll.IÍ.I'.I'<'/11 1 ' 1 1 1' rhir6 la vtrité
du . . l'"•l•·riu """""' •,, r t d < · t o l i h • 11d" • nu1
·> Além daqlldt qu<: N . Davis mcwio1><1, <'XÍ,:Ic' 11>1 l l i h l i o l l1n J II!' Nal'ioll;tlr- (,til <';.lt t d c l l i \ 1 1 ,
186 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPiTULO VI 187

triste, pelo outro. Aquilo que o levava a recusar a doutrina tradi­ condição humana comum - o rema que estava n o centro das re­
cional (que conhecia bem, embora afirmando ignorá-la) era o carácter flexões do seu contemporâneo e crítico Monraigne . Como viu muiro
excepcional do caso e sobretudo do seu protagonista: Arnaud du bem Naralie Davis, o juiz tinha conseguido de cerro modo identi­
Tilh, chamado Pansette, «ce gentil rustre». A fascinação ambiva­ ficar-se com a sua vítima. Quanto teria contribuído para isso a
lente exercida sobre Coras pelo seu herói (esse herói que, enquanto provável adesão de ambos à fé reformista é difícil dizer. Mas en­
juiz, tinha contribuído para enviar ao patíbulo) é analisada por quanto escrevia o Arrest memorable, Coras não supunha estar des­
N. Davis com muita finura. Pode-se acrescentar que esta ambiva­ tinado a um «mísero fim» - a forca - igual àquele que tinha
lência é acentuada pelo uso da expressão fortemente contraditória infligido a Arnaud.
«gentil rustre » , verdadeiro epítetO que Coras repete duas vezes u . A dourrina clássica da separação dos estilos e a sua transgres­
Pode um camponês ser capaz de «gentileza» - virtude ligada por são sob a influência do cristianismo são os fios condutores da grande
de finição a um privilégio social? E como descrever este contra­ obra de Erich Auerbach sobre a representação da realidade na lite­
ditório prodígio? Com o estilo «alro e grave» da tragédia, como ratura da Europa Ocidental. Analisando passos de historiadores da
convinha ao adjectivo ( «genti l •> ), ou com o estilo << baixo e hu­ Alta e Baixa Antiguidade (Tácito, Amiano Matcelino) e da Idade
milde», o único adequado ao substantivo ( « rústico»)? Também Le Média (Gregório de Tours) juntamente com passos de poetas,
Sueur tinha sentido a cerro ponto a necessidade de dar prestígio às dramaturgos ou romancistas, Auerbach indicou uma via que não
personagens da sua história, observando a propósito do casamento tem sido seguida. Valeria a pena fazê-lo mostrando como relatórios
precoce de Martin Guette com Bertrande, menina de dez anos, de factos mais ou menos extraordinários e livros de viagens a países
que o desejo de descendentes é comum « non pas seulement aux longínquos contribuíram para o nascimento do romance e, através
gra nds seigneurs, mais aussí aux mechaniques » 12• Coras vai ao ponro deste poderoso medianeiro, para o nascimento da historiografia
de dizer, num impero enfático, que perante a «grande félicité d'une moderna. O reconhecimento, por parte de Jean de Coras, de uma
si heureuse mémoire» evidenciada por Arnaud du Tilh no decurso dimensão trágica na história de Arnaud du Tilh encontrará então
do processo, os juízes quase o equipararam a «Cipião, Ciro, Teoda­ um lugar adequado entre os testemunhos de como se desmorona
to, Mitridares, Temístocles, Cina, Metrodoro ou Lúculo», ou seja, uma visão rigidamente hierárquica no choque com a adversidade
àqueles «capitães, reis e príncipes» que são os heróis das tragédias. - social, cultural ou natural, conforme os casos11.
Mas o <<mísero fim» de Arnaud - co m ent a, como que despettan­
do, Coras - teria ofuscado o esplendor de tais personagens13. 2. Nos últimos anos a dimensão narrativa da histori ografi a tem
A vida humilde e a morre infamante no patíbulo impediam assim sido vivamente discutida, como já foi lembrado, por filósofos e
de ver em Arnaud du Tilh, chamado Pansette, uma personagem merodólogos e, mais recentemente, por historiadores de primei ro

de tragédia no sentido tradicional do termo: mas num outro sen­ plano 1�. Mas a absoluta falta de diál og o entre uns e outros não
rido - o assumido por Coras e chegado até nós - era precisa­ permmu aré agora chegar a resultados sarisfarótios. Os filósofos
mente graças àquela morre que a sua histó ria podia ser definida
como trágica. Neste Arnaud, neste camponês imposror, que lhe · hamemo a uma
, r um encamtn pesq ut·sa do mesmo género "
10i dado por.
aparecia como que envolto num halo demoníaco, Coras, forçando a T. Todorov com o seu belo livro La c())1quête de I'Am6·iq11e: la quesúo11 de /'autre,
jaula da doutrina clássica baseada na separação dos esrilos, reco­ Paris, 1982.
nhecia implicitamente uma dignidade que tinha a sua origem na " Para duas r<·ntpir ulaçõts recences, cf. «Theor.ie und Erzahlung in der
Ct:schichn.:», poc J. 'L'ol'ka t T. Nippcrdey, in Theorie tkr Gm·hirhre, 3, Muni­
qu<.:, I ') 79; t·l.Whirc·, ,,J .1 qur·srion<· de· li<- nam1%ÍOnl· ndla Lc·nria concempoca­
11
Jean de Coras, Armt memorable (1.572), cic, pp. J lj (, c: I IÍ Y. Jlt',l clt·llu Slcu·io}'l�Jtil'"• in / .•• Jmritt ti�I/,J .rtorioxntfl,t IIJ:.c:i. por 1'. Ros�i. Mi liJo,
12 Guillaume Le Sueur, liiJtoitQ (!) rt,hnir6tlill', l'i1· . , 11. [[ r. 1 '111.� . pp. 5� IH. I ),, tlllllllt iu•.1t "''' " de P. l< u ''''"'• 'I'"'''' , , ,,;,/, ··· ' " ' por
.Jc:nn de Corus, r1 1'1'e.l'l memomh/1', 1 ' • 7 ' , i1·. . p. '•'>.
1 ·1 • I ' I I ' J I I I I I I I I ) ,II'I IHJ', ( I ( • 1 Í l l l<'ll l l \'Ci h t<\11 ( 11,111'10 J ' llt l j
188 PROVAS E POSSIBILIDADES
CAPITULO VI 189
têm analisado proposições hisroriográficas soltas, geralmente sepa­
radas do contexto, ignorando o rrabalho ptepararório de investiga­ exemplo dos historiadores: mas quais? « . . . We intend in it rarhet
ção que as tornara possíveis16. Os historiadores têm-se perguntado to pursue rhe method of those wtiters, �ho profess ro disclose the
se houve nos últimos anos um regresso à hisroriografla narrativa, revolutions of councries, rhar ro imirate che pa.inful and volumi­
descurando as implicações cognirivas dos vários tipos de narra­ nous historiao, who, to preserve rhe regularity of his series, thinks
ção17. Precisamente a página de Coras há pouco discutida adverre­ himself obliged to flll up as much paper wirh the detail of monrhs
-nos de que a adopção de um código esrilísrico selecciona certos and years in which norhing remarkable happened, as he employs
aspectos da realidade e não ourros, valoriza certas relações e não upon those notable areas when the greatest scenes have been rrans­
ourras, estabelece certas hierarquias e não outras. Que tudo isro acted on rhe human stage . » 19 O modelo de Fielding é Clarendon,
esteja ligado às muráveis relações que, ao longo de dois milénios e o autor da History of the Rebellion: foi dele que aprendeu a conden­
meio, se esrabeleceram entre narrações hisroriográflcas e outro ripo sar ou dilatar o rempo da narração, rompendo com o tempo uni­
de narrações - desde a epopeia até ao romance e ao filme - forme da. crónica ou da epopeia, marcado por um invisível
parece óbvio. Analisar historicamenre estas relações - de vez em �
m�trónomo2 . �sra aquisição é tão imporrante para Fielding que
quando feiras de permutas, de hibridações, contraposições, influxos foi levado a mntular todos os livros em que Tom Jones é subdividi­
de senrido único - seria muito mais útil do que propor formula­ do, a partir do quarto, com uma indicação temporal - indicação
ções teóricas absrraccas (muitas vezes implícita ou explicitamente que, até ao décimo, se torna progressivamente, convulsivamente,
normativas). cada vez mais breve: um ano, meio ano, três semanas, três dias,
Baseará um exemplo. A primeira obra-prima do romance bur­ dois dias, doze horas, cerca de doze horas . . . Dois irlandeses -
guês inti tula-se The Life artd Surpri.ring Adventures of Robimon Cmsoe Sterne21 e Joyce - levarão às últimas consequências a dilatação do
of York, Mariner. No prefácio Defoe insisria sobre a veracidade do rempo narrativo relativamente ao tempo do calendário: e teremos
conto (story), conrrapondo history a fiction : «The srory is told wirh um romance inteiro consagrado à descrição de um único, inter­
modesty, with seriousness . . . The ediror believes rhe thing to be a minável dia de Dublin. Na origem desra memorável revolução
.
just history of faces; neither is rhere any appearance of flction i n narrativa encontramos assim a hisrória da primeira grande revolu­
it . . . . » 18 Fielding, por sua vez, i n titulou simplesmenre o seu livro 1 ção da Idade Moderna.
maior The History of Tom joues, a Foundling, explicando que prefe­ Nos últimos decénios discutiram muito os historiadores sobre
riu history a life ou a «an apology for a life» por se inspirar no os ritmos da história; pouco ou nada, de modo significarivo. sobre
.
os ritmos da narração histórica. Um esn1do sobre evenruais reper­
cus sões do modelo narrativo inaugurado por Fielding sobre a his­
16 .
Cf. W. ] . Mommsen e ] . Rusen, i n La terwi4, c1r . , pp. 109 e 200, que ronografla de Novecentos, se não me engano, está ainda por fazet.
todavi a não vão ao ponto de reformular os cermos em que a questão é posta Muiro clara é pelo contrário a dependência - não limitada ao rra-
geralmente. Valea pena o bservar que a s imple s contraposição entre narrativas

hisroriográficas em sentid o próprio e trabalhos preparatórios enco n tra-s e já for­


mulada por Croce no ensaio juveníl La storia ridotta solto il concetto generale de/l'm·te fll Citação exrra(da da ed ição da Ev.er man' s Library , Lond
y res , 1914, I ,
(cf. Primi saggi, Bari, 1 927, pp. 37-38), ao qual Whire muitas vezes se refere.
1 7 Cf. L. Sco ne, «The Revival of Narrative: Reflec cions on a New Old
p. 5 1 (I.
1 1 , cap. I).
.
. 2" A r ' Ht.rt�
c. � � c m a
e,ere ' de CIarend on («so solemn a worb) escá explícita
.
Hiscory» , in Past and Present, n ° 85, Novembro , 1979, pp. 3-24; E. ]. Ho bs­ no Cap. l do Livro
,
.
V�IJ
(tbul. , I, P. 417). Sobre a conccaposição encre' o cempo
bawm , «The Revival of Narracive: Some Commencs», ibid. , n.0 86, Fevereiro, da crónKa e da tpopc1a e o do romance, vejam-se em geral as páginas esclnre­
1980, pp. 3-8. �(·dora� dt· W. B(·nj l�) i l> <<11 n;t1T<tro1·�. Consiclcntzio ni .� ul l.'opera di Nicola Ljeskov»,
18 �
Londres, 1 7 1 9 , prefácio («A hísróri�1 é contada com modt · r:t(::io, st·rit·­ m IIIIJ>rlm· NIJ1Im , l 1 ll'1111, J Y<í'\, p. :�·i7, ohrn donde J'l"l'll' cambfrn K. Stiedc
clade .. . O editor acredira que esta é uma vc:r(d ira hisr(iria de F." ros; ,. n:lo h;\
nela sombra de fic�;ão..... ).
.. J\Ifid u t l ll}: und IIHI'1',11iv1' Fllllll, i n 'J'I worit• 1 1 1 1 . ! Eu.l l d u llg i11 dt:l' ( it'sclwh
:
il'htc»
1 n . , 1'1' · ll'J ·1
' 1 I I . I , W.11 1 , /' /o1 1-'tu o/ th� Noll'd, I """ 1 · ···· 1 1 11 . / , I ' "l •
190 PROVAS E POSSIBILIDADES CA PiTULO VI 191

ramento da sucessão temporal - do romance inglês proveniente, j e réaliserais, sur l a France au XIX s.iecle, ce livre que nous regrer­
em oposição ao filão gótico, da historiografia anterior ou coeva. É cons rous, que Rome, Athenes, Tyr, Memphis, la Perse, l'Inde ne
no prestígio que envolve esra última que escrirores como Defoe ou naus ont malheureusement pas la.issé sur leurs civilisations . . . »25
Fielding procuram uma fonte de legitimação para um género li­ Este desafio grandioso é lançado aos historiadores, reivindicando
terário incipiente, ainda socialmente sem crédito. É de lembrar a um campo de investigação que eles têm deixado substancialmente
magra declaração de Defoe sobre as aventuras de Robinson apre­ inexplorado: «J'accorde aux faits constants, quorídiens, secrets ou
sentadas como «a just history of facts» sem «any appearance of patents, aux acres de la vie individuelle, à leurs causes et à leurs
fic tion>> » . De maneira mais elaborada, F.ielding afirma que quis príncipes, auranr d'importance que jusqu'alors les historiens ont
deliberadamente evitar o termo «tomance» , que todavia teria sido attaché aux événements de la vie pubLique des nations.»26
adequado a Tom jones, para não cair no descrédito que rodeia «ali Balzac escrevia estas palavras em 1 84 2 . Cerca de dez anos anres,
historical writers who do not draw their materiais from records>>. Giambattisra Bazzoni, na introdução ao seu Palco delta Rupe o la
Tom jones, pelo contrário - conclui Fieling -, merece deveras o guerra di Musso, exprimira-se em termos que não eram diferentes.
nome de hiJtory (que figura no título): rodas as personagens estão «Ü romance histórico » , escrevia ele, «é uma grande " lenre" que se
bem documentadas porque são tiradas do «Vast, authenric, dooms­ aplica a um ponro do imenso quadro rraçado pelos historiadores,
day-book of nature>> . 22 Fundindo brilhantemente a alusão ao re­ povoado de grandes personagens. Deste modo, aquilo que era difi­
censeamento ordenado por Guilherme, o Conquistador, com a ima­ cilmente visível recebe as suas dimensões naturais; um contorno
gem tradicional do «livro da natureza», Fielding reivindicava a levemente esboçado torna-se um desenho regular e perfeito, ou
verdade histórica da sua obra equiparando-a a um trabalho de arqui­ melhor, um quadro em que todos os objectos recebem a sua verda­
vo. Tão historiadores eram aqueles que se ocupavam de «pubiic deira cor. Não já apenas os reis, os chefes, os magisrrados, mas a
transactions» como os que, por exemplo ele, se limitavam às «Scenes geme do povo, as mulheres, as crianças fazem a sua aparição; são
of privare life». z:> Para Gibbon, pelo contrário, se bem que no âmbito postos em acção os vícios, as virrudes domésticas e revelada a in­
de um elogio hiperbólico ( « tbat exquisi te picture of human man­ fluência das instituições públicas sobre os costumes privados, sobre
ners will outlive tbe palace of the Escurial and the Imperial Eagle 1
as necessidades e os prazeres da vida, que é quanto, no fim de
of the house of Austria» ) , Tom }ones continuava, não obs tante o contas, deve interessar a universalidade dos homens.»27
tírulo, um «romance ». 24 O ponto de partiea destas considerações de Bazzoni eram
Mas, com o aumento de prestigio do romance, a situação muda. naturalmente I promessi sposi. Mas devia ainda passar algum tempo
Continuando embora a equiparar-se aos historiadores, os romaucis­
tas desligaram-se pouco a pouco da sua situação de inferioridade.
A declaração falsamente modesta (altiva, na realidade) de §alzac 25 «A sociedade üancesa seria o historiador, eu o secretário (. . . ) talvez eu
na int rodução à Comédie Humaitre - «La Société française allait pudesse vir a escrever a história esquecida por ramos hiscodadores - a dos cos­
tumes. Com muita paci ência e muit a coragem ceria realizado, sobre a França
être l'historien, je ne devais être que le secrétaire» - adquire
do �culo XIX, aquel e livro cuja falta rodos lamemamos, aquele livro que Roma,
rodo o seu sabor com as frases que se seguem daí a pouco: «Peut­
Arenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a India, infelizmente nos não deixaram sobre as
-êrre pouvais-je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'histo­ suas civilizações.»
riens, celle des moeuts. Avec beaucoup de patience et de courage, ?� <<Eu atribuo aos fac tos conscances, quotidianos, secretos ou transparemes,
ao� acros da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, aquela mesma
importância que nc(· e ntão os his roriaclores atribuíram aos acontecimentos da
22 Cf. Fielding, The Hútory of Tom.fones, cit., I, p. 5 1 6. violn públic: 1 elas 1\li<,Cws . ..
21 lbid.. pp. 4 1 7-18. • 1 ( : 1 . /)om111mti r ;m/n:.irmi tkl 1'1 1111rlli'l.o ítrdirmu ,/.efi'Ott(/{,,.,.,tll, p nr R. Berra­
2' Cir. por L. Braudy, N<trYcttivc Porm in lli.rtiiYY rmd Fir1i1m, Prin< T i u n , I <)7(), c h i n i , l( o, lo l, J < J(,<l, I '· ;/, ondv \oi' l'<'i ii'P. i l l 't. 11 Ílll l nd ll<,,l" :1 l o -t'� <·ira •·diç:ío de
p. 1 }
!',,/"' .!l'{f., 1<11/" , M1h1n, l ll I I .
192 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPITULO VI 193

antes que Manzoni se decidisse a publicar as páginas De/ romanzo ou menos complexos» . Palavras vagas, que imediatamente ava


storico e, in genere, de' componimenti misti di storia
qual roda a questão eta discutida analiticamente. A um i nterlo­
e d'invenzione, no lugar ao reconhecimento, frouxamente vela o ' de q e a h1stóna
.
� �
tinha «ficado atrás daquilo que um tal ptopositO pod1a pretender,
cutor .imaginário atribuía ele uma .imagem de romance histórico
que era não só uma forma diferente mas também superior à histo­
atrás daquilo que os materiais, procurados ou o servados com � �m
propósito mais vasto ou mais filosófico, podenam dar . . . » Da1 a
riografia corrente: «A intenção do vosso trabalho era pôr diante exortação ao futuro historiador de vasculhar «em docu entos de

dos meus olhos, de forma nova e especial, uma história mais rica, toda a espécie», fazendo «que se tornem documentos tambem certos
mais variada, mais humana do que aquela que se encontra nas
escritos cujos autores estavam longe de imaginar que punham no
obras a que se dá este nome vulgarmente e como que por anto­ 2B
papel documentos para a postet1'dade . . . » • • •

nomásia. A história que de vós espetamos não é uma sucessão


Quando Balzac reivindicava a 1mportanCia da v1da pnvada dos
A

cronológica de factos políticos e militares que inclua, como excep­


.indivíduos contrapondo-a à vida pública das nações, pensava no
ção, alguns episódios extraordinários de outro género; mas uma
Lys dans la vallée: «La bataille inconnue qui se l ivr dans une v lée � �
representação mais geral do estado da humanidade num determi­
de l'Indre entre Madame de Mortsauf et la pass10n esr peut-etre
nado tempo, num determinado lugar, naturalmente mais circuns­
aussi grande que la plus i llustre des batailles connues.» 9 E q �an­ �
crito do que aquele em que costumam decorrer os trabalhos de
\ do 0 imaginário interlocutor de Manzon.i falava os «efet �os puva­ �
história, no sentido mais vulgarizado do termo. Há entre estes e o
dos dos acontecimentos públicos (que com ma1s propnedade se
vosso, de certo modo, a mesma diferença que existe entre um mapa
.dizem históricos) e das leis ou da vontade dos poderosos qualquer
geográfico, onde estão assinalados os rios, as cadeias de montanhas,
que seja a maneira por que se manifestam» aludia naturalmente a
as cidades, os burgos, as estradas principais duma vasta região, e �
1 promessi sposi. Mas nas consi er açõe� de car cter g_:ral formuladas �
uma carta topográfica, onde não só tudo isto é mais particulariza­ _ ,
por ambos é impossível não d!stwguu a preflguraç ao , � luz o q�e �
do (refiro-me só ao que pode caber num espaço muito mais restri­
veio depois, das características mais relevante� da mvestig�ç �o
to de terras) mas são também assinaladas as elevações menores,
histórica dos últimos decênios - desde a polém1ca contra os limi­
e os mínimos desníveis de terreno, e os regatos, as represas, as '
tes de uma história exclusivamente política e militar até à reivin­
aldeias, as casas isoladas, as veredas. Costumes, opiniões, tanto ge­
dicação de uma histó r ia da mentalidade dos i �di v íd uos e d�s g �upos
rais como inerentes a esta ou àquela classe de homens; efeitos privados
sociais, e mesmo até (nas páginas de Manzon1) a uma teonzaçao a ?
dos acontecimentos públicos (que com mais propriedade se dizem
micro-história e do · uso sistemático de novas fontes documentais.
históricos) e das leis ou da vontade dos poderosos qualquer que
Trata-se, como já se disse, duma leitura feita à luz do q�e velO
seja a maneira por que se manifes tam ; em suma, tudo aquilo que
depois, isto é, duma leitura anacronística: mas nem �or 1sso de
uma dada sociedade, num dado tempo, tem rido de mais carac­
todo arbirrária. Foi necessário um século para que os h1stonadores
terístico, em todas as situações da vida, e na relação de cada uma
começassem a aceitar o desafio lançado pelos grandes tomanc sras �
com as outras: eis o que vos propusestes dar a conhecer. . . » Para o
de..Oitocentos - de Balzac a Manzoni, de Stendhal a Tolstol -
interlocutor imaginário a presença de elementos de invenção era,
enfrentando campos de investigação anteriormente desprezados, com
neste programa, contraditória. De que modo Manzoni teria res­
0 auxílio de modelos explicativos mais subtis e complexos do que
pondido a esta e outras objecções relativamente ao romance histórico
não importa aqui. Sublinha-se, no entanto, que ele acabava por
contrapor ao romance histórico uma história «possívd >> , ainda q Lle -'" Cf. A. Manwni, Ofltre, por R. Baccbelli, Milão-Nápoles, 1953, pp. 1056,
já expressa em muitos «rrabalhos cujo obj e cr.ivo é dar a conhcl'<er J OOH�Y. ·
da
"'' C:f. n,,J�.ar, '·" < :11111Mio 1111m,rim•, cic., r, p. 1 :�: <<A bamlba desconhect
não tanto o percurso po lítico de uma par 1 1 · da bLtman id<ttlc ttum
(jllt' ::o- rmv,1 1 1 1 1 1 1 1 v1111• do lnol l't' 1'111 1'1' M.tolanw .lc• Mnrl.'õllllf '' <I pnix1io é calv�z
<.bdo tempo quanto o seu modo e l e : Sl'l' sob <�·� I H'I'I'os d ivn�:os c· 111ais 1 1\n l\l.itldo• 1 ' 1 • 1 1 1 1 1 11 1 1 1 1 1 1 l h t�c· t'<' dn•. h.ihd lttl� ' "ttl u l td1l'•
1.
CAP {TULO VI 195
194 PROVAS E POSSIBILIDADES

vinhação cita31. Como s e poderia não admitir que um Essai sur la


os modelos tradicionais. A crescente predilecção dos historiadores
représentatiorJ de l'autre (assim reza precisamente o subtítulo do livro
por remas (e em parte formas expos.itivas) outrora reservados aos
de Hartog) implicava necessariamente um confronto menos episódico
romancistas � fe nômeno impropriamente definido como «renasci­
entre o texto de Heródoro e outras séries documentais? Analoga­
mento da história narrativa» - não é mais do que um capítulo de
mente, White declara ter querido limitar a sua pesquisa aos ele­
um longo desafio no domínio do conhecimento da realidade. Rela­
mencos «artísticos>> presentes na historiografia «realista» de Oito­
tivamente aos tempos de Fielding, o pêndulo oscila hoje na direc­
centos (Micheler, Ranke, Tocqueville, etc.), servindo-se de uma
ção oposta.
noção de «realismo» extraída explicitamente de Auerbach (Mime­
Até há pouco tempo a grande maioria dos historiadores via
uma nítida .incompatibilidade entre a acentuação do carácrer cíentínco
.ri.r) e de Gombrich (Art arJd Illu.riorJ)32. Mas estes dois grandes li­
vros, mesmo na sua diversidade (justamente subli nhada por White),
da historiografia (tendencialmence assimilada às ciências sociais) e
assentam na convicção de que seja possível determinar, com prévio
o reconhecimento da sua dimensão literária. Hoje, no entanto, este
controlo sobre a realidade histórica ou natural, se um romance
reconhecimento torna-se cada vez mais extensivo também a obras
ou um quadro é mais ou menos adequado, do ponto de vista
de antropologia ou de sociologia sem que isso implique necessaria­
da representação, do que um outro romance ou um outro quadro.
mente um juizo negativo da parte de quem o formula. Aquilo que
A recusa, substancialmente relativista, de descer a este terreno faz
em geral é sublinhado, porém, não é o núcleo cognitivo que se
da categoria «realismo» , usada por White, uma fórmula vazia de
pode encontrar nas narrações de Ecção (por exemplo, as romanes­
conteúdo33. Um controlo das pretensões à verdade inerentes às
cas), mas sim o núcleo fabulat6rio que se pode encontrar nas nar­
narrações hisroriográficas implicaria a discussão de problemas con­
rações que se pretendem científicas - a começar pelas historio­
cretos ligados às fontes e às técnicas da investigação que cada
g áficas. A convergência entre os dois tipos de narração procura-se,
� historiador utilizou no seu trabalho. Quando se descuram estes
d!to em poucas palavras, no plano da arte e não no da ciência.
elementos, como faz White, a historiografia identifica-se com um
Hayden Whi.te, por exemplo, examinou as obras ele Micheler Ranke
puro e simples documento ideológico.
Tocqueville e Burckhardt, considerando-as exemplos de «h srorica i l
Esta é a crítica que Arnaldo Momígliano aplicou às mais re­
imaginarion»30. E François Harrog (independentemente de Whire r
centes posições de White (mas poder-se-ia alargá-la, com as devi­
e inspi rando-se antes nos escri tos de Michel de Cerreau) analisou o
das diferenças, também a Hartog). Momigliano lembrou em tom
quarto livro de Heródoro, consagrado aos Citas, classificando-o um
de polémica algumas verdades elementares: por um lado, que o
discurso auto-suficiente, fechado em si mesmo como a descrição de
historiador trabalha com fontes, descobertas ou a descobrir; por
um mundo imaginário. Em ambos os casos as pretensões de vera­
outro lado, que a ideologia contribui para suscitar a investigação,
cidade das narrações hisroriográficas são recusadas pela análise.
mas deve depois ser mantida à distância. 34 Esta última prescrição,
E verdade que Harrog não rejeita, em princípio, a legitimidade
todavia, simplifica demasiado o problema. O próprio Momigliano,
dum confronto entre as descrições de Heródoro e os resultados' su­
ponhamos, das escavações arqueológicas na zona a norte do mar
Negro ou das pesquisas sobre o folclore dos Ossetas, remotos des­ �1 F. Hartog, Le miroil· d'Hérodote, Paris,' 1980, pp. 23 ss, 141-42.
cendentes dos Citas, mas é precisamente um confronto ocasional }2 Cf. White, Metahistory, cit., p. 3, nota.
H Cf. ibidem, pp. 432-.33.
com a documentação osseta, recolhida por folcloristas russos no A evocação de Gombrich e da noção de «realis­
mo» reaparece no início do ensaio La qlleJtiol1e del/a r�a1·razione, cic., p. 33,
fim de Oitocentos, que o leva a concluir que Heródoro <<diminuiu
nora f, que segue depois ourros caminhos.
e compreendeu mal>> num ponto essencial a «altericlade>> da adi- '� Cf. A. Momi g l iano, «L'hisr.oire duns l'âge des icléologies», in Le Débat,
n:' :.n, Jan<·iro dC' J 91!�. pp. 1 .' 0-·1 (> ; irll'ln, «niblicnl Srudi<'s anel Cl�ss ital Seu­
.! i r:. .'i i 1 11pl<' H<·II•••I IWI'I upnn l l i•:i<u'it,d M<'i l u H I » , iu l\m1r1li ddltt Samla Nor­
�o H. Wh i tf:, Matrthi.rtrtry. Tb� li i.rtoriw/ ll!h.I)I.J111Jiftll/ i11 Nil!t'lt•t'tllb 1 .'m1111 v
'""'' .1'11j1rmm: ./i /11!.1 , �. 1 1 1 , >: I , l 'lH I , 1 '1'· ··, � I
1?1/ntfio, BnlrinHm· I' Loudr< ·s, I 'J1 i .
'
196 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPfTULO VI 197

melhor que qualquer outro, mostrou que princípio de realidade e Mas precisamente aquele que Momigliano apontou como símbolo
ideologia, conrrolo filológico e projecção no passado dos problemas da fusão entre a Antiguidade e a historiografia filosófica, Edward
do presenre se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente, em Gibbon, quis denunciar - numa nora autocrítica ao capitulo XXX f
todos os momenros do rrabalho historiográfico - desde a identifi­ da History of the Decline and Pai/ ofthe Roman Empire, consagrado à.�
c�ção do objecto até à selecção dos documencos, aos métodos de condições da Inglaterra na primeira metade do século V - o
pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literária. A redução condicionamento exercido pelos esquemas narrativos sobre a apre­
unilateral de tão complexo entrelaçado à acção, isenta de atritos, sentação dos resultados da investigação. <<l owe to myself anel co
do imaginário h.isroriográfico, proposta por White e por Hartog, historie rruth» , escrevia Gibbon, «to declare, that some "circums­
revela-se empobrecedora e, no fim de contas, .improdutiva. É pre­ tances" in this paragraph are founded only on conjecture and ana­
,
cisamente graças aos atritos suscitados pelo princípio da realidade logy. The stubboroess of our language has sometimes forced me m
(ou como se lhe queira chamar) que os historiadores, de Heródoto deviare from tbe "condicional" into the "índ icacive" mood.» 36 Por
em diante, acabaram, apesar de tudo, por se apropriar do «Outro » , sua vez Manzoni, numa página do escrito Del romdTlZO storico e, irt
às vezes d e maneira domesticada, ourras vezes, pelo contrário, mo­ genere, de' componimenti misti di storia e d'invenzione, concebeu um;L
solução diferente. Depois de ter contraposto mapa geográfico l '
dificando profundamente os esquefllas cognitivos de que tinham
rI carta topográfica como imagens, respectivamente, da historiografia
partido. A «patologia da representação» , para usar a expressão de
Gombrich, não esgota a possibilidade desta última. Se não tivesse I tradicional e do romance histórico, entendido como <<forma nova l '
especial . . . , mais rica, mais variada, mais completa» de h.i st6ri;L,
. sido capaz de corrigir as suas .imaginações, expectativas ou ideolo­
gias sob o influxo das indicações (nem sempre agradáveis) vindas Manzoni complicou a metáfora, convidando a distinguir explici 1:1
do mundo exterior, a espécie Homo sapiens ter-se-ia extinguido há mente, dentro da carta, parres certas e partes conjecturais. A pm­
muiro tempo. Enrre os insrrumenros intelectuais que lhe permiti­ posta, em si, não era nova: procedimentos semelhantes escavam h:í.
ram adaptar-se ao ambiente circundante (natural e social), modifi­ tempos a ser usados por filólogos e arqueólogos, mas a sua extén­
cando-o cada vez mais, coma-se afinal também a historiografia. são à história narrativa escava longe de ser adaptada, como mo.� na
/
o passo de Gibbon há pouco citado. Escrevia pois Manzoni:
3 . A insistência actual sobre a dimensão narrativa da historio­ <<Não deixa de vir a propósito observar que rambém do ve­
grafia (de qualquer historiografia, embora em graus diferentes) rosímil a hisrória se pode algumas vezes servir, e sem inconve­
associa-se, como já vimos, a atitudes relativistas que tendem a anular niente, porque o faz segundo a boa maneira, isto é, expondo-o na
de facto qualquer distinção enrre fiction e history, eorre narrações sua ·forma própria e disti nguindo-o assim do real. ( . . . ) Faz pane da
fantásticas e narrações pretensameote verídicas. Contra esta ten­ miséria do homem o não poder conhecer mais do que fragmen tos
dência acentua-se, por outro lado, que uma maior consciencializa­ daquilo que já passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte
ção da dimensão narrativa não implica uma diminuição das possi­ da sua nobreza e da sua força o poder conjecr urar para além dagui­
bilidades cognitivas da historiografia, mas, anres pelo contrário, a lo que pode saber. A história, quando tecorce ao verosímil, não htz.
sua intensificação. E é precisamente a partir daí que deverá come­ mais do que favorecer ou estimular essa tendência. Então, por u m
çar uma crítica radical da linguagem hiscoriográfica, da qual por
enquantO só temos alguns esboços. 1r. E . Gibbon, Stnrio de/.la decadm :u1 e L"rtdllltt rk/l'illlf!ero rnmann, twd. i t . c l < ·
Graçasa Momigliano sabemos do contributo decisivo que o estu­ G. Pri:t�i , iocroduc;:i() d•· A . MomiJ.;liano, lf, Turim, J l>67, p . 1 H í6, n o rn ·1:

.. o dcv<:t J':U<I çomi1:o c · p.1m < 0111 a v<·rci:lcl<· hisl cÍ<'io : a ol u·i,1:a nw a dcril!rllf ' I ' " '
do da Antiguidade trouxe ao nascimento da historiografia moclerna3 1.
l li'SCl' pal�ÍJII'a{() 11)}\ 1 1 1 11!1.� "fir!'I IIISI<IIII'Í:<�" \,Ltl Íllll•h11l.l� iiiWII:I� ''lll rolljt'f'l'l l l';l:i I'

IIIHdo/;ia. 1\ c h u·o1• c l . < 11< >'1 ' ' 1 1<<1\ t l ol <>l •r�r."" <>lt' I '"' vo·tn . 1 '-oiÍr olo 1 1 1 1 1 o l o
}l Cf. , idem, <<Ancienc Hiswry aod 1:h� A n 1 iq11ariu n n , in )mn'rMI 1!f'tlu1 w,,.,. " c 1 1 1 1 c l i c ionnl" I '•< LI (I illolclll " I ! l o 1 1 1 1 1 1 1\'11", 1\ 1 ! 1 1 1 '111 1 11 1 1 1 ) ,, olc ·.lo· )hi�I H I• oi'l� 1 1 1 .1
bm'l!, mui Cnttrttllild fn.rlillltc.r, X I I I , 1 1)í0, 1 '1 ' · !H.., •.:1, h�ol11, 1 1 1 1 1 1 1 o C I I I I I M f l l old1 1 i 0 t l l o' , p1 11' J l l o l l <o l \ , N,/ 1 /ol/11• /•o tl'/0 • O I , l t· ' l t1.
'I
�\
198 PROVAS E POSSIBILIDADES
) CAPÍTULO VI 199

momenro, deixa de narrar, porque a narrativa não é naquele caso âa nelle fonti de/ seco/o XII, ele combateu asperamente o «método
um instrumento bom, e adopta em vez dele o instrumento da filológico-combinatório» , ou seja, a confiança pertinaz e ingénua
indução: e desce modo, fazendo o que é pedido pela diversa natu­ dos estudiosos na providencial complementaridade dos testemu­
.
reza das coisas, acaba por fazer o que convém ao seu novo intento. nhos do passado. Esta confiança tinha criado de Arnaldo de Bres­
De facto, para poder idenrificat a relação entre o posirivo narrado cia uma imagem postiça e falsa, que Frugoni desfazia lendo cada
e o verosímíl proposto, é necessária uma condição: que eles se fonte a partir de denrro, em contraluz, na sua irreversível singula­
apresentem distinros. É pouco mais ou menos como se alguém, ridade. Das páginas de São Bernardo, de Otão de Frisinga, de
desenhando a planta duma cidade, acrescentasse, a cor diferente, Gerhoh de Reichersberg, emergiam outros tantos retraros de Ar­
ruas, praças e edifícios projectados: e com o facto de apresentar as naldo de B rescia, colhidos de ângulos de visão diferemes. Mas esta
partes que poderiam exisrir disrintas daquelas que exisrem faz com operação de «restauro» era acompanhada da temativa de reconsti­
que se veja a razão por que as pensou reunidas. Direi que a história tuir, na medida do possível, a personalidade do «Verdadeiro» Arnaldo:
abandona então a narrativa, mas para se ajustar, da única maneira «0 nosso retratO virá a ser como tun daqueles fragmentos de es­
possível, àquilo que é o objecto da nartativa. Conjecturando ou cultura antiga, mas com traços (estarei enganado?) de grande poder
narrando, tem sempre em mira o real: af reside a sua unidade. »37 sugestivo, liberto da contrafacção de acrescemos posteriores. » 40
O preenchimento das lacunas efec tuado (e logo a seguir decla­ O Arnaldo, publicado em 1 9 54, foi discutido apenas pelos
rado) por Gibbon poderia ser comparado a um restauro pictórico especialistas, mas é evidente que ele não se dirigia só aos here­
/ \
por meio de completa repintura; a sinalização sistemática das siólogos e aos estudiosos dos movimentos religiosos do século XII.
conj ecturas historiográficas proposta por Manzoni a um restauro Hoje, rrinta anos depois, podemos lê-lo como um livro de anteci­
em que as lacunas fossem indicadas a tracejado. Uma solução como pação, que talvez tivesse sido prejudicado com uma certa timidez
esra era, em todo o sentido, uma antecipação no tempo. A página em levar até ao fundo o projecto crírico inicial. A um olhar retros-
de Manzoni ficou sem eco. Dela não se encontra vesrígio, nem , pectivo torna-se claro que o seu alvo não era apenas o método
sequer no ensaio lmmagirtazione, aneddotica e storiografica, na qual filológico-combinatório mas a narração histórica tradicional, mui­
Croce discute com muita agudeza alguns exemplos de frustradas tas vezes irresistivelmente propensa a preencher (com um advér­
integrações narrativas inspiradas pela «imaginação combinatória. » 38 '· bio, uma preposição, um adjectivo, um verbo no indicativo em vez
Croce, de resto, limirava fortemente o peso das suas observações, de no condicional . . . ) as lacunas da documentação, transformando
referindo-as exclusivamente ao anedótico nas proximidades do i.!·lll rorso numa estátua completa.
romance histórico: a historiografia, no sentido mais próprio ] mais Um crítico perspicaz como Zerbi descortinava com preocupa­
profundo do termo, estava para ele intrinsecamente imunizada·contra ção no livro de Frugoni uma tendência para o «agnosticismo bis­
riscos desse género. Mas, como já vimos, um historiador como toriográfico», apenas debilmente contrariada pelas «aspirações de
Gibbon não era da mesma opinião. uma verdadeira mentalidade histórica, que se sente desgostosa por
Quem entendeu em sentido muito mais radical as implicações não descobrir senão pó, ainda que o pó seja de ouro» 41 . Não se
do ensaio de Croce foi Arsenio Frugoni39. No seu Arnaldo da Bres- trata de- uma preocupação .infundada: '!- sobrevalorização das fontes
de carácter narrativo, visível em Frugoni (como é visível hoje, com

n Cf. Manzoni, Opere, cit., pp. 1066-67.


i
3" Cf. B. Croce, La stora come pemiero e come azione, Bari, 1938, pp. 122-128 ternenre interrogativa (o meu agradecimento a Giovanni Kral, que, no decurso
(e veja-se já uma alusão em La .rtoria ridotta sotto i/ conceito, cít., pp. 39-40). de um sem inário em Do.looha, me chamou a atenção para este ponco).
39 Cf. P. Zerbi, «A proposíco di tre rece mi l íbri di sroCÍ<l. R i flessioni sopra ��� Cf. A. Fwgon i , !l.m.a/dt, da Br11sáa nellu fonli del semlo XJI, Roma, l954,
alcuni pro blemj di merodo, in Ar:vttm, XXXI, 1 9 57, p. 57.4, nota 1 7 , onde " p. rx .
posição de Fcugoni em relação i\s página.� de Crt�<:<: t: t � pos r a c.lt· fill'l l1>� pruckn· 1 ' C (. /.o ·rl > i , 1\ f��'of'ii.IÍ!o, rir., p. ·,o 1.
200 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPITULO VI 201

todos os pressupostos culturais, em Hartog), contém o germe de espelhos lembra-nos um facto bem conhecido: e é que o emara­
uma solução idealista da história na história da historiografia. Mas, nhamento entre realidade e ficção, entre verdade e possibilidade,
em princíp io, a crítica dos testemunhos exposra com tanta finura está no centro das elaborações artísticas deste século. Natalie Zemon
por Frugoni não só não exclui mas até favorece a i� teg ·aç�o e

� Davis pôs em relevo as vanragens que os historiadores poderiam
séries documentais diversas, com um g cau de consClenClahzaçao tirar dai para a seu trabalho .
desconhecido do velho mécodo combinatório. Há ainda neste sen­ Termos como «ficção» ou «possibilidades>> não devem induzir
tido muito caminho a percorrer. em erro. O ptoblema da prova continua mais do que nunca no
centro da investigação histórica: mas o seu estatuto é inevitavel­
4. No próprio acto de propor a inserção das conjecruras, assi­ menre alrerado no momento em que são abordados temas diversos
naladas como tal, na narração h.istoriográfica, Manzoni sentia a ne­ relativamente ao passado, com o apoio de uma docwnentação também
cessidade de realçar, de maneira um tanto retorcida, que «a hi.srória. . . diversa42. A tentativa· feira por Natalie Zemon Davis de contornar
abandona então a narrativa, mas para se ajustar, d a única maneira as lacunas com uma documentação de arquivo contígua no espaço
possível, àquilo que é o objecto da narrativa. Entre conjecturas e e no tempo àquela que se tinha perdido nunca se materializou: é
narrativa histórica, entendida esta como exposição de verdades apenas uma das muitas soluções possíveis (exrensiva até onde? Valeria
positivas, havia aos olhos de Manzoni uma incompatibilid a e evi­
. .
� a pena discutir isso). Entre as soluções a excluir rerminantemente,
dente. Hoje, porém, o emaranhado de verdade e poss1bil1dades, está a invenção. Seria, além de contradi tória com tudo o que foi
assim como a discussão de hipóteses de investigação em contraste, dito, absurda. Até porque alguns dos mais célebres romancistas de
alrernada com páginas de reevocação histórica, já não causam es­ Oitocentos fa laram com desprezo do recurso à invenção, atribuin..:
tranheza. A nossa sensibilidade de lei tores modificou-se graças a do-a quando muito, ironicamente, aos próprios his toriadores. «Cene
Rosrovzev e a B loch - e também a Proust e a Musil. Não foi invention est ce qu'il y a de plus facile et de plus vulgaire dans le
apenas a noção de narração historiográfica que se transformou mas rravail de l'esprit, ce qui exige le moins de cefléxion, et même le

a de narração tout court. A relação entre quem narra e a realidade moins d'imaginacion» , escrevia Manzoni na Lettre à M. Chauvet,
1
afigura-se mais incerta, mais problemárica. . . reivindicando para a poesia a pesquisa no mundo das paixões, vedado
/
Os historiadores, porém, hesitam às vezes em admm-lo. E neste à história - aquela história que, «por sorte» , é inimiga da adivi­
ponro compreendemos melbor que Natalie Zemon Da:vis tenha nhação, como diz a célebre frase de 1 promessi sposi4�. «Porque é que
podido definir a sala de monragem do filme :�bre Martlll C:�err-:. a história é cão enfadonha » , perguntava uma personagem de Jane
como um verdadeiro e apropriado «laboratotlo hJstorwgráfl..:O». Auscen, «embora seja necessariamente, em grande parte, fruto da
A alternância das cenas em que Roger Planchon procurava pro­ i nvenção?» 44 «Representar e ilustrar o passado, as acções dos ho­
nunciar com entoações diversas a mesma frase do juiz Coras trans­ mens, é tanto tarefa do historiador como do romancista; a única
formava de repente (teria dito Gibbon) o indicativo da narraci �a diferença que posso notar», escrevia no fim do século Henry ]ames,
.
histórica num condicional. Todos os espectadores de Otto e Meta
(histOriadores ou não) viveram uma experiência de cerro modo se­ ·
42 arte,
melhanre assistindo à cena em que várias candidaras a intérprete
Sobre este problema, no que respeita à história da remeto para a
disc\lssão entre A. Pinelli e o autor desras linhas, in QtJaderni storici, n.• 50,
se sucedem no palco de um teatro experimental pata representar a Agosto de 1982, pp. 682 ss.
mesma personagem , pronunciando à saciedade e desajeitadamente '13 Cf. A. Manzoni, út «Lettre à M. Cha11vet», por N. Sapegno, Roma, 1947,
a mesma frase perante o protagonista-realizador. No filme de Fel­ pp. 59-60. «Esca invenção é o que hf\ de mais fácil e vulgar no rrabalho do
lini o efeito de realização é acentuado pelo facto de o espectador já esrf(i to, aquilo que rcqu<::r rnenos reOexíio e até rnenos imaginação »; idem,
{il'tlfru·J.ri .rJm.ri, r01r. X J J' I .
cer visto agi c o personagem «real» , qw.: (: por sna vt:'L., narural­
I
H /1 l'r:t�t· dt· .JIIItt' i\psl'1'11 (<k Nonbrttltl'l' Ah/J,,v) li1i po:.l:t por 11 . H . Carr
menct, uma personagem ci nt'm·,ttognífi<;a. r.ste vtrt i g i noso jn}'.O d<' '''lllllld i v t ·.tt d!l ;,1 ' 1 1 \Y'/1, 11 ; , llittol')'!, l,olldi<"/, I ' )l d .
202 PROVAS E POSSIBILIDADES

«teverte a favor deste último (em proporção com o resultado,


naturalmente) e consiste na maior dificuldade que ele encontra na
recolha das provas, que esrão muito longe de ser puramente li­
terárias.»4� E poder-se-ia continuar.
Por outro lado, para os romancistas de há um século, ou mes­ CAPÍTULO VII
mo meio século, o prestígio da historiografia assentava numa imagem
de veracidade absoluta em que o recurso às conjecturas não tinha O úzquisidor como antropólogo:
nenhum cabimento. Ao contrapor os historiadores, que se ocupa­ Uma analogia e as suas implicações
vam de «public rransacrions>>, àqueles que, como ele próprio, se
limitavam às «�cenes of privare life » , Fielding punha em relevo a
contragosto a posição de maior credibilidade dos primeiros, basea­ A analogia de que gostaria de falar, ocorreu-me, pela primeüa
da em «public records, with the concurrent testimony of many vez, há dez anos, em Bolonha, quando participava num colóquio
authors»: pot outras palavras, baseada no tesremunho concordante sobre « Hisrória O cal » . Historiadores europeus contemporâneos, es­
das fontes narrativas ou constantes dos arquivos46• Esta conrraposi­ pecialistas em escudos africanos e antropólogos disrintos, como por
ção entre hisroriadores e romancistas aparece-nos agota coisa mui­ exemplo Jean Vansina e Jack Goody, ptopunham-se estudar as
\
to remota. Hoje os historiadores reivindicam o direito de se ocupar diversas maneiras de lidar com documentos orais. Subiramente,
não só da gesta pública de Trajano, Antonino Pio, Nero ou Calígula lembrei-me de que mesmo os historiadores da Europa do início da
(exemplos aduzidos por Fielding) mas rambém das cenas da vida era moderna - quer dizer, duma sociedade não contemporânea
privada de Arnaud du Tilh, chamado Pansette, e de Martin Guerre que deixou uma enorme quantidade de testemunhos escritos -
e da sua mulher Bertrande. Conjugando engenhosamenre erudição urilizavam muiras vezes fontes orais, mais precisamente, registos
e imaginação, provas e possibilidades, Natalie Zemon Davis mos­ escriros de produções orais. Sugeri, como exemplo, que se compa­
rrou que rambém se pode escrever a história de homens e qlulhe­ rassem acras judiciais de rribunais eclesiásticos ou laicos com apon­
res como eles. tamentos de antigos antropólogos, registando assim um trabalho
de campo levado a cabo há alguns séculos atrás.
Façamos a experiência partindo desta analogia enrre inquisido­
res e antropólogos (e também entre réus e «nativos »). As implica­
ções parecem-me bastante interessantes e gostaria de discuti-las do
ponto de vista de um historiador que tenha trabalhado sobretudo
com processos i nquisitorlais e esreja particularmente interessado em
questões de feitiçaria, numa Europa do princípio da era moderna.
A de$coberta dos arquivos da Inquisição como importante
documentação histórica é, surpreendenremente, um fe nómeno tar­
dio. Os historiadores da Inquisição concentravam a sua atenção
nos mecanismos daquela instituição peculiar, de uma fotma bas­
tante descritiva (e tantas vezes polémica): os arquivos propriamente
1l Cf. ditos ficaram em gra11de medida por explorar, mesmo quando em
H. ]ames, L'm·te de/ romanzo, por A. Lombardo, M.ilão, J 959, p. 38
(o passo faz parte de um ensa.io que tem o mesmo título q�1e a t"olectân(';l :&lj.� u r r s c:rsos eram ;r<Tssívr·is :ros i nY<'si'ÍJ�:tdon·s. Couro (: sabido, fo­
icaliana, publie<1do em voluml; em 1 888). tnm n-; l r i � r ori:1dorcs pr� > l t ·�:Lr n r , ·� ' I ' ��' o:; i 'OI1 1 < ' i, .írHI11 1 1 1 1 1 ilJ i.:l l', 1'11'\h�>ra
46 Cf. Fielding, The JHrtmy •(/ Tmn ]otM, ri L . , I , p. 1 1 H .
1 1 1 1 1 11: I I''' r•:J >( '( I i v .I I", I I 1 1 111 111'11 1 i' ol)'tlll>l •,1'1 l i . 1 ' I I>11 1 l i I>1 1)1 ( I , Vi 1 ' li' 1'11 .d '
CAPfTULO VII 205
204 . O INQUISIDOR COMO ANTROPÓLOGO
anos3. Só que, entretanto, a si tuação alterou-se profundamente.
tecer a atitude heróica dos seus antepassados face à perseg uição
A bruxaria passou da periferia para o centro das questões históricas
católica. A obra chamada I nostri protestanti1 , escri ta no final do
«válidas» (para não dizer, em voga). Trata-se apenas de um sinto­
século XIX, pode ser considerada como um exemplo típico desta
ma �e uma tendência agora comum enrte os historiadores, mas já
tentativa de continuar, a nível de arquivo, uma tradição iniciada,
sentlda, há bastantes anos, por Momigliano: estudar determinados
no século XVI, pela Histoire des martyrs de Crespin. Por outro lado,
grupos sociais ou sexuais, como, por exemplo, os camponeses ou as
os historiadores católicos mostraram sempre uma enorme relutân­
mulheres , deficientemente representados naquilo a que podemos
cia em utilizar na sua pesquisa os arquivos inquisitoriais. Por detrás
chamar as fontes - «oficiais»4• Os «arquivos da repressão>> dão-nos
desta relutância podemos descortinar uma tendência, consciente
certamente informação preciosa sobre esse tipo de pessoas. De
ou inconsciente, no sentido de minimizar o impacte da Reforma.
qualquer maneira, a relevância que a feitiçaria nesta perspectiva
Gostaria aqui de contar um pequeno incidente pessoal: o historia­
pode ter deve estar ligada a um fen6meno mais preciso (mesmo se
dor que me levou aos arquivos de Udine - precisamente o distin­
correlacionado) e que é a influência crescente da antropologia sobre
to padre católico Pio Paschini, nascido em Friuli - jamais pensou
a história. Não é por acaso que um clássico sobre feitiçaria Azande
em explorar os processos inquisitoriais nos seus livros sobre heresia
escrito há quase um século por Evans-Pritchard5' forneceu a Ala �
e Contra-Reforma em Friul?. Assim, quando pela primeira vez
\M
f"�acf:arlane6 e Ketth
· Thomas o enquadramento cognitivo para a
e ntrei na imponente sala onde se encontravam arrumados os cerca
obra que escreveram sobre a feitiçaria na Inglaterra do século XVII.
de dois mil processos de julgamen tos da Inquisição decorridos em
A varied ade de conhecimentos que o clássico de Evans-Ptitchard
Friuli, tive a sensação de que estava a descobrir uma mina de
ouro, totalmente intacta. �os fornece é obviamente inegável, embora a comparação enrre fei­
.
tJceuas ou feiticeiros ingleses do século XVII e os seus colegas
Deve, no entanto, ressalvar-se a circunstância de, no que diz
Azande devesse ser complementada - penso eu - com uma
respeito à feit.íçaria, a relutância em utilizar os arquivos da Inqui­
comparação (sistematicamente evitada em literatura recente) com
sição ter sido, durante muito tempo, igualmente partilhada por
os casos de perseguição às feiticeiras no resro da Europa durante o
historiadores crentes (carólicos ou protestantes) e por historia ores d mesmo período.
liberais. As razões eram óbvias. Faltava em ambos os casos uma
Há quem sugira que o que distingue os julgamentos das feiti­
identificação religiosa, intelectual ou emocional. Sempre se consi­ .
ceuas na Inglaterra (nomeadamente a ausência evidenre de confis­
derou que as provas de bruxaria, fornecidas pelos j ulgamentos, eram
sões relacionadas com o sabat) se deve àquilo a que se poderia cha­
um misto de extravagâncias teológicas e supersrições populares.
Estas eram, por definição, irrelevantes, aquelas podiam ser mais fa­ � ar uma insularidade legaF. Não há dúvida de que os mesmos
JUlgamentos, no continente europeu, fornecem aos historiadores ma­
cilmente encaradas como tratados demonológicos. Para os estudio­
terial �uico mais rico, no que diz respeito à reconstituição da
sos que pensavam que o único tema histórico «válido» era a per­
menrahdade das pessoas comuns relativamente à feitiçaria. É aqui
seguição e não o seu objecto, percorrer as longas e muito provavel­
mente repetitivas confissões dos homens e das mulheres acusados
de feitiçaria era, de facro, uma tarefa fastidiosa e inútil. ' H . Trevor-Roper, The European Witch-Craze of the 16th and 1 71h Centttries'
·

A história pode parecer velha - no entanto, uma atitude se­ Londres, 1969.
4 A. Momigliano, «Linee per una valutazione della. storiografia del quindi­
melhante foi relatada por Hugh Trevor-Roper há menos de vinte

cennJO 1 9 1 - 1 976», i n Rivista storita italiana, LXXXIX ( 1 977), p. 5 8 5 ss.
1 E. E . Evans-Pwchatd, Witchcraft, Orac/es <md Mag)c among the Azande,
.

Veneza, 1897.
l
I.ondrr::s, 1 9 � 7 .
n i , i n li l!i eM '· A . M:wfnda nç, Witr:hr:mfl i n 't'ttr.ltw ,mr/ Stttt/.t'l l�ll!;l<'t!U/, Londres, 1970;
2 A. Del Col, «La Riforma cattolica nt:l l'ril.lli vista da Pasd1i
K. , I . horna:;, l?dti;n!l!
. .n11/ 1111 I >rl'/h111 ti/ Mrtwt', l.o11<lrr•::. 1 ') / 1 .
'
tonvo/{nO di ,rt11dio ,w Pio Parchini 11cl t:efllt!nrtrio dtillt� na.râlr.t, � . l . n .d . , p , I / .\ �s.,
'c :r, il·l.k111.
r·stx:r i,olnwnl·r· p . I vl,
206 O INQUISIDOR COMO ANTROPÓLOGO CAPÍTULO VII 207

que a analogia entre inquisidores e antropólogos (e historiadores ros dos arquivos, nesta perspectiva, não são substitutos dos gravado­

também) se revela ambígua nas suas implicações. O que os juizes res de som. Secá que os historiadores têm, para além dos estereótipos

da Inquisição tentavam exrorquir às suas vítimas não é, afinal, tão dos juízes, provas suficientes para reconstituir as crenças da feiti­

diferente daquilo que nós procuramos - diferentes eram sim os çaria na Idade Média ou na moderna Éuropa? Estamos obvi�mente

meios que usavam e os fi ns que tinham em vista. Quando estava a perante um problema de qualidade e não meramente de quanti­

ler processos dos tribunais da Inquisição, muitas vezes dava por dade. Num livro bastante afastado das actuais correntes de inves­

mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os tigação, Richard Kieckhefer esboçava uma disti nção en tre estereótipos

seus passos, na esperança, que também ele teria, de que o réu con­ cultos e bruxaria popular, baseando-se numa análise detalhada
. (embora não convincente) da documentação disponível. Curiosa­
fessasse as suas crenças - por sua conta e risco, claro. Esta con­
tiguidade com a posição dos inguisidores não deixa de entrar em mente, a avaliação que fazia das confissões dos réus perante a

contradição com a minha identificação com os réus. Mas não gos­ Inquisição era negativa, se comparada com queixas de pessoas

taria de insistir neste ponto. Um outro tipo de contradição pode anteriormente acusadas ou com depoimentos de tescemw1bas nos

fazer-se sentir a nível i ntelectual. Foi a ânsia de verdade por parte julgamentos9. Segundo Kieckhefer, estes documentos dão-nos uma

do inquisidor (a sua verdade, claro) q ue permitiu que chegasse até imagem mais fiel das crenças da bruxaria popular. Assim, a com­

nós essa documentação extraordinariamente rica, embora profun­ paração por mim anteriormente sugerida (entre os j ulgamentos da
\ Inquisição e as notas de campo dos antropólogos) teria, do ponto
damente deturpada pela pressão psicológica e física a que os acu­
sados estavam sujeitos. Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais de vista do hisroriador, uma implicação negativa: a presença desses

que evidentes ao sabat das bruxas - que era, segundo os demono­ antropólogos mortos constituiria uma intrusão tão grande que aca­

logistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, bava por impossibilitar o conhecimento do pensamento e das cren­
ças dos pobres nativos trazidos à sua presença. ·
?s ré� re p�tiam mais ou menos espontaneamenre os estereótipos ·
mqwsttonrus então divulgados na Europa pela boca de pregadores, Não perfilho de modo algum esta conclusão pessimista. Para
teólogos, jurisras, etc. 1
mostrar porquê, gostaria de ir mais longe nas minhas reflexões
sobre a analogia de que vos estou a falar. As suas bases são tex­
É provavelmente por se tratar de um terreno escorregadio que
muitos historiadores preferem debruçar-se sobre a questão da per­ tuais. Em ambos os casos remos textos que são i ntri nsecamente

seguição (e não sobre os depoimentos dos acusados), analisando dialógicos. A estrutura dialógica pode mesmo ser explícita - é o
amos eras regionais, estereótipos inquisiror i ais, etc. - posição mais que acontece na série de pergunras e respostas que pontuam canto
tradicional, mas decerto mais segura, sobretudo se comparada com um processo inquisitorial como uma transcrição das conversas entre
a tentat iva de reconstituir as crenças respeitames à feitiçaria. Re­ o antropólogo e o seu informador -, mas pode também ser implícita,
ferências ocasionais às bruxas Azande não podem ocultar o facto de como, por exemplo, nas notas etnográficas referentes a um rirual,
serem muico poucos os escudos dedicados à fei tiçaria na Europa um miro ou um utensílio. A essência daquilo a que chamamos
que realmente se inspiraram numa pesquisa antropológica. O debate uma atitude antropológica, quer dizer, o confrontO entre culturas
levado a cabo por Keith Thomas e Hildred Geertz em Tbe journal diferentes, reside numa disposição dialógica. Os seus fundamentos
oflnterdisâpiinary History mostra como é difícil o diálogo entre his­ teóricos, a nível linguístico (e no psicológico), foram apontados
toriadores e antropólogos8. O conceito de prova parece ser a ques­ por Roman Jakobson numa densa passagem em que define «OS
tão crucial neste contexto. Os historiadores das sociedades elo passado dois traços principais e complemencares do comportamento ver­
não podem indicar as suas fontes como os an tropólogos. Os fichei- bal» , dizendo «que o discurso interior é na sua essência um diálogo
<' q u e todo o discu rso incl irecto é uma apropriação e uma remode-

" Cf. l i . Geert7..-K. Thom;1s, <ci\n 1\mhlnl 'nlory of' l < ! · l i i ' Í ! I I I n11d MliJ.:Í<
.
" •

1 1'1 ./tillnlrll r{ ln f<•rdi.ll'if,/irMtJ fli.•·Ji,�·y , V I ( I 1 )'/'>), I ' / 1 .�.� .


CAPiTULO VII 209
208 O INQVISIDOR COMO ANTROPÓLOGO

inquisidores desconheciam completamente. A própria pala: ra he­


lação por parte daquele que cita, quer se trate da ciração de um
t'Jandante era estranha para eles (afinal um sinónimo de feltiCeJ ra
a/ter ou de uma fase anrerior do ego» 10• A um nível mais resrriro,
ou, pelo contrário, de antifeiriceira?) e esteve na base da contenda
Mikhail Bakhtin, ourro grande estudioso russo, salientou a impor­ _
que opôs, em Friuli, inquisidores e benandanti, entre os finais do
tância do elemento dialógico na análise dos romances de Dosroie­
sémlo XVI e meados do século XVII. Com o correr do tempo, o
vsky11. De acordo com BaJch tin, esses romances apresentam uma
poder resolveu esta disputa semântica (o que sem� re acontece, como
· estrutura que ele denomina dialógica ou polifónica: as várias per­
muito bem sabem os que leram Through the Lookzng-Giass, de Lew1s
Carrol): os benandartti passaram a ser feiriceiros 1 2 .
sonagens são vistas como forças confliruosas; nenhuma delas fala
pelo auror, ·do ponro de visra do autor. Não me preocupam nesre .
É verdadeiramente espanrosa a riqueza ernográfica dos julga­
momento as considerações de Bakhtin sobre qual o género li terário
mentos de Friuli. As palavras, os gestos, o corar súbiro do W!;to,
específico a que pertencem os romances de Dosroievsky. Penso, no
até os silêncios - tudo era regisrado com meticulosa precisão pelos
entanto, que a noção de texros dialógicos pode lançar alguma luz
escrivães do Santo Ofício. De facto, para os inquisidores, sempre
sobre as caracterís ticas que de vez em quando vêm à superfície nos
tão profundamente desconfiados, qualquer pequena pisra � od ia c�m-
julgamentos de fei tiçaria feitos pela Inquisição. .
tituir um avanço considerável no sentldo da verdade. Nao e, m� nha
Claro que, nesses textos, as personagens em confliro não se
inrenção afirmar que estes documentos são neutros ou transmitem
enconrravam em igualdade de circuns tâncias (o mesmo se pode . di­
informação objectiva. Devem ser lidos como o produto de uma
\
zer, embora num contexto diferente, a respeito dos antropólogos e
inter-relação especial, em que há um desequilíbrio rota! das partes
seus informadores). Esta desigualdade, em termos de poder (real
nela envolvidas. Para a decifrar, temos de aprender a captar, para
ou simbólico), explica porque é que a pressão exercida sobre os
lá da superfície aveludada do texto, a interac�ão s� btil de ameaça�
réus pelos inquisidores para lhes arrancar a verdade que eles pro­
e medos, de ataques e recuos. Temos, por assJm dtzer, de aprender
curavam era quase sempre bem sucedida. Estes julgamentos rorna­
a desembaraçar o emaranhado de fios que formam a mal a texrual �
vam-se assim, não só reperitivos mas rambém monódicos (para uri­
desres diáloo-os.
b
Recentemente, antropólogos directa ou tndtrecta-
lizar um termo tão ao gosto de Bakhrin), na medida fm que as •A

mente inspirados por Clifford Geertz têm vindo a romar consw:o-


resposras dos réus não eram mais do que o eco das perguutas dos
cia da importância do rexto1 J Para historiadores que habHualm� nrc.:
inquisidores. Em alguns casos excepcionais temos um verdadeiro
(senão exclusivamente) trabalham com textos isto não constitUI e m
diálogo: podemos ouvir vozes distintas, podemos detectar um choque
s i mesmo novidade, mas a questão não é assim tão simples. T�nJo
entre verdades diferentes ou mesmo contraditórias. Nos j ulgamen­
tomado conhecimento· do aspecto texrual do rrabalho etnog �afiu>
tos de Friuli, que estudei há muitos anos, os benandartti faziam
(«Que faz o etnógrafo ' Escreve», lembra ironicamente �b. ffiml
longas descrições das batalhas noc rurnas que em espírito rravavam
Geertz)'\ impõe-se a superação de uma epistemologia posltiViSl"íl
ingénua, ainda partilhada por mui tos historia � ores. Não há :e�w:;
contra as bruxas para a fertilidade das colheitas. Para os inquisido­
res, tudo isro soava como uma descrição disfarçada do .rabat das
neutros · até mesmo nm inventário notanal 1mpltca u.m cod •)•;o,
bruxas. E, apesar de esforços continuados nesse senrido, foram precisos
gue tei � de ser decifrado: <<Qualquer discurso indirec to» , como
cinquenra anos para preencher o vazio entre as expectativas dos
dizi ;J a ko bso n , «é uma apropriação e uma remodelação de qucnt
inquisidores e as confissões espontâneas dos benandanti. Esse vazio
cita.» A r é aí tudo bc:m. ·M�t<; quererá isto dizer, como pretendt:r 1 �
e a resistência por parte dos benandartti às pressões inquisi roriais
ou p el o m<:: tH)S j nsi n u a rn ;.ti�-Çuns historiadores <:: antropólogos rn;us
indicam que estamos perante um estratO cultural profundo que os

1 C, ( ; i m l 1 1 1 1}' , ·n.. Ni1:ht /1.1/t/, q , l h d 1 1 1 1111n·, I 'IH '1


�o R. Jakobson, «Laoguage in Opcrati o n » , in Mlemx11s 1\lc�>:rmdra K11yr, 1 1 , 1 ( C : n·rl/, '/"/•1 1!1/1'1/'' '1/1/tl/1 11/ ( 1111111"
L'mJCtttflfe de /'es/11'11, Paros, 1 9<1/r, p. 2 7 .'> . l·l
J/1/ofllf/,
'1 M. i"h k h e i n , Oo.rtoÍ!:11.riii, ' l ' m i m , l ')_( ,ll ,
210 O INQUJSIDOR COMO ANTROPÓLOGO CAPÍTULO VII 211

recentes, que um texto é apenas a prova de si próprio, das suas auréola mítica. Ambas afirmam ir todas as qui ntas -feiras a uma
próprias categorias? O cepticismo requintado de que enferma a reunião presidida por uma senhora misteriosa, Madona Horiente.
crítica da chamada «falência referencial» afigura-se uma armadilha Havia lá toda a espécie de animais, à excepção do burro e da rapo­
perigosa15. Mais uma vez a comparação entre inquisidores e an­ sa; enforcados e decapitados também faziam parte da reunião; res­
tropólogos parece proficua. Conforme mostrei anteriormente, uma suscitavam-se bois, etc. Mas o que eu gostava de discutir aqui era
realidade cultural contraditória pode transparecer mesmo de textos a líder feminina, Madona Hotienre. Em 1 390, uma das mulheres,
controlados como os dos processos da Inquisição. Esra conclusão Sibillia, disse ao inquisidor Beltramino da Cernuscullo que seis
pode ser também extensiva aos relatórios etnográficos. anos atrás tinha confessado ao seu antecessor, Rugero da Casale,
Um céptico extremista poderia achar ilegítima a palavra «rea­ que costumava ir «ad ludum Diane quam appelant Herodiadem»
lidade» ou mesmo «realidade cultural» ; mas o que temos num (ao jogo de Diana, a que chamam Herodíades), saudando-a com a
texto são vozes contraditórias e não realidades contraditórias. Qual­ expressão «bene stage (fica bem), Madona Horiente» . Esta série de
quer inferência deste tipo seria injustificada. Refutar uma tal nomes pode parecer um pouco confusa, mas a explicação é bas­
objecção pode parecer perda de tempo; no fim de contas, a possi­ tante simples. Tanto Sibillia como Pierina sempre se referiam a
bilidade de integrar textos diferentes para escrever história ou et­ Horienre: a identificação desta com Diana e Herodíades fora ob­
nografia reside na sua referência comum a qualquer coisa a que viamente sugerida pelo ioquisidor Ruggero da Casale, em cujo
teremos de chamar, faute de mieux, «realidade exterior». Penso, no \ texto eram mencionados os nomes de Diana e Herodíades. Escusa­
entanto, que rais objecções cépticas apontam, embora de forma do será dizer que o segundo inquisidor, Beltramino da Cernuscul­
disrorcida, para uma dificuldade que é real, e de que vou dar um lo, tomou esta identificação como um facto adquirido e atribuiu-a
exemplo esclarecedor. tacitamente a Pierina: foste - reza a sentença - <<ad ludum Diane
No final do século XIV, em 1 3 84 e 1 390, duas mulheres, quam vos appelaris Herodiadem» (ao jogo de Diana a que chamais
Sibillia· e Pierina, foram julgadas pela Inquisição de Milão. Os Hetodíades)18. É evidente que estamos perante a habitual projecção
processos perderam-se; restam apenas duas sentenças circunstan­ de estereótipos inquisitoriais nas crenças populares, mas neste caso
1
ciadas (uma delas citando in extenso uma outra anterior). Estes do­ as coisas são mais complicadas. Nestas figuras femininas da reli­
cumentos foram descobertos e analisados por Ettore Verga num gião popular podemos detectar, subjacente, uma inegável unidade.
ensaio brilhante, escrito nos finais do século XIX16. Posteriormente Perchta, Holda, a dama Abonde, Madona Horiente, aparecem-nos
foram estudados por diversas vezes e de diferentes perspectivas. No como variações locais de uma deusa feminina única, profundamente
livro já citado, European Witch-Trials, Richard Kieckhefer inter­ ligada ao mundo dos mortos. A interpretatio romana ou bíblica (Diana
pretou-as como provas da existência de « festejos ou riruais popu­ ou Herodíades) sugerida pelos inquisidores não seria afinal uma
lares» 1 7 • Esta afirmação aparece-nos como uma homenagem ines­ tentativa de penetrar nesta unidade subjacente?
perada à famosa «tese Murray » , segundo a qual rinha realidade Não quero com isro sugerir que os .inquisidores fossem de al­
física o sabat das feiticeiras. De facto, as confissões destas duas gum modo os precursores da mitologia comparada. Aquilo que
mulheres milanesas estão cheias de pormenores, envolvidos por uma pretendo salientar é um facto ainda mais .delicado: a existência de
uma relação de continuidade en t re a nossa mitologia comparada e

1' C . Ginzburg, «Prove e possibilit», posfácio à ccach\ção italiana de


N. Davis, The Return of Martin Gmrre, Turim , 1984. "' Para uma (nem sem pre satisfatória) transcrição das sen tenças milanesas,
16
E . Verga, «Intorno a due inediti documenti d i sr.r<·�heria m i l ane�c dd ver l.. ML1raro, l.tt SiJ(IWtt:l dd F.ioco, M i lão, 1 976. pp. 240-24 5 . A pretensão de
secolo XIV», in Rmdiconti dei R. btitu/o T.ombr.wdo di Jâm:r L' /t'it,.n·. S. [ 1 , 'i !. , l j LH' ns pt�\O;t� n>nlllli'> duu i !.IVo ll11 � ,/olllillll l11di l l crodí:td<·s !"".,.,.,. l.t<:Sit' caso
1989, p . 165 ss. i n, l l :,rr•i l l : o v d . 1\ i < l· · " i l l lt '\' " d < · M01c l r • t 1 . 1 I lo' i''"' ' ' i " ' l! • ' : " " l "i�.idor�.� n:oo (;
1 7 R . Kícckhekr. U.twojJean, cir., P l ' · .' I · .' .! . 11)('11• l<>ll lil.c I "''' l•. ,··· l · l wl < · t
212 O INQUISIDOR COMO ANTROPÓLOGO CAPITULO VII 213

as interpretações dos inquisidores. O que eles faziam era traduzir, espaços d e terra ) 2° Mas Herolt não citou o texto d o Canon lite­
. . . .

quer dizer, interpretar, crenças que lhes eram estranhas para um ralmente: usou-o como quadro de referência, ora suprimindo, ora
código diferente e mais claro. O que nós fazemos não é assim tão acrescentando pormenores com base na sua experiência pessoal, no
diferente, nem a nivel dos princípios nem a nível da prática, por­ seu trabalho de campo, por assim dizer. A alusão a montarem
que o material de que dispomos esrá, neste caso, contaminado pela certos animais desapareceu; foram incluídos sinónimos de Diana,
interpretação que eles lhe deram. Em certo sentido, a nossa tarefa de tradição alemã, não só pelo autor mas rambém pelos edirores; a
torna-se mais fácil quando os inquisidores não percebem - é o Diana, por seu lado, foi atribuído um exército (cum exercicu suo).
que se passa com os benandanti. Quando eles tinham mais facili­ O último pormenor é aquele que mais me inttiga. Não consegui
dade em perceber, o interrogatório (pelo menos em certa medida) encontrar-lhe qualquer paralelo, nem em textos clássicos, nem em
perdia os seus elementos dialógicos. Neste caso a fonte é menos rextos medievais. Pode, no entanro, explicar-se facilmente no contexto
valiosa, menos pura. do folclore europeu, relacionado com as crenças de Wild Horst ou
Afirmei: «contaminado pela interpretação que eles lhe deram». Wild Hunt21. No rexto de Herol t, Diana aparece-nos como con­
Trata-se de uma afirmação bastante injusta para com a análise dutora de um exército de almas penadas. Eu viria a tomar este
antropológica dos inquisidores. Devia acrescentar: «mas também pormenor, numa clara bastante anterior, como prova da hipótese
clarificado» . Segmentos dispersos da inrerpreração, sugerida por por mim formulada de uma relação enrre este estratO de mitos
inquisidores, pregadores, canonistas, podem fornecer-nos elemen­ pré-sabáticos, já registados no Canon episcopi, e o mundo dos mor­
tos preciosos, que irão preencher as lacunas da nossa investigação. tos22. Pode criticar-se o facto de o meu quadro de referências ser
Vou dar-vos outro exemplo. O frade dominicano Johannes Herolr coincidente com o de inquisidores ou pregadores como Johannes
incluía na sua colecção de sermões uma longa lista de gentes su­ Herolt, só que eles não eram intelectuais inocentes: tentavam, mui­
persticiosas. Entre elas, «OS que acreditam (credunt) que durante a tas vezes com sucesso, induzir as pessoas a acreditar que o que eles
noite Diana, em vernáculo chamada Unholde, quer dizer, die se­ ensinavam era a verdade. Será que esta conrinuidade enrre provas
lige Frawn (as mulheres abençoadas), marcha de noi re. com o seu e interpretações primitivas quer dizer que nos deixamos inevita­
exército, percorrendo grandes distâncias (cum exercitu suo de nocte velmente enredar na teia de categorias que os antigos antropólogos
ambulat petmulta spacia)». Esta citação foi extraída de uma edi­ - pregadores e inquisidoces - usavam?
ção dos SennoneJ de Herolt, impressa em Colónia, em 1487. Edi­ Esta questão reflecre, a um nível mais circunscrito, o tipo d('
ções mais tardias, publicadas em Estrasburgo, depois de 1478, e objeco do cepticismo extremisra que referia anreriormente. Deste
em 1484, acrescentariam aos sinónimos de Diana os de Fraw Berthe modo a crítica da « fa iácia referencial>> perderia as suas implicaçór·�
e Fraw Helt (como substitutos de Unholde)1 9 . O texto .de Herolc epistemológicas universais, apontando só para algumas caracretísticas
repercutia obviamente o famoso Canon episcopi: há mulheres que específicas do material de investigação com que estou a trabalhar.
«credunc se er profitentur nocturnis horis cum Diana paganorum Mas nem sequer este cepticlsmo moderado se j ustifica. Podemos
dea et inn umera mulcirudine mulierum equitare super quasdam testar as nossas interpretações num contexto comparativo y uc (
bestias, ec mui ta tetrarum spacia in tempestae nocti s silenrio per­ mui�;o mais lato do que o contexto de que os inquisidotes dispu ..
transire. . . » (acreditam e confessam em horas nocturnas montarem
cercos animais com Diana, deusa dos pagãos, e com uma enorme J.n Tradu<;:to in,r;lcsa de ]. B. Russd, Witchcmfl in th11 Middlc Ag�.r, .fr,,m <:

quantidade de mulheres percorrerem, no silêncio da noite, grandes Londn:s, 1 972, p. /G.


"' V<·c, l'IH n· outno:., 11.. Endrn, I >it· .\'"!�<' 1111111 tl'iLtiL"flj,,grJ, Fmnkfurc, a. M . ,
I ').) \ ; K . M , . i ::·wn, I li<· St�.�tll t'otll \l"lt'lllll'!l 1 1<'1'1' 1111tl \\''ilt!m ./<�.�c,·. Muni q tH',
'9 .J. Herolc, Sermones tk temjJOI't (serm. 41). Também conferi as segui ntes i, W , l • H ' > ,
edições: Nuremberga, 1480, J 4R t , 1496; Estmsbu rgo, I IÍ \)9, 1 5 0 3 ; Ruão, " ( ' , ( ' " ' 'd ' ' "'ll · l ' t o " " l 't l ""� · . t i l ' 1 , · H•t l t l •ll l u , l 1 1 .-1 1111.1/n JISr ; , 1'1, l ' lH I ,
1 5 1 3. i ' • I l i t�<·
214 O INQUISIDOR COMO ANTROPÓLOGO

nham. Além disso, podemos tirar partido daqueles casos preciosos


em que a ausência de comunicação enrre juízes e réus permitia,
um tanro paradoxalmenre, o aparecimento de um verdadeiro diálogo
- no sentido bakhtiniano de choque de vozes conrradi tórias. Fiz
referência ao caso dos benandanti e considerei-o «excepcional>>. Não CAPÍTULO VIII
é, no entanto, único: a valiosa documentação sobre as donne di fuori
(mulheres de fora) sicilianas, encontrada em arquivos espanhóis, há Ekphrasis e citação*
alguns anos, pelo folclorisra dinamarquês Gustav Hennigsen, de­
monstra que, na Europa do século XVI, havia regisros de ourros
casos de crenças ainda não atingidas pelos estereótipos inquisiro­ 1 . Normalmente, os historiadores não se mostram muito inte­

riais23. De qualquer modo, a relat1va ocorrência de um fenómeno ressados em explorar as implicações teóricas do seu trabalho. Os

não pode ser interpretada como indicador da sua relevância histórica. colaboradores de jornais como History and Theory são a maior parte
Uma leitura atenta de um número relativamente pequeno de tex­ das vezes recrutados entre os filósofos, que debatem questões de
história de um ponto de vista um tanto distanciado, dado que
tos respeirantes a uma crença determi nada pode, a meu ver, dar
mais fruros do que um amontoado de documentação repetitiva. estão mais familiarizados com livros de história do que com a prática

Para bem ou para mal, os historiadores, que estudam as sociedades


\ efectiva da investigação histórica. Por outro lado, as reflexões sobre
do passado, não podem apresentar o mesmo tipo de elementos de metodologia, mesmo dirigidas por historiadores contemporâneos,
prova que os antropólogos apresentam, ou que os inquisidores apre­ parecem às vezes ingénuas ou confusas a espíritos filosoficamente
senraram. Mas, para a interpretação desses elementos, eles têm algo formados. Este divórcio entre a prática e a teoria explica porque
a aprender com ambos. cerras discussões sobre conceitos tais como causalidade narra­
'ção, erc., são - com algumas excepções - um pouco d cepcio­ �
nantes.
Como Mareei Graner costumava dizer, jogando com a etimolo­
gia grega da palavra «mérodo», «la méthode, c'est le chemin apres
qu' on 1' a parcouru» 1 • Para dizer algo de significativo sobre o mé­
todo histórico deveriam analisar-se não só os resultados finais mas
também o caminho que se percorreu para chegar a eles. Se assim
não for, surgirá uma imagem distorcida do rcabal ho dos historia­
dores - ou demasiado pura, ou demasiado simplista, ou ambas as
coisas ao mesmo tempo. Depois do aparecimento, em 1 942, do
· ensaio de Hempel The Function of General Laws in History, muitos
artigos 'e muitos livros têm sido escritos discutindo a questão de
saber se os juízos do his toriador implicam algum principio de ge­
neralização que possa fundamentar o carácter cien tífico da história.
Tais discussões têm sido normalmente baseadas em frases, suposta-

23 G. Hennigsen, «The Ladies from Outside: Fairies, Wircbes and Povec­ ' Yt·rs:io n:mock·lada d,· <1111 trabalhn antl'riorrncnt{' p<� hlicado t:m Tjjdschrift
cy», in Early Modern Síâiy, a ser publimdn ua� at:cns elo m16quio svbfl· h:iriça . . t'O/JI" (liJIJ.rl!f!c,�o. I 'JIH\, l 'l'· � 1 •1
ria rea l i zado, e m Estocolmo, e m 1 9R<I. 1 ' r/, 1'>11'<'., l ' ltí l , I ' · ;"l,
< "it11do por I ; , 1 ) 1 1 1 1 1 1 til 111 r ,,.,ll,l;tl I 1111111
216 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAJ>h'Ul.O VIII 217

mente np1cas, extraídas de livros de história bem conhecidos que Aristóteles faz notar que Heródoto poderia ter escrico em verso
sem curar de saber que espécie de investigação concreta está por sem deixar de ser um historiador - net medida em que fez sobre
detrás deles. Mais recentemente, foi sugerida uma abordagem a realidade afirmações que considerava verdadeiras.
semelhante da metodologia histórica, partindo, wn tanto paradoxal­ Hoje em dia palavras como «verdade» (ou « realidade») estão
mente, de ptessuposros diferentes, para não dizer opostos. Um ensaio fora de moda. Os historiadores· aprenderam com os fil.ósofos, os
como o de Hayden White, «The Burden of History», publicado, críticos literários e os antropólogos simbolistas a evitar toda a espécie
em 1966, em History and Theory, pode ser rerrospecrivamenre en­ de ingénuas «falácias referenciais». A distinção entre narrativas de
carado como um sinroma do aparecimento de uma nova atmosfera ficção e narrativas históricas está a tornar-se cada vez mais confusa.
inrelecrual. «Este campo supostamente neutro entre a arre e a ciên­ Muitas objecções, ranto de natureza intelectual como moral, se
cia•>, escreveu Whire, «que muitos his toriadores do século XIX rêm levantado contra esta atitude neocéptica. Não simpatizo com
ocuparam com tanra autoconfiança e tanto orgulho, dissolveu-se ela mas, como disse uma vez Bertolr Brecht ao seu amigo Walter
com a descoberta da natureza criativa que é comum às realizações Be �jami n, ·«devemos avançar partindo de más coisas novas, não de
da arce e da ciência. » 2 O pêndulo tinha começado a deslocar-se do coisas boas do passado» . Neocépticos ou derrotistas obrigam os
neoposirivismo para uma atitude agressivamente anti positivista: mas hisroriadores a olhar mais de perto para alguns dos pressupostos
a ênfase esrava ainda (e aré com intensidade maior) no produto fundamentais do seu trabalho.
literário final da acrividade do historiador. Alguns anos mais tarde, \
em 1973, Hayden White tentou demonstrar, no seu livro Metahis­ 3. A nível formal, não há a menor diferença entre uma frase
tor-y, que as obras históricas escritas por Micheler, Ranke, Marx,
falsa e uma frase verdadeira. O mesmo pode dizer-se quanto à
Tocqueville, Burckhardr, tinham sido inspiradas por modas espe­ relação entre as narrativas de ficção e as narrativas históricas. As
cificamente lirerárias. «Todos os grandes historiadores e filósofos potencialidades literárias desta analogia foram brilhantemente
da história que tenho estudado» , lemos no final do livro de White, exploradas por Roger Caillois nwn conto (Ponce Pitate, 1961) cen­
« revelaram um ralento para a narrativa histórica 1'ou uma firmeza rrado sobre as incertezas morais sentidas por Pilatos duranre a longa
de visão que rornaram a sua obra um sistema de pensamento noite que passou anres do julgamento de Cristo. Para convencer
eficazmente fechado, incomensurável com quaisquer outras que Pilacos a condenar Cristo à morte, uma das personagens fez uma
surgissem em oposição a ela. »3 A partir do momento em que longa série de profecias, incluindo igualmente acontecimentos
White decidiu não fazer caso da ínteracção entre «imaginação importantes e triviais (rodos verdadeiros) que se seguiriam à morte
hisrórica» e prova histórica, entre um artefacto li terário e história de Cristo. Por fim, inesperadamente (pelo menos para o leitor),
como actividade de investigação, a sua conclusão não era impre­ Pilares decide libertar Crista. Os seus discfpulos repudiam-No, e
visível. toda a história do mundo segue um caminho diferente. A conri­
guidade entre ficção e hisrória cria um efeito de estranheza inquie­
2. White gosra de nos lembrar que rodo o trabalho histórico é tante, gue faz lembrar aqueles guadros de Magritte que mostram
«uma estrutura verbal na forma de wn discurso em prosa narrati­ semcinterrupção uma paisagem e o s�u reflexo num espelho parrido.
va»4. Nós preferiríamos evocar aquele famoso passo da Poética em Dizer que um texro hisr6rico, como narrativa que é, partilha
alguns elementos com um texto de ficção não passa de um truísmo.
2 Cf. H. Whice, «The Burden of Hisrory», in Hi.rt� cmd Theory, V, 1966, É muito mais i nteressante, penso eu, dar um passo em frente pro­
pp. 111 ss.,parricularmente p. 112. curando indagar porque se percepcionam como reais os factos contidos
� Idem, Metahist()ly. Tbe Historicctf [mo(lgination í11 Nimtecnth ·Cl!lltllry /]tl.rope, num texto histórico. Este efeito é normalmente produzido por ele­
Balrimore, 1973, p. 432.
mentos que tanto podc·m ser extratextuais como textuais. Concen­
4 Ibidem , p. lX
tr;J r- lll(' ·t'Í �ohH· CJ.': M t i l l H ls, !"('l l l ; l t l l o ;lpl'('S< " n m r n l g uns dispositi-
218 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPÍTULO VIII

vos, sugeridos por convenções literárias, com os quais historiadores tividade, energia» ; enargeia significa «clareza, nitidez, viv aciJ ad t' · · .

clássicos e historiadores modernos procuraram produzir aquele ef


fet O papel fundamental desempenhado pela tradição ari s to télica 11:1

de vérité que tem sido encarado como elemento inerente ao seu formação do nosso trabalho intelectual explica a sobrevivên<:Í<\ c lc­

trabalho. energeia em tantas línguas europeias (energia, énergie, energy, ti"<". ).


Enargeia, pelo contrário, deixou de set uma palavra viva. Tentemo::

4. Tomemos um fragmen to das Histórias, de Políbio (XXXIV, reconstituir o seu significado - ou melhor, o conjunto de s i gn i h

4, 3), ci tado por Estrabão. No i ntui ro de demonstrar a veracidade cações que lhe estão ligadas.

de Homero, Políbio escreve: <<Agora o fim almejado pela história é Em Homero não se encontra enargeía mas enarges - urn adjvc
a verdade, e assim vemos o poeta a mencionar no Catálogo d.os tivo referido à «presença manifesta» dos deuses (Il., XX, 1 3 1 ; ()ti,
Navios os aspectos pecul ia res de cada l uga r , dizendo de uma ci­ XVI, 1 6 1 ), e relacionado com argos, significando por sua vez « b l"<l l l< . ' ·
dade que é "rochosa" , de outra que está "na fronteira", de outra dato» � como um ganso, como um boi - o u «ligeiro >> . S t: ,l � tl l l > 1 . .
que "cem muitos pombos", de outra que está "à beira-mar"; e o Piette Chanttaine, «il faut admettte à 1' origine une no t io 1 1 r ( 1 1 1
fim que pretendeu atingir com a localização é a vivacidade, como exprime la blancheur éclaranre de l'éclair er en même t:em p�: I n
nas suas cenas de combate, enquanto o fim do miro é agradar vüesse7 ''. Consoante os contextos, enarges pode ser traduzido 1 •1 11
ou maravilhar .. . » Na oposição entre história e miro , portanto, «claro» ou até «evidente» . Tal como enargeia, está semp re rd(·rld� >
Homero está seguramente no campo da história (e da verdade), ao campo da experiência direcra. Tomemos um outro fragn � < 'l t l � >
porque o objectivo (te/os) da sua poesia é a «vivacidade» (enar­ ele Polib.io (XX, 1 2 , 8): «Avaliar as coisas a partir do que se O I IV I I I
geian). dizer não é o mesmo que avaliá-las a partir d o que efec ti vanw l i l l '
· se presenciou. Há nisto uma grande diferença. Em rodos os as� ' " 1
Em alguns manuscritos encontra-se energeian em vez de enar­
geian (sendo o último, em conformidade com o texto, uma alterna­ tos, uma certeza fundamentada no testemunho dos olhos (lw I 1 1 1 .1

tiva muito mais convincente5). A mesma confusão ocorre na tradu­ ren enargeian piseis) é duma enorme importância.» Comp:u',ll l c l"
este passo com o de Homero aci ma referido pode-se ver: lf'"
ção manuscrita dum passo da Retórica, de Arisc6 eles ( 1 O b, 36), as­ � I)
sim como em algumas discussões dos séculos XVI e XX6• As duas em ambos os casos se presume um contexto relacionado c·c u 1 1 u

palavras, todavia, nada têm de comum: energeia significa «acto, ac- conhecimento histórico; 2) que em ambos os casos se toma m. rn:''''
como garantia da verdade his tórica.
Supunha-se nos tempos clássicos que um hisroriador l f t l l l',
1 Cf. F. W. Walbank, A Hstorical
i ComrJt11nta1-y on Polybim, III, Oxford, mitia a verdade elo que dizia fazendo uso da ertargeia para 8<'1J:;d,,
lizar e persuadir o leitor. Ertargeia era, de facto, um conn·i 1 o , , ,
1979, p. 5 8 5 (baseado em P. Pédech, La méthode hiJtoriqtte de Polybe, Paris, .
1 964, p. 5 8 3 , nora 389); idem, A Hi.rtorical Commentaty, cit., n;· Oxford, 1967.
nico: segundo o autor do tratado Do Sublime (XV, 2), ;_L l 'a l .• v 1 ,,
p. 496 (e P. Pédech, La méthode, cit., p. 2 5 8 , nota 1 9). Ver, contudo, A. Roveri ,
Stttdy stt Polibio, Bolonha, 1964, pp. 75-77, e acima de rudo G. Schepens, «Emphasis define a aspiração específica dos oradores, naq ui l o qw:: os d i::1 i t • ll ' "
und enargeia in Polybios' Geschichtsrheorie», in Ri1JiJta storka dell'arttichità, 5 , dos poetas, que procuram antes fascinar. Na tradição J't'Ulfi\ o i 1.11 i
1975, pp. 1 8 5-200. Para uma leitura diferenre de XXXIV, 4 , 3 , de Políbio r·na encontramOS V<Í.riaS tentatiVaS de craduzÍt 0 !'CI:ITlO gl't',l\<1 t'l/,1/
(energeia em vez de enargeia), cf. K. Sacks, PolybittJ on the W1·iting of HiJto1:y, Ber­ geia. Quinriliano (lmtittttio Ortttoria, TV, 2, n3) sug<.:r(' como c·c pt�
keley, 1 98 1 , p. 154, nota 80.
valente «eu iclencia i n narration<· » , ..'i'.a na narrariv;c .. .
«vivt ' � '· " ' ' ' '
6 Cf. A. Wartelle, Lexique de ta «Rhétoriqtte» d'AriJtoÚ, Paris, 1982,
pp. 142, 144; P. Pirani, Dodiâ capi pcrtimmti all'arte historica dei Mascardi, Ve­
neza, 1646, pp. 56, 84 (possivelmente um erro de impressão); S. Leontief Al­ 1 ( : 1 . P . C:h,ll l l l l l i nc·. I lll ilfi!I/J,Iiu• rfV!Indfi,�Íilfl' tlt /,J I.JJtgm• .<! 1'1'11/lir, 1 . 1 ' l rh,
pers, «Ekphrasis and Aesrheric Attitudes in Vasari's Livcs » , in )o11mal 1!{ the I Wtll. J 1 l l l , 1 . y,,,,, ,,, ' '"" I "''" I l M u l dc•t , • < ;o< t o · t .llli'llf'c•••f•,c·n , , , l hu 1111>1
Warb11rg and Courta11ld lnstitmes, 23, 1 96 0 , p. 194· , nota I H , c l '·t·utpado por ( lc l y•,>�'f ' " · 1 1 1 /\IJI'I'!IIdlo 1 Mll l o /U/1, / ' I , ' ' I ·1, FJ/tll.l!<'> l(,fp t' lll"lll lon.ido 1 "11
F. Junius, Tbe Painting of the l wármt.r, Londn:s, I<• ·iH, p . .·�oo (m�rp)ct): ma·: Vl'j<t­ I : 1 1 , M l l)>, l i < t , Plo /IIJIIII•IIr • llnlcll ll(ll ,/, /, I INI/IH/c•�lr ll{tflo(l•• .f, ., ( o l o l \ , l '" '· f ·t, 1 • 11 I
-se O texto original, De /IÍcttmt t'CtCrf/111, ,1\ m s l c•ro l:io, H i;\"/. 1 I H', (1'11,11:,:1•ir�).

220 EKPHRASIS E CITAÇÃO
CAPITULO VIII 22 1
quanto me é dado perceber, explica ele, «euidentia in narraríone
escreveu um longo rrecho sobre margeia11 • Este efeito estilístico,
. . . esc quidem magna uircus, cum quid ueri non dícendum, sed
diz ele, nasce «duma narração exacra, que não descuida nenhum
quodam modo eriam ostendendum esc (viveza na narrativa. . . é,
pormenor e que não suprime nada» . Citando uma comparação de
sem dúvida, uma grande qualidade sempre que algo de verdadei­
Homero (Il., XXI, 257), explica que «a comparação deve a sua
ro deve ser não apenas dito mas, de cerro modo, mostrado)» . Nou­
vivacidade (enargeia} ao facro de todas as circunstâncias concomi­
tro passo (VI, 2, 32), observa que Cícero usava, como sinónimos
tantes serem mencionadas e nada ser omitido>> . Mais rarde, porém,
de ertargeia «inlustratio et euidentia . . . quae non tam dicere uiderur
Demétrio alargou a sua definição, notando que mesmo as palavras
quam estendere, et adfectus non alirer quam si rebus ipsis in tersi­
cacofónicas ou onomatopaicas, como as usadas por Homero, eram
m�s seq_ue �tu� (que parece não tanto dizer como tornar real e cujo
exemplos de «vivacidade>>. Comentários deste tipo não deixam de
efe 1ro nao e d1ferente do que teríamos se estivéssemos fisicamente
estar relacionados com o tema de que estamos tratando - a história
presentes» )8. De facco, Cícero (Partitiones Oratoriae, 20) define in­
e os seus métodos. A identificação entre margeia e acumulação de
lustris . . . oratio como « haec pats orationis, quae rem constituat paene
pormenores lança uma luz inesperada sobre aquela aspiração pe­
a � te oculos (esta característica do discurso que quase põe as coisas
culiar ao hisroriador grego: ter registado todos os acontecimentos
d1ante dos olhos)» . O autor anónimo da Rhetorica ad Hermnium
(ou todos os acontecimentos relevantes) na sua narrativa. Numa
(IV, 68) usava termos semelhantes para definir demonstratio: «De­
\ sociedade sem arquivos, em que a cultura oral desempenhava ain­
monstratio est, cum ita uerbis res exprimitur, ut geri negotium et
da um papel predominante, Homero proporcionava aos historiado­
res �nte oculos esse uídeatur. .. Stacuit enim tem cotam et prope
res um modelo, não só estilístico mas também cognitivo12.
pon1 t ante oculos.»
Podemos lembrar aqui o famoso capítulo que abte aquele livro
Demonstratio. Os equivalentes da palavra latina nas modernas
fecundo, Mimesis, em que Erich Auerbach confrontava dois tipos
línguas europeias - demonstração, démonstration, dimostrazione . . . -
diferentes de narrativa: a abundância analítica de Homero e a so­
oculram o seu núcleo rerórico sob um véu euclidiano. Podemos
briedade sintética da Bíblia. O papel desempenhado pelo estilo
ver, no entanto, que demonstratio implicava o gesto do orador apon­
narrativo de Homero no aparecimento de uma nova maneira de
tando para um certo objecto inexistente, tornado visível - marges
representar o cotpo humano, assim como no aparecimento da história
- ao seu auditório através do poder quase mágico das suas pala­
como gênero literário específico, foi posto em evidência, respecti­
vras9. De modo semelhante, o historiador estava apro a transmitir
vamente, por Ernst Gombrich e Hermann Strasburget13. Este último
a sua própria experiênca - directa, como testemunha, ou indirec­
realçou nitidamente as implicações teóricas da enargeia1 4 • Segundo
ra - pondo uma realidade invisível debaixo dos olhos dos seus
·7 l �ítores. Enargeia era um meio de realizar autopsia, ou seja, visão
.
on
l i Cf. W. R. Robercs, Demetrius
• \ daecta, pela acção do estilo10. Style, Híldesheim, 1969 (1." ed. 1902),
pp. 209 ss.
Veja-se também D. M. Schenkeveld, Studies in Demetriu.r on Style,
Amsrerdão, 1964, p. 61; B. Weinberg, «Translarions and CommenÚries of De­
5 . Também o autor do famoso tratado Do Estilo - Demétrio
meuius o� Sryle ro 1600: a Bibliography» , in Philological Q11artedy, XXX (Outubro
durante muito tempo identificado com «Demetrius Falereus» _'
de 195 l), n.0 4, pp. 3 S 3-80; Catalogm tramlaJionum et comentariorum. . . , ed. por
P. O. Kcísreller e F. E. Cranz, li, Washington DC, 107 1 , pp. 27-41 (B. Wein­
c
Cf. Qui � riliano, lnslitNtion Oratoire, como IV, l ivros VI e VII, ed. por berg); G. Morpurgo-Tagliabue, Demetrio: del/o stile, Roma, 1980.
1 7 Cf. L. C'lnfora, Totalità e selezione mlla storiografia ciamca, Bari, 1972.
J. Cous ln, Pans, 1977, pp. 194-195 (o edíror assinala juscamenre o papel de­
·� Cf. H . H. Gom br ic h , Arr. rmd Illusion, Londres, 1962, .pp. 1 10 ss.
sempenhado pelo conceito de margeia no pensamento histórico gr('go e romano).
9 Cf. J. de Romilly, Magic and Rhetoric in At1âcnt Grcot:e, Cambcidge) Mass. , . L"hichte durch die antike
1 � Cf. l-1. Srrashur!\t'r, Die Wc.rcr�sbe..-t irmmmg det· Gllr

1975. (,'ntbil'biJI< hrrd}(mg , W i•·:;l M< l<-1 1 , l ')7 H (Si 1 Wnl(slx-richtt: de r wissenschaf tlichen
lo Cf. , sobre esre conceito, G. Srhepl'll.� , /.' �t/.llt/Jj,.riev r/. 111.1 {, , lilfthorlc tle.r bi.r­ C ; , .,ellsc l w l l 1111d dc·1• .Jol1111111 Wnl l'l\1111� ( ; oc·t ll(' I llliv<·rs i l a l l'ranldi1r1/Ma i n , nand
tnriefiJ l!,rrtr.)' rl11 V'"" .ried� m.�tmt .f. <:., llrux1·lw�. [ I)HO. • . . Jul"I'�IIIJ\,
. l ' !( d o . Nt 1 1. 1 '1'· / ! ! , 110111 I . / 1 ! , 11 11111 I N 1 1 nlil I W • ·�p•·•"l ivn rpai ..l
l i H I I IIld,l. \'1 Jl1 ��· E l h tl'l . / >,• ,,., . ,h/JI /n:rlllml ,/,1 'f 1 1 1111• , llt dhtl 1 · 1 � 1;
222 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPÍTULO Vlll 223

ele, o conceito adquiriu na época helenística um significado novo, - uma demonstratio apontando um objecto invisível tornado
-

mais técnico, quando historiadores como Durius de Sarnas e o seu visível, palpável, até ao «cúmulo da enargeia» , pelo podet da
continuador Filarcos criaram uma nova espécie de historiografia, ekphrasiJ. Podemos agora perceber porque é que Plutatco, no seu
inspirada nos poetas trágicos e centrada nos efeitos miméticos0 . tratado Sobre a Fama elos Atenienses, pôde comparar uma pintura de
Eufranor, representando a batalha de Mantineia, com a descrição
6 . Até agora, a enargeia tem surgido como um conceito situado da mesma batalha feira por Tucídides. Depois de ter louvado deste
na fronteira entre a historiografia e a tetótica. A esta átea semân­ último a «vivacidade pictórica» (grapbike enargeia), Plutarco demo­
tica há que acrescentar a pintura, é o que se pode inferir duma ta-se a explanar as implicações teoréticas desta comparação. Comen­
comparação existente num diálogo de Platão, o Político: « . . . A nossa tando o famoso dito de Simónides sobre «a pintura (como) poesia
conversa, tal como o retrato de uma criatura viva, parece ter um que não fala e a poesia (como) pintura gue fala», escreve: «Quanro· 'i
esboço bastante bom, mas não ter ainda recebido a vivacidade (enar­
geia) que lhe vem dos pigmentos e da combinação das cores. » Estas
implicações espec ífi cas e quase técnicas da enargeia ressaltam ple­
às acções que os pintores representam como se estivessem a decor­
rer, narta-as e regista-as a literatura depois de tetem decorrido.
Mesmo quando o artista, com a cor e o desenho, e o escritor, com
J
namente de um outro texto: um passo extraído das Imagens, de as palavras e as frases, representem os mesmos objectos, diferem
Filóstrato, o .Jovem, wna série de descrições (ekphraseis) de objectos todavia no material utilizado e no modo de figuração: e apesar de
l
\
artísticos, teais ou fictícios. Uma delas, um escudo representando \ tudo o objectivo final desejado é um só e o mesmo pata ambos; e
Pirro, supunha-se imitar o primeiro espécime deste género literário: o mais eficiente historiador é aquele que, através de uma vfvida
a descrição feita pot Homero do escudo dado a Aquiles. «E se tu representação das emoções e �os caracteres, faz que a sua narrativa
notares também», escreve Filóstrato, «O rebanho de vacas que se se pareça com uma pintura. E fora de dúvida que Tucídides se es- ,
encaminha para o pasto seguido pelos pastores, não te vais de certo força constantemente por transmitir esta vivacidade (enatxeia) aos
maravilhar do colorido, embota todo o quadro seja feito de ouro e seus escritos, sendo o seu desejo fazer do leitor uma espécie de es­
estanho; mas o facto de poderes como que ouvir as vacas mugindo pectador e produzir vivamente naqueles que se i nteressam pela sua
na pintura e de o rio, em cujas margens estão as vacas, parecer que narrativa os sentimentos de assombro e consternação que foram
emite um som de água caindo - não é isso o cúmulo da vivaci­ sentidos por quem esteve presente.>>
dade?»
Esta pergunta retórica pode ser equiparada a um gesto retórico 7 . A atitude de Plutarco relativamente à ekphraJis enquanto
aspiração da narrativa histórica tem sido ulrimamente abonada pelas
G. Avenarius , Lukians Schrift zur Ge.rchichtsschnibung, Meisenheim/Glan, 1956, maiores autoridades em historiografia clássica. Segundo Hermann
pp. 1 3 0 ss. E11arg�a é mencionada em ]. Martin , Antike Rhetorik, Munique S tasburger, ekphrasis era um conceito que cobria uma área muito
1974, pp. 252-53, 288-89. Pa a uma. análise mais completa veja-se H. Laus be rg,
r vasta, na m edi da em que incluía não só as patéticas cenas de batalha
Handbuch der literm"i.rchen Rhetorik, Munique , 1960, pp. 810-819. Veja-se tam­ ou a descrição da peste em Atenas feita por Tucídides, m as tam­
bém G. Zanker, <<Enargeia in the Ancient Criticism of Poetrp, in Rheirtisches
bém descrições geográficas e etnográficas - ekphra_seis tou topou16•
MuJ"eum, NF 124, 1 98 1 , pp. 296-3 1 1 ; P . Galand, L'"ena.rgia" chez Po1itien, in
Biblioth�que d'HurnaniJme et R.trtniumtre, XLIX, 1987, pp. 25-53 (ambos muito
Como vimos, a enatxeia era a aspiração da ekphrasis e a verdade o
úreis embora não tratem de his toriografia). Sobre as implicações filosóficas da enar­ efeito produzido pela enargeia. A sequência era a seguinte: narrati­
geia, c( A. A. Loog, «Aischesis, Prolepsis and Lingui s dc Theory in Epicurus», va histórica - · descrição - vivacidade - verdade. Poderíamos
i n Bulletin of the lnstittt.te of "Ciassical Studie..r, Looches, 18, 1971 . pp. 114-133. r<'�umir a diff'rl'nça t: n t rc o nosso conceito de história e o conceito
I) Além de H. Strasburgec, Die Wesm.rbe.rJimmung, cic, veja-se a discussão
d:íssico norando < ] U I ' , d(' ac-ordo com Stmshurgcr, a verdade histól"ica
entre G. Schepens, Emphasis, cir., e K. Sacks, J>olyhiu.r, cic., p. H9 ss. 13il>Uo­
gmfia recence sobre Duris em n. Gcnri I i-G. C<·ITÍ, ,\'tfn't<� c bio,<!l'tlfit! nd /ll'!ll'il·m
mltÜ:o , H11 1.·i , 1 9H l

I I
224 EKPHRASIS E CITAÇÃO
CAP[TULO VIIl 225

dependia da euidentia (tradução latina de Quintüiano pata o termo


Entendia-se, especialmente na Grécia, que o historiador era antes
enargeia) e não da evidence (ingl. «prova»).
de mais nada uma testemunha, cão perto quanto possível dos
A prova de que não estou a exagerar pode encontrar-se num
acontecimentos de que falava; a ênfase sobre a autopsia, sobre a
passo notável de Quinciliano (lnstitutio Oratoria, IV, 2, 64-65 ) . Al­
visão directa, significava que factos baseados em ouvir-dizer eram
guém objeccava, diz ele, contra o uso da ettidentia in narratione «guia
considerados de natureza inferior. Só nos fins do século XIX é que
in quibusdam causis obscuranda ueritas esset. Quod esc ridiculum:
a diferença entre fontes primárias e fontes secundárias começou a
nam qui obscurare uulc, narrar falsa pro ueris, ec in iis quae narrar
ser objecto de uma destrinça sistemática. Este contributo decisivo
debec laborare ut uideantur quam euidentissima (porque em cer­
para o método histórico - como Momigliano mosrrou no seu co­
tos casos é de desejar que a verdade seja obscurecida, o que é ab­
nhecido ensaio «Ancient History and Antiquarian » , publicado pela
surdo: quem quer obscurecer narra coisas falsas em vez das verda­
primeira vez in The journal of the Warburg and Courtattld Institutes,
deiras e aquelas que narra cem de esforçar-se por que elas pareçam
em 1 9 5 1 - . foi trazido por arqueólogos trabalhando com do­
o mais vivas possível) » . Esta análise franca, mesmo cínica, poderia
cumentos não literários. Eles reagiram face à crítica dissolvente
em princípio deslocar-se dos advogados para os historiadores. A
(e às vezes paradoxal) lançada por cépticos e neocépricos como La
estreita relação entre a história e a retórica não significava que a
Morhe La Vayer contra os historiadores clássicos. Tiro Lívio deixa­
reacção do auditório devesse ser o úlrimo critério de verdade.
va de ser, como tinha sido para Dance muitos séculos arrás, «Livio
Implicava, no encanto, que a verdade era, antes de mais nada, \
che non erra», «O Lívio infalfvel » : medalhas, moedas, esrátuas, cons­
matéria de persuasão só marginalmente relacionada com um reste
truções proporcionavam um tipo de documentação muito mais sólido,
objectivo de realidade.
mais digno de fé do que fontes narrativas eivadas de erros ou mesmo
de falsidades. A historiografia moderna, no entanto, surgiu da con­
8. Esta conclusão teria sido óbvia para os historiadores que, a vergência - conseguida pela primeira vez na obra de Edward Gibbon
partir do século XVI, se consideravam herdeiros' de Heródoto,
- de duas tradições intelecruais díscincas, baseadas respecnvamence
Tucídides ou Tito Lívio. Num certo sentido, não bá muito tempo
na historiografia clássica e na investigação arqueológica.
que ela começou a ser o bj ec to de repulsa para nós. A existência
duma descontinuidade, tanto em métodos como em objectivos, entre
9. Uma terceira espécie, entretanto, tinha já desempenhado
a moderna e a anriga historiografia só foi claramente percebida no
um papel imporrante, lançando uma possível ponte entre a história
século XIX . Arnaldo Momigliano observou que os his tori ado res
e a arqueologia. Refiro-me à tradição dos anais. Segundo o gramátiCO
gregos e romanos «exploravam um campo limitado, correspondente
Vérrio Flaco, citado por Aulo Gélio (V, 18) «historiam ab annali­
ao que hoje chamamos história política e milirar, com a quase
bus quidam differre eo pu ta nt, quod, cum utr� m�ue �it re :um
coral exclusão de factos económicos, sociais e religiosos. Além disso,
as suas atenções escavam centradas na história coeva ou na história
gestarum narraria, earum tamen proprie rerum Slt h1scona �ut �s �
rebus gerendis interfuerit is qui narret (há quem ache que a histona
do passado recente; e as suas técnicas de investigação envolviam
difere dos anais em que, sendo embora ambos a narração de coisas
uma acentuada preferência pela observação direcca no escudo do
realizad �s, a história diz mais propriamente respeito àquelas coisas
presenre e pela tradição oral no estudo do passado. Quando um
I historiador clássico deixava de ser um inquiridor independenre de
Hiscorians», Jll Quinto contributo alfa storia tkgli. stv.di das.rici e del =do antico,
coisas visras ou ouvidas, tendia a tornar-se um compilador de
Roma, 1975, I, p. 74. Veja-se também «Stocia anrica e �tiquacia. Il postO
historiadores precedentes . A pesquisa em arquivos era praticada drlla scnrioJ.lrafia anticn ndla storiografln moderna. L'ered1cà della filologia
raramente e de modo não sistemático por historiadores clássicos» 1 7 . nntira 1• j J nwwdn 'torim .. . in Stti .fimtlrmu:nti. rlc/lrt .rtqria antica, TuriiU, 1984,
I'Jl · � tHl; i.lc111, .•St <oJ'f<l/lfllllll }\I'<"< a. 1 .1.1 r radi1.io1w , . l� • �m•:ir<l dassi;<>· Jl posto di
l � rntl o l l \ /ll'll:t '. l<ll lll tfo •l ) ll lllllrlllf,' l'll l lJ�;. , lll J ,,f ,\'(I/I'IIIJ;I',t{t.t J<l'rf.,l, runll1 , 1.982,
1 7 Cf. A . Momiglinno, «Popular Rdigioll� lklids a11d dw l,ae(· Hom<�n
11\, I •,H l 1 'i
1'1'• \

li
226 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPiTULO VIII 227

em cuja realização esteve presente aquele que narra)» . Flaco ainda discípulo sem nome era certamente o próprio Speroni: Zabarella
tinha algumas dúvidas sobre a justeza desta distinção. Ela reapa­ actua no diálogo como o alter ego do autor. Se os comentários de
rece alguns séculos mais tarde em Isidoro de Sevilha (Etymol. , I, Pomponazzi estavam de algum modo relacionados com o seu ensi­
44): «Historia», diz ele, «est eorum temporum quae uidimus, no académico sobre Aristóteles, isso não sabemos. Em todo o caso,
annales uero sunt eorum annorum quos aetas nostra non uidit. » a tese principal de Pomponazzi nã.o era ambígua: os anais, não
A história era, certamente, um empreendimento muito mais com­ obstante a sua rudeza estilística, mereciam ser mais apreciados do
plexo do que os anais, na medida em que mostrava (como diz que a história, pois que são o verdadeiro fundamento dela. A famosa
Aulo Gélio, invocando a autoridade de Semprónio Asélio) não só o analogia entre as estátuas de Sócrates e de Sileno, apontada por
que acontecia mas também «quo consilio quaque ratiqne (com que Alcibíades no Simpósio de Platão, era referida por Pomponazzi aos
fim e por que razão)>> acontecia. anais, como género literário. O não serem atraenres, devido à rudeza
Durante o século XVI esta hierarquia começou a ser subverti­ do estilo e à falta de uma real estrutura narrativa, esconde um
da: o papel da história foi desvalorizado com a exaltação da impor­ grande tesouro, algo de mais precioso do que o ouro e as jóias: a
tância dos anais . Um dos mais antigos exemplos desta atitude verdade. Embora sejam de forma fragmentária, semelhantes, por­
é-nos dado por Sperone Speroni. Nascido em Pádua, conhecido tanto, às ruínas de templos e estátuas romanas, os anais deviam ter
como autor de uma única tragédia, Canace, e também como co­ \ preferência sobre as imagens, atraentes mas não dignas de fé, que
menrador da Poética de Aristóteles, Speroni foi na sua juventude a hisrória oferece. Termi nados os comentários de Pomponazzi sobre
um discípulo do famoso filósofo manruano Pedro Pomponazzi . Num a história, seguem-se alusões que não são muito claras. Em todo o
longo diálogo Acerca da Hist6ria, publicado postumamente em 1 596 caso, a posição de Pomponazzi foi calorosamente apoiada por Zabarella
Speroni imaginava uma discussão enrre Silvio Antoniano (huma� (ou seja, por Speroni). Isro implicava a rejeição de uma imagem ri­
nisra e, mais tarde, cardeal), Paulo Manuzio (filho do famoso edi­ gidamente hierárquica da realidade, centrada na retórica. A um
tor veneziano) e um jovem de nome Gerolamo Zabarella, presu­ pomposo elogio da linguagem como o mais esplendoroso instru­
mivelmente relacionado com Giacomo, o conhecido professor de mento dado aos seres humanos seguia-se, no Diálogo sobre História,
? losofia aristotélica na Universidade de Pádua. Na parre mais de Speroni, a surpreendente observação de que «língua» não era
apenas o grego e o latim, mas rambém os obscuros dialectos fala­
Interessante do diálogo, Zabarella dá notícia detalhada de um co­
mentário histórico não publicado, escrito por Pomponazzi muitos dos em lugares como Valtellina ou Valcamonica. Aqui reconhe­
anos antes: um texro que tinha permanecido ignorado dos discípulos cem-se as .ideias de Pomponazzi. Como se pode ver no diálogo de
de Pomponazzi, mesmo dos que lhe eram mais chegados (incluin­ Speroni Sobre as Diferentes Línguas, ele costumava dizer que Aristóteles
do o cardeal Gaspar Contarini)18. Uma cópia deste comentário foi
dada a Zabarella por um outro aluno de Pomponazzi, ainda vivo rido implica que Speroni (nascido em 1 5 00) esrava em 1586 a trabalhar na
primeira parre de Dell'hiJtrtria: ver as observações do editor em S. Speroni degli
(em 86), em Pádua, fei ta por ele próprio quando jovem19. Esre
Alvaro tti, Ç)pere. . . tratte da ' mss. origina/i, Veneza, 1740, II, p. 328; V, p. XLIX.
Uma alusão a Ticiano no pretéri to (<<COme Titian solea. . . )>, P· 327) parece implicar
18 termimtS post
Um tanro sutpreendentemence, esta obra perdida não foi objecro de aten­ a dara da morre de Ticiano - 1 5 7 6 - como qt<em: o passo está
ção por parre de estudiosos de Pomponazzi, rais como B. Nardi ou P. O. Kris­ omisso em Vat. lat. 6528, uma miscelânea que inclui (cc. 1 3 5 r., 1 5 5 r.) uma
1.: prov�velmence llnterior, versão de Dell'hi.rtoria, que não foi idemificada
L
teller. cw:ra,
1 9 Cf. Sper ni,
.
<:_ f!ialogi, Veneza .1 596 ,
pp. 361-502, especialmente pp. 372- nem poc B. Wcínberg (A History, ci , I, p. 14) nem por P. O. Krisceller (lter
-373. Esra ed1çao posruma (SpetonJ morreu em 1588) inc l uía muiros di á Jo,.os ittdíotrn , 1 1 , T.t· idcn, 1�<•7, p . \tiO), que se apoin em Weinberg. Um fragmento

não publicados. B. Weinberg, não conseguindo enwncmr. «nenhum fllnda m ,:11 d< · um diálugo sclhn h111 1Ír i�r < 'll l'rt· t ;,,�l'ar C :o n 1 n r i n i l' Trifon (;abriek (ver
·
r o para arribuir uma dam aproximada» , udm i t i u qut Ddl'bi.rtori" 1 ív< ·s.�c· sido lij>t'l'(', 1 i t . , l i , l 'JI• � I \ 1'1()) <'�hl 1!" 1 111 t o ll!lldo> """ l l lll:t oh111 .U I I < 'I'Ío>r 1>nhrç n
escri ta muiws anos anres (/\ Hi.rtnry of I.im;,ry ( :ri/h i.1111 i11 lhP Jt.t!�.tn Nm,1i.r l l l ",l l lCl ll\'lii ii i O , < i ll'lll l ll l lt't l " l " " :O.J •1' 11 l l l l 1 101 '.t lol '!fro/ioplo l ( o "il r i l . l i'J II l 'l/1, vc·1·
scmce, Chicago, 1.96.\ ! , f>P· :H I "il.). Nu n·:diclll(lc , i '( "''�' " • o l'·•�•:o ,,. í n 1 1 1 1•d1 ilf'olr', 1 1 1 , I , I' \� \) •' • l lvr• l n trll i l ) '' r . lldot.
228 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPiTULO VIII 229

deveria ser craduzido em lombardo para o tornar acessível a um que situado na Anriguidade - mais próximo da erudição do que
público mais vasto e menos selecrivo. da retórica. Na introdução geral aos seus Annales Ecc!esiastici, pu­
As ideias de Pomponazzi sobre a história parecem cer sido cão blicados pela primeira vez em 1 588, Baronio declara cer rejeirado
pouco convencionais como o eram sobre oucros assuntos, rais como o costume, generalizado entre os historiadores pagãos, de incluir
as línguas, a imortalidade ou os prodígios religiosos do espírito. longos discursos fictícios, cheios de ornamentos reróricos, uma vez
O seu primeiro discípulo, Speroue Speroni, tomou por vezes uma que desej ava seguir o conselho de Crisro: «Sit aucem sermo uescer:
posição moderada: sobre os discursos, por exemplo. Seguindo o Esc esc, non non» (Maceus S , 3 7)
exemplo de Tucídides, os historiadores do século XVI que tinham dos anais (sabemos que alguns anos ames projeccara escrever algo
formação humanista costumavam incluir nas suas obras longos e diferente, uma Historia ecclesiastica controttersa) foi devida a crirérios
cerimoniosos discursos atribuídos a generais, embaixadores, reis. que não eram só literários mas também religiosos� Por razões se­
Uma vez que a hisroriografia era concebida como um empreendi­ melhantes decidiu citar, sempre que possível, os termos exaccos de
mento eminencemence retórico, os discursos eram encarados como antigas fontes, não obstante a sua repulsiva falta de elegância
o ponto alto de uma obra histórica correcca. A insegurança de ( «quamuis horridula ec incomposita>> ).
Speroni relativamente a este assunto é rípica da sua acicude pe­ A coexistência entre a piedade cristã e a retórica, entre ser
rante a retórica. Em cerco sentido, diz ele, os discutsos de ficção ......,_ chris tianus e ser ciceroniantts foi muitas vezes diflcil - pelo menos a
não fazem parte da tarefa do historiador: mas podem ser admiti­ julgar pelo sonho de São Jerónimo. A decisão de Baronio quanto
dos na sua função ornamental, como as éstáruas e os frescos que à rejeição de toda a espécie de discurso fictício fazia claramente
:- adornam os muros dum edifício. Deve ser claro, no enranto, que o parte de uma estratégia geral anti-retórica. Para ele, a busca da
! historiador encara estes discursos como realizações teóricas, não mmo verdade não era compatível com um discorrer suave e estilística-
transcrições de palavras realmente pronunciadas por generais no . mente homogêneo. O efeito dissonante criado pela citação de ve­
'-- campo de batalha - caso em que ninguém acreditaria nelas. lhos e obscuros textos era acentuado pelo recurso a notas. Baronio
E óbvio o valor sintomático desta posição. Dir-se-ia que Speroni é, sem dúvida, um dos mais antigos historiadores a usar este sis­
acreditava que havia uma obrigação mocal associada aos sinais de tema de referência21. Achava que isto era muito mais eficaz do que
citação: estes deviam ser inequívocos, na medida em que se supõe o sistema tradicional, baseado em longas listas de autores·. Os ele­
transmitirem uma verdade que não pode ser alterada. Os discursos mentos que me autorizam, dizia Baronio, encontrar-se-ão na mar­
de ficção, portanto, podiam ser tolerados nas obras históricas como gem de cada página: não escrevo doctas fabulas.
·exercícios retóricos, mas completamente banidos pelas duras re­
gras da tradição dos anais.

1 0 . Como já se deve ter reparado, esrou a sugerir um confron­ 20 C. Baronio, Armales ecdesiastici, I, Roma, 1593 (4.• ed.), incr.: «Reli nque­
to entre a enargeia e os sinais de citação. Ambos podem ser enca­ mus hiscorféis Ethnicis locutiones illas per longiorem ambirum periphrastice
rados como dispositivos destinados a produzir um effet de vérité que circumduccas, omtionesque summa arte concinnaras, fictas, ex sentencia cuius­
Lhes é próprio. O primeiro escava relacionado não só com a persua­ que composicas, ad libitum clisposicas; et Annales porius quam Historiam scri­
são retórica mas, pelo menos .indirectamenre, com uma cultura bemus. » Um recente escudo sobre Barooio pode encontrar-se em Barmúo storico
e la Cont1'orifilmJ<�., �d. por H. . De Maio, etc., Soca, 1982 (actas de uma confe­
centrada na oralidade e no gesto. O segundo era, por sua vez, o
rl'n�:i�t).
produto duma cultura largamente dominada pela .imprensa - 11
E111 I ' )(,() isso 1 i nhn . . t dn
,• ronsidrn�<ln dwmnt·•·, 1)\f·srno st· usttdo por um
eventualmente reforçada por outros elementos. j , j ,;�nl'indor dl' i l l t l i g l l i , l.uk·· ' "' " o I ( , p,,•:quic•l' (d, 1', Vi'Y I "'• !�· C,'nn rmt· ilr <'1'11

Como já vimos, anais e história foram comac los como dois 1'. ': ,) lc:IJI'� 111 )'11•••• '', l 'itdi. , l 'lfl l , 1 '1 ' 1 / 1 1 1 1 1 '• " 1 ' O qiHd Cttll t o l l l t ' r\ 1 1opulo }:<' l o r i l -

neros literários d"i ferentes, s<·ndo o prinwi ro .- <'SJ w,·i:\Jn,('llt , . fH>J'. . 1111'111 ! ' 1 \ l t ' I I ,, , t l l l > i l tl 111 1' ' , , ,t i ,,,
230 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPITULO VIII 231

1 1 . . Em 1636, um tratado sobre história (Dell'arte historica) foi tem sido sempre, tanto quanto eu sei, um elemento básico de toda
impresso em Roma. O autor, Agostinho Mascardi, era, segundo a espécie de conhecimento histórico, onde quer que esse conheci­
um julgador perspicaz como Gabriel Naude, o mais brilhante entre mento histórico, como forma de actividade social, tenha sido pra­
os escritores romanos do seu tempo. O seu livro, cheio de intui­ ticado até hoje.
ções, discutia o método histórico numa perspectiva estritamente
retórica. Não é de surpreender que uma longa secção, comentando 1 2 . Um velho paradigma, baseado na estreita relação entre
passos de Tiro Lívio ou de Cúrcio Rufo, fosse consagrada à enar­ história e retórica, foi superado por um paradigma diferente, que é
geia . A investigação arqueológica e a história eclesiástica daquele ainda hoje o nosso. Enargeia (ou, preferindo, euidentia) foi substi­
tempo estavam ambas naturalmente ausentes do livro de Mascardi. tuído por prova (ingl. t:Jidence). Como e quando se realizou esta
Não menciona Roma sotterranea, a obra póstuma do «arqueólogo substituição de paradigmas' Momigliano evidenciou, como já disse
eclesiástico» Antonio Bosio, que quatro anos antes tinha revelado antes, o papel desempenhado por aqueles arqueólogos do século
a incalculável riqueza das catacumbas cristãs. Até os Annales eccle­ XVII que enfrentaram os ataques contra a prova literária lançados
. I.
siastici de Baronio, que entretanto se tinham tornado um best-seller pelos cépticos (os chamados pirronistas), mostrando que a prova
europeu, eram ignorados por Mascardi. Os erros de Baronio quan­ não literária pode ser usada como base segura pata a reconstituição
to a factos foram denunciados relativamente cedo, bem como a histórica. A pesquisa arqueológica, no entanro, tinha começado pelo
estreiteza da sua perspectiva. Apesar dos seus propósitos , foi muito menos dois séculos antes. Transportava provavelmente desde o seu
pronto a acreditar, e também a transm�tir, uma boa quantidade de começo uma subril desvalorização dos trabalhos históricos. Seja-me
«fábulas doutas » , principalmente sobre heréticos, judeus, etc. De permitido citar algumas passagens de um famoso texto de Manuel
certo modo; porém, ele é nosso contemporâneo - muito mais do Chrysoloras, o erudito grego que veio para a Itália cerca de 1 3 95.
que Mascardi. Nós continuamos a acreditar que os historiadores Em 14 1 1 , depois de ter estado em Roma, enviou uma carta ao
devem estar aptos a fundamentar as suas asserções com algum tipo imperador João VIII Paleólogo na qual descrevia «arcos triunfais
de prova. Ou, se se preferir uma formulação descritiva a uma for­ erguidos (pelos Romanos) comemorando os seus triunfos e procis­
mulação normativa: nós (incluindo, suponho eu, os neocépticos) sões solenes >> . Seguia-se uma longa descrição - uma verdadeira
ainda acreditamos que os historiadores (incluindo os historiadores ekphrasiJ - do Arco de Constantino, segundo a tradição clássica.
neocépricos) só consegue� produzir um e(fet de vérité referindo as « . . . Há baralhas de navios, de cavaleiros e infantes, e toda a espécie

suas asserções a algum tipo de prova. A citação (dírecta ou indi­ de armas e engenhos de guerra; e reis capturados (dos Medos, talvez,
recta) superou a enargeia - uma vitória fatal, que poderia ser descrita, ou dos Persas ou dos Iberos ou dos Celtas ou dos Assírios), cada
em termos bachtinianos, como a vitória de uma atitude dialógica um com o seu vestuário próprio . . . pode-se ver tudo isto nestas
sobre uma atitude monológica22• figuras como se estivessem realmente vivas, e saber o que cada
É claro que os processos são diferentes, mas o alvo a atingir era uma é por meio das inscrições que lá estão. De maneira que é
o mesmo: produzir um �f!et de vérité. Digo ef{et de vérité em vez de possível Vfi!r claramente que armas e que vestuário as pessoas usa­
vérité para acenruar que a verdade rem sido concebida de diferentes vam em tempos antigos, gue insfgnias tinham os magistrados , como
maneiras em diferentes culturas. Mas a distinção entre asserções era consti tuído um exército, como se travava uma batalha, como
falsas e asserções verdadeiras - acima de tudo a nível factual - se fazia um cerco, como se dispunha um acampamento . . . » Eis a
conclusão de Chrysoloras: «Pensa-se que Heródoto e alguns outros
c·scr.icores da hist6da fi;-. C.!rarn al,L(O ck grande valor quando descre­
Zl Cf. M. Bachrin, «La parola oel romao:w ( 1 934-3 5), , i n fl.rtetír(/ e ml!um­
vc·m t•sras coi,�::a.�; nt:l': rw� r1.lS c·sc u lturas poci 1'4 S<· V(!l' cudo o que
zo, trad. it., Turim, 1 979, pp. 67 ss., parricuhcrmcntt: pp. 1 3 .1 ss. Vc·ja- .�•· cau c­
c · x i s r 1 : 1 llll( j l l ( ' l . t :l i ' J >nc �•" t' l l l lt' 1111 ' l l tc·r�·niC'H c 1� l'1 , c• .c� � i t n aq c c iln é
bém M.. Steroberg, «Prort'll� i n Qumarion J .a n d > • , in P(lc•tit:r 'Far/,1\', �. I ')IV.
pp. 1 07-l5h; n. Morl:cr:l ( ; :�ravc • l l i , ' " ' jMrol./ ,/',rfll'i, p,tlc·llllO, J ' )H'•, 1 1 1 1 1 1 1 c C > l l t pl c · t n c· V< l c hldt• t l ll l c h t c o t f.c (/111 111!'111/J) 1 1 1 1 .l l c t c J L l t t t l l l l ll
·,
232 EKPHRASIS E CITA ÇÃO

história mas uma visão directa (atttopsian), por assim dizer, e uma
presença (parousian) de tudo o que existia em roda a parte naquele
rempo.»2�

A sequência ekphrasis - autopsia - parou.sia - da palavra escrita ÍNDICE DE ARTISTAS


pata a vida real - pretende obviamente realçar a eficácia terótica,
a enargeian da própria carta. A oposição entre Her6doro e as estátuas
do Arco de Consranrino, assim como a superioridade atribuída a
este, eram mais insólitas. Chrysoloras fazia uso da ekphrasis, não
como um insrrumenro da história, mas para exprimir o que os his­
toriadores tinham descurado ou escassamente descrito. A crença na
possibilidade de reconstituir o passado como um rodo arravés das
potencialidades li terárias iria ser superada pela consciência de que
o nosso conhecimento do passado é um empreendimento necessa­
ADILDGAARD, 88 CANOVA, 88
riamente desconexo, cheio de lacunas e de incertezas, alicerçado - AGOSTINO, 82 CAPUA, G. P. Russo de, 1 3
em fragmentos e ruínas. AMADEO, 67 CARAVAGGJO, Michelangiolo da, 14,
AMATRfCE, Cola dell', 13, 42 88
ANDRIA, Tuccto d', 81 CARA VAGGIO, Polidoro da, 40, 44
ÂNGELO, Mtguel, 37, 38, 39, 43, 46, CARDJSCO, Marco, 40
47. 60, 66, 88 CARDUCCI, 90
APELES, 15 CAR PI, Girolamo da, 40, 42, 77
AQlJILA, Pompeo dell', 13 CARRACCJ, 16, 88
ASPERTINI, Amico, 44, 58 CASENTJNO, Jacopo del, 6 1
BAGNACAVALLO, Banolomco da, 44 CASSIOLI, Amos, 74
DAMDINI, Nicolõ, 76, 77 CELLINJ, Dcnavenuro, lO
BARBAGELATA, Gíovanní, 79 CHIRICO, 93
BAROCCI, Federico, 70 CIMABUE, 61, 1 2 6
BARRY, 88 CORDISCO, Marco, 44, Hl, 82
BASSANO, Jacob de, 12, 1 3 , 17 CORREGIO, 16, 23
BASSETl, 7 1 CORRENTE, 92
BECAFUMI, 4 1 , 56, 58 CORSO, Ni colõ, 81
BELLINI, GlOvanni, 85 CORTJGNOLA, Gtrolamo da, 44
BELLINO, Gio, 77 COSIMO, Piero di, 85
BELLORJ, G. P., 10, 70 CO'ZZA, Francesco, 82
BENIVIENJ, lippo, 61 CROMA, 76
DERNINI, 88 DADI, Bernardo, 84
BÊRTUCCIO , Gto Barisra, 72 DARETI'l, Lorenzo, 87
DICCI, Neri tlt, 85 DOMJNJCI, De, 1 2
DIONDO, Giovanut dei, 85 DONATEllO, 43, 44. 45
DONAGUIDA, Pac i no dt, 6 1 DA VJD, Jacques-louis, 88, 89
DONOMO, .Jacobello d i , 85 DOSSJ, 77
T30NONJ, 77 DUCCIO, 54, 78
liOTICiiUJ, 4) DUCROS, Abraham-Lou1 s, 88
HC >Tl'ANJ, < i i Ol.«:i'l"'• �<� mmrm. A l berco, 5 7 , 58
1\lt/\M A N'I'E, (,., l'.H E'I'I\ T(.), Filoscno, 23
l i H I I N I \ I J.I'�il 'J f f, l'iiÍJ•J•II, j · , I'I'.I.TilH, M n " " de·. ''i:l
2� Cf. M. Baxandall, Giotto and the ()l"rtlm:r. Oxfnrd, ·1 97 1. , pp. 1 /f�-1 ')() (rr.xro), li f 1 1 '1'/\I.M/\1 I ;( I, o i , lo • l'lilU(t\ 1 ! ! . I )<·1<-udo•m•·, '•(>. <•ú, ((/
C t\t\11 li ; I I , 111111"1"1 1 1 1 " ol11 11 1 l'll t\ l l ' l ' l · , " '
R0-81 (mel. ingl.).
234 A MICRO-HISTÓRIA fNDICE DE ARTISTAS 235

FIRENZA, Simone, 5 1 MONTORSOLI, 4 1 SIGNORELLI, Luca, 45 VANl, Turin o, íl l


FOGOLINO, Marcello, 83 MORANDI, 92 SIMONE di CALVI, Ant onio di, 8 1 VANVITELU, 87
FORTIJNY, 9 1 MORAZZONE, 7 1 SPAGNA, Lo (vide PIETRO, Giovanni di) VASARI, 1 1 , 18, 23, 34, 3 5 , 37, 38, 39 .
FRANCIA, 47 MORELLI, Domenico, 9 1 SPANZOTII, Martíno, 66 4� 4 1 , 42, 43, 44, 4 5 , 4� 47, 48,
FRANCIABIGIO, 43 MORMANDO, Francesco, 8 1 SPARAPANE, JohanJ , 49 55, 56, 57, 58, 60, 65, 93, 126
FRANCO, Battisca, 38 MUSSO, Niccolõ, 7 1 SODOMA, Anto ni o, 4 1 VERONESE, Paolo, 1 3 , 17, 24
FUsSLI, 88 NASELLI, 7 7 SOGGI, Ni colo , 38 V!GNOLA, 42
GALASSO, 5 5 NEGRONI, Pietro, t � SIENA, Niccolo da, 49 VINCI, Pierino da, 38, 43
GAMBA, Bartolomeo, 1 2 NICOLA, Jacobo di, 8 1 TANZIO da Varallo, 7 1 VITALE, 54
GAROFALO, Benavenuco, 39, 4 0 , 77 NORCIA, Antonio de, 49 THOR WALDSEN, 88 VITERBO, Amonio da, 5 1
GEMITO, Vincenzo, 9 1 ONOFRIO PENNA, Antonio, 84 TIClANO, 1 3 , 24, 56, 5 8 , 68, 7 7 VITTONE, Bernardo, 86
GENGA, 58 ORTOLANO, 77 TINTORETO, 24, 70, 85 VOLPEDO, Pelizza, 91
GETILESCHI, 7 1 PALERMO, Pavanino da, 82 TORRESAN!, Bartolomeo, 5 1 VOLTRI, Niccolo da , 81
GHIRLANDAIO, Domenico, 45, 48, 8 0 PALMA i! Giovane, 24 TORRESAN I , Lorenzo, 5 1
. WEST, Benjamin, 88
GIORGIONE, 2 3 , 38, 47, 58 PAGI, G. B . , 1 0 TREVISI, Dario, 5 5 WICAR, 89
GIOTTO, 16, 54, 60, 61, 62 PALMEGGIANI, 7 2 UDINE, Giovani de, 38 ZOPPO, Marco, 5 5
GIOV ANNETTI, Matteo, 63, 64 PARMIGIANINO, 37
GIOVENONE, 66 PARRASIO, 15
GOUPIL, 91 PERUCIUS, 78 .
GREGORIO, Goro di, 78 PERUGINO, Pie rro, 34, 39, 45 , 47, 5 1 ,
GUAJ..A, Pier Francesco, 7 1 53 , 54
GUERCINO, 84 PETRI, Marcia, 82
GUGLIELMO, 35 PETRUCCIOU, Cola, 54
HAYEZ, Francesco, 89 PIAZETTA, 24
IMOLA, Inocenzo da, 44 PIERO DELLA FRANCESCA, 55
IVREA, Giacom ino da, 50 PrETRO, Giovanni di, 48
JUVARA, Prancesco, 82 PIRANESI, 88
LANCONELLO, Criscofano, 72 PISANO, Gi ovann i, 36, 126
LAPPOLI, Giovani Antonio, 41 PISANO, Nicola, 126
LEONARDO da V inci, 43, 47 POUSSIN, 88
LIPI, Filippino, 85 POZWLO, Niccolõ, 5 5
LOMBARDUCCIO di VICO, Nicolõ, 8 1 PONTORMO, Jacobo, 57, 5 8
LONGHI, Luca de, 42 PORDENONE, 56
LORENZETII, Ambrogio, 36, 78, 79 RAFAEL, 1 6 , 37, 38, 39, 43, 47, 66
LO RENZETII, Pietro, 36, 37 RAPICANO, Cola, 81
LOTTO, Lorenzo, 67, 68, 69, 70, 85 REMBRANDT, 70
MACCARI, Cesare, 74 RICCI, Ubaldo, 18
MANONl, 9 1 RICCIARELLI, Daniele, 4 1
MANTEGNA, 7 7 ROMANO, Julio, 13
MARATIA, Carlo, 18 ROSA!, 92
MARCA d' ANCONA, Domenico della, ROSELLI, Cosme, 45, 46
50, 5 1 ROSSO, Fiorenr ino, 58, 60
MARINETII, 92 RUBENS, Peter Paul, 70
MARTINI, Simo ne, 63, 84 RUNCIMAN, 88
MASSUCCO, Gi ovanni, 50 SACCHI, 13
MAZONE , Giovanni, 79 SAN MARCO, Pra Barwlomeo di, 60
MEISSON IER, 91 SANTOR1, Giacomo, 49, 5 1
MENIGHELLA, 46 SARRlNO (vide Agosrino)
MESSINA, Antone llo da, 82 SARTO, Andrea del, 60
MESTRE della Santa Cecilia, 61 SCARSEU.LNO, 77
MESTRE do Codice di San Gi orgio, 6 1 , $Jl.GI\NTIN1, 91
63 SJI.H Al\ICEI.I. (�Í•»>r�·h illo, H<.)
MEVALE, Angelucci, 49 SJI.HI :EJ., !IH
MON0\'01.1, Rcp.in:•klo Pin'""' tli. I\ I �(I 1 11.1 ),J1Lrnpu (vidt • S t\N'1'< IH 1 , ( •h" '""")

I
ÍNDICE TEMÁTICO

ACADEMIAS, 18, 86, 89 poücencrismo, 16, 3 1, 47, 48, 90,


ALQUIMIA, 1 3 5 , 1 3 6 92, 93, 1 7 8
·
)ALTERNATIVA (Sca, ro), 5 5 , 56, 62, 66, oligocemrismo, 3 1
67, 7 1 , 92 (vide rb. Resistência) italocencrismo, 58
ARQUlVOS, 173, 174, 2 0 1 CIDADES, 26, 27, 28, 32, 36, 52
de Estado, 1 7 6 desenvolvimento das, 29
privados, 174 CONCÍLIO,
da Inquisição {vide Inquisição, de Calcedónia (45 1), 146, 149
arqnivos da) de Llerda (524), 146
italianos, 170, 1 7 1 de Valência (546), 146
d o Varicano, 63 de Latrão (649), 74
espanhóis, 2 1 4 de Constança (1417), 152, 1 5 8
ARCAÍSMO, 6, 1 2 , 33, 34, 3 5 , 36, 4 2 , de Trento (1 545-63), 8 3 , 8 6
50, 5 1 , 5 3 , 54, 5 9 , 6 1 , 66, 68 CONCORR�NCIA
ATRASO ARTÍSTICO, vide Arcaísmo. enrre arcisms 5, 18, 19, 20, 2 1 ,
CAPITAL, 1 3 , 1 4 , 16, 17, 1 8 , 47, 53 22, 4 1 , 4 2 , 43, 44, 5 5
capital/cidades súbditas, vide enrre cidades, 5 5 , 56, 77
centro/periferia CONSUMO ARTÍSTICO, 2 0, 32, 44, 50,
CATASTROFE, 120, 1 2 1 68, 79, 83
ecológica, 1 2 1 , 1 2 2 , 124 CULTURA
nuclear, 124 carnavalesca, 132, 1 3 3
CENTRO, 5, 6, 7, 26, 28, 32, 40, 55, 5 8, escolástica, 1 2 5
62, 74, 78, 82, 88, 91 figurativa, 48, 54, 58, 67
cenrro arrlscico, 5, 1 3 , 14, 1 6 , 24, oral, 221
2 5 , 26, fo. 3 1 . 32, 48, s L, 63, 78, marerial, 172
82, 89, 90 periférica, 58, 90
cenrro político, 5, 6, 14, 16, 24, das classes populares, 1 3 5 , 141
25, 30, 8 1 ' 82 das classes superiores, 1 3 5 , 141
centro/periferia, 5, 7, 1 3 , 14, 16, aculturação, 1 3 1
17, 29, 30, H, 3:1, 16, <17, -111, 5 1 , hegemonia cultural, 7 8 , 86
'>..!, '> 1 , s � . (,2 , r.�. 1 1 , t i. 7 4 , 7\ suba)tcrnidade culrural, 52, 79,
li, 19, H!, ur. 110, 11'1
<'<'lll'rotli�\' '''" (1•1<" •·�•·• oi, ), 411, nwdlo\dlll'r� t•ulo:nruis, 1 � l . 1 3 2,
'i 'l I \'o
·,llld•nl. .•, • o d11 1 1oo l- , I \.!
238 A MICRO-HISTÓRIA fNDlCI!' 'J'JiMÁ'/'J(.'IJ

DEMOGRAFIA, clássica, 197, 2 2 3 , 224, 225 REGIÃO, 62 , 65 SAQ! JES, 74, 7f,, 1 · 1 i , 1 4 6 . I -'iH, 150,
crises demográficas, 1 7 1 filosófica, 197 desequilíbrios regionais, 24 , 2 5 , 1 5 1 , 1 511 . 1)5, 1 5 6, 1 5 7
expansão demográfica, 128, 130 francesa, 169, 178 28, 30 riluais, 143, 146, 1 4 7 , 148, 149,
d�mografia histórica, 1 7 4 italiana, 169, 178, I 79 querenças entre regiões, 69 150, 154, 1 5 5 , 1 57 , 1 5 8, 164,
natalidade, 1 2 9, 17 J moderna, 196 RES!STENC!AS (vide tb. Alternativa), 165, 166, 1 67
ESPÓUO (fPO/itnn), 152, 1 5 3 mercado hisw dográfico, 170 59, 60, 6 1 , 62, 7 1 a sinagogas, 154
direito de espólio, 1 5 0 INQUISIÇÃO, 19, 132, 136, 175, 203,
(vide tb. Saque) 205, 208, 21 o
ESTILO arquivos da, 140, 1 4 1 , 143, 1 7 5 ,
artíscico, 6, 9, 14, 16 203, 204, 205
internacionlll, 6 Congregação Douccina Pela Fé
literário, 18 5, 186, 187, 220 (sucessora da 1nq .), 1 41
ESCOLA ARTÍSTICA, 8, 9, 1 0 , 1 1 , 13, denúncias inquisiroriais, 136
14, 1 5 , 16 inquisiclores, 138, 206, 208, 209,
FEITIÇARIA, 179, 204 , 205, 20 7, 2 08 , 2 1 1 , 2 1 2 , 2 1 3 , 214
209, 2 10 processo inquisi corial, 132, 140,
FRONTEIRA (zonas de), 64, 65 204. 2 1 0, 2 1 1
GOSTO, 34, 3 5 , 69 . UBERDADE
periférico, 3 3 , 35, 36, 46, 50, de criação 23, 24 , 69
52, 84 política e criação arriscica, 2 1 , 22,
HERESIA, 74, 1 3 2 , 1 3 9, 140, 144, 204, 23
230 LIBERTINAGEM, 137
HISTÓRIA popular, 13 7, 13!l
I
da arre, 6, 7 libertinos, 137, 138
da ci€ncia, 60 teoria libertina da criação, 138
da historiografia, Hí9, 200, 216 MECENATO, 18, 20, 45, 82, 83
da Itália, 8, 27, 1 78 MORTE, 1 59
das mentalidades, 193 do chefe, 1 60, 161, 162, 164, 166
da população, 170 mundo do.� mortos, 1 5 9
da propriedade, !70, 17 3 ricos de passagem, 1 5 8, 159,
e ancropolog ià, 1 7 3 , 2 1 0 165
e arqueologia, 2 2 5 , 231 PERIFERIA (vide cb. cencro/perileria), 5 ,
e «invenção,,183, 192, 198, 6 , 18, 47, 5 1 , 52, 5 3 , 5 4 , 5 5 ,
201, 202, 216, 2 1 7 59, 6 2 , 67, 7 1 , 7 3 , 74, 81, 84,
e romance, 192, 193, 1 9 5 , 197, 90, 93
208 e criação artística, 6
facmal, 181 dupla periferia, 64, 65
milicar, 193, 22 3 , 2 24 periferização, 5 9, 60, 6 1 , 72, 7 3,
narrativa, 184, 187, 188, 194, 76
196, 198, 1 99, 216, 223 (vide rb. gosto periférico e culrura
oral, 203 periféric3)
polftica, 1 8 1 , 193, 223, 224 PROGRESSO, 1 2 9
quanrirativa, 1 7 0 cieocffico e recnol6gico, 1 24, 128,
serial, 170, 1 7 1 129,
social, 171 artístico, 20 , 32, 33, 38, 43, 5 3 ,
uuiversal, 17 3 5 7 , 66
mac ro-história, 1 7 0, 177 PROVíNCIA, 5, 40, 4 1 , 50, 7 1 , 75
micro-hisróda, 172, 1 7 7 , 'J7 8 provincianismo, 45, 46, 47, 50, 5 3
anais históricos, 225, 226, 2 2 8, PÚBLICO, 1 9 , 20, .12 , 3 3 , 3 5 , 3 6 , 4 l , 5 6,
229, 230 62, 64, ó7, 6!l, 75, 8 3 , 91, J J I ,
fim da história, 120, 1 25, 129 U4
HISTORIOGRAFIA, 93, 1 7 1 , 17}, l HO, ac'Oill(•l'ill "tt' IHO p1'1l \)j, u, 1 1))..
195, 196, 222 dn�ninío 111il�li ro, l t ,O
do.< Âllllalo, 1.6';) prnttjtr: pt'1l11i• (1:,, 11)
\

Origem dos textos pot capítulos

Capírulo I (com Enrico Casrelnuovo) - «Cenrro e periferia», in S1oria deii'Arte Italiana,


vol. I, Turim, Einaudi, 1979.

Capírulo 11 - «Des ténebres médievales au black-out de New York», Ev.rope, 61, 654,
Outubro de 1983.

Capítulo UI - «The Dovecore Has Opened its Eyes: Popular Conspit-acy in Sevenreenth
Century lraly», in Gustav Henningsen e John Tedeschi (eds.), The ln qrúsititm in Early
Mod•m Ettrope, Dekal b, Norrher n Illinois Universicy Press, 1986.

Capítulo IV - <<Saccheggi riruali. Premessa a una ricerca in corsO>> , QrJaderni Storici, 65,
XXII, 1987.

Capfc �lo V (com Carlo Poni) - <<Il nome c il come: scambi ineg ual e e mercato storio­
grafico» , Qttademi Sro1'ici, 40, 1979.

Capítulo VI - <•Prov" e pos.libilith, nora de apresentação de Natalie Zemon Davis,


11 ritom11 di Mr1rtin Gf!m·o, Tmim, Einoudi, 1979.

Cuplrulo Vll .. 'l"h,· Ir" pd·.hor• ru; Ar li h r n J > < >I < >J-:i·:r : :111 Ar�u lolt Y and its lmplicatinns » , in
<.'fiM, Mwl•.•· '"'" il••• 1/l•i"l'f,t i !Ht•ll'flll. 1\nlr i r > rl>l'>', .loloo l loplti n " l ln iwrsir·y Prcss, 1 989.

Cupi1 1 d " V I I I
ÍNDICE

�oca de apresentação VII


/
Capírulo I História da Arte Italiana 5
Periferia e província, 5. O caso italiano, 7. A His­
tória» de lanú, 8. História artísdca e distribuição
geogr:ífica, 1 3 . Cidades capitais e cidades súb­
ditas, 17 . . Concorrência e sociedade civil, 2 2 . Os
desequilíbrios ten:itoriais, 24. Questões de longa
duração, 26. Deslocação dos centros artísticos, 30.
As cidades comunais, 32. Centros de inovação e
áreas retardadas , 33. Periferização e desqualifica­
ção, 35. Vasari, 37. Fim do policentrismo e nas­
Üri]-ento da «terceira via», 47. Um caso exemplar:
a Umbria, 48. Refluxo d e atraso na periferia, 5 1 .
Arraso periférico ou anaso de méwdo, 53. A pe ri ­
feria como alternariva, 5 5 . A resistência ao mode­
lo, 59. Modelo e novo parad igma, 60. A alterna­
tiva de Avinhão, 63. As z.onas de fronteira, 64.
O exílio de Lotto, 67. Urbino e Barocci, 70. Seis­
centos e Setecentos, 7 1 . Centro e periferi a, pe.r.ma­
são e dominação, 73. A dominação simbólica, 74..
A dinâmica das obras, 7 8 . A dinâmica dos artis­
tas, 80. A dinâmica dos consumidores, 83. A Igreja
depois de Tremo, 86. As contas com a Europa, 87.

Capitulo Il Das nevas medievais ao black-out de Nova


Iorque 119
ld:o c Vt>lm, I I ').

( 1:: i " lltll>os :d ll'l l'>un ns o l l h t s : Cor1. � p i ração


l " l l • l l l i l l 11.1 l l .! l i 1 1 . l o 11
' '• '\ V I l
244 A MICRO-HISTÓRIA

Capítulo IV Saques Rituais. Preâmbulo de uma investi-


gação em curso 143

.,Capítulo V O nome e o como. Troca desigual e merca-


do Hiswriográfico 169

Capítulo VI Provas e possibilidades à margem de «11 ri-


,__..
torno de Mareio Guerre» de Natalie Zemon
Davis 179

'I ·,Capítulo VII O inquisidor como antropólogo: Uma aoa-


logia e as suas implicações 203

;ç.ªpúulo VIII Exphrasis e citação 215

Índice de artistas 233


Índice temático 237
/
Origem dos textos por capítulos 241
Í ndice 243

' .

You might also like