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(Memória e Sociedade) Ginzburg, Carlo - Castelnuovo, Enrico - Poni, Carlo - A Micro-História e Outros Ensaios-Difel - Bertrand Brasil (1991)
(Memória e Sociedade) Ginzburg, Carlo - Castelnuovo, Enrico - Poni, Carlo - A Micro-História e Outros Ensaios-Difel - Bertrand Brasil (1991)
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v 111 A MICRO-HISTÓRIA NOT.ti. DE APRESENTAÇÃO IX
.
l'nH'esso do cardeal Morone por Massimo Firpo, o estudo das micro A primeira obra de grande impacre publicada por Ginz burg ,
•• ri i r u l ações de poderes no campo religioso, como a que é proposta I Benandanti4, trata de um culto de fertilidade ainda existente no
l "'r Albano B iondi no caso de Modena, a análise cuidada dos desvios século XVI na região do Friuli, no Norte de Itália, segundo o qual
.1 nnodoxia, como a que é apresentada por Silvana Seidd Menchi os nascidos envolvidos na membrana amniórica estariam destinados
::ohrc a recepção das dourr.inas de Erasmo em Itália2• a combarer as bruxas numa batalha anual, de cujo resultado depen
As rupturas introduzidas por Cario Ginzburg situam-se, neste deria o sucesso das colheitas. A análise dos processos instaurados
, on1 cxto, na construção de novos objectos - a feitiçaria, a meta pela inquisição contra estes «andarilhos do bem» demonstrou a
l lloi'Í'()se animal, os ritos de fertilidade, a cosmogonia, a iconogra- distância enrre os dois universos culturais. Com efeiro, a dificul
l1:1 -, na pesquisa sobre paragdimas de conhecimento - a noção dade de situar este culro no sistema classificatório das heresias
dt· altO e de baixo nos séculos XVI e XVII, a emergência do pro- levou os inquisidores a formular uma acusação de bruxaria que
l ,·dimento por indícios no século XIX -, na reflexão sobre
os encontrou as maiores resistências por parte dos benandartri (afir
mC:codos urilizados - quer na história da arte, debatend o os pres mavam ser justamente seus inimigos). A aculturação dos campos
st�postos de Watburg, Saxl, Panofsky ou Gombrich, quer na antro- está aqui bem expressa pelo resultado obtido ao fim de dezenas de
i ,ologia, discutindo as perspectivas de Lévi-Srra
uss, Dumé�il, anos de insistência na perseguição desta configuração cultural arcai
WíLtgensrein ou Propp3. Uma linha condurora atravessa a mawr ca: os benandanti acabam por confessar a bruxaria de acordo com
p;trtt· dos seus trabalhos: a valorização dos fenómenos aparente- \ o modelo sugerido pelos inguisidores.
nwnte marginais, como os ritos de fertilidade, ou dos casos obscu- \ Este problema da relação entre diferentes níveis de cultura é
,
ros, protagonizados pelos pequenos e pelos exclUidos, CUJa verda- \ colocado de novo na obra li formaggio e i vermP, onde é feita a análise
deira dimensão cultural e social acaba por ser demonstrada. / de dois processos instaurados pela Inquisição a um moleiro friulano,
Domenico Scandella, dito o <<Menocchio». Os processos são extre
mamente ricos, pois o acusado não se remete a uma posição defen
S. Olschki,
Lelio Sozúni, Opere (edição de Antonio Rorondõ), Florença, Leo
2 siva: ele procura argumentar com o inquisidor e expõe as suas ideias
1986; Massimo Firpo, Il proceSJO ínqts ti iJ(Jf'ia/e de! cardinal Giovanni Moi'Oite (edição
de uma maneira bastante aberta. A originalidade das suas declara
crírica), 3 vols., Roma, lsricuro Srorico Italiano per l'Età Moderna e Contempo
:me nel cercito ções está patente na cosmogonia pessoalfssima que esboça perante
canea:, 1981-84; Albano Biondí, «Lunga durara e microactico!azi1 .
rlo di un Ufficio dell'Inquisiúone: i! "Sacro Tribunale" a Modena
(1292-178 5)», o tr:ibunal: no início tudo seria caos, isto é, terra, ar, água e fogo
Annali .dell'Istituto Stm·ico Italiano-Germanico in Trento, VIII, 1982, pp.
73-90;
Silvana Seidel Menchi, Erasmo i11 ltalia, 1520-1580, Turim, Bollati
Boringhieri, • ldl'm, I Berl(mdanti. Strcgomwia e wlti agrarí tt·a CinqtJeamo e Seicento, Turim,
1987. H i 11:11111 i I 1 '){Í(),
em conjunto; deste volume se fez uma massa como o queijo se faz criticou algumas das noções básicas com que tinham trabalhado as
do leite; neste processo nasceram os vermes, que eram os anjos, últimas gerações de historiadores da cultura, nomeadamente a noção
sendo Deus criado senhor entre eles com quatro capitães, Lúcifer, informe e incercl�sista de «mentalidade colectiva», a relação pas
Miguel, Gabriel e Rafael; quando Lúcifer se quis fazer senhor à siva e de sentido único entre centro e periferia ou as perspectivas
imagem do rei, Deus mandou que fosse expulso do Céu com toda mais operacionais, mas nem pot isso menos discutíveis, de Michel
a sua ordem e companhia; então resolveu Deus fazer Adão e Eva, Foucaulc, mais atento às proibições, aos limites estabelecidos e aos
e a multidão de povo para substituir os anjos expulsos; à qual critérios de exclusão através dos quais foi construída a nossa cultu
multidão, que não cumpria os mandamentos, enviou o seu filho, ra do que aos exdufdos e aos seus referentes culturais alternativos,
que foi preso e crucificado pelos judeus. Este é apenas um dos por vezes de otigem arcaica, como as práticas de xamanismo que
aspectos da visão do mundo de Menocchio: ele cem as suas próprias encontrou entre os benandanti do Friuli. O seu programa assenta
opiniões sobre a doutrina da Igreja, sobre o poder eclesiástico (que num paradigma <<indiciátiO» cujas origens na segunda metade do
não se cansa de criticar) e sobre a organização da sociedade. século XIX são estudadas pelo próprio autor, revelando as possibi
Embora algumas das conclusões de Ginzburg mereçam uma ve lidades epistemológicas abertas pelas obras do crítico de arte Gio
rificação mais atenta, como demonstrou recentemente Andrea Del vanni Morone, pelo romancista Conan Doyle e pelo psiquiatra
Col na introdução à edição crítica dos processos em questão, onde Sigmund Fteud (todos os três formados em medicina, rendo desen
sublinhou a dimensão maniqueia, de origem cátara, das opiniões de , volvido em diferentes campos a semiologia médica). Daí as suas
Menocchio6, não há dúvida de que o autor introduziu uma nova � incursões experimentais no estudo do mito dos lobisomens, na aná
maneira de fazer a História que deu os seus frutos nas décadas de / lise dos códigos de figuração erótica do século XVI, ou na contex
70 e de 80: uma abordagem que privilegia os fenómenos marginais, tualização da pintura de Piero della Francesca7•
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as zonas de clivagem, as estruturas arcaicas, os conflitos entre A sua última obra, Storia notturna8, representa um ponto de
configurações socioc ulturais uma abordagem que ptocede a partir
- viragem no seu percurso. Embora o ponto de partida desta inves
da microanálise de casos bem delimitados mas cujo escudo inten- tigação sobre as origens do mito do sabá se encontre em escudos
_
sivo revela problemas de ordem ma1s geral, que poem em causa : anteriores sobre configurações culturais subordinadas, neste caso o
ideias feiras sobre determinadas épocas (nomeadamente a impossi- )! autor abandona completamente o estudo de caso bem delimitado
bilidade de descrença no século XVI postulada por Lucien Febvre). para proceder a um vasto inquérito sobre os elementos estruturais
As consequências teóricas e metodológicas deste tipo de abor- ·
do mito (o voo nocturno das bruxas e a metamorfose animal), desde
dagem foram acentuadas pelo autor em diversos momentos, quando
7 Carlo G inzburg,lndap,ini.r11 Pü�-o. li Battesimo. I/ Cido di Arezzo. La Flage/azione
6 Andrea Del Col, Dmmmico Scande!lct detto Mmocchio. I jJYf)(:mi dell'InquiJizione di l/rbino, Turim, 1\inaudi, 1 9Hl.
(15/n J 51)9), Pordtnone, Hihliott:ca dtll'lmagint:, 1.990. 11
.. ld('lll, Stt>l'i,J !ltllfll1'11d. Uu.t t!n'iji•,tzirmc tl.el .wbbr1, Turim, Ein<tlldi, 1989.
\
XII A MICRO-HISTÓRIA NOTA DE APRESENTAÇÃO XIII
1. Penferia e p1·ovfncia
velmente de perto4.
fácil ir de comboio de Turim para Dijon do que de Grossero para ros, que separe as épocas e circunscreva as realizações; sem esra
Urbino.) ordem, ela (a história da pintura) degenera, como as outras, numa
Esra conrradição foi acenruada, e não esbatida, pela história da confusão de nomes mais propícia a sobrecarregar a memória do
península a parrir da Antiguidade. A existência de uma espessa que a iluminar o entendimento.»
rede de esrradas romanas e de uma quantidade excepcional de cenrros
urbanos e a fragmentação política da Itália depois da guerra greco Onde encontrar este fio condutor?
-gótica aumentaram, por um lado, a diversificação e, por outro, «Não se pode( ... ) imitar os naturaListas que, por exemplo, ten
a abundância de comunicações. Desde então a produção artística do agrupado as planras em mais ou menos classes, conforme os
na Itália esrava condenada a lidar com uma forte tendência para vários sistemas de Tournefort ou de Lineu, reduzem facilmente a
o policentrismo, mas um policentrismo consciente, caracterizado cada uma das classes qualquer planta que vegete em qualquer lugar,
a maior parre das vezes ·pela multiplicidade e não pela falta de juntando a cada nome notas precisas, caracrerizadoras e definitivas.
contactos. Conractos que, de resto, eram frequenremence mais su Convém, para fazer uma completa história da pintura, encontrar
potrados do que desejados: basta pensar nos imperadores do Oriente um modo de si tuar rodos os estilos, por mais diferenres que sejam
e nos do Sacro Império, nos califas árabes e nos reis francos, nos uns dos outros; e para isso não soube encontrar melhor caminho
invasores húngaros e nos piratas normandos. Repensar a fisionomia do que fazer separadamenre a história de cada escola. Segui o exemplo
da produção artística italiana do ponto de vista das relações enrre de Winckelmann, óptimo artífice da história do desenho antigo,
centro e periferia- embora incidindo sobretudo na pinrura, muito que descreve tantas escolas separadamente quanras foram as
menos na esculrura e quase nada na arquiteccura - significa por regiões que as produziram. Nem de outro modo vejo rer feiro
tanto repensar, inreira, a história da Itália. Mr. Rollin na sua história dos povos . . . »'
çaram mais cedo a maturidade; e no segundo as escolas da Irália numa discussão que durava já mais de dois séculos. Neste lapso de
Superior, cuja gandeza surgiu mais tarde.» tempo o número de escolas reconhecidas não tinha parado de cres
cer, ou porque centros já existentes haviam atingido uma posição
Mas só o primeiro volume foi dado à estampa, em 1792: de primeiro plano (Bolonha, Génova), ou porque a reacção muni
.
compreendia duas escolas considerad�s principais, florentma e a � cipalista de Seiscentos procurara, no âmbito da lireratuca arrísrica,
_
romana, e depois outras duas, a de Stena e a de Napole�, constd� substituir por um quadro policêntrico a imagem substancialmente
radas «como adjacentes das primárias»6 Na dedicatóna a Mana
�
monocêntrica traçada por Vasari. A novidade trazida por Lanzi
Lufsa de Bourbon, grã-duquesa da Toscana, Lanzi informava que a consistia em ter apensado às escolas maiores uma rica constelação
elaboração do segundo volume, já adiantada, tinha sido interrom de escolas menores: ao todo, catorze, incluindo o Piemonte, «que,
_
pida «e não pode ser retomada tão cedo» . Mas as sucess1v�s reela sem ter um passado de escola tão antiga como outros Estados, tem
. �
borações, destinadas a desembocar na tercetra edtçao, de nltlva, de � no entanto outros méritos que devem ser reconhecidos para ser
1809, substituíram a bipartição inicial por uma obra ma1s ampla e incluído na história da pintura» li. Daf resultava um quadro muito
complexa, dividida em cinco volumes (mais um sexto volume de mais articulado do que os precedentes: a novidade maior era talvez
�
índices?. A cada volume correspondia (com uma excepçao Jmpor representada pelas cinco escolas (Módena, Parma, Mântua, Cremo
tante como veremos em breve) uma das escolas principais. Esta na, Milão), com a qual era perturbada a etiqueta genérica de «escola
i
subd visão inspirava-se explicitamente naquela que tinha sido for lombarda>>. No entanto, tratava-se mesmo assim de um quadro
mulada por monsenhot Agucchi no início de Seiscentos - o qual, fortemente desequilibrado do ponto de vista geográfico.
,
quanto a escolas, tinha mencionado apenas quatro (lombarda, venet� , Partamos de uma consideração brutalmente quantitativa . Na
toscana e romana), decalcadas por sua vez sobre as quatro «manei edição da Storia pittorica de 1R09 a parte do leão cabia, como era
ras dos antigos» (ática, siciónia, asiática e roman�)R. Acerca d : de prever, às escolas maiores (excluída a lombarda, pela razão que
. .
«ordens, classes, ou seja, escolas» tinha falado GmlJO Manom, acaba de ser dita): florentina (300 pp.), véneta (293), romana (280)
prescindindo todavia de considerações de carácter geográfico, para bolonhesa (214). A uma disrância considerável seguiam-se: a de
distinguir as principais orientações estilísticas presentes em Rom� Milão (98 pp.), a de Nápoles (85); a de Génova (73); a de Siena
.
cerca de 16209. E ainda antes, em 1591, o pmtor G. B. Paggt (70), a de Ferrara (64). Mais distanciadas ainda: a de Parma (46),
tinha visto trabalhar na Itália «três famosas escolas de pintura, em a de Cremona (45), a do Piemonte (38), a de Módena (35), a de
Roma em Florença e em Veneza»; e acerca de «virtuosa escola» Mântua (25). Por outras palavras, a parte concedida aos pintores
f
tinha alado ' em meados de Seiscentos, Benvenuto Cellini10.
. . . . da Itália meridional -aquela «escola napolitana>> que, a partir do
Definindo as escolas italianas de pintura, Lanz1 msena-se po1s projecto inicial de Lanzi, figurava como apêndice da escola romana
- não ocupava mais que um vigésimo do total: 85 páginas sobre
.um total de mais de 1600.
6[dem, La stwia pittorica del/a Italia inferiore o sia d.elle SC'Iioie florentina mzese
Para explicar um desequilíbrio tão evidente convém lembrar
romana napolitalla compendiata e ridota a metodo. . . , Florença, 1792, �p� 9 e 37.
_ que Lanzi nunca se deslocou ao Reino de Nápoles nem às ilhas.
1 É nesta edição, publicada em Bassano, que se base1a a ed1çao cnuca
cic. de M. Capuccí. O seu escrúpulo de conhecedor - que o impeliu a explorar zonas
. . . .
a Cf. G. P. Bellori, Le vire de' pittwi, scultort e archztettt moderm, ed. por :Lté menos meritórias como Friuli (não fulando já de Génova ou da
E. Borea, Turim, 1976, p. 330. l.()mbardia) para poder formular a maior quantidade possível
.
9 Cf. G. Mancini, Comiderazioni sul/a pittura, ed. por A. Maucch1, Roma,
dt.' juízos em prímeit<t mão- é evidente que se deteve perante as
1956, I, pp. 1 0 8 ss.
. difinddad<:s e as fadi�as ele uma viagem ao sul de Roma. Desta si-
e
10 Cf. G. G. Borrari S. Ticozzi, Raccolta sul/a .�,�tftttra, fnttur� e
di /ettere
arcbitetlurd, VI, Milano, 1R22, p. 65; H. Ccllini, La Vita, td. por G. DaviCo
Boninn, Turim, 197��. pp. 1\M-/0. " 11111:.i, I, p, '0.
ti
,,
n Cf. { J. St-)1rc, /,uip.i I �mzi e ft, me: •Jf!i.�·v, Assis, I 1J0li ; T.ami, p. -iü1J.
·
11 l,a11�.i, I, p. :l'>'í. ,., 1/J/,/,,,,,, I'· .ntJ,
CAPÍTULO I 15
14 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
«Não faço coincidir os limites desta escola com os do estado unificador, uma capital:
eclesiástico; porque incluiria Bolonha e Ferrara e a Romanha,
cujos pintores reservei para outro tomo. Aqui agmpo com a capi «A escola de Florença, a de Roma, a de Veneza e de Bolonha
tal só as províncias que lhe estão mais próximas - o Lácio, a podem ser vistas como outros tantos d ramas , onde se mudam os
Sabina, o Património, a Úmbria, o Piceno, o estado de U rbino -, actos os cenários - que tais são as épocas de cada escola; mudam
;
cujos pintores foram na maior parte educados em Roma ou pelo tambem os actores - que cais são os mestres de cada novo período
menos por mestres v indos de lá.» 1 7 - mas a unidade de lugar, que é uma mesma cidade capital, con
serva-se sempre; e os principais accores que fazem de protagonistas
Assim os dois ctirérios, o estilístico e o político, muitas vezes fi �am sempre, se não em acção, pelo menos como exemplo ( ... ). É
coincidem, porque toda a escola pressupõe um centro, que é dtferente o que se passa na história da lombardia: tendo estado
cumulativamente um centro político. Às vezes, porém, divergem, nos melhores tempos da pintura dividida em muitos mais domínios
porque exisrem centros artísticos que foram no passado centros do que agom, teve em cada Esrado uma escola diferente de todas
polfcicos e agora já o não são. Por outras palavras, a geografia as ourras e conheceu também épocas diferentes·' e se uma escola
pictórica e a geografia política da Itália, no momento em que Lanzi influiu no estilo da ourra, isso não se verificou tão exrensam.ente
escreve, nem sempre se podem sobrepor. Nestes casos o critério ou num tempo tão próximo que possa alguma época condizer com
determinante é, para Lanzi, o estilístico. Vejam-se as afirmações, muitas delas. Por isso desde o início deste livro eu renho renuncia
do ao modo comum de falar, que diz escola lombarda como se ela
particularmente nítidas, a propósito do Piemonre:
fosse uma só.>>
Há certamente quem julgue que se poderia dar o nome de todos os outros centros das escolas lombardas por ele descritas
escola lombarda aos continuadores de Corregio, individualizando (exceptuando Cremona) tinham sido sedes de corte até a um tempo
as suas características: «Mas, limitada assim a escola, onde é que mais ou menos recente. Enfim, temos uma miríade de satélites (as
iríamos pôr os mantuanos, os milaneses, os cremonenses e tantos «cidades súbditas») gravitando, em posição subordinada, em torno
outros que, nascidos na Lombardia e aí florescendo, e sendo além dos planetas de primeira e segunda grandeza:
disso educadores de longa posteridade, merecem todavia um lugar
entre os lombardos ?»19 «É verdade que toda a capital cem o seu Estado, e por isso
A imagem habitual de um centro maior incontestado cede o devem ser lembradas as várias cidades e as vicissitudes de cada
lugar desra vez a uma imagem policêntrica. Mas a diversificação uma; mas estas encontram-se geralmente cão ligadas às da metrópole
enrre as diversas escolas lombardas, sobre a qual Lanzi insisre contra que facilmente se reduzem à mesma categoria, ou porque os arris
o «modo comum de falat», brota das divisões políticas do passado. cas aprenderam a arre na cidade principal, ou porque aí a ensina
A predominância atribuída às determinações estilísticas deixa entre ram - como se pôde ver na escola véneta - e os poucos que vão
ver um nexo, não analisado pot Lanzi, entre «história das escolas pic para fora em geral não alteram grandemente a unidade da escola e
tóricas» e «história dos Estados» , obnubilado pelo facto de os cen a continuidade dos ensinamentos.»21
tros artísticos tomados por ele em consideração terem sido também,
pelo menos num momento da sua história, centros de poder político. Bastará recordar, a este propósito, os dois casos, em cerco sen
Em conclusão, a galáxia pictórica italiana descrira por Lanzi tido opostos, de Jacob Bassano e de Vetonese. O primeiro
apresenta-se dominada por quatro planetas mais importantes, as
«cidades capitais»: Florença, Roma, Veneza, Bolonha. Só em «era limitado de ideias, e por isso as repetia facilmente
raríssimos casos uma das «capitais» consegue tornar-se um sol, também por culpa da sua situação: é mais que certo que, aos artífices
unificando artisticamente a península toda: e escritores, as ideias surgem nas grandes metrópoles e apagam-se
nos aglomerados pequenos»22•
«Giotto foi assim um exemplo para os estudiosos durante todo
o século XIV, como depois Rafael no XVI e Carracci no seguinte; O segundo, pelo contrário, de Verona
nem consigo encontrar um quarto estilo que entre nós tenha tido
uma continuação como o destes três . »20 «passou primeiro a Vlcenza, e daí para Veneza. Era o seu
talento naturalmente nobre, elevado, magnífico, ameno, vasto; e
Mas trata-se de períodos excepcionais . Em regra, as «cidades nenhuma cidade de província podia fornecer-lhe ideias à altura do
capitais» são aquelas que conseguem impor uma hegemonia artística seu gênio tanto como Veneza»23•
dutadoira sobre as «cidades súbd.itas>> dos respectivos Estados.
Quando isto não se verifica, como no caso da Lombardia, encon
tramo-nos perante uma constelação de planetas de segunda gran 5. Cidades capitais e cidades súbditas
deza. É claro que o termo «capital» é usado aqui numa acepção
artísrica, não política: em 1809, quando Lanzi dava à estampa a Poder-se-ia dizer que na Storia de Lanzi a periferia está pre
edição revista da Storia, Milão era a capital do reino de Itália, e sente apenas como zona de sombra que faz realçar melhor a luz da
metrópole. Rudeza ou falta de ideias caracteriza os pintores das a cultura, que noutros tempos era acessível a poucos, a arte assume
cidades súbditas, de que Lanzi geralmente se desembaraça antes uma tonalidade nova, animada ainda pelas honras e pelo interesse.
de passar aos géneros menores da pintura. Numa das suas pouco O cosrume de expor em público as pinturas à vista da população,
frequentes formulações de carácter geral, escrevia ele, a propósito que faz justiça às boas, e por vezes, à força de apupos, faz retirar
de um pintor periférico seguidor de Maratta, Ubaldo Ricci: as mal compostas; os prémios públicos dados aos mais merecedo
res, qualquer que seja a rerra a que pertencem, e acompanhados de
« Geralmente não ultrapassa a mediocridade: condição bastante composições de literatos e de festa pública no Capitólio; o esplen
comum a pintores que vivem fora das capitais sem estímulos de dor dos templos sagrados adequado a uma metrópole da Cristan
emulação e sem abundância de bons exemp los.>> 24 dade - esplendor que se alimenta das artes e que reciprocamente
faz viver as arres; as encomendas lucrativas que vêm de fora e que,
Benignidade do clima, mecenatismo, emulação, bons exemplos: pela generosidade de Pio VI ( . . . ), abundam na cidade; o continua
são estas, segundo Lanzi, as características das metrópoles apro do exemplo de soberanos ( . . . ); estas coisas manrêm em perpétuo
priadas para incentivar as artes. A elas se juntam, na época mais movtmenro e em comperição louvável os arriscas e as suas esco
» 6
recente, uma cultura artística mais d i fundida e a exisrência das las . . . 2
academias. Trata-se de um elenco tradicional, se excepruarmos os
dois últimos elementos, ligados a uma situação específica, substan « Honras>> e «interesse» ; «competição louvável» e «subsídios» ;
cialmente serecentista. Mas o rema da emulação entre os artisras, <cprémios públicos» e «encomendas lucrarivas» . Sobre a importân
largamente presente na literatura anterior (pense-se em Vasari), cia das «Competições públicas» para o desenvolvimento da arte en
adquire em Lanzi implicações novas. Para as entender, releiam-se Atenas tinha-se debruçado Winckelmann naquela Storia d-el/e arti
as razões que o rinham impelido a escrever a sua Storia pittorica: de/ disegrto prmo gli antichi, explicitamente evocada por Lanzi, ou
anres tomada como modelo da Storia pittorica no que respeita à
«Todas as coisas parecem aconselhá-lo: o entusiasmo dos príncipes organização.27 Mas a referência ao « interesse» como motor do
pelas belas-artes; a compreensão destas alargada a rodo o gênero desenvolvimento arrístico não é winckelmânica. Tem-se reruado
de pessoas; o costume de viajar, a exemplo dos grandes soberanos, ligá-la à hipotérica leitura de uma obra que estamos habituados a
rornado mais comum a pessoas privadas; o tráfico das pinturas inserir numa órbita cultural muito afastada da do abade Lanzi: o
tornado um ramo de comércio importante para a Itália; a índole ESJay on the History of Civil Soáety, de Adam Ferguson (1 767). Dele
filosófica da nossa época, que em rodos os estudos abomina a apareceu em Vicenza, em 1 7 9 1 -92, uma tradução italiana - Sag
superficialidade e exige sisrematização. » 25 gio sopra la Jtoria del/e società civile - feira a partir duma tradução
francesa anrerior e devidamente munida de uma licença de im
As pinturas tornaram-se, portanto, um ramo do comércio: ram pressão passada pelo Santo Ofício veneziano.28
bém para elas valem os princípios da concorrência. Veja-se a página Os indícios de uma possível leirura desta rradução de Ferguson
que conclui a secção sobre a escola romana: por parte de Lanzi são, como veremos, exíguos. É cerco que, na
Staria pittarica, a impouância da concorrência é fortemente sublinha nação i tálica que não fosse a florentina, decaíram as acres em Sie
da: quer no sentido de emulação entre arriscas, quer no sentido de na, não só porque estas seguem geralmente as vicissitudes civis
emulação entre conswnidores. Porque é que, por exemplo, há em das cidades, mas ainda porque dois terços dos cid adãos nessa oca
determinados períodos concenrrações de arrisras - pinrores ou lire sião mudaram de terra, recusando-se a viver súbdi tos onde rinham
raros - de nível excepcional, como no «Século de Leão X » ? Lanzi nascido livres. »31
começa por dar wna resposta de tipo rradicionalmenre académico:
Na terceira edição (1 809), o mesmo passo era formulado mais
«Eu sou de opinião de que os séculos são sempre informados prudenremenre nesres termos:
de cerras máximas universalmenre aceires tanto por professores como
por diletantes; as quais, achando-se em dada época que são as mais «Veio finalmente o ano de 1 5 5 5 , em que Cosme I espoLiou os
verdadeiras e as mais jusras, formam nessa época muitíssimos Senenses da sua antiga li berdade. Eles tê-la-iam cedido com me
professores bons e mesmo alguns extraordinários. » nos relutância a qualquer ourra nação que não fosse a florentina;
pelo que não ·é de admirar que dois terços dos cidadãos em tais
Mas a frase que se segue, d e timbre bem diverso, s e bem que circunstâncias mudassem de terra, recusando-se a viver súbditos
apresentada como um acrescento, soa anres como uma explicação de rão abominável inimigo.»32
alternadva:
Deste modo a relação liberdade/vicissitude civil/prosperidade
«Acrescento, porém, que estes séculos felizes nunca surgem se das arres, apresentada na primeira edição, era anulada. Entre as
não houver um grande número de príncipes e de particulares dis duas formulações tinha-se metido Napoleão, o <<novo Alexandre» ,
postos a competir na apreciação e encomenda de obras de bom ao qual Lanzi, no fim d a edição d e 1 809, prestava laconicamenre
gosto: assim se dá que fazer a muira gente; e do seu grande número homenagem.
surgem sempre certos génios que dão o rom à arre.»29 A referência, discrera mas eloquente, à liberdade rinha um rimbre
mu.iro winckelmânico. Na Storia del/e arti de/ disegno, a sua obra
Uma contraprova de tudo isro é dada, segundo Lanzi, pela maior, ele tinha escrito por exemplo que «a liberdade foi a princi
«história da escultura em Atenas, onde a magnificência e o gosto pal fonte dos progressos da arte (grega) » . «É um princípio favorito
caminhavam a par»: a evocação imediara é, rambém aqui, a do Sr. Winckelmann», anotava a este respeiro o editor da tradução
Winckelmann - mas não se pode esquecer a página de Ferguson italiana (Roma, 1 7 8 3), C. Fea, «que a li berdade tenha tido sempre
sobre o luxo na sua relação com o progresso das arres.30 wna grande influência na perfei ção das artes; mas a reflexão e a
É claro que a insistência na pluralidade dos consumidores põe história provam mu.i.tas vezes o conttário . . . »33 Ao que parece, Lanzi
impl iciramenre um problema polírico: um principado absoluto é sentia-se nesre ponto, pelo menos em 1 792, mais próximo das
favorável ao desenvolvimento das artes do mesmo modo que uma .ideias de Winckelmann que das de Fea. Mas na referência à
república? Lanzi parece ter-se posro um problema deste género na «vicissitude civil» não se pode deixar de ver wn eco do Saggio de
primeira edição da Storia a propósito de Siena: Ferguson. No capítulo VII da III parre, intitulado «Da história
das arteS>>, lê-se:
«Depois que Cosme I espoliou os Senenses de uma liberdade
que eles .reriam cedido com menos relutância a qualquer outra ·11Cf. Lnnzi, La storia pittorir.·a d�lla ltalia infe,-iore, c.it., p. 179.
lc l1,m, T, p. 24.5.
·':'
·" J Winckelmann, Storia del/c <Mi rlcl di.reguo firmo gli antichi, Roma,
211Lanzi, I, p. 283-84.
I / H \ , 1 1 , p. I (,,j 11111:1.
"' cr. Ferg uson. S("f.gl',ili .roprrt ltt .rtrWÍ<I, di. , lT, 1>1'· 221. ss.
22 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 23
« A imaginação e a sensibilidade, o uso do intelecto e das mãos a fazer restrições no tempo e nos materiais. A atenção de Lanzi aos
não são invenções de alguns homens em particular. O estado flo aspectos artesanais e manuais do fazer pictórico assume neste pomo
rescente das artes ·é o sinal da interna fel icidade política de um ressonâncias singularmente modernas. Para afastar de Correggio a
povo é não uma prova de iluminações vindas de outro síri o ou de pecha t radi ci onal de avareza, ele não bes ita em quebrar visivel
qualquer supe riori dade natural em tal entos e habilidade. » 34 mente o tom esrilísrico domi nanre da Storia para inserir uma lista
min uci osa de pagamentos, culminando com esta afirmação:
«0 estado florescente das artes é o sinal da i nterna felici dade
po lítica de um povo�> , escrevia Ferguson; «as artes ( . . . ) seguem em «Toda a sua pintura é executada ou em cobre ou em madeira
gerai as vicissitudes civis das cidades» , declarava Lanzi (antes de, ou em telas de boa qualidade, com verdadeira profusão de azul
como vimos, ter co rrigi do rodo o passo). P·oder-se-ia conjecturar marinho, de vernizes e verdes belíssimos , com forre empastamento
que mesmo a expressão usociedade civil» - que ocorre na intro e contínuos retoques e a maiot parte das vezes sem tirar a mão da
dução à St�tria pittorica, na parte dedicada aos mérodos dos conhe obra ames de a ter acabado por complero; numa palavra, sem
cedores ( « a natureza, para segurança da sociedade civil, dá a cada nenhuma daquehis poupanças de d inhei ro ou de rempo de que
pessoa que escreve um girar de pena que dificilmente poderá fizeram uso quase todos os o ut ros . » �6
contrafazer-se ou confundir-se no e sc ri to feito por outrem») -
possa consti t uir um indício da leitura de Ferguson: sobretudo porque Sobretudo a economia de tempo, a «velocidade» , parece a Lanzi
aqui a x<sociedade civi'I» não é a comunidade humana organizada uma prática generalizada e condenável. Um excessivo número de
·da tradição aristorélica, mas, mais precisamenre, a sociedade bur pintores segue as pegadas de Vasari, que «a maior parre das vezes
guesa - uma sociedade fundada sobre a confiança recíproca, pro anrepôs a cel erid ade ao acabamento perfeiro » , reclamando-se da
ven i en re em primeiro lugar da dificuldade de falsificar as assinatu pi nrura condensada dos antigos: mas o passo de Plínio sobre Filo
ras dos contratos comerciais.3� seno Ererrio - comenta Lanzi - fala de pinturas em que a velo
cidade de execução era acompanhada de perfeição . Pelo contrário o
método moderno, baseado na « mecani zação» , no «meia bola e força>> ,
6. Concorrência e sociedade civil
«ral como é vantajoso para o artista, que assim multiplica os
Se insistimos na possibilidade, de qualquer modo não provada, seus ganhos, na mesma medida é nocivo à arte, que por esse caminho
de uma leitura de Ferguson por parte de Lanzi , é porque ela poderia cai necessariamente no maneirismo, ou seja, na adulteração do ver
dar conta de um rema que reaparece mui tas e muitas vezes nas dadeiro»37.
páginas da Storia pittorica, e ao qual geralmente não se tem dado o
relevo que merece. A existênc i a de comp radores múltiplos, e por O ponto máximo é representado pelos vénetos, e em parti
tanto de um mercado, influi, como vimos, de maneira positiva cular por Giorgione, que «desdenhou aque la minúcia que ainda
sobre a produção attfstica. Mas esta é para Lanzi apenas uma face resisria a deixar-se vencer; e substituiu-a por uma cerca liberdade,
da medalha. Ele vê de facto o risco, deplorável, de que um artista, um quase desprezo que é para ele o ponro alto da arte». E deste
para satisfazer as encomendas e bater a concorrência, se ja i mpelido mod � , trabalhando « não tanto por empastamento como a golpes
de ptncel » , os vénetos suscitaram contra si por parte dos estran
geiros a acusação de ter cedido a
;4 Ferguson, Saggio .ropra .ta storia, cit., II, pp. 74-75.
3) 'tan�i, I, 1 5 , Sobre o conceito de «Sociedade civil» vn o vocábu lo em
"' l.ill l'l. i I T I , p. 2:�4.
M. Rddd, «'GeseHsdtafr, bmger!ichen, in Caschithtlichc Gnm,ll,tgl'([(c, {·• l . por ' 1 T.;ul'l.i , I, p. I 10 , . 1\CII.I. '2. Vcjn· s•· <�inda S. St·l'l is, «Qui mtdras
facie�
O. Br1.1nner, W. Cooze e R. Kosdkrk, 1 1 , Esttl)',:ll'<b, 1 ' >1'>, f'P · '/ I ') HOO. 1 1 1 < 1 ( l t i VI'Il , I X , l ·l t , ) � , in 1\t.·m t ' a,,,,, ,, n. �i . , X V , I ')J t l ,
1 ' 1 '· l i '/ 2 1 .
p i i l/-\ i t
HISTÓRIA D A ARTE ITALIANA CAPiTULO I 25
24
«uma rapidez que atamanca, que despreza as normas, que não outro tipo) e centros d e elaboração arrística. É com estes proble
acaba o trabalho presente devido à ânsia de passar rapidamente a
mas (se bem que po stos em termos inevitavelmente diversos) que
demente e que t.inha grande cuidado em esconder a fad1ga>> e tam da c u ltura literária italiana o pleno equilíbrio entre o Norre e o
bém Veronese, no qual a celeridade era acompanhada de « sup rem a Sul40. Recorda-se, por outro lado, quão diverso e desequilibrado
inte l ig ência » : mas critica a falta de d i Ligência de Tintoretto, os era o quadro traçado por Lanzi. É Hcito pôr a questão de saber se
quadros de Palma il Giovane, que parecem esboços devido às en esta distorção de que Lanzi, como vimos, estava consciente, seja de
comendas demasiado numerosas, a rapidez tornada incúria de Piaz atribuir por inteiro à escassez e falta de c red ibi lidade das suas
zetta, para concluir, a propósi to do cremonense Giuseppe Bottani : fontes de informação sobre a Itália meridional, e não à ausência de
indagações direc tas .
«Ü leitor pode enfim ter notado no decurso desta história que Que a pi ntura do Reino e das ilhas estej a ainda em grande
a pressa é o escolho mais funesto à reputação dos pintores. São parte por des cobri r, isso não deixa dúvidas. Igual mente não deixa
poucos os que p odem fazer depressa e bem.»39 dúvidas que a duradoira negligência da hi s toriogr afi a artística em
relação a esra parte da Itália se inscreve num complexo que se
A «Sociedade civib analisada por Rousseau e por Ferguson é a pode condensar na de sig nação de «questão merid.ionah>' í 1. E toda
sociedade burguesa fundada na concorrência. Não se pretende carregar via - para antec ipar uma conclusão que acabará por ficar óbvia
- as desejáveis pesquisas sobre a p inru ra meridional não poderão
de implicações exces sivas uma referência isolada à «Sociedade ci
vil>> feita por Lanzi: mas é certo que ele sublinhou quer os efeitos trazer à luz uma rede de centros artísticos comparável à do Centro
propulsores da co ncorrênc iasobre o desenvolvimento da pintura, e do Norte da Itália. Neste sentido, é lícito dizer que a distorção
quer o alastrar da «mecanização>> em prejuízo da qualidade dos constante da Storict pittorica de Lanzi reflecre substanc ial me nte uma
produtos devido à crescente comercialização da actividade artís tic a. distorção, ou melhor, aquela di sto rção que caracteriza a hi s tóri a
(não só pictóri ca) da Itália.
Falámosduma conclusão óbvia, mas a distribuição geográfi ca dos
centros artísticos iralianos não é óbvia. Valerá a pena analisá-la.
7. Os desequilfbrios territoriaiJ
Vamos considerar os cenrros artísticos italianos como uma espéci e
Esta leitura da Storia de Lanz i seguindo o fio das re laç ões entre de clube. Quais eram as condições para a inscri ção neste clube e
cenrro e per iferia fez emerg i r duas ordens de problemas ai nda não quando se fecharam as inscrições? Sem me táfora: porque é que os
li
26 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 27
centros artísticos italianos foram, histOricamente, aqueles e não ampliaram-se, cingindo-se de muralhas, e numerosas comunidades
outros? E quando (e porquê) deixaram de aparecer centros novos? saíram do estado tribal para passarem a uma vida social de tipo
Para responder será necessário partir de muiro longe. A anti urbano. Esras iniciativas municipais verificaram-se em rodo o Centro
guidade e a persistência dos centros urbanos é na realidade uma -Sul, com a excepção (significativa, pelos motivos que veremos) da
das caracterísricas mais salientes da hisrória da península. Segundo faixa central, onde anteriormente tinha havido fixações etruscas: a
Sereni, numa amostra de oiro mil centros mais de um quarro (2684) Etrúria e parte da Úmbria hodierna.
vem fundado da época romana ou pré-romana, pouco menos de Mais ou menos no mesmo período foi-se realizando a coloni
·
um rerço é fundado enrre o século VIII e o século XII, e menos de zação romana da Gália cisalpina. Também ela foi acompanhada
um oitavo no período posterior ao século XIV42. Mas este dado da fundação de centros urbanos, mas segundo modalidades muito
quantitativo, em si mesmo impressionante esconde um outro, , diferentes das praticadas no Cenrro-Sul. Não só porque o núme
qualitativo, mais carregado de consequê ncias para a história iralia ro dos novos centros foi consideravelmenre menor, mas sobretudo
na, mesmo nas suas dimensões arrísticas: e é que um contrasre porque a sua fundação decorreu em conformidade com um verda
fundamental entre os centros urbanos da península já se rinha deiro plano regulamentar, que implicava uma reorganização do
delineado no decurso do I século a.C.43. rerritório, a construção de obras hidráulicas e coisas no género44 .
l'
28 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAPITULO I 29
a. C . As perturbações e os traumas sucessivos puderam alterar este
ginária, um meio cemitério de centros urbanos46; a
norte, uma
desequilíbrio, mas não eliminá-lo.
. . série de cidades atingidas de maneira por vezes muito
No fim da Antiguidade a rede dos centros urbanos 1tahanos grave, mas
quase nunca definitiva. Corfinium ou Marruv ium, ao contrár
apresentava pois um aspecto dúplice: no Centro-Sul (exceptuada a io de
Bolonha ou de Placência, já não iriam ressurgi r. Atrás desta
Etrúria e parte da Úmbria actual), uma malha apertada, no Norre, dico
tomia transpatece (exceptuadas algumas divergências
na faixa que
um reticulado muito mais aberto. A resistência dos dois sectores,
abrange o Lácio setentrional e a Úmbria meridional)
já então fortemente enfraquecidos, à convulsão que se seg �u foi
que tinha vindo a acentuar-se, a partir do século I a.
a oposição
C., entre as
muitíssimo diferente. Pata ficar ciente disso basratá exammar o
fixações urbanas nas várias partes da península.
mapa das dioceses italianas no início do século VII. Como se sabe,
A sorte de Bolonha ou Placência relativamente a Corfini
um ou
as sedes episcopais coincidiam de facto com os centros urbanos: a
Marruvium explica-se naturalmente à luz da história italiana
destruição ou o despovoamento destes últimos acar eca a, ap s um
:_ �
� sequenre. Detenhamo-nos agora sobre este ponto. Tentem
sub
os dar
lapso de rempo às vezes basranre longo, ou a transferenc1a da dHcese
� um salto de alguns séculos. Depois do Milénio , há em roda
para um centro contíguo, ou a sua supressão. P este m t1v s, a Irália
?� � ? � um resurgirrienro das cidades, mas no decurso de
um século as
um exame das dioceses suprimidas fornece uma set1e de md1caçoes
vicissitudes do Centro-Norte, por um lado, e do Sul,
pelo outro,
bastante significativas.
divergem mais uma vez. A Itália das comunidades contrap
O que logo salta aos olhos é a grandeza do fenó eno: em õe-se
ii_l uma Itália feudal. O desenvolvimento aurónomo das cidades
.
232 dioceses existentes no início do século VII, 106 (mclurndo meri
dionais deixa de existir: Amalfi, para lembrar apenas um
caso exem
crês incertas) foram suprimidas. Quase metade, portanto. Note-se
plar, entra em decadência. Palerma prospera e reforça-
se, mas fá-lo
que as dioceses transferidas de um centto em ruína para um centro
porque é sede de uma corte. O panorama que se ia
esboçando,
contíguo de recente fundação (de Luni para Sarzana, por exemplo,
análogo ao da Itália centro-setentrional, ricamente policên
ttico, dá
ou de Roselle para Grossero) não figuram entre as s upnm1das: o
lugar a um outro completamente diferente, caracterizado
.
quadro dos centros desaparecidos ou reduzidos a alderas
.
ass1m fie� magamento das cidades menores em detrimento das
pelo es
:
pequeníssimas coincidentes com localidades de importância muitas
de facto, com aquela parte da lrália em que o reticulado
origem romana ou pré-romana se revelou mais resisten
urbano de
te. Trata-se,
vezes diminuta.
(:. ctrco, de uma coincidência imperfeita: se sobrepusermos
as duas
Bem diversa foi, por outro lado, a resistência que opôs o reti líreas, fica de fora uma faixa da Itália central, a sul da
zona Roselle
culado urbano relativamente mais aberto do Norte (e de parte do ( , rosseto)-Chiusi-Perugia-Ancona, onde todavia se desenvo
lveram
Centro). Desapareceram, é cerco, ou decaíram gravemente, ce�tros
. <·idncles comunais como Orvieco ou Virerbo Mas é precisam
. ente
costeiros ou próximos da costa, tais como Aemon1a, Aqurleta,
<:SI a faixa de não coincidência que é significativa,
porque remete
Altinum, Vicohabentia, mais expostos às invasões: mas o quadro 1 1 1 : 1 i s u rna ve'/. para uma dicotomia mais antiga:
o contraste entre
não sofreu gl obalmente modificações demasiado graves. Poder-se
-ia com base nisto traçar uma linha que ligasse Rosel.le (ou, prefe
"' A ('�P''' "'�•l•> c· .1,· E. Sc·sra1l (v<:ja-sc a O(H:•t
rindo, Grosseco), Cbiusi, Peru g ia, Anc.:ona. A su I desta linl�;, i r na- bihliognífica no suhcapírulo
•11 � 11 11 1 1 1 ' ),
30 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAP{TULO I 31
as duas partes da península gerado no século I a. C. Mais de mil depois destes limites pode merecer a qualificação de centro artísrico.
anos depois, aquele con rras te mostrava-se ainda actuante. Como se vê, o número dos possíveis candidatos continua a restrin
gi r-se. Se continuarmos esra operação de apuramento, chegamos à
conclusão seguinte: as inscrições no clube dos centros artísticos
9. Deslocação dos centros artísticos italianos, abertas em princípio a rodas as sedes episcopais, fecha
ram no fim do século XI. Findo este período, as novas sedes
Estas connadições de longo (ou longuíssimo) período têm de - quer se tratasse de Alexandria ou de Livorno, de Carpi ou de
estar presenres se quisermos compreender a deslocação geográfica Praro, de Foggia ou de Civiravecchia - encontraram as porras
dos centros artísticos italianos. Entre eles encontramos de facto trancadas.
muitos cenrros de origem romana ou pré-romana: mas isro não Até aqui temos delimitado fo rtemente as condições cronológicas
constitui uma condição necessária (e rambém não suficiente) para necessárias à admissão: mas não apurámos ainda as condições sufi
a admissão no clube de que acima falávamos . Basra pensar em Ve cientes. Por ourras palavras: rodos os centros arrísticos italianos
neza ou em Fertara para perceber qu e devemos procurar noutra di corresponderri a outras tantas sedes episcopais existentes no fim do
cecção. Ter sido sede de diocese? Talvez esta deva ser considerada século XI; mas a recíproca não é verdadeira. Porque é que Andria,
uma condição quase necessária, na medida em que é difícil encon Matelica, Venosa, Taranro (para cirar alguns nomes de sedes esco
traç um centro artístico italiano que não tenha sido também sede lhidas ao acaso) não conseguiram rornar-se centros artísticos no
episcopal. As excepções - como Saluzzo ou Fabriano, que só tar pleno sentido do termo?
diamente se tornaram sedes episcopais - são pouquíssimas: quan Aquilo que finalmente nos permite determinar as coordenadas
to aos mosteiros, rrata-se de centros sui gmeris, caracterizados pela geográficas e cronológicas dos cenrros artísticos i ralianos é a deci
ausência de uma periferia própria. Mas não se trata com certeza de siva contraposição entre as duas Itálias - a comuna! e a feudal -
uma condição suficiente: os centros de diocese que não tiveram que surge exactamenre no decurso do século XI. Na Itália cenrro
papel de relevo na história artística são inúmeros - desde Sarsina -setenrtional (à parte os casos srú generiJ de Veneza e, obviamente,
a Numana e às miríades de centros episcopais menores do Mezzo de Roma) os centros artísticos identificam-se com as cidades que
giorno. É pois no âmbito dos centros de diocese que devemos em desenvolveram uma intensa vida comunitária - rodas, sem excep
regra procurar os centros artís ticos italianos. Mas quais os elemen ção, sedes episcopais48. Na Itália meridional (salvo a excepção de
tos (históricos, bem entendido, não formais) que definem esre Mess.ina), identificam-se com as cidades posteriormente sufocadas
subconjunto? pelo centralismo normando-suevo (Amalfi, Bari) e com as que foram
Avancemos por elimi nações sucessivas. Examinemos em pri sedes de corte (Palermo, Nápoles). A fronteira entre estas duas
meiro lugar os centros desaparecidos ou decaídos (e não mais res Itálias artísticas policêntrica uma, oligocêncrica a ourra - re
-
taurados) desde o início do século VII. Enrre eles, nenhum (com a produz aquela que se formou no século I a. C. e que nunca foi
possível excepção de Aqui leia) pode ser definido como centro artístico elimi nada por vicissitudes posteriores.
em sentido próprio. O campo de pesquisa restri nge-se imediata
mente. Passemos agora em revista as sedes episcopais insricuídas
depois do século VI I É possível identificar uma fase de intensa
.
a partir dos séculos XI e XII e no Cenrro-Norre a parrir dos meados '1'1 Cf.
.E. St·stan, «La ci ttit comunale italiana dei secoli XI-XIII nelle sue
do século XIV47• Todavia, nenhuma das sedes episcopais instituídas roo1c c;ttr: t l rnisdche risperro ai. movimento comttnale europeo», in XJh'" Cong,·es
llllt'IIIIIIÍIIIItl! , ;,., Sumll'r l[i.rlo1'iqttUJ, l?tt/J/101'1.1 , r n , Estocolmo 1960, pp. 75-95.
�'''' 1 .
pnrrir111iu· p . H'
'17 Vejam-se a proptis iw os volum e.� p01hl inulos d:os l<. tlimuo.r ,/r:ritll.t/'f/111.
32 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 33
um atraso de poucos anos, que apesar disso é sentido como traumático que eu posso fazer?" Mas eles continuaram a espicaçá-lo com poe
porque coincide com momentos e situações carac terizadas por súbitas mas e vilanias em público.
mudanças de gosto. Isto é, teremos respectivamente: produtos como Depois, já velho, tendo partido de Florença e regressado a
berços ou colheres decorados, leitos, arcas, tecidos de vário género, Perugia, realizou alguns frescos na Igreja de São Severo ( . . . ). Tra
utensílios construídos pelos próprios utentess0; ciclos de frescos balhou igualmente em Montone, em Fratta e em muitos lugares
pintados por oficinas de pintores itinerantes, dedicados à decora do condado de Perugia.»52
ção de oratórios campestres ou de igrejas de pequenas cidades; ou
finalmente obras de pintores de renome que de um momento para Aos diversos níveis que esquematicamente dist inguimos cor
o outro se viram postas à margem do mercado artísrico. respondem, portanto, diversos graus de viscosidade (e correlativa
Tomemos um produto campesino, seja um utensílio ou um mente uma maior ou menor possibilidade de localização cronológica).
objecto litúrgico. As formas fundamentais baseiam-se num repertório Não será arriscado concluir que numa situação de autoconsumo
limitado (espirais, círculos, estrelas, etc., combinados de várias artístico como a dos camponeses o incentivo à inovação é pratica
maneiras) que permanece quase imutável durante séculos, a ponto mente nulo.' Numa situação de semimonopólio como aquela em
de alguns deles parecerem remontar mesmo ao período neolítico. que trabalhavam os pintores itinerantes verceleses dos meados de
A viscosidade, a persisrência tipol�gica são neste domínio particu Quatrocentos podia-se fazer uso de modelos em certos casos bas
larmente forres. Se, pelo contrário, atentarmos nos produtos das tante antigos sem correr o risco de iludir as expectativas de um
oficinas itinerantes - por exemplo aquelas equipas de artistas que público que não tinha nenhuma possibilidade de confronto. Numa
trabalhavam no Vercellese por volta de 1450-70, a que se deve situação de concorrência como a de Florença por volta de 1505, é
'I
entre outras coisas a decoração pictórica do oratório de São Betnar- a crítica exercida pelos <<novos artífices» colegas e rivais que leva
fig. 1 do em Gattinata51 -, vemos que eles retomam com variações Perugino a transferir-se da cidade (embora não definitivamente)
mínimas modelos que talvez remontem aos últimos decênios de para o condado úmbtio. Não se pode neste caso falar de «atraso
Trezentos. Como exemplo do terceiro tipo poder-se-á lembrar o periférico» em sentido próprio: mas é na periferia que o pintor é
I
que escrevia Vasari a propósito de algumas pinturas de Perugino obrigado a refugiar-se para poder continuar a trabalhar e a receber
encomendas para uma produção que no centro deixou de satisfazer.
I
para a Igreja da Santíssima Anunciada, em Florença:
50 Mas muito mais frequentemente por artesãos em contacro estreito com o n Le ''/"'l'e di G. Vmm·i ron nmwe annotaúoní e C01Jm'.tnti di G. Milaneú, Flo
próprio público. Cf. S. Orconelli, << L'arcigianaco ligneo nelle Valli Occirane r<·nça, 1 �06, Ill, p. 5H6 ss. (as outras círações das Vidas de Vasaci serão daqui
Piemoncesi», in Quadet·ni storici, 1976, n.0 3 1 , pp. 280 ss. •·m o l ianrt: rdi·ridus n esta edi.,:�o. indí<:adas do modo seguinte: Va.sari, vindo
" Oj1ere d'a1·te a Vercel/i, cir, p. ) . dq>nÍtl o� l l l o l l lt 'l'll'i do vulurne c tht página).
36 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 37
ng 3 que se i naugura em Pisa ( 1 3 1 2) o púlpito de Giovanni Pisano . não pelos governantes de Siena a quem originariamente se destina
Uma inscrição em versos foi aposta para recordar o evento: va, mas por um público de baixo nível sociaP4• Por outras pala
vras, pode acontecer que monumentos, alfaias e o b ras do pas sado a
«Castello Castri concexit certa altura sejam cedidas ou deitadas para um canto como peças
Virgini Matri direxit de vestuário usadas. Uma recolha sistemática deste tipo de testemu
Me templum istud inuexit nhos seria grandemente reveladora das relações instáveis que histo
Ciuitas Pisana. » n ricamente ocorreram entre cada centro e as respectivas periferias.
O que foi dito até aqui é quanto basta para mostrar que o
O novo público a que se destinava o púlpito era o da colônia nexo centro/periferia não pode ser visto como uma relação inva
de Pisa estabelecida em Cagliari, no bairro da colina dominada riável entre inovação e arraso. Trata-se, pelo contrário, de uma
pelo Castelo de Castro. Nas proximidades deste, símbolo e fulcro relação móvel, sujeüa a acelerações e tensões bruscas, ligada a
do domínio pisano, tinha sido construída a nova catedral. O velho modificações políticas e sociais e não apenas artísticas. Valerá a
púlpito da catedral de Pisa devia portanto ser, para a colônia tos pena anaLisar a este propósito o panorama traçado por Vasari, dado
cana, como que uma venerável relíquia da rerra de origem, uma que nas Vite ele apresentou um modelo canônico, imporrante e
referência a um património cultural comum, um meio de identifi duradoiro, da periferia como atraso.
cação e um factor de coesão. Note-se, além disso, que na altura em
que o púlpito era transferido estava a concretizar-se uma grave
ameaça ao domínio pisano, visto q ue o pontífice tinha concedido 1 3 . Vasari
ao rei de Aragão a investidura do reino da Sardenha. Mas não
deixa de ser significativo que o reforço dos vínculos culturais com Para Vasari, a única solução para um artista nado e criado na
a mãe-párria fosse feiro com o envio de uma obra que rinha mais província é a de estabelecer contacto com o centro: só assim po
de cento e cinquenra anos: sempre é verdade que se atribuía à derá entrar no jogo da inovação e do progresso. A vocação he
colônia um gosto mais atrasado que o da metrópole. gemónica que era a de Florença desde os fins do século XIII virá
Outros casos do mesmo género, embora menos clamorosos, a ser assumida, a partir do segundo decênio de Quinhentos, por
mostram que esta minha interpretação não se baseia numa petição Roma. E é a Roma, impelidos por uma espécie de irresistível
de princípio. Entre Quinhentos e Setecentos, os polípticos de tropismo, que rendem a dirigir-se de qualquer parte da Itália artistas
Trezentos são retirados das mais famosas igrejas de Siena e relega que mais ou menos vagamente se apercebiam donde soprava o
dos para longínquos oratórios ou capelas rústicas: o de Pietro vento. Assim foi o caso de Parmigianino, que
Lorenzetti, antes no Carmine, acaba em Santo Ansano de Dofana.
Por vezes a desqualificação é mais social do que geográfica, como « desejoso de ver Roma, como que ri a aperfeiçoar-se e ouvia
...
no caso da Anunciação de Ambrogio Lorenzetti, que passa da Sala louvar muito as obras de bons mestres, particularmente as de Rafael
do Consistório do Palácio Público para «Um compartimento (... )
-ao lado da cozinha, onde os pajens costumam jantar» . Deste modo, )-i C. Brandi, La Regia Pir�t:Jcoteca di Sima, Roma, 1 9 3 3 , pp. 1 3 5 ss. Quanto
uma obra que tinha sido encomendada por Francesco, monge de ao retábulo de Carmine, cf. idem, «Ricomposizíone e res rauro della Pala de!
São Galgano, camarlengo da Biccherna, acabava por ser usufruída, Carmine di Piecro Lorenzerti», in Botletino d'a1·te, XXXIII, 1948, pp. 68 ss.
Um caso interessante de obras que se tornaram o bsoletas e foram por isso rele
};:ldas il pcrikria é o elas <<armilas>> da coroação de Frederico Barbarroxa (hoje
H <<A cidade de Pisa construiu-me - a mim - este templo, deu-me o JH> LC>nvn.· ( ' crn NUJ:cmlwrga) que o imperador mandou dar ao grão-prínc ipe
Castelo de Castro, dedicou-me à Virgem-Mãe» : D. S<:aon, Strwir.t dell'cme in Sa1·def!,llct 1\1Hir•·l ll"!'. "lj"kky, riJI Vl,>d í rn i r: cf. A. J:\ o eh ler, ccZur Geschichte der deurs
dctli'Xl ttl XIV Jecnln, C:agliari -S>1Ssari. 1 907, pp. :�'>:> s.s. ' i l l ' r l ) ( , . J , J , .. LJ , · r l >ndtvi l » , I n / ),,,r 11111m'lill', n ." . � / , 1 97/f., pp. 40R-9.
38 HISTÓRIA DA ARTE ITALZANA CAPITULO I 39
e de Miguel Ângelo, revelou o seu propósiro e desejo aos velhos Face às revelações romanas , arriscas já afirmados repudiam a
tios»�� . sua primeira formação e recomeçam do princípio. Também este -
o do arrisra já célebre que se torna de novo discípulo uma vez
Assim o de Niccolô Soggi, que descoberra a boa maneira - é um topos que reaparece frequence
mence em Vasari: um exemplo notável é o de Rafael , que, rendo
. . . ouvindo dizer que em Roma se faziam grandes coisas, partiu visco o debuxo da Bataglia di Cascina de Miguel Ângelo, fez aquilo
de Florença, pensando nas aquisições artísticas e no dever de pro que
gredir alguma coisa . . . . »56
«um ourro que rivesse perdido a coragem, parecendo-lhe que
Ou ainda o de Píerino da Vinci, que tinha deitado fora o rempo decorrido até então, nunca teria feito,
ainda que dorado de belíssimo talento . . . »
«Ouviu tanto louvar as coisas de Miguel Ângelo e Rafael que O mesmo topos, com expressões análogas às de «purificar-se»
decidiu ir para Roma de qualquer modo» 58 . de uma formação anterior ou «de mesrre tornar-se discípulo>> , reen
contra-se na vida de Garofalo, que, chegado a Roma,
Ou para Battista Franco, que
« . . . ficou quase desesperado, se não maravilhado, ao ver a graça
« . . . tendo-se dedicado ao desenho na sua primeira infância, foi e a vivacidade que tinham as pinturas de Rafael e a profundidade
aos vinte anos para Roma, como alguém que aspira à perfeição do desenho de Miguel Ângelo; pelo que amaldiçoava as maneiras
naquela arte; aí, depois de, com muita aplicação, se ter dedicado da Lombardia e aquela que com tanto escudo e afinco tinha apren
ao desenho durante algum tempo e depois de ter visto os estilos dido em Mântua; e, se pudesse, de boa vontade se reria purificado
de vários, concluiu que oucra coisa não queria estudar nem imirar delas. Mas , já que outra coisa não podia fazer, decidiu tentar desa
senão os desenhos, pinturas e esculturas de Miguel Ângelo»59. prender e, depois de tantos anos perdidos, de mestre cornar-se
Jiscípulo»61.
A maldição das maneiras da Lornbardia faz -lembrar as «blasfé
» Vasari, V, p. 221.
mias da Lombardia» com que se encerra o Dialogo del/a língua, de
)6 Ibidem, VI, p . 18.
)7 Ibidem, p. 123.
'8 Ibidem, p. 550. 1'1
lbidlull, lV, (1. "1/ tl .
'9 Tbidt:m., p. 57 1. "' J/,,,f,,,,,, V I . l ' · 1 (1 1 .
40 HISTÓRIA DA A RTE ITALIANA CAPITULO I 41
Maquiavel, dando testemunho de uma concepção igualment� mo «Mas se acaso vemos nascer em qualquer província um ftuto
nocêntrica - muito mais evidente quando se repara que a v1da de que não costuma nascer lá, ficamos maravilhados; regozijamo-nos
Garofalo, nos prop6sitos de Vasari, era destinada a fazer muito mais com um bom arrisca quando o encontramos num sítio
onde não nascem homens de profissão semelhance.»66
<<uma breve recolha de todos os melhores e mais excelentes
pintores, escultores e arquitecros que nos nossos tempos tem havi Nem sempre é a província esta tegião desolada onde não medra
» 62 a planta dos artistas; mas quando eles aí aparecem será melhor que
do na Lombardia. . .
Roma que agita cons «não haver ( . . . ) concorrência que o impelisse a subir a mais
«ardia sempre no desejo de rever aquela
s anos quando se en- elevado nível e não haver naquela cidade obras antigas ou moder
tantemente aqueles que lá estiveram muito
64 nas com as quais pudesse aprender alguma coisa»68.
contram noutras reg10es» ,
· -
ou como Garofalo, que, em Ferrara, Não apenas Arezzo, Perugia ou Volterra: mesmo Siena é con
siderada uma província pouco es timulante aos olhos de Vasari, que
<<ao fazer aquelas obras, quando alguma vez se lembrava de conta como Ant6nio Sodoma
que tinha deixado Roma, sentia uma dor viva e resolvia voltat
para lá de qualquer modo»6). . « . . . não encontrando qualquer espécie de concorrência naquela
c1dade, nela trabalhava sozinho: o que, embora lhe fosse de cerra
mais afastado se possa utilidade, acabou por lhe causar dano: porque, estando como que
A imagem da província é tudo o que de
e es : imulante. Um caso adormecido, não estudou nunca}}69.
imaginar da imagem do centro, prestigiosa
Card1sco, acerca do qual
extremo é o da Calábria, párria de Marco
Vasari escreve: Da mesma opinião é Beccafumi que, ainda segundo Vasari,
62 M· ibidem, V, p. 2J. l.
Ibidem, p. 457.
M Ibidem, V ! , pp. 5 s s .
6� Ibidem, pp. 472 ss.
"' 1/lirlmt, V i l . p. 'i!l.
c.� Ihidom, V, p. 1. 5 I..
,,., //Ji,/,!111. V I , 1 '• lHO.
1'' Tllid.1mt, VI. p. tl<í�.
42 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAPITULO I
43
« . . . não tinha desejo maior que o de aprender e sabia que e m De resto, o desafio que
. encerram as obras dos gra
Siena perd1a o seu tempo» 70 , conduzem automaticamen ndes não
te à emulação. Em certos
casos o artista
«desafiado» deixa-se ficar
para rrás porque não se sen
e do mesmo modo serão consideradas Bolonha e Ferrar , no caso � cidade para tanto. Assim
te com capa
é Franciabigio que
de Vignola ou no caso, j á citado, de Girolamo �a Carp1.
.
Trata-se de casos em que o artista - no dizer de Vasar1 - «nã o quis sair nunca de Flo
teria quase sempre tomado consciência da situação. N utras partes � obras de Rafael de Urb
rença; porque tendo visto
algumas
ino , e parece ndo-lhe que
ele limita-se a observar que o artífice de que fala, se nvesse a s ?� brear com tão grande homem
não podia om
. nem com muitos outros de
sibilidade de sair da sua província, teria feito coisa s ex:traord 1 n r as �� nom e, não se quis pôr em grandíssim o
. confronto com artistas tão
(impossíveis a quem permaneça na periferia). Ass1m é a proposrto tão raros» 74. excelentes e
de Luca de Longhi que
Ou Morto da Feltre, que
teria tido a intenção de aba
pin turas grutescas, que eram ndonar as
•
«Se tivesse saído de Ravena ( . . . ) teria um sucesso rarrss1m0»71 , a sua especialidade, para
se dedicar à
/
pintura figurativa:
ou de um grupo de escultores lombardos que ficaram aqué � �as «E quando tinha este des
suas possibilidades precisamente porque trabalharam em M1lao. ejo, sabendo do renome
arte Leonardo e Miguel Âng que nessa
elo tinh am adquirido em
Florença com
os seus debux:os, imediatam
« . . . Mas se houvesse nesse lugar o estudo das artes, q e há em � vendo as obras, não lhe par
ente se pôs a caminho de
Florença; e,
Roma e em Florença, estes grandes homens teriam feuo co1sas . eceu que pudesse atin gir
o mesmo grau
de perfeição que na profiss
estupendas.»72 ão anrerior tinha atingido:
a trabalhar nas suas pin tura por isso voltou
s grutescas. » 75
Particularmente difícil de admitir por Vasari é o caso de quem
Outros não renunciam, mas
deli beradamente não se move, como Cola deU' Amatrice, provin protelam o confronto, com
no da Vinci que o Pieri
cial voluntário:
os emilianos Barrolomeo da Bagnacavallo, Amico Aspertini, Giro porta de São Pedro em Roma, se tivesse preocupado em enconrrar
homens excelentes para aquele trabalho, como no seu tempo facil
lama da Corrignola e Inocenzo da Imola, que
mente poderia ter feito - sendo vivos Filippo di Ser Brunellesco,
« . . . não se interessaram pelas engenhosas particularidades da arte Do �atello e outros artistas distintos - não teria sido aquela obra
como é devido. Mas como em Bolonha naqueles tempos não havia real1zada de tão infeliz maneira, como se pode ver nos nossos tempos .
pintores que soubessem mais do que eles, eram considerados os Mas talvez se passasse com ele o que costuma passar-se com uma
melhores mestres da Itália pelos governantes e populações daquela boa parte dos príncipes, que ou não são entendidos em obras de
cidade»78• arre ou têm por elas pouquíssimo interesse. Mas se considerassem
a importância que tem o estimar nas coisas públicas as pessoas
Nem é diferente a sorte de Marco Cardisco em Nápoles, excelentes por causa da fama que se lhes deixa, não seriam cerra
mente tão desleixados, nem eles nem os seus ministros; porque
nto entre os artífices
«pois que não havendo emulação nem confro quem se entrega a artistas rudes e inaptos dá pouca vida às obras
s senhores e das suas alé � de
da pintura ' foi sempre adorado por aquele e à fama; que assim se causa injúria ao público e à época
entos c l1orudos» 79 .
coisas fez-se sempre recompensar com pagam em que se v1veu, fazendo acreditar a quem vem depois que se
naquela época tivessem existido melhores mestres, aquele príncipe
A função exercida pelos consumidores é assim estrategicamente ter-se-Ia servido deles e não dos inaptos e rudes . , 82
decisiva. E do consumo napolitano apresenta Vasari, na vida de
Polidoro, uma imagem bem mais negativa do que aquela que acaba O estigma de provincianismo mostra-se parric ularmenre evi
de ser dada. Depois de rer chegado a Nápoles, Polidoro dente num papa como Sisro IV, alvo tradicional da polémica cul
tural florentina. Segundo Vasari, o pontífice, preferindo Cosme Roselli
«sendo aqueles fidalgos pouco curiosos das coisas excelentes da a Boticelli, a Guirlandaio, a Signorelli, a Perugino, reria revelado
pintura, esteve quase a morrer de fome» ,80 a sua incompetência pessoal, mostrando preferir as cores caras e
vistosas de Cosme às engenhosas criações dos outros,
pelo que
«porque aquelas cores, tal como Cosme tinha previsto, logo
77 Ibidem, II, p. 413.
IR Ibidem, V, p. 177.
'" ibirkm, p. I 'i I
79 Ibidem, p. 2 1. 2 .
" ' 1/Ji./�J/1, 1 1 , I 'J•. h \ -��.
"'' Ibidnm, p. I �O.
HISTÓRIA DA A R TE lTALIANA CAPITULO l 47
46
deslumbraram de tal maneira os olhos do papa - não muito en a um ambiente retardado - para Vasari, bem entendido - como
tendido nestas coisas embora bastante se delei tasse com elas - era o da Roma quatrocenrisra. Periferia social e periferia geográfica,
que não hesitou em concluir que Cosme tinha trabalhado melhor ma1s uma vez, sobrepõem-se.
que rodos os ourros. E, tendo mandado dar-lhe o prémio, ordenou
aos outros que rodos cobrissem as suas pinturas com os melhores
azuis que encontrassem e as debruassem a ouro, para que fossem 14. Fim do policentri.rmo e nascimento d,a « terceira via»
semelhantes às de Cosme em colorido e em riqueza. E assim os
pobres pintores, desesperados por terem de contentar a pouca inte Radical, portanto, a operação realizada por Vasari. Uma situa
ligência do Padre Sanro, se puseram a estragar tudo o que tinham ção como aquela que estava então a aparecer na Toscana - um es
feito de bom»8�. tado absoluto com base regional, caracterizado pela subordinação e
espoliação dos vários centros em benefício da capital - era projec
Para entender bem este passo, será oportuno lembrar uma outra rada no passado:. o papel de Siena ou de Pisa era diminuído, o de
anedota, que Vasari inseriu na vida de Miguel Angelo a propósito Pistóia, Volretra ou Luca elimi nado, salvando-se Arezzo por cari
de Menighella, dade pata com a tetra natal. Mas esta projecção do presente no
passado ou, se se quiser, esta adequação (que era afinal uma defor
«pintor rude e desajeitado de Valdarno, pessoa divertidíssima, mação) do passado ao presente não se tinha limitado como vimos
que vinha por vezes a Miguel Ângelo a pedir que lhe fizesse um à Toscana. À ;
distância de alguns decénios, Vasari ex raía a súmul �
desenho de São Rogue ou de Santo Antônio para ele o pintar aos de um processo que, no início de Quinhentos, tinha provocado
camponeses. Miguel Ângelo, que se fazia rogado em trabalhar para uma dúplice ruptura, política e artística, na história da península,
os reis, punha de lado todos os trabalhos e fazia-lhe desenhos simples, reduzindo drasticamente o policentrismo anterior em benefício de
acomodados à maneira e preferências de Manighella: e, entre ou poucos centros que estavam em condições de poder conservar uma
tros, mandou-lhe fazer um modelo de Crucifixo, que era belíssimo, certa autonomia. Os anos do início de Quinhentos, que, como se
por cima do qual abriu um buraco, e com ele fazia quadros e sabe, vêem a súbita periferização de Perugino, coagido a abando
outras combinações e ia vendê-los ao campo, de modo que Miguel nar Florença devido às polémicas dos «novos artífices», são anos
Ângelo fartava-se de rir; principalmente quando apareciam belos decisivos, em que está a nascer e já a impor-se um novo paradig
casos como o de um camponês, que mandou pintar São Francisco ma, «a terceira via que nós » , escreve Vasari, «queremos denomi
e, não gostando da veste parda que Menighella pintou, e que ele nar moderna» : a de Leonardo , de Giorgione, do «graciosíssimo
queria de mais bela cor, Menighella pôs às costas de São Francisco Rafael de Urbino» e do «divino Miguel Ângelo Buonarroti>>, que
uma capa de asperges de brocado e assim o contenrou»84. «entre os monos e os vivos tem a palma e os transcende e obs
curece a todos>>. A «terrível» variedade e a riqueza da «terceira
O passo tem um evidente valor de topos, embora a existência via» faz de repente parecer antiquada aquela <<beleza nova e mais
de Menighella esreja averiguada. Mas não é isto o que interessa viva» que tinham começado a usar o bolonhês Francia e Perugino,
aqui. Importa ames notar que aos olhos de Vasari os gostos da e mostra «O erro» daqueles que <<ao vê-la se puseram a correr
clientela campesina de Menighella, que encomenda quadros com como loucos ( . . . ), parecendo-lhes que nunca mais se pudesse fazer
os santos típicos da devoção rural, coincidem com as predilecções melhor» .85
de um papa como Sisro IV, de cultura e formação fradesca, Ugado Estava precisamente a impor-se a «terceira via>> acompanhan
do um processo de reestruturação da geografia artística i taliana -
8·1
Ibidem, III, p . 1 89.
' 11!/tlmJ, IV, I'P· I I · J \
M 1/;itlam, vn, p. 2H2.
CAPITULO I 49
48 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
Jacopo Siculo, em 1 5 4 1 , para a Igreja da Anunciada, perto de
processo que Vasari regista e contribui para acentuar projecran
Norcia87•
do-o no passado.
Um outro fenómeno característico é a constituição de dinastias
locais, particularmente observável a partir da segunda metade do
século XV. O mecanismo parece ser mais ou menos o seguinte. A
15. Um caso exemplar: a Úmbria
prindpio há a consti tuição de uma oficina familiar na qual traba
lham pai e filhos. Os produtos desta oficina são acima de tudo
Sigamos este processo através de um caso exemplar - o da
bastante acrualizados e apoiam-se em fórmulas e esquemas recen
Úmbria. Centros como Perugia, Gubbio, Foligno, Todi, Assis,
tes que desfrutam de um grande sucesso. O chefe da oficina pode
Monrefalco, Spoleto, Orvieto, que entre Duzentos e Quatrocentos
ter uma experiência bastante vasta devida a viagens, a uma forma
tinham tido uma produção arrísrica complexa e diversificada, fo
ção fora da terra ou a uma aprendizagem junto de um pintor fo
ram durante muito tempo vitimas da óptica cenrralizadora de Vasari,
rasteiro trabalhando naquele lugar. Assim a estada em Norcia de
a tal ponto que só a partir de alguns decênios atrás a pintura da
Niccolà da Siena pôde influenciar o aparecimento dos Sparapane
Úmbria anterior a Perugino se tornou objecto de análises espedficas86.
ou de Domenico da Leonessa88. A dinastia dos Sparapane começa a
Mas no decurso do século XVI este panorama t-ão variado tende
sua carreira pintando na .iconostase da Igreja de São Salvador, em
cada vez mais para a uniformidade e para a repetição. A inovação
Camp.i (perto de Norcia), a Madmw co! Bambino, smlti e storie delta
parece ter-se tornado privilégio e característica de poucos centros
·t;ita di Cristo, deixando-nos data e autoria: «Isto pintou Johani de
maiores.
Spa �·apane e o seu filho António da Norcia em 1464.» Depois, a
Um elemento significativo desta situação é a fidelidade a uma .
utürzação dos cartões e do repertório formal do mestre torna-se o
ng. 4 fórmula. Veja-se o futuro de um quadro como a Coroação da Vir
gem, de Domenico Ghirlandaio. Pintado em 1486 para os Obser
�
hab rual moclus operandi da oficina, segundo um procedimento que
podJa assegur�r a sobrevivência de certos esquemas mesmo através
vantes de São Jer6nimo, perto de Narni, é imitado mais vezes por
de gerações. E precisamente o caso dos Sparapane de Norcia ou
fig. s vontade expressa dos interessados: na Coroação da Virgem da Igreja
dos Angelucci de Mevale89. A medida que o tempo passa alarga-se
dos Reformados de Montesanro, em Todi, que Spagna se empe
nhara em fazer «pictam de aura cum coloribus et ali.is rebus ad
speci.em et similitudinem tabulae factae in Ecc. Sancti Jeronymi 87 G. B. Cavalcaselle e ]. A. Crowe, Storia del/a pittm·a in lfalia, X, Floren
ng. 6 de Narnia» , e que foi acabada em 1 5 1 1 ; na Coroação pintada pelo ça, 1908, pp. 83 ss., noca 3, e p. 117, nora 1 .
88 B. Toscano , «Barrolomeo di Tomaso e Nícola da Siena», i n C(Jffm/Qttari,
mesmo Spagna para os franciscanos de Trevi.; e na que foi feita por
XV, o. s., 1964, pp. 37-51; ver também G. Chelazzi Dini, <<Lorem.o Vecchiec
ra, Priamo della Quereia, Nicola da Siena», in ]acopo del/a Quercia tra Gotico e
Rinasámento, Florença, 197 6, pp. 203 ss. Sobre o arranjo de um sistema de
86 P ri mi
Cf. B . Toscano, ,,La forruna della pirrura nmbra e il silenzio sui fórmnlas esrilísricas por parte de cercos mesrres da província, sobre a sua crista
rivi » , in Pa1·agom , XVII, Março 1966, n.0 193, pp. 3 ss. Não prerende ndo dar
longa, dos esrudos receares sobre lização e subsequeme abandono no sentido de novas actualizações, vejam-se as
uma bibliografia exaustiva, que seria basrante obsetvações de F. Zeri a propósito de nm aoó ni mo pinror úmbrio de Quarro
rraça
a pintura trecenrista da Ú mbria, será oportuno lembrar que, no caminho cencos, o Mesrre de Eggi, in «Tre Argomeoci Umbri », in BoilettirJo d'm·te, XLVIII,
culrura fi
do pela nova abertura com que R. Longhi enfrenrou o problema da 1963, pp. 40-45.
(cf. «La pitcu
gurariva úmbria daquele período no curso florentino de 1953-54 89 A. Morioi, «Cascia. Chiesa delie Capaooe in Collegiacone», in Ra.uegna
metà del Trecenr o artcaver so le dispens e redatre da Miua
ra umbra della prima d'ttrte, IX, 1909, pp. 173-74; G. Sordíni, «Gli Sparapaoe da Norcia. Nuovi
Paragone, XXIV,
Gregori dei corso di Roberro Longhi nell'anno 1953-54 >>, in dipinti e nuovi clocumenri», in Boliettino d'arte, IV, 1910, pp. 17-28; A. Morini
281-83, pp. 3 ss.), rem havido nos úlcimos anos
Julho-Serembro, 1973, n.0 c P. Pirrí, <<Una sc on os ci u m dinastia di acristi umbri», in Arte e s torit�- , 1911 e
mais densas, par.ticula rmente por pane d<! M. [loskovJts,
interven ções cada vez
'1 '> 1 2 ; P. Pírri, uDi un� r!�•dizionc pit mrica in Norcia», ibidem, 1914, pp. 5 2 1 -
, C. Volp\', F. /.1.•r i , wa<.:<�S
P. P. Donari, G. Prev i cal i , U . Scurpc l l i n i , H. 'J'o�<.:nno
.:! 'J; ( Vn; o n i , <t( ; l i ;�ll l·(·�· h i <Jilil l l f(ICÍ11l i ll!!ntc�c·hi m:Jla t:hiesa di Santa Maria
�icou.�üo pode ser \IV;d iadn na 'ua lll'lllld1· <"omp!.-x
id:ldr.
a
'
às qllais
50 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 51
o hiaco entre a repetição de modos c fórmulas, tornados enrão ob como Domenico della Marca d'Ancona, provenientes de localida
soleros, e a produção dos grandes cenrros. Estas dinastias eram uti des remotas, talvez igualmente periféricas, acentua-se no decurso
lizadas por consumidores individuais para pinturas votivas, por con do século XV: Giacomo Sancori di Giuliana, perto de Palerma,
frarias ou ainda por comunidades rurais, podia acontecer que à mais conhecido como Jacopo Siculo9�, rrabalha entre a Úmbria e a
sombra de um santuário ou de um lugar de peregrinação se esta Sabina; rambém na Sabina esrão activos, na primeira metade do
belecessse uma dinastia de artistas, como a dos Lederwasch, que século, os veroneses Lorenzo e Bartolomeo Torresani; em Basilica
em Tamsweg, no Salisburghese, passando de pais para filhos, se ta, no mesmo período, encontramos Simone da Firenze94. Paralela
dedicou à produção artística para o esplêndido santuário de São mente, pintores de renome são afastados ou reafastados do centro
Leonardo, e cuja casa, conrígua à igreja, ainda hoje se visira. para a periferia, porque incapazes de acertar o passo com as pro
Num primeiro tempo esra prolífera pintura periférica, ligada a postas dos <<novos artífices» e com a consequente mutação verifica
consumidores socialmenre homogéneos, não apresenta ainda os da no gosro e nas expectativas do público. Além do caso já men
caracteres nitidamente retardatários que assumirá em seguida, quando cionado de Perugino, que partindo de Florença encontra refúgio
o fosso enrre cenrro e periferia se tiver alargado. Mosrra até mais em Montone e em Frata, temos o percurso não diferente de Signo-
vasta propensão e disponibilidade para investimentos artísticos por relli ou, anteriormente, o de Antonio da Virerbo, que, depois de n� 9
parte de grupos socia.is que até enrão não tinham manifestado grande ter trabalhado em Roma em empreendimentos importanres como
interesse nesse sentido. Valeria a pena traçar um quadro das deco os frescos de Santa Francesca Romana, acaba por ser devolvido ao
rações levadas a efeito no decurso de Quatrocentos, com claros agro viterbense pela actividade dos pintores úmbrios e florentinos
intuiros edificanres, por igrejas e oratórios campestres: limitando chamados por Sisto IV, limitando-se a pintar em Gorchiano9).
-nos a alguns casos piemonreses, entre muitos, pode-se pensar em
Domenico della Marca d'Ancona - que cobre de frescos a ábside
lig. � da Igreja de Santa Maria de Spinariano, perto de Cirie90 -, em 1 6. Refluxo e atraso na periferia
Jtg. a Giacomino da Ivrea - activo no Canavese e no Valle d'Aosra por
volta de meados do século91 -, em Giovanni Massucco - que Os fenómenos que remos enumerado, a saber: a) a constituição
trabalha no Monregalese92. A instalação na província de artistas de dinastias locais com o consequente perdurar de certos esquemas
através d o uso de cartões e de desenhos; b) o estabelecimento na
Apparen c e a Capanne di Colle Gíacone presso Cascia » , in L'Ane, LXII, 1963,
pp. 41-58 e 289-92. pp. 35 ss.; A. Griseri , }acquerio e i/ realismo gotico in PittJlUJ,Jit Torino, 1965,
9o A. Morerco, lr1d<Jgi ne aperta sugli af
freschi de/ Canavesc, Saluzzo, 1973, passim; C. Garder, De la peintrm dti Moyert-Age en Savoie, li, Annecy, 1966;
PP· 9 ss. Z. Birolli , <dl formars i di uo dia!etco pittorico nella regione !igure-piemon
9 t A. Lange, «Notizie sulla vira di Giacomo da lv rea » , in Bollettino del/a tese», i n Bolleltino delta Società piemonwe di archeologia e di bel/e <trti, XX, 1966,
Soetetà piemontese di archeologia e di bel/e ar-ti, XXII, 1968, pp. 98-102. pp. 1 1 5 ss.; E. Rossetti-Brezzi, «Momen ti della pirrura piemoorese » , ibidem,
92 Cf. A. Ralnel, Antichi affrescht nel Monregalese, Cuneo, 1965; G. Romano, XXV-XXV!, 1972, pp. 35 ss.; G. Romano e A. F. Pari si , Catálogo d.ella Mostra
«Documenrí figurarivi per la Sroria delle campagne nei secoll XI-XVI>., in ckl Gotico nel Pi.emot1te centro-occidentale, Torino-Pinerolo, 1972; G. Romano, vocábulo
Quademi Storiri, 1976, o.• 3 1 , pp 134 ss. Sobre rn1,1iros produros de ciclos do «Giovanni Canavesio», in Dizionario biografico degli italiani, XVII, Roma, 1974,
gótico tardio de carácrer mais ou menos popularizanre, muiras vezes encomen pp. 728 ss.; Valle di Susa, cir.
dados por comunidades rurais ou alpestres , confrarias, pequeno e médio clero, �-' Cavalcaselle-Crowe, Storia del/a pittllra in Italia, cir . , X, pp. 1 1 2 ss.;
localizados na área alpina oc ide ntal, executados quase sempre por mestres itine L Mortari, Opere d'am in Sabina daii'Xl ai XVII seco/o, Roma, 1957.
rantes que conrinuam a servir-se por lo ngo tempo dos mesmos esquemas, ve � A. Rizzi, «Un pirrore rinascimenrale in Lucania, Simone da Firenze , , in
jam-se: M. Roques, Les peinwrn mttrttles dtl S11d-Est de lr.t Frmzce, Paris , 1 9 6 1 ; N,,,,oii twbiiú.tt11üt, IX, 1970, pp. 1 1 ss.; 1dem, «Altre opere lucane di Simone da
E . Brezz i, «Precisazioni sull'opera di Giov�nni Cru1nvcsio. Re:visioni criticht·». Firen:.lt ' » , in Antirhitr2 11iwt, XV, 1976, ] , pp. J 1 ss.
ttfd?qrJiop,i<t (I di "�"� li'/ i, X v llJ I !)(,tf,
i u Do/lettino del/a Sm:ietà pie11Umtcsc tÜ o
I
'1' I. l1;ll c l i , l'illori ,,;,,.,.b,�,; di âmtttu .waili, Homu, 1 970, p. L9.
52 HISTÓRIA DA ARTE . ITALIANA CAPÍTULO I 53
periferia de arriscas de longínqua proveniência que não se tinham gosto mais severamente litú rg ico do que aquelas que o s mesmos
imposto nas respectivas regiões natais nem nos cenrros artísticos artistas aprontam para a metrópole; ·
mais importantes; c) o refluxo para a periferia de arriscas já céle d) enquanto no século XVII se nora uma relativa capacidade
bres postos em crise pelas murações estilísticas acmanres - repre de a província reagir face à cultura metropolitana, ou sintonizan
sentam um processo de periferização que relega muiras regiões do-se ou elaborando variantes, acontece no século XVIII que «Os
italianas para uma condição de subalternidade cultural destinada a retábulos vêm de Roma para a p rovíncia como um produto espe
prolongar-se no decurso de séculos sucessivos. A consolidação do ci ali zado e já sem encontrar concorrência, por vezes ao pomo de se
estado absoluto com base regional, o estrangulamento das autono mobilar com peças perfeitamente ajustáveis toda a bateria de alta
mias locais e a acentuada estratificação hierárquica da sociedade res de uma igreja ou de se transformar a nave em galeria da pin
tiveram repercussões importantes no plano artístico. tura romana daquela época.»97
Dada a falta de indagações quantitativas à escala regional e a Nesta imagem de dependência, rornada incondicional e irre
extrema raridade, relativamente ao período anrerior, de indagações versível pela divisão do trabalho e das funções no interior do Esra
sobre os arriscas <<provinciais» , recorreremos ao excelente volume do, poderá deter-se a reflexão sobre <<a periferia como arraso». A
Ricerche in Umbria96 , que analisa os resultados de um vasro inqué este nível o problema que toma forma não é já ramo o do atraso
rito sobre a pintura de Seiscentos e Serecenros numa área da Úmbria como o da dominação simbólica, sobre o qual teremos ocasião de
meridional. Procuraremos resumir os elementos significativos que volrar a reflectir.
emergem desse inquéri ro e que nos parece terem valor para além
do âmbiro local.
I 7. Atraso periférico ou atraso de método?
a) Nos séculos XVII e XVIII a regtao fica a ser parte inte
grante do Estado da Igreja: em c on seq uê nci a, a província tende a Mas se nem rodos os atrasos são periféricos - como mosrra o
adaptar-se à metrópole de que depende, dela recebendo os impul caso d e Perugino, expulso do centro para a periferia - nem todas
sos através de comissões de personalidades enviadas à capital em as periferias são reratdarárias. Admitir o contrário significaria adaptar
diversos momentos. É no encanto necessário não
considerar a área uma visão linear da hisrória da produção arrísrica que, por um
provincial como ampliação pura e simples da situação dominante lado, julga possível apurar uma linha de progresso (em rodo o caso
no centro de influência. É com efeito possível encontrar, ao lado motivada do ponto de visra ideológico) e, por outro, racha auto
de presenças d efi n i tivas , indícios ·de siruações raras e destoantes; maticamente de atraso qualquer solução diferente da proposta pelo
b) o processo de refeudalização tem i mportantes consequências cenrro inovador. Desre modo acaba-se por procurar na arte da periferia
no interior da regi ão , no que diz respeito quer à mudança das aqueles elementos, aqueles cânones, aqueles valores que são esta
comissões quer ao tipo de exigências. A procura de obras de arte belecidos tendo precisamente como base os caracteres das obras
inte ns ifica-se na cidade e rarefaz-se no campo (salvo excepções e produzidas no cenrro; e no caso de se reconhecer a existência de
casos particu lares) . Continua todavia onde existem áreas de peque cânones diferentes, esses são examinados só em relação ao paradig
na prop riedade ou formas associativas ele propriedade colectiva, ao ma dominante, com um procedimento que leva facilmente a juizos
passo que desaparece em zona de latifúndio; de decadência, de cormpção, de baixa de qualidade, de rudeza,
c) as ob ras enviadas à peri feri a pelos artistas do centro têm um etc. Foi este, por exemplo, o caso da pi ntura bolonhesa ou da pin
tura t1mbria de Trezentos, reduzidas durante muito tempo à cate
gmia clt: rudes e medíocres imitações da arte florentina ou senense.
96 V. Casale, G. Falcidia, F. Pansecchi e B. Toscano, f<kbm·he i11 I J ,!Ibrit� , I,
Treviso, 1976.
'1/ Jhidt'l!l, p, 1 1 .
54 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 55
Escrevia Jacob Butckatdt em 1 85 5 : fica, em últim a análise, resignar-se a escrev
er eternamente a história
do ponto de vista do vencedor de round.
«Claramente independentes (de Giotto] ficaram apenas os
incapazes. Entre os setentrionais, tiveram os bolonheses que ser
excluídos, completa e absolutamente, da influência da escola 18. A periferia como alternativa
florentina. Mas a sua actividade e habilidade pictórica durante
o século XIV são espantosamente desajeitadas e insignificantes.
Até mesmo Jorge Vasari , criador e defensor de um modelo
O mais amigo de entre eles, Vicale, contemporâneo de Giotto,
historiográfico monocêntríco, admire a possibilidade de uma ela
num quadro da Pinacoteca de Bolonha (Madonna in trono con dtte
boração autónoma por parte da periferia. O desafio da emulação
angeli, de 1 3 20) é pelo menos doce e gracioso à maneira senense,
pode, em cercas ;=ircunstâncias, ser determinante para atingir gran
de modo a fazer-nos lembrar Duccio. Os outros, meio giottescos,
des resultados. E sob o signo da emulação que se realiza a forma
são na maior parte tão inábeis nas suas obras sobre madeira que
ção de Mantegna:
em Florença nem sequer se ouvia falar deles. E o mesmo modo de
trabalhar, a mesma falta de talento continua a ser o sinal distinti
«Também a concorrência de Marco Zoppo, de Bolonha, de Dario
vo da escola até para além dos meados do século XV.»98
da Trevisi e de Niccolõ Pizzolo, de Pádua, discípulos do seu mestre
e pai adoptivo, lhe foi de não pequeno auxílio e estímulo na apren
dizagem.» 101
E Bernhard Berenson em 1 908, a propósico da pintura úmbria
antes de Perugino: «Nelli was and remains an idiot.»99 O mesmo
Berenson em 1 9 1 8 incitulava um ensaio sobre o orvietense Cola
Semelhantemente, a afirmação artística de Galasso é vista como
Pettuccioli A Sienese little Master in Ne-w York a?Jd elsewhere, o que,
uma �spécie de réplica municipal ao sucesso obtido em Ferrara por
como notava R. Longhi,
um pmcor «esrranho» como Piero della Francesca:
li
«diz bastante quer sobre o baixo grau em que é colocado o
<<Quando a uma cidade onde não h á excelentes artistas vêm
artista, quer sobre a sua supostamente incondicional subordinação
forasteiros a fazer obras, sempre se despert� o engenho de alguém
à escola senense. De facto, tinha nessa altura grande voga a obses
que, aprendendo aquela mesma arre, se esforça depois por fazer
siva exalração dos produtos de Siena do século XIV e a automática
com que a sua cidade daí em dianre não precise mais de estrangei
subordinação a eles de tudo o que lhes fosse semelhante (. .. ). Uma
ros para a rornar bela e mais rica de capacidades; ele próprio se
cultura pictórica especificamente orvietense na segunda metade do
e �penha em conquistar e em merecer com a sua energia aquelas
século XIV parecia inadmissível, ou ames, impensável. E, no en
nquezas que tanro admira nos forasteiros. Isto foi claramente
canto, ela rinha exiscido•>100.
�anifesto em Galasso, de Ferrara: o qual, vendo Pietro dal Borgo
tao recompensado por aquele duque das obras e das coisas que
Identificar pura e simplesmente a periferia com o atraso signi-
rcal1zou no Samo Sepulcro, e além disso honrosamente tratado em
F<:rrara, foi por este exemplo incirado a dedicar-se à pintura de tal
91:
J. Burckardt, Der CicerfJne, Basileia, 1 8 5 5 , p. 780, referido no «Commen modo que em Ferrara adquiriu fama de bom e excelente mes-
to antologico alla fo rtuna critica de! Trecenco bologuese » , in Paragqne, I , l950, 102
1 n:. »
n.0 5, p. 25.
99 B. Berenson, The Central [talúm Pailllcrs ()f the l?er�<�i.l.l'rlll<'t:, Nova l orq u<"
-Londres , 1 909, p . V; cf. Tosca.no, l.r.1 ji�rttma dtllrt j>iltt/1'rY 11111ln�t. ri c . , p. ..!(>,
noto 7. '"' Vu• .. lri, 1 1 1 , p. �HCJ.
""' lt Loi\J\hi, . .'l't.ll t ' Í u w ( ) J vH'II\Ilm·, in """·!!:"'''". X I I I , l ' l(,•, 11.'' 1 •1 '1 . p. ' " ' Jl,nfo' l/1, 1'1'• H•) •.,
56 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 57
A presença de urna forte emulação pode mesmo permitir que sentido próprio e língua artística é tudo menos pacífica e , ainda
se modifique a situação subalterna de uma área provincial. Acon por cima, claudicante104. Se apesar de tudo nos servimos de termos
tece de facto que, como «código» e <<língua», fá-lo-emos com a consciência de intro
duzir metáforas que mais contribuem para agravar um problema
« . . . começando um só, muitos se põem a fazer-lhe concorrência; do que para o resolver. Não obstante tudo o que aurorizadamenre
e tanto se esforçam , sem olhar para Roma ou Florença ou outros tem sido escrito sobre a «gramática» da linguagem artística, não
lugares cheios de pinturas notáveis, que se vêem sair deles obras estamos acrualmente em condições de fazer de maneira rigorosa a
maravilhosas. Isto vê-se ter acontecido em Friuli particularmente, distinção entre <<variação» e scarto (alternativa), entre contributos
onde - coisa que não se tinha visto na região durante muitos sé lexicais e estruturas sinrácticas. O que todavia conra é que uma
culos - surgiu nos nossos rernpos uma grande quantidade de pin distinção desse género, mesmo que formulada de modo diferente,
103.
tores excelentes mediante um processo deste género» estava na menre de um público de entendedores numa dada situa-
ção histórica .. Assim entendia com efeito Vasari quando, a propósito r.g. 111
Em certas ocasiões raras, «mediante um processo deste géne- de Ponrormo, escrevia:
1"0 » , podem pois nascer «obras maravilhosas>>, «Sem olhar para Roma
ou Florença» . Na sequência do discurso, Vasari acaba no entamo «Nem se julgue que Jacopo seja digno de censura por rer imi
por atenuar os juizos inteiramente posirivos exposros no proémio e tado Alberto Dütet nas inovações - porque isro não é erro, e fi
por restringir várias vezes (relativamente a Ticiano, a Beccafumi, zeram-no e fazem-no continuamente muitos pintores -, mas por
etc.) a obra de Pordenone. Aquela espécie de milagre que tinha ter adaptado a genuína maneira alemã em todas as coisas: nas rou
permitido o nascimento de <<obras maravilhosas>> fora do centro pagens, na expressão dos rosros, nas atitudes - naquilo que devia
não irá até ao ponto de fazer da periferia um lugar alternativo do evitar, servindo-se apenas das inovações, uma vez que dominava
105
centro; no sistema vasariano não há espaço para soluções deste tipo. com graça e beleza a maneira moderna.»
Na realidade, esre é um caso que pontualmente e por diversas
vezes se apresentou; a periferia pôde ser, além de lugar de arraso , Para Vasari a contraposição entre «maneira» e <<inovação» é
sede de criações alternativas. , . .
? JCJda: a <<manel[a moderna» está perfeitamente apta a assimilar as
Esta afirmação exige um breve esclarecimentO terminológico: �novações dos alemães. O erro de Pontormo, na óptica normariva
diferente e alternativo não são sinónimos; nem toda a variação é de Vasari, estava em abandonar as formas típicas da <<maneira
definível como alrernariva, como scarto. Utilizamos este último termo
�oderna>> para assumir a «genuína maneira alemã» . Para nós, as
na acepção particular de «deslocação lateral repentina relativamente <<movações » , ou seja, as composições, podem ser elemenros mais
a uma trajectória dada » , que se usa, por exemplo, falando de cer profundos e caracterizantes de um estilo do que as roupagens, as
tos movimentos dos cavalos: o scarto é, em suma, urna espécie de t•xpressõ �s dos rostos e as arirudes. Mas isro, aqui, pouco importa.
<<movimento do cavalo» e o uso deste termo permite evitar expres < ) t'ssenCial é que Vasari disringa entre elemenros que podiam ser
sões conotadas negativamente, tais como <<desvio» e semelhantes.
No domínio dos factos artísticos pode-se entender por «trajectória
1114 .
.. . p . J unod
Cf 7.
'ransparertce et opaczté, lausana, 1 976, particularmenc
dada» a linguagem artística corrente. ,
e
j>j>. '1 � ? 1; 'J06-7 .
Fórmulas como <<língua» ou «linguagem artística» entraram
" " Vnsarí, V I , 27 0 . Sobre como o problem
a Poncormo-Dücer é encarado
d e tal modo em uso que a sua natureza metafórica foi por assim I'"' . Vn\.t r í , <f. W. Fri<·cllan d�r, «Tbe Anticla ssical Sryle», in
MmmeriJrn and
dizer eliminada. Na realidade, porém, a analogia entre l íngua em . 1 1111 M.m11rri<111. in lt.t/i,m PaiwirJ!{, 2'. ed.,
Nova Iorque, 1957, pp. 3 e 2 5 ;
1•. I lo I I I H I IUI J l 1 or•·. ··.'iuí r:oppur(i Í'I\L l 'opt·ra
�rtistica del Va.o;ari e del Dtirer»
'
"• 1/ � .tt.n•i Jllll"i tl/!1"'(/i l ,. ,,·ti.rttl, rir., pp. 7 0 1 1 '> .
1 '" lbidt.'lll, V, 1'1'· I OI s.
58 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 59
impunemente comutados e outros que não podiam sê-lo sem des e colegas pintores. Em outras situações encontramo-nos perante
pedaçar o quadro de referência. casos de uma periferização que é suportada e sofrida, ou então de
No caso de Ponrormo tratou-se portanto de um verdadeiro scar liberadamente aceite. Mas o problema não se esgora nos casos de
to. Não foi, como se sabe, um fenómeno isolado. Num escorço resistência individual que, face a um centro que não deixa espaço
fulminante, Roberto Longhi aproximou do «maneirismo» de Gen �
à d �ersidade, conseguem encontrar uma saída, ou apenas uma pos
ga, de Beccafumi, de Rosso e de Pontormo a obra de Aspertini, .
Sibilidade de sobrevivência, na área periférica. Ele deve ser posto
em termos mais vastos, de modo a abranger os casos em que o
«verdadeiro nó de comunicação espiritual entre os movimentos scarto, a alternativa, a oposição a certos modelos sejam atitudes
do Centro e os que lhes eram afins no Norte da Itália; igualmente predominantes em toda uma área.
importante, em suma, para entender a brusca deserção do «classi
cismo cromático» de Giorgione e de Ticiano jovem por parte de
um grupo de vénetos (em especial de Friuli, de Btescia, de Vicên 1 9 . A resistência ao modelo
cia, de Tremo e de Cremona) no decurso do segundo decénio» 106•
Na reconstrução da Catedral de Chartres, destruída por um
Os protagonistas desta guerrilha antidássica trabalham em �
i �c ndio em Junho de 1 1 94, um artista ignoto utilizou soluções
situações excêntricas ou servem-se das armas importantes de uma nltldameme inovadoras, unificando e estandardizando os suportes,
cultura periférica como a alemã. Pelo menos assim parecia a Vasa reduzindo ao máximo a tridimensionalidade das paredes, com a
n, que notava sarcasticamente: eliminação das galerias internas e a diminuição da profundidade,
cttando, em suma, um modelo de reduto bidimensional gue abriu
« . . .são as caras de todos aqueles soldados feiros à tudesca, com o caminho àquele invólucro diáfano destinado a rer aplicações ex
ar esquisito, que despertam em quem os olha compaixão pela cepcionais na Ile-de-France no decurso do século XIII . Mas um
simplicidade daquele homem que com tanta paciência e tanta fadiga certo número de arquitectos, trabalhando entre a Borgonha, a bacia
procurou saber o que outros evitam e procuram perder, para aban do lago Leman e o vale do Ródano, não concordaram com esta so
donar aquela maneira que em qualidade excedia todas as outras e lução e propuseram outras, ou antes (se desprezarmos diferenças
que a toda a gente infinitamente agradava. Será que Pontormo não contingentes), uma outra. Perante esta situação, os historiadores
sabia que os alemães e os flamengos vêm a estas partes pata apren da arquitectura continuaram durante gerações a falar de arraso; só
der a maneira italiana, que ele, com tanta fadiga, procurou pôr de em tempos relativamente recentes se reparou que não se tratava de
lado como má ?»107 atraso, mas antes de resistência coerente108.
É evidente que resistência e atraso são fenômenos muito
Não se tratava só de preconceito italocêntrico de Vasari, como < liferentes, activo um, passivo e subordinado o outro. A solução
mostra o comportamento de Dürer face à cultura figurativa italia elos opositores a Chattres não estava aliás meramente apegada a
na durante as suas viagens a Veneza. modelos mais antigos: tratava-se mesmo de uma elaboração extre
No caso de Pontotmo, a sua opção em direcção periférica conjuga rn;t mcnte original, de uma espécie de segunda parede leve e
-se, como se depreende do seu Diario mais que dos dizeres de pc·rfurada posta em frente da outra, de modo a permitir uma re
Vasari, com uma autêntica auto-exclusão do consórcio dos amigos I r t pcra(�Lo perceptiva dos efeitos da parede tridimensional. Face à
20. Modelo e novo paradigma tando embora alguns elementos basilares das propostas de Giotto
- o que os salvou do risco de periferização imediata -, diver
Ora se voltarmos à Irália, e precisamente a Florença nos i nícios giam do novo paradigma em alguns pontos e, por exemplo, tenta
de Trezentos, deparam-se-nos soluções de resistência, soluções de vam levar por diante a experiência de Cimabue no domínio da
proposras alternativas e, finalmente, a periferização de alternativas expressão. Esta d.issidência foi a princípio tolerada; mas depressa
que podem ter algo de comum com o caso da resistência � Ch� rtres. as coisas mudaram, como mostra à evidência a situação florentina
'j
As soluções pracicadas por Giotto no campo pictónco nnham por volta de 1 340-50, se confrontada com a que existia pot volta
tido um efeito ainda mais surpreendente do que as avançadas pelo de 1 3 1 0-20.
mestre de Chartres. Efeccivamente com Giotto aparecera em Flo Próximo da década de 1 340-50, depois da morte de Giotto
: }
I
rença um novo paradigma que havia bruscamente alte ado a s t�a (1337), o seu tipo de visão continuava a condicionar de tal modo
ção, relegando imediatamente para as margens da galrooa arnsnca os pintores florentinos então activos na cidade que a ortodoxia
quem quer que a ele não aderisse. giottesca não só era dominante mas até repelia qualquer alternati
Utilizamos a expressão « novo paradigma», adoprando a acep va à sua linha. Dos primórdios do século até aos anos 20, pelo
ção que tem na historiografia da ciênc ia 109 para indicar o apareci contrário, a pintura florentina fornece um espectáculo que está longe
mento de uma linguagem que não só é nova mas que tem tal de ser unitário: ao lado dos giottescos de estrira observância (Maestro
prestígio que se impõe como normativa e exerce uma acção ini della Santa Cecilia, Pacino di Bonaguida, Jacopo del Casentino)
bitória sobre aqueles que, por qualquer razão, dela são excluídos. havia casos de aberta dissidência, protag onizados por mestres (Maesrro
Uma descrição impressionante da acção que um novo paradigma di Filigne, Lippo Benivien.i, B uffalmacco, Maestro del Codice figs I I e
pode ter é dada por Vasari quando fala do efeito desconcertante di san Giorgio, etc.), que tentavam uma abertura aos modos mais
que as obras romanas da «terceira via>> tiveram sobre aqueles que nitidamente góticos ou uma recuperação das antigas tendências
as viam pela primeira vez: expressivas e patéticas112.
Trata-se de um episódio de «resistência a Giotto» por parte de
m�da de país ou de lugar parece q u � muda de natu
« . . . quem um grupo de pintores que, retendo embora certos aspectos funda
reza, de estado de espíri to , de costumes, de hábitos pessoa1s, de mentais da lição de Giotto, não só não pretendem renunciar à
e comple
modo que às vezes não parece o mesmo, mas um outro, pesquisa expressiva dos fins do século XIII mas até afirmam
a sua
tamente acnrdido e estupefacto. Isto pôde acontec er a Rosso na anualidade. É, portanto, claro que não se trata de atraso ou d e
das que viu de acqui
atmosfera de Roma, onde as coisas estupen apego a um modelo ultrapassado mas de uma proposta alternativa
de Miguel Angelo o
tectura e escultura e as pinturas e estátuas
sem lhes deixar
tiraram fora de si; coisas que também fizeram fugir,
e Andrea Donnci, «Per la. pittura piscoiese del Trecenro,
realizar nada em Roma, Fra Bartolomeo di San Marco
" ' Cf. P. P. h, in Paragone,
X X V , 1 n � , n ." 295, p. 5 .
del Sarto» 1 1 0 • 1 1 ' 1 . . 1 1 -llw:i, /1,4/;dwttt.·,·o
< e i/ N·úmji1 dellct morte, Turim, 1974, p . 7 3 . Para
d l l':l ""' ''•t" " ' " hknn· d1· f'wncla giottesca cf. C. Volpe, «Frammenci di Lippo d i
t09 C f.
T. S. Kuhn, Lo .rtmttura Jc/Le 1'ivoluzioni Jârmtifhhc, T 1 1 rirn, 1 9(,9, 1 14 '! 1 1 vi• • I I L > , i 1 1 /',!!,t)!J!I!I', X I I I , 1 1)"7:1. . n." 267, p p . :)- 1 3 , e «ltistucliando il maestro
"" Vnsari , V, pp. 'U} I ss. > l i l ' ll' l i t w � , ,;,;r/,.,,, :>: X l Y , 1 '!7 \, 11.'' ,! 7 7 , pp. -� . _! 'i .
62 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 63
que prerende mostrar que desenvolvimentos se podem obter a partir 2 I. A alternativa d.e Avinhão
de certas premissas cuja fecundidade se prevê. Sob certos aspectos
a situação poder-se-ia equiparar à dos arquitectos que actuam no Entre estes pintores de ftonda houve um, o Maestro del Codice
sentido da «resistência a Chartres» e que proclamam a actualidade di San Giorgio, que teve de procurar um ponto de apoio em Avi
de um sistema derivado do «muro espesso» anglo-normandou3• nhão 1 1 7. Falar de Avinhão - que era em Trezentos sede da corte
Quando num centro se impõe um sistema de formas e de papal - como de uma periferia é evidentemente um absurdo e
esquemas que recebe o apoio de um poderoso grupo de consumi um contra-senso. Será todavia conveniente entendermo-nos sobre a
dotes e que assim acaba por determinar a procura e as expectativas significação dos termos: se a relevância económica, política e reli
do público, os «diferentes» devem curvar-se ou expatriar-se para giosa subitamente assumida pela cidade provençal é indiscutível,
situações culturais menos determinantes. É precisamente quando duranre um certo tempo continuou a ser, no que respeira à arte,
as tendências «irregulares» desaparecem em Florença que cessam de quem a apanhava. Quanto à pintura, tratou-se de italianos,
as notícias sobre a acrividade de Buffalmacco na cidade e começam senenses ou florentinos como Simone Martini ou o Maestro dei
as referências a esre pintor em outros centros114. Buffalmacco, que Codice di San Giorgio. Mas a ausência de uma tradição que de
representa uma linha de scarto em relação à de Giotto, será pois algum modo os vinculasse favoreceu o desenvolvimento de uma
coagido, no decurso do terceiro decênio de Trezentos, a abandonar pintura bastante afastada dos cânones e dos esquemas habituais
o centro mais prestigioso para trabalhar em Arezzo, Pisa, Bolonha; nos maiores centros iralianos. A sorte excepcional e a linguagem
analogamente poderá uma fronda expressionista encontrar recepti personalíssima de um artisra de Viterbo, de certa maneira excên
vidade e desenvolvimento em Pistóia1 15. Recorda-se neste ponto o trico tanto de nascimenro como de cultura, como Matteo Giovan
quadro geográfico deste processo, ou seja uma netti, pintor dos papas durante mais de vinte anos, pode assim
encontrar uma explicação. Algwnas soluções propostas por ele não
« . . . Itália municipal, não regional, com uma existência multis teriam cerramenre sido aceites numa átea onde estivesse activa uma
secular, indómita, demasiado vigorosa e áspera para toscamente se forte tradição . Confirma-o o facto de os scarti de Matteo Giovan
contentar de si própria, para se poder fechar na sua concha, mas netti - que tiveram um 6ptimo acolh i men to na nova capital e
também incapaz de aceitar uma dócil subordinação política ou um relevante impacte europeum - terem sido pos terio rmente igno
literária à região ou à nação» 1 16. rados por uma tradição historiográfica nascida e desenvolvida em
Florença, e vocacionada para aceitar e exaltar normas e cânones
Política, literária ou artística, a produção artística é na verdade diferentes e mais ortodoxos. O próprio nome do pintor viterbense
tuna componente importante da identidade municipal tão ciosa desapareceu até fins do século XIX; e, mesmo quando foi encon
mente g uardada. A periferia que proporciona ao eventual JCarto trado nos arquivos do Vaticano, as obras de Giovannetti não deixa
uma base territorial não é nunca uma periferia amorfa ou indife ram de suscitar profundas desconfianças 1 1 9.
renciada. Pelo contrário.
1 17 Cf. L. Bellosi, "Moda e cronologia. B) Per la pittura del pri mo Trecen
to», in Pt·ospettÍ!Ja, Oucubro 1977, II, pp. 14 s.
1 1 " Cf. H. Kreuter-Eggeman, Das Skizzenbuch des «]aques Daliwe», Muni
lJIIc, "l964 , particularmente nas pp. 2 7 , 44 e 6 5 .
1 1 ' L.Gtodecki, Architettura gotica, Milão, 1976, pp. 1 5 1 ss. 1 1 9 A propósito da decoração da Capella di San Marúale, no Palácio dos
ll< Bellosi, Buffalmacco, cit. ll:tp>t�>. C'M'I'�·via E. Munrz, a quem se deve rer sido achado nos arquivos do
m Donari, "Per la piaura pístoiese del Trecento, f » , cir.; U, in Paraf{one, Vutii ,IIIO •> nomo· d1· M<lt rl·n Giovannetri: «Do ponto de vista da harmonia,
XXVII, 1 9 76, o.'' 3 2 1 , pp. 3-1 5 . .lo 1 t i l o H ) I' dos ii11o1 w:• d1·cora1 ivos (' impos$Ívd imaginar um conjuntO mais
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» Solu·1· a lon�a n-.��·rva rdari van ol"l ltt: rt obm de
64 HIST6RIA DA ARTE ITALIANA
CAPÍTULO I 65
Com efeito, à luz dos hábitos artísticos de Florença e de Siena,
pôde mesmo favorecer o aparecimento de zonas �charneira - lugar
as_ soluções de Avinhão representam varianres substanciais; a sime
de encontro de culturas diversas e pomo de partida para experiên
tria, o equilíbrio, a coerência das figurações, a sequência das cenas,
cias originais. Tinha sido esre o caso do Piemonte alpino nos
a expressão e o rosto das personagens sofrem modificações sens.íveis,
primórdios do século XV, nos tempos do ducado de Amadeu VIII,
mesmo d1storções - todavia destinadas a tornar-se, como geral
quando, graças ao entrecruzar de artistas de diversa origem cultu
mente se admite, um ponto de partida para a pintura do gótico
ral (Itália, Borgonha, Alto Reno), esta área se tornou um haut liett
internacional.
do gótico internacional.
Estes scarti, que forneciam à pintura europeia uma abertura
Para muitos centros e regiões italianas, desde Roccaforte Mondovi
para o futuro, foram possíveis em Avinhão por diversas razões, e
até Ripacandida em Basilicata, a linguagem do gótico tardio re
em primeiro lugar pela mutação ocorrida nos consumidores e no
presentou um último momento de integração, de homogeneidade,
público. Por volta de 1 340-5 O, a fisionomia da corte papal revela
de participação em pé de igualdade na produção artística. O que
profundas transformações comparativamente ao início do século.
veio depois · não teve, durante mui to tempo, uma credibilidade
O papa e a maior parte dos cardeais provêm da França meridional,
comparável: só aquilo a que Vasari chama a «maneira moderna»
o públic� que rem acesso ao palácio é o mais possível heterogêneo;
- cuja aceitação ou rejeição traçou uma primeira linha de discri
os própnos artisras realiz am as suas obras em condições diferentes
minação entre centros e periferias - deu lugar a um novo para
das então praticadas na Itália. As equipas que trabalham sob a
digma que pôs o anrigo definitivamente fora de jogo. As primei
direcção de Matteo Giovannerti compreendem roscanos de vária
ras fo rmulações renascentistas tinham rodavia coexistido , sem efei
origem (Siena, Luca, Arezzo, Florença), virerbenses, parmenses,
tos paralisanres, com as formul ações do gótico tardio 1 2 1 . Mas foi
p 1 emonteses, p rovençais, lioneses, ingleses, alemães120. A rede de
p recisamente o alargamento do fosso entre centto e periferia no
referências disponíveis inclui enfim elementos góticos (mestres da
interior da península que tornou possível o facto de a Itália se
Inglaterra ou do Norte da França) e elementos de uma cultura fi
constituir centro artístico relativamente a uma periferia europeia.
gurativa occitânica que entrara em grave declínio depois da guerra
No Piemonte ocidental manifesta-se ainda outro caso de scarto
contra os albigenses, mas que continuava a existir. Todos estes ele
que tira partido da situação de «dupla periferia» da região. É o de
m�ntos fa:e� da Avinhão daqueles tempos um caso de «dupla peri
Defendente Ferrari, que reeelabora, em formas que terão um eco
fena» artlsnca: no ocaso da cultura occitânica os pontos de refe-·
notável na área alpina122, elementos de diversas origens (proven-
rência são a pintura da Itália central e o desenho gótico do Norte.
121 Cf. as observações de R. Longhi a propósito dos frescos de Andrea
Dilitio («Primi:de di Lorenzo da ViterbO>>, in Vittl arti.rtica, 1926) em que apon
22. As zonaJ de fronteira
ta «aquela amiga confusão mediante a qual um internacionalista podia ser posro
no mesmo plano dum renascentista, ou, com agravante mental, ser considerado
Não se trata de um fenómeno único. Em vários momentos se passível e aré desejoso, segnndo um preconceiro evolucionista, de se aproximar
encontraram as regiões fronteiriças italianas em siruação análoga: e das formas do RenascimentO. Na realidade, a divertida «Composição do mun
o carácter de «dupla periferia» peculiar a estas marcas de fronteira do» dos internacionalistas bastava-se a si própria, era uma visão figurativa, e
portanto espiritual, petfeitamente completa, e incapaz, ou melhor, desmteressa
Ja, Je aspirar à sínrese, à profunda analogia nacuralista do chamado Renasci
Giovannetti em Avinhão, cf. E. Castelnuovo, Un pittore italiano alfa corte di menlo. Anc:lrea Delicio poderia ter vivido mais cinquenra anos sem que o seu
Avignom, Tnrim, 1961, pp. 54 ss. e 1 3 9 ss. l l luildo a.rrfsr.ico lhe pa�:ecesse falaz, sem que, em snma, lhe surgisse o desejo de
120Sobre as equipas inrernacionais em Avinhão, cf. ibidem e jMJ.rim; E. Kane, :: 1 · 1 r.lll�;n,,ltnl' <:m Lourenço de Viterbo» (agora em Opere complete di Roberto Lon
<<A Docnment f�t the Fresco Techoique of Matteo Giovanne�ri i 1 1 Avigllon», /l,hi, 1 i l . , fi: S.t!:!:i c ·rilhenhtt, :Florença, 1 967, I, p. 6 1 ) .
1 1J ( )j J)'H', d< · 'i'kkndt'llt<" m•
Jfi SttJ,-/te.r. Au Inrh QurJ1·t,1-/y l?.wicTII, 1 nvt�rnn [97 '> . d a s u a ofl r i na foram tamb�m encomendadas
1'111.1 1M11 1 d1 1·1 A l j w·. h:i "� 11;1 Cllft·dnll dl" il,ll l i > r l l n , 11<1 Í)•,n:jn. nh>KÍ:d de H.au-
66 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 67
çais, flamengos, renanos, lombardos), propondo modelos significa Aquilo que se propõe a quem olha não é pois a reacção ime
tivamente distantes dos paradigmas que esravam já a ser seguidos diata e como que fisiológica perante a imagem sacra, mas uma
em toda a Itália. Esta distância não ficava a dever-se a ignorância projecção muito mais complexa. A memória vidente de Maria, que
ou informação tardia sobre os acontecimentos artísticos de Flo- descobre no futuro o suplício do filho, é apontada como modelo à
fig. 13 rença ou de Roma. Obras de Rafael como a Madona d'Orléam (ac memória de quem vê a imagem. As «insrruções para uso » , expres
tualmente em Chantilly) tinham circulado no Piemonte: o duque sas numa língua rica de latinismos, convidam um público verosi
Carlos II, que a possuía, havia dela mandado fazer, em 1 507, uma milmente clerical a ler cumulativamente as implicações psicológicas
cópia (perdida) a Martino Spanzotti; as cópias que restam, feitas da imagem.
. 14 c: 15 por Defendente ou por Giovenone, evidenciam suficientemente a De modo pontual a devoção neogótica de Defendente Ferrati
difusão do protótipo. Mais tarde, mas antes de 1564, uma cópia do levá-lo-á a aproximar-se das pesquisas de alguns maneiristasm. De
Juízo Final, de Miguel Ângelo, virá a ser pintada nas paredes de facto, reculer pour tn.ieux sautw parece ser um elemento ressurgente
Nossa Senhora dos Bosques de Boves 1 23. O caminho de evidenre na elaboração do JCarto periférico. Convergem neste sentido, por
regoricização seguido por Defendente não é pois o produro de um um lado, as expectativas do público e dos consumidores e, por
atraso periférico mas antes de um scarto deliberado - e nesta outro, a vontade de contornar uma situação sem saída enveredan
deliberação pesa indiscutivelmente o carácter devoto de grande parte do por vias longínquas no tempo e no espaço.
da sua produção. E é precisamente neste plano que se revela a
mistura de arcaismo e inovação que tantas vezes caracteriza a penosa
elaboração das alternativas periféricas. A inscrição que acompanha 23. O exílio de Lotto
fig. 16 Cristo Despedindo-se de Sua Mãe diz com efeito:
Surgem ainda casos em que a busca de uma alternativa se rraduz
«Tu che conte(m)pla del viso lo perspicace et acuto potere nel fisicamente no exílio. Tomemos o exemplo normativo de Lorenzo
deifi I co simulacro del sacrato intuito destina il vivo radio et ne la Lotto. A sua vida decorre quase toda fora de Veneza, e fora de
I mente sigilla quanro in ver de la dilecta matre pare che com Veneza se encontra a maior parre das suas obras: em Treviso, em
summa hu I milita te la inefabile sapientia clementissimamente si Bérgamo e vales de Bérgamo, nas cidades, burgos e povoações ao
exhibischa et I com quale gratia la materna compassione al cores longo da costa e nas colinas das Marcas, desde Ancona a Recanati,
ponder si monstra I con affanato cordoglio (resultante et maiore) a Fermo, a Jesi, a Cingoli, a Monte San Giusto, a Loreto, onde o
per la memoria I del parato suplício che nel cuore fixamente I pintor morreu recolhido num convento.
inpresso teneva considerato bene. » 124 É certo que por volta de 1 5 1 5 Bérgamo não podia ser conside
rada uma periferia. A acrividade in loco de Lorenzo Lotto poderá
tecombe ou na Catedral de Saint-Claude, no Jura (para este último caso veja-se quando muito ser considerada uma parte da penetração da cultura
A. Chastel e M. Lecoq, «Le Récable de Pierce de la Baume à Sainc Claude», in figurativa véneta numa cidade que até poucos anos atrás tinha
MorJUment.r at Métnoire.r, Fondation Eugene Pior, LXI, 1977, pp. 1 65-204). visto trabalhar Bramante, Filarete, Amadeo. Por outro lado, em
12' M. Perorei, «Il Giudizio miche1angio1esco di Madona dei Boschi di Boves»,
Veneza, por esre tempo, como também em Florença nos anos 1 3 10-
in Crmeo provirJci.a granda, Agosto, 1964, n.0 2.
124 Cf.
A . Boschetto, La ColleziorJe Robet·to Longhi, Florença, 1 9 7 1 , rab. 3 1 .
-20, ainda não se rinha imposto um paradigma único. É neste
<<Tu, que contemplas n o deífico simulacro o perspica:t e agudo poder do rosto,
extrai o vivo senrido da inrenção sagrada e grava na mente em ver como a
m Como se pode ver parcicubrmenre em alguns pedestais da Igreja de
dilecta mãe parece manifestar-se clementissimamenre com suprema humildade
S�o .Joilo, em Avigliana. Cf. L. Mallé, «Fucina piemoncese: Sodoma Giovane,
a inefável sabedoria e com que graça a compaixão materna, wrre�pondcndn, s<::
C; .lu�kn�.Í<J, Ddendmte Ferrar i, Getolamo Giovenone» , in Bo//ettiuo de/la Società
mostra nn.r:usciada pela dor (rCSL\lta.ote e wrnada n1aior) pda n n J cv i sün do s u p l ício
jl/t'!llllrJIP.ru di dl'lheolrJJ< ir.t e di ho.llu Mti, VJ ll-XI, 1 951\-57, pp. 63-64.
prcpal';lc.fo q11e t i n l·1>1 f·l x:ullçnu· i mprv::::n no ,· ora�·i-t"·"
68 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 69
lig 1 7 fundo que se situa a decoração da Capela Suardi, em Trescore, nos za. A mais extraordinária é o pequeno retábulo de San Zanipolo,
vales de Bérgamo ( 1 5 24) 126 . Aqui módulos iconográficos arcaizan pintado para um convento amigo onde por longo tempo estivera
tes (passos da vida de Cristo ou a sequência narrativa em que, alojado, ao passo que, como escreve Lanzi, que entretanto aprecia
como num Monte Sagrado, se desenrola toda a hisrória em muíras va «os novos géneros do quadros» em que Lotto tinha sido <<dos
estações, palácios, pórticos, proscénios) encontram-se sotopostos a ptimeitos e dos mais engenhosos»,
uma audaz tee1aboração naturalista. Dos dedos de Cristo partem
vergônteas que enquadram mártires, confessores, profetas, padres «O seu declínio pode norar-se a partit de 1 5 4 6, ano inseri to no
da Igreja. Os dois planos da representação - o histórico (cenas da quadro de San Jacopo dell'Orio» .128
vida e do martírio das santas) e o meta-histórico ( vinha de Cristo
assaltada em vão pelos heréticos) - sobrepõem-se, ambos prospec Esta obra foi executada durante a última estada de Lotto em
tivamente enquadrados, mas radicalmente distintos nas proporções. Veneza. Tinha saído de Trev.iso, onde, dizia ele, «não ganhava
Mais uma vez a proposta alternativa pressupõe um uso despreo para me sustentar», e procurava sobreviver adaptando-se ao gosto
cupado de elementos nitidamente arcaicos dos quais se vêem as e aos modelos de Ticiano, tornando-os mais despojados e mais
potencialidades inovadoras. devotos.
Em Veneza, evidentemente, nada disto teria sido possível; mas Encerrado este período, e abandonada definitivamente Veneza
até uma obra como o retábulo dos Carmini, que não apresentava pelas Marcas, Lotto encontrará em Loreto, longe dos modelos
efeitos tão desconcertantes, parecia a Ludovico Dolce <<destas más dominantes, a liberdade de expressão que irá fazet parecer tão
r.intas (. . . ) exemplo bastante notável» . Juízo depreciativo que se moderna a inacabada Apresentação de }est1s no Temp/o1 29. fig. tH
aku n i d i pinti di T.. tortn», in Berf!.O!Ttlllll 1 LX X, 1.976, n."' 1 21 pp. 3 ss. Simon•· ck M�tj.� isrris», in Arte íÚStiarut, XLIII, 1 9 5 5 , pp. 1 5 9 ss.; P. Zampecti,
I /) 1 .. l lllla, ni.do;:o ddlct J!illlll\1 Ífl jJ'.t/1.1/Í tl'ul'll ' '"" (.'!liljlil'l t'll/1/, <·d. por f r • i l t(lri di Cnldi l'oht » , i n /ltti rM Cimp·e.r.w CNR di stot·i<:, dell'arte, Roma,
•.
Alguns anos depois da morte de Lorto, Federico Barocci deixa No século. XVII os scarti periféricos assumem formas menos
va Roma no auge do sucesso para se abrigar prematura e precipi dramáticas e menos vistosas. Com o avanço da reestruturação política
tadamente na terra natal, uma Urbino em declínio. Na origem da e econômica a situação tende a estabilizar-se, ace n tuando o hiato
sua retirada reria estado, na versão dos biógrafos, a doença, que se que no século anterior se abri ra entre centro e periferia. Cons ide
seguiu a uma tentativa de envenenamento. Não se pode excluir ravelmente reduzidos o número e a autonomia dos antigos centros
que, por detrás deste gesto, houvesse motivações mais complexas 1 31: municipais, acabam por impor-se códigos diferenciados, válidos uns
o que é certo é que a fuga foi definitiva. Durante decénios Baroc para a metrópole e outros para a província. Numa província assim
cí, criador de imagens sacras admiradas por São Filipe de Neri, submetida e resignada, as possibilidades de scarto diminuem mui
ancião dispéprico procurado por duques e cardeais, incansável de to 1 3'i . E rodavia as obras de Tanzio nos Abruzos, as de Getileschi
senhador atento à natu re za , pintor intelectual que procurava na nas Marcas, o regresso de Bassetti a Verona, de Niccolõ Mussa a
harmonia musical o modelo da harmonia cromática, continuou ob Casale Monferrato e, entre todos memorável, o do próprio Tanzio
lllg;. 19 e 20
sessivamente a i nserir nos seus quadros a imagem de Urbino para
representar aquela «cidade de Jerusalém à vista» acompanhada do
«magnificenríssimo palácio» do duque como fundo das mais varia
- que então se afasra decididamente de Morazzone e do contex
to lombardo - a Valsesia, devem set interpretados a esta luz. Um
quadro como o <<ex voto proletario)> de Tanzio, com os camponeses fig. 22
das cenas evangélicas. de Camasco juntos em torno do Divvo Racho in Adversis Inrerces
sori, retoma a tradição dos estandartes processionais, desde o de
Esta opção em favor duma cidade já destinada a ser breve Foppa em O rz in uovi manifestando com clareza como o velho fundo
,
mente marginalizada pareceu a Bellori uma autêntica deserção: devoro da província se podia rornar um refúgio para os naturalistas
da diáspora romana. Trata-se de uma resistência que vai prolon
<<Ditei ainda algo que parecerá incrível de contar: nem dentro gar-se no tempo.
nem fora da Itália se encontrava pintor nenhum - havendo já O mais belo retrato de grupo do século XVIII italiano, I cano
muito tempo que Peter Paul Rubens tinha levado pela primeira nici di Lu, de Pier Francesco Guala, está imerso na penumbra de
vez as cores para fora da Itália - e Federico Barocci, que teria uma Igreja de Monferrato, o exército dos queux de Ceruti estende
podido restaurar e socorrer a arte, definhava em Urbino e não lhe -se sobre os muros das vivendas da região de Bréscia. Existe na
prestou nenhum auxílio., 132 província, pelo menos numa certa província dispos ta a investimen-
O exilado periférico assume desta vez as vestes de salvador 1�1 Um inreligenre retraro-tipo do pinror provincial entre Quinhentos e
frustrado. Num espíri to que talvez não seja difere n te supôs-se que ,
Seiscentos poderá encontrar-se no ensaio de B. Toscano, «Andrea Polinoci o la
o facto de Lotto se afirmar na terra natal teria encaminhado «a provincia perplessa», in Arte antica e rnodema, 1 9 6 1 , n.0' 1 3- 1 6 , pp. 300 ss.
atte veneziana (e talvez não apenas a arte . . .) em direcção de Sobre os problemas da selecção culrura1 tais como se apresentam a um pintor
Rembrande e não de Tintoretto» 1 3 3 . da província que entre em contacco com um centro artístico importante veja
-se, pata um período anrerior, a análise realizada poc F. Zeri sobre o retábulo
que contém a Sagrada Família, santos e anjos do Conservawrío di Sanca Maria
131 Cf. o ensaio introdutório de A. Emiliani no catálogo da Mostra di Fede dq:li Angiolini em Florença, in «Eccencrici fiorencini, Ih, in Bollettino d'ane,
rico Barocci, Bolonha, 1975, parricularmente pp. XXIX ss. XLVfT, s . IV, 1 962, p. 31R. Para ourras observações sobre problemas análogos
Ill
Bellori, Le vite, cit., p. 32. dl' n n • l nmu;rto no pri ndpio de Qninhencos, veja-se: idem, <<Una congiunzione
1 ll
R. longhi, Vit1tiro per cinqtle .rendi di /)illtwr.l 1Je/JIIÚtm<t, fllorçn \·a , I <)46, 1 1 11 1 1 i 1·c··1wc· c : l'mn<:ia. 1 1 Mac�tro <.lc-�1 cassooi Campan�l», in Dicwi di /avaro 2,
p. I H. ' 1 \ u·i ' ' ' · i < ) / ( , , 1 '1' · f'> �:�.
n
I 72 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPiTULO I 73
nimidade do senhor. Muito frequentemente o uso das imagens pode alguns elementos que compõem o campo artístico: as obras, os
ser menos directo, entrando num discurso político mais geral: e arriscas, os consumidores, o público. Entre eles o público faz figu
também aqui não faltam exemplos, desde as façanhas dos lombar ra de elemenro imóvel na consranre deslocação dos outros três,
dos pintadas no Palácio de TeodoUnda, em Monza, os padres da mas é ele ao mesmo tempo o menos estudado e por isso o mais
Igreja que Ma rt inho I mandou pintar nos muros de Santa Maria difícil de agarrar; a nossa atençãoirá pois incidir de preferência
Antiqua, depois do Concílio de Latrão de 649, para combarer a sobre os outros e, acima de tudo, sobre as obras.
heresia monotelita apoiada por Constantinopla, até às cenas do Podemos distinguir aqui várias situações que vão desde o acco
Risorgimento pintadas por Cesare Maccari, Amos Cassioli e com puramente negativo da destruição, autêntico grau zero na escala,
panheiros na Sala Vittorio Emanuele do Palazzo Pubblico de Sie até ao envio do centro para a periferia de obras de elevadíssimo
na, ou a episódios ainda mais próximos, de que a produção artística nível, passando através de fases diversas.
do período fascista nos dá grande número de exemplos.
Nourros casos rrata-se de interpretar os conflitos políticos através Não insistiremos naquilo a que designámos por grau zero; grosso
de mutilações das imagens, mostrando bem como um cerro esrilo e mod{), as destruições devidas ao conflito centro-periferia podem ser
certas fórmulas de representação podem ter sido imposras. A Ruch de dois tipos: ou directamenre decorrentes da vontade de eliminar
well Cross ou os capitéis de São Domingos de Silos revelaram a os testemunhos da cultura da área submetida, ou mais indirecta
existência de autênticas batalhas simbólicas em que, durante a Idade mente resultantes da pouca consideração em que são tidos nas cidades
Média, um novo estilo, apoiado por uma autoridade polírica ou súbditas os produtos ela sua própria culrura antiga. São exemplo
reUgiosa, era imposto contra a resistência duma cultura aucóctone l40. do primeiro caso as destruições das antigas «delícias» ducais atira
A adopção obrigatória de modelos estilísticos e iconográficos das para fora das muralhas de Ferrara depois da devolução dos
provenientes do centro, a elaboração no cenrro de códigos estilísricos estados dos duques de Este à Santa Sé: eliminação radical dos
diferenciados, válidos uns para a metrópole e outros para a perife testemunhos arquitectónicos do antigo poder justificada por um
ria, o sequestro dos bens simbólicos do país dominado, o fluxo dos hisroriador de Ferrara, atendendo a que
melhores talentos da periferia para o cenrro e o fluxo, em senrido
inverso, de produros de elevado potencial simbólico do centro para dispêndio inútil que teria de fazer a Câmara para as conser
«O
a periferia - tudo isto são formas episódicas em que se manifes var e as fortificações das muralhas naturalmente opostas a semelhan
tam os modos de dominação. Na impossibilidade de os tratar ex tes delicadezas não lhes permitiam duração mais longa >> , 141
tensivamente de maneira organizada, procederemos a uma espécie
de enumeração ripológica que permita a exemplificação de casos e e são exemplos do s egundo as lamenra<tÕeS sobre a situação do
problemas. património artíst ico das cidades da província tão frequentemente
Jocumentadas nas Lettere pittoriche.
Discurso mais longo merece a razia dos bens simbólicos. Desde
27. A dominafão simbólica Catlos Magno, que transporta de Ravena para Aix-la-Chapelle a
c:-Lácua equestre do chamado Teodorico, aré às requisições estendi
Para identificar alguns aspecros significativos da relação de
das a toda a Europa para a consciruição do Musée Napoléon142 e às
domínio simbólico poderão seguir-se, uma por uma, as posições de
111 /1.. Jlrizzi, Mewwic per lrt Storirt di Fermra, V, Ferrara, 1809, p. 64;
1'0 M. Schapico, «The Religious Menning of che Ruchwell Ccossn , in The
c l. l.llll i>(:m 1�. Riccom i n i , /I Sciremn fen·arese, Milão, 1969, p. 10.
Arl BtJilctin, XXVI, 1944, pp. 232-45; idt'flt, «Fwm Mm:nrabic tn Rornanc;squt· t iJ C. ( ; , ) l rl . J , 'J'rojJh'Y tl <.'ontflltl.o/. The Mwéc Nr.�pnléon tmd the Crcation of the
in Silos», i/;id. , XXl, 1 9:'\9, pp. 1 1 2-74, prr·scrll:l·nwrH�· r·n1 M . Sclr;q1im, Sclur:..
I �tflt'"'• t .ond r I'''· I ')(rÍ.
tt!tl Pupnr.r. l?om.t�nv.rqllt' 1\rl, Novn forq 1 1<', 1 ')/ I. 1'1' ' H :>:..
CAPiTULO I 77
76 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
. . - do supermuseu de L'mzl43 , 1 6 1 7 , as igrejas espoliadas de mui tos dos seus melhores quadros,
requisições hitlerianas com vista à cnaçao
saídos das mãos de Dossi, de Ortolano, de Garofalo, de Carpi, de
a história destas romanescas e aventnrosas rapinas encontra-se lar
Ticiano, de Gio Bellino, de Manregna e de outros insignes pinro
gamente divulgada. Bibliorecas (como a Biblioteca Palatina de
. . res nacionais e esrrangeiros, e serem substituídos por cópias, de
Heidelberg, subtraída pelo duque da Baviera ao elenor palauno
resto estimáveis, feitas por Bononi, Scarsellino, Bambini, Naselli e ftgs. LJ " 2 4
após a batalha do Monte Branco e oferecida depois ao Papa co:no
. outros. Quem e para onde os transportou não nos é dito, mas
sinal de vitória sobre os protestantes e de reverenre submtssao),
sabemos que, de entre os nossos preciosos monumentos desse género
colecções de arte, estátuas equestres, retábulos de altar, retratos,
e manuscritos e antiguidades, muitos, em diversos tempos, foram
esculturas, abandonam os seus lugares de origem para serem � rans
a enriquecer a capital.»
feridos para as capitais cujo primado simbólico é necessário wcre
mentar144. O facto produz-se de maneira exacta no decurso do
Girolamo Baruffaldi dá testemunho destas espoliações ao es
processo de periferização de muitas regiões i talia�as depois da . crever a vida de Niccolà Bambini, um dos artistas utilizados em
reest ruturação do século XVI. Caso exemplar e, , mats uma vez, o
copiar os quadros que foram objecto de rapina:
de Ferrara, aguando da extinção da dinastia de Este e da devoluç.ão
do estado à Santa Sé. Escreve Lanzi, evocando as consequênCJas
«No tempo da devolução desta cidade ao governo eclesiástico,
artísticas destes acontecimentos:
ou seja, no ano de 1 5 98, era ele um dos mestres que trabalhavam
em Ferrara, e nessa qualidade foi encarregado de copiar várias pinturas
«A mudança do governo deu-se no tempo em que era sumo
preciosas de mestres excelentes para se poderem mandar para Roma
pontífice Clemente VIII, em cuja entrada solene trabalharam pa�a
, os respectivos originais, desejados pela corte pontifícia que ali se
os fes tejos públicos Scarsellino e Mona, escolh1dos como os pmcets
. encontrava. De duas posso eu dar conta segura, e são o quadro da
mais hábeis em fazer muito em pouco tempo. Foram mais tarde
Ascensão de Crisro de Santa Maria in Vado e o quadro de Santa
ocupados vários pintores, especialmente Bambini e Croma, a co
Margarida na Igreja da Consolação . Este era de Orrolano e o outro fi�. 2.1
piar vários quadros escolhidos na cidade, que a corte de Roma
, as e aos de Benvenuto da Garofalo.»147
quis transferir para a capital, deixando a Ferrara as cop 1
historiadores de Ferrara as lamentações. » 145
Ferrara pode valer como modelo de uma situação gue se pode
ria corroborar com outros casos. Não muiro diferentes, por exem
Entre as «lamentações » dos historiadores de Ferrara será bom
plo, foram as consequências da devolução à Igreja dos bens dos
recordar a de António Frizzi116:
Della Rovere148• Uma análise destes momentos negativos da história
artística italiana seria rica de ensinamentos sobre as vicissi tudes da
«Foi um desgosto para os nossos concidadãos ver, no ano de
relação centro-periferia; nem ficariam esquecidas neste contexto as
colossais dissipações de obras de arte de que a Itália foi objecto nos
14� D. Roxan e K. Wanscall, The Jackthw of Li111.. The Story of Hit/er's Art
últimos cento e cinquenta anos.
Thefts, Londres, 1964.
, . . ,
1�4 E. Mumz, «Les annexions des colleccions d are ou de b!bhorheques et
leur rôle dans les reladons internacionales» , in Revrte d'Histoire Diplomatique,
VIII, 1894, pp. 48l-97; IX, 1895, pp. 375-93; X, 1 896, pp. 481 -508; W.
Treue Krtmtraub. Uebe�· die Schicksale von KrmJituerkm m Krteg, Revoltttttm tmd
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14l
Lan:t.i, Ul, 169.
l '• · l .' '
IM. flrizzi, Mcmo'l"ic per la .rtrwirt di 11111'1'<11'" • \'i t . , V, I ' · cít1 ,
78 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPÍTULO I 79
28. A dinâmica das obras Tomemos um ourro caso de envio de obras, ainda no século
XIV e ainda na área de Siena. Não se rrara agora de uma cidade
De diverso ripo e grau pode revelar-se rambém o envio de imporranre e rica como Massa, mas de algo que é hoje uma humilde
obras pcovenienres do centro. Ainda aqui poderemos distinguir vários povoação, Roccalbegna, nas faldas do Amiara. A igreja paroquial
casos. conserva três quadros de grande qualidade assinados por Ambro
Tomemos por exemplo o de Massa Marítima, no decurso do gio Lorenzerri, e isto levantou a quesrão de saber que circunsrân
século XIV. As obras importantes de Siena foram aqui um instru cias reriam levado um dos maiores artistas daquele tempo a criar
mento de penetração da cultura senense antes da definitiva sujei uma obra de tal valor para um burgo tão remoto149. A resposra
ção da cidade, ocorrida em 1 3 36. Os primeiros decénios do século esrá provavelmente na importância que os Senenses atribuíam ao
XIV são inteiramente domi nados pelas importantes encomendas pequeno centro mineiro, situado na fronteira meridional do estado
arrísricas confiadas a arriscas senenses: em 1 3 1 6, os senhores Nove que tinham adquirido e consolidado nos finais do século XIUI50.
del Consiglio di Massa fazem pressões sobre o responsável da O caso destes quadros deve portanto ser relacionado com a criação
obra de São Cerbone para que seja termi nado o grande painel para de uma cidade nova e com o empenho - que se concretiza na
o alrar-mor da catedral, segundo o modelo da Maestà de Duccio e concessão de numerosas facilidades - de para ela fazer convergir
certamente executada no atelier do grande artista senense. Em 1 324, cidadãos de Siena, relativamente aos quais as pinturas prestigiosas
como indica uma inscrição, o sarcófago de São Cerbone, obra de um dos maiores arriscas da sua terra deveriam funcionar como
-prima da esculrura g6rica i taliana, encomendado a Perucius, arrí instrumentos de identificação e agregação. Tudo isto está interli
fice da catedral, foi termi nado pelo mestre Goro di Gregorio, «de gado com a proliferação de obras e de encomendas artísticas que
Senis» ; alguns anos depois, mas talvez ainda ames da conquis durante o século XIV ocorrem nas cidades e burgos da Maremma
ra senense, é executada a Maestà de Ambrogio Lorenzerri, guarda meridional, de Grossero a Paganico, ou seja, na zona de recente
da outrora em Sant'Agoscino e presentemente no Palazzo Comu expansão senense.
nale. Em oucros casos o envio de obras revela e acentua um estado
Obras que se conram enrre as mais significati vas da arte se de dependência cultural que pode coincidir com uma dependência
nense são pois realizadas para a cidade mineira de Massa Maríti económica e polírica. Na igre ja paroquial de Calvi, na Córsega,
ma, que se mosrra toralmence dominada por Siena mesmo anres um grande políptico que orna o alrar-mor está assinado por Gio
que esta assuma o seu controlo político e que Agnolo di Ventura vanni Barbagelara, «de Janua» (uma compi lação dos casos em que
sele a conquista com o novo disposirivo de fortificações. Contraria o lugar de origem segue na assi natura o nome do arrisca poderia,
mente a outras cidades, como Volrerra e San Gimignano, a opu confrontado com os lugares de desrino das obras, fornecer indica
lenta Massa Maririma, pese embora a ampli rude das encomendas, ções bastante úteis). Os documenros informam-nos de que o políprico
não teve nunca uma tradição arrística autónoma e sujeitou-se a foi encomendado por dois cidadãos de Calvi, que o q uiseram feiro
uma hegemonia culrural exrerior imposta por obras de excepcional à semelhança daquele que foi pintado por Giovanni Mazone, em
qualidade, que antecipavam o domínio político. Se de novo aten 1 46 5 , para Santa Maria do Castelo, em Génova1 5 1 . É significativo
rarmos nos critérios de entrada naquele clube de centros artísticos
italianos que imaginámos, não deixará de ser significativo que os 149 E. Carli, Dipinti Jenesi de/ Conta® e del/a Maremma, Milão, 1 9 5 5 ,
bispos de Populonia só nos inícios do século XII acabem por pp. 8 4 ss.
uu
encontrar em Massa uma sede estável, como aconteceu em Grosse W. M. Bowsky, The Firtaru·e of the Commurte of Siena 1287-1355,
Ol<fmd, 1970, pp. 25 ss.
ro (também ela roralmenre dominada pela produção anística sc
' 5 1 ( ; , V. Cascclnovi, <<G·iovanni B;ubagelata n , in Bollettirto d'm·te, 1 9 5 1 ,
nense), para onde o bispado de Rose1le foi ddl n i tivarncnt( ' t ransf!' pp . . � I 1 - / · 'Í ; 1 1 . A I Í�•:ri, NMiú11 dú fmlj'e.r.rori de/ c/.iJe;..,.w
., ú1 U.ptr-ia dal/e origini td
rido em 1 1 3H. .ro•colr1 .\' VI, 1 1 . Co�lllll'·', I �UO, pp. I H�) ss.
CAPÍTULO 1 81
80 HIST6RIA DA ARTE ITALIANA
Isto não quer dizer que não afl u íssem
arriscas a Veneza vindos
o fascínio exercido pela obra mais antiga (caso análogo àquele -
de Cadore, das margens do B re nra ou do Á dige; quer simples
de que se falou - das cópias feiras em Narni rendo como modelo
mente dizer que não foram destruídas, antes pelo conrtário, as
o quadro de Ghidandaio) e significativo também o facto de o
condições necessárias a uma actividade local.
protótipo ser genovês e de ser encarregado da encomenda um pintor Noutros casos, porém, continuarão no lugar pintores de mo
genovês. Nesse momento a ilha é política e economicamente
desta envergadura, que poderão encontrar trabalho nas encomen
dominada por Génova, mas a s ubordi nação c u lt u ral pode perdurar das de um público pouco exigente. Um pintor corso como Maes
mesmo quando se interrompe a subordi nação polírica. Disto dão tro Antonio di Simone di Calv.i assinará, em 1 5 0 5 , um políptico
testemunho na Sardenha os envios de obras provenientes de Pisa para a igreja de Cassano (perto de Calvi)m, ao passo que, como
(esculturas, polípticos, sinos)152 que continuaram mesmo quando a
vimos quanto à paroquial de Calvi, o políprico do altar-mor vinha
ilha escava firmemenre nas mãos dos Aragoneses, mas não ainda
de Génova. Por :vezes, enquanto os mestres locais se ocupam de
aflorada por aquela onda mediterrânica «gótico-hispano-napolita
cerras produções típicas - como é, por exemplo, a pintura de rec
na» de que conserva significativos documentos1l3. O m esm o é do ros - as obra$ em quadros vêm de longe. Este é um caso que se
cumenrado por obras de Pisa ou de Génova frequentes na Sicília
verifica em Palermo, no século XIV, quando Masrru Simuni pin
no decurso do século XIV, assim como por obras véneras
·
dos s é- ruri di Curigluni, Masrru Chicu pinruri di Naro ou Masrru Dare
culos XIV e XV frequentes na Apúlia. nu, de Palermo, pintam o tecro do Steri, enquanto Barrolomeo da
Camogli ou Niccolo da Volrri da Genova, Jacopo di Nicola, Turi
no Vani e ramos ourros enviam de Pisa quadros e polípricos para
29. A dinâmica dos artistas
igrejas e orarór.ios'l6.
Situação rípica dos arrisras das áreas periféricas é a de serem
Paralelamente às obras, mas, como veremos, às vezes em senti atraídos pelo cenrro politicamente homogéneo. É este o caso de
do oposto, podem movimentar-se os artistas. Será rodavia necessário Ni cc olo di Lombard ucc io di Vico, um dos maiores artistas activos
distinguir as situações. O facto, por exemplo, de o domínio véneto na Ligúria no século XV, que era originário da Córsega e precisa
se estender não parece ter conduzido a uma suhmissão culrural mente por isso conhecido como Niccolõ Corso; ou ainda o do genial
generalizada. Poderemos aplicar à pintura nos esrados conrinenrais art is ta Tuccio d'Andria, «de Apulia», que pintou, em 1487, um
da Sereníssima República de Veneza tudo o que foi dito a propósito t ríp ric o para a Catedral de Savona representando os esponsais de
da persistência na Verona do século XVIII de uma cultura literária Sanra Carar.ina (as relações com o Mediterrâneo ocidental foram
local: p rovavelmente facilitadas pela origem provençal dos senhores �e
Andria, os Del Balzo); o de outros artistas da Apúlia, como Regt
«É uma rradição literária municipal que quatro séculos de naldo Piramo di Monopoli, que ilustra manuscritos em Nápoles e
dominação veneziana não conseguiram tornar submissa e mu ito em Veneza1�\ o de mtútos calabreses, como o m iniarurista Cola
menos servil à tradição literária da capital, Veneza ( . . . ). Disse que
Rapicano, o arquitecto Francesco Mormando, o pintor Marco Car-
quatro séculos de dominação veneziana não conseguem fazer ver
gar Verona, mas fique bem claro que nunca, da parte de Veneza, t n G. Moracchini, Trésors oubliés des églises d� Corse, Paris, 1 9 5 9 , pp. 22
houve o propósito de a fazer vergar . . . » 1 )4 .
e 1 1 4 ss.
o
"6 R . Longhi, <<Prammenro Siciliano, , in Pm·agone, IV, 1953, n. 47, pp. 3
ss.; F. 13olo�nn, 11 soffitto deL/a Sala Mag11a alio Steri di Palermo e la cultura
m C. Maltese, Arte in Sardegna de/ V a/ XVIII seco/o, Roma, 1.962.
'll
Cf. F. Zeri, <<Pcrché Giovanni da Gactn c: non Giovunni S(l/� itauo», in ·
{Ctit/,�/,· ikitianct ndl'rmtl/.lrmo dei Mediowo, Palermo, 197 5 .
.
disco e mais tarde, entre Seiscentos e Setecentos, Maccia Preti ou ou Veneza: com as maciças e repetidas penetrações de artistas es
Francesco Cozza1)8; o de sicilianos como o messinense Agostíno, trangeiros (pisanos, piemonreses, lombardos) constitui um caso de
conhecido como Sarrino em Génova, em 1400, ou Pavanino da cenrro-relais onde se recolhem e donde são retransmitidas e am
Palerma, na segunda metade do século, na região de SalernoD9• pliadas experiências diversas.
Isto para não falar dos dois mais célebres emigrantes sicilianos,
Anronello da Messina e Francesco Juvara. Nestes dois últimos casos,
Veneza (nos finais de Quatrocentos) e Turim (nos primórdios de 30. A dinâmica dos wnsumitlores
Setecentos) fo rnecem bases a partir das quais os modelos propostos
poderão ter uma difusão italiana ou mesmo europeia. Restam os consumidores. Também aqui se propõe, como no
Outras ci rcunstâncias podem impelir os artistas a realizar a caso das obras, um grau zero - o de uma total exaustão de gru
fuga numa di recção oposta à do centro político: é o que acontece, pos de consumidores. Assim acontecerá em Casale Monferrato,
por exemplo, em Pisa depois da conquista florentina. Ao contrário quando Guglielmo Gonzaga sucede à antiga dinastia dos Paleólogos
do que tinha sucedido nos centros continentais ocupados por Veneza, e motiva com a sua política a liquidação de cercos grupos sociais
uma grande parte dos pintores pisanos deixa a cidade e refugia-se citadinos e de uma tradição pictórica que neles se apoiava � tra
em Génova. O seu número é de tal modo relevanre que uma as dição que será posteriormente retomada, mas em direcção dife
sembleía da arte dos pintores genoveses em 1 4 1 5 - onde em rente161. Casos semelhantes poderão apresentar-se em Urbino162 e
vinte participantes três são genoveses e nove pisanos - decide nourros centros italianos.
modificar o estatura da corporação no sentido de favorecer os mestres Caso diferenre será o dos consumidores que, provenientes de
estrangeiros que venham a trabalhar na cidade160. um centro importante, deixam traços da sua passagem na perife
Um outro exemplo a tomar em consid eração nesta tipologia ria. São bispos, lugares-tenentes, governadores, abades comendarários
sumária será o dos artistas que se deslocam do centro para áreas que se comprazem em encomendar para a sua temporária sede
que, mais que periféricas, se poderiam chamar subordinadas. Deixan obras que manifestem a sua origem, as suas viagens, a sua elevada
do de parte o caso dos senenses, que não só mandam obras mas até posição social e cultural. Os frutos desre zelo mecenático, fora de
no século XIV vão trabalhar para Massa, para San Gimignano, qualquer conrexro e de qualquer repercussão ou expectativa locais,
para Paganico, etc., exemplos em larga escala vêm da acrividade cairão quase como meteoros. Este será o caso do ferrarense Philos
dos venezianos nas cidades do continenre enrre Quatrocentos e Roverella, que volta do Concílio de Trenro, em 1 5 45, à sua dio
Qui nhentos e do autêntico rush dos pintores lombardos na Ligúria cese de Ascoli Piceno trazendo atrás de si um dos artistas mais em
depois que Génova se colocou sob a protecção de Filippo Visconti, foco na corte do príncipe-bispo de Tremo: o friulense Marcello Fo
em 142 1 . Tratar-se-á neste último caso de assegurar melhores golino, a quem encarrega de decorar com cenas bíblicas o seu palácio
encomendas - e posições - num centro que é economicamente episcopaP 63. Não diverso - pela sua falta de con texto - será o
um gigante, mas culturalmente (e nesta altura politicamente) um caso de quem, nativo de uma área periférica, ascenda a grandes
anão. De resto o caso de Génova nos séculos XIV e XV é anómalo honras numa capital, como acontece a muitos prelados, médicos,
em relação à fisionomia de centros artísticos como Florença, Siena
burocratas e juristas uo decurso dos séculos XVII e XVIII. Pode sociais. Bastante significativo é o que se passou numa zona restrita
acontecer que se preocupe em enviar pata a terra natal uma ou da serra de Norcia, onde se encontra uma singular concen tração de
mais obras que atestem o seu amor pátrio, o seu gosto afinado, o
I
quadros florenrinos do gótico tardio ou renascentistas, desde Gio-
seu êxito social. Assim acontece que, residindo em Cento como vanni dei B.iondo a Neri di Bicci, a P.ie to di Cosimo, a Filippino tig. 2'
governador por volta de 1636-37, um natural de Spolero, alto Lipp.i. Estas presenças compactas e isoladas, que acabam por for-
I
funcionário papal, frequente assiduamente o atelier de Guercino, mar um contexto bastante homogéneo, explicam-se pela relação,
adquira as obras e até faça delas presente a uma confraria da sua prolongada no tempo, que um grupo de terras desta zona apenina
I
terra natal164. mantinha com Florença, onde os montanheses úmbtios eram tradi
Há ainda out ras situações: aquela, por exemplo, de consumido cionalmente empregados como carregadores na alfândega167. As
res periféric os que manifestam nas suas preferências uma subordi relações económicas entre áreas de emigração periféricas e um local
i I
nação cultural em relação ao centro. Um exemplo típico neste sentido, de trabalho si tuado no centro deram lugar a uma forma de sujei-
e extremamente sintomático pata estruturas de tipo feudal como a ção cultural. ·
da Calábria, é o da encomenda dos Sanginero, senhores de Alto Um último exemplo virá da Apúlia, onde os centros da costa
li
monre165. Encontrando-se Filippo di Sang.inero, em 1 326, a atra adriárica são caracterizados pela concentração de obras vénetas do
vessar a Toscana no séquitO de Catlo di Calabria, encomenda o San século XIV ao século XVI (depois substituídas pela penetração
Ladislao de Simone Mattini e um políptico a Bernardo Daddi.
I
Jl de obras napolitanas), que acompanham a presenca militar, política
Mais tarde, um membro da mesma família, enconcrando-se desta e comercial de Veneza168 Estas obras são muitas vezes as ordens
vez a reboque das preferências de Ladislao di Durazzo, encomen religiosas que as adquirem: o políprico de .Jacobello di Bonomo,
dará em Nápoles um políprico com histórias da Paixão ao obscuro do Museu de Lecce, veio da igreja das monjas beneditinas de São
mestre chamado Antonio Onofrio Penna. Nos dois casos as esco .João Evangelista de Lecce: o São Pedro Mártir de Giovanni Belli- ltg. 2(•
lhas dos Sanginero seguem as dos Angioini di Napoli, nos dois ni, da Pinacoteca de Baria, veio da igreja dominicana de Monopo-
casos as obras encomendadas vêm a ser recolhidas na Igreja de li; Savoldo e Pordenone pintam quadros para a igreja franciscana
Alromonte, sede do poder feudal, onde existe uma grande concen de Tetlizzi. Mas o prestigio de Veneza é grande em rodos os grupos
tração de símbolos culturais em comparação com o deserto do sociais: enquanto Muzio Sforza, um l iterato de Monopoli, dedica
território circundan te. A disparidade na distribuição dos bens um poema a Tinroretro, Lorenzo Lotto recebe, a 1 6 de Junho de
artísticos e a sua heterogeneidade indiciam uma situação que não 1 542 , Alouise Caralano, mercador de Barletta, enviado a ele por
é só periférica mas até colonial, e que se repetirá em Teggiano, «OS homens de Juvenazo» a fim de lhe encomendarem um rrfptico
o feudo dos Sanseverino, que nos confins da Campânia domina o para a sua Igreja de San Felice169·
Vallo di Diano, ou em Galarina, no Salento, onde Raimondello
Orsini dei Balzo e a sua mulher Maria d'Enghien fundam e man
dam decorar pelas mais diversas equipas de pintores a Igreja-San
tuário de Santa Catarina166.
Esta subordinação cultural em relação ao centro pode manifes
tar-se mesmo em consumidores que pertençam a outros grupos tó7 A. Fabri, «Areis ti fiorenrini sul territario di Norcia>> , in Rit;ista d'arte,
XXXIV, 1959, pp. 109-22; idem, Pt'eá e la Valle Ca.rto1'iar1a, Spolero, 1963.
lloll H.. Cessi, «Venezia, le Puglie e l'Adriatico», in Archivo
i St01·ico delle Pu-
164 Casale, Falcidia, Pansecchi, Toscano, Ril·1!1·che in Umbria, cit., p. 34.
8/h·, Vlll, 1966, fase. 1-4, pp. 53-59; M. S. Calo, La pittura dei Cínquecmto e de/
16) F. Bologna, I pittori alfa corte angioina di Napoli, Roma, 1969, pp. 173,
(l'l'illlo Sr•iu'lllo in term di B,�.ri, Bari, 1969.
349; idem, prefácio a Arte i11 Caiabri,z, ci t., p. 7. "'" J>. ( ;j;lll l l t%.z i, ,.(Jrw pnla di pinta ela Lorenzo J.otro per la cattedrale di
t (.r, Antonaci, \,/i 4/fi·e.rchi di ((uJ,,riwt, Mili'lo, 1 1JM, . < : loviii.V/.1 1 • • , in 1\r/t.' 11 .1'/llrÍ(I, X fl l , I H 91\, p. 9 1 .
CAPITULO I 87
86 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
I.
a obra de Bernardo Vittone, uma das maiores figuras do século
ficílima ciência, que reúne em si todas as outras ciências . » 172
XVIII europeu, o qual, rrabalhando embora quase exclusivamente
I
na província do Piemonte e principalmente na construção de igre
jas de povoações e de oratórios campestres, apresenta soluções i ?o
32. As contas com a Europa
vadoras que díaloaam
o
com as mais avançadas experiências europeras.
.
Através das mutações que se verificam na formação d os arttstas
Se é verdade que no século XVIII a arte e a cultura italianas
e na circulação das informações, o século XVIII assiste a profundas
tiveram larga circulação europeia, também é certo que, desaparec i-
dos Piranesi e Canova, nenhum arrisca italiano viu depois, durante Paris que se lhe afigura periférico e confessa ao seu discípulo Wicar,
muito tempo, a sua obra ascender à categoria de modelo. A fase encorajando-o a permanecer na Irália:
sucessiva foi a de um longo eclipse, que já de resto há tempo se
fazia anunciar. Nos meados do século XVII tinha-se encerrado uma «Neste pobre país eu sou como um cão arirado à água conrra
era plurissecular. Por uma simbólica coi ncidência, o mesmo ano vontade que se debate para chegar à margem e não se afogar. » 173
(1 665) em que Poussin morre em Roma vê em Paris a falência do
projecro Becnini para o Louvte. A crise profundíssima da socie Se para os estrangeiros a Itália é um passado em que se descor
dade italiana, e mais ainda a debilidade da corte romana no qua tina o futuro, a relação dos artistas italianos com a Anriguidade
dro geral das potências europeias, impedem que daí em diante um está bem longe de ser dramática ou explosiva. Depois da morte de
paradigma artístico global se imponha a partir da península como Piranesi, que no reconhecimento das ruínas romanas e nos carceri
I I tinha acontecido num passado não muiro distanre, quando o presrígio tinha criado protótipos de interpretação sublime e visionária da
artístico e extra-artístico de Roma, capital da cristandade (cristan colossal grandeza da Antiguidade, nenhum italiano soubera seguir
dade carólica de nome, embora não de facto), era de molde a poder -lhe as pisadas. Em cerro sentido, o paradigma neoclássico acabará
assegurar o sucesso mundial dos dois paradigmas que, em conflito, por aringü a Itália somente de ricochete, através da hegemonia
se tinham desenvolvido. Este foi o caso primeiramente de Rafael e política e militar, ainda antes da hegemonia arrfsrica, da França
Miguel Ângelo e mais tarde de Carraci e Caravaggio: o paradigma napole6nica. Nos anos da Restauração permanecem ainda os dife
aparentemente virorioso e a sua alternativa. Isto não mais se re rentes centros regionais , reforçados pela presença das academia
s
pete: poderão surgir quando muito códigos secroriais como o dos que tinham dado estrutura .institucional às diversas escolas regio
« Vedutisti», ligado à posição privilegiada que a Irália tinha no nais, mas a sua capacidade é bastante diferenciada. Parma ou Modena,
Grand Tour. Uma prova adicional desta posição é dada pelas vicis Luca ou Mânrua encontram-se já a reboque dos centros maiores,
situdes do paradigma neoclássico. Se as suas raízes eram italianas, Veneza atravessa uma crise bastante profunda, que se prolonga
rá
só em parte podem dizer-se tais os seus protagonistas. Teve-se até por decénios, enquanto Milão reforça o seu papel cultural, ao lado
a situação paradoxal de artistas estrangeiros rrabalhando em Roma do seu papel político como capiral do Véneto Lombardo. É em
bastante alheados da vida artística local no presente, e empenha Milão, precisamente, que vem estabelecer-se o veneziano Francesco
dos anres em procurar nos monumentos do passado as chaves de Hayez, esse Nestor imperturbável que dominará a paisagem arrística
um futuro novo. Aqui elabora o anglo-suíço Füssli os preâmbulos lombarda aré depois dos anos 80, recebendo as encomendas dos
do seu estilo visionário, aqui estudam e executam trabalhos ingle com atrio tas lombardo s, as certidões de boa conduta do imperador
p
ses como Barry ou Runciman, suecos como Sergel, dinamarqueses da Austria e as honrarias do reino de Itália. Turim mantém os
como Abildgaard e depois Thorwaldsen, americanos como Benja seus laços privilegiados com a França, mas num clima atormenta
min Wesr, suíços como Abraham-Louis Ducros, franceses como do e bearo, onde um Gioacchi no Serangeli , depois de ter sido
Jacques-Louis David. É em Roma que é executado e pela primeira discípulo de David e de ter recebido da Convenção o encargo de
vez exposto ao público ( 1 7 84) o manifesto da nova pinrura, o gravar a grande ícone revolucionária de Marat assassinado, acaba
}ttramento dos Horácios, de David: mas aqui, não obstante a curiosi por pintar uma Virgem Aparecend.o a São Bernardo para a Abadia de
dade suscitada, a obra só encontra fracas ressonâncias. Roma já não Hautecom be, reconstruída por Carlo Felice como monumento da
é, neste momento, o cenrro propulsor que tinha sido no passado e dinastia de Sabóia. Graças à presença de importantes colónias
nem sequer a podemos definir como um cencro-·relais: é ames uma
espécie de centro fantasmárico onde se concentram os desejos, as
11'
Carta de David a \'Vicar de 14 de Junho de 1789. Reproduzida em
esperanças e os projectos de mui c os (.'Stmngc:i ws. U ru mês
an:iscas
< >. t' ( : . WiJdcnswin, Dm'/1/llcnt.r t'IIIIAJ!Iémcntaii'U.I' a1t ccttalogtte de l'oelltJt'e t!e Lotús
apenas antes da tomada da nas t i l h;t, David J r.ll> .•: , · r\'sir11:1 :t u.rn I >,lf'itl, Pu ri:;, I ')7 5 , pp. ;�7 s.
90 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA CAPITULO I 91
artísticas estrangeiras, Roma, Florença e Nápoles perpetuam rela napoLitana, que, apoiada e encorajada a nível internacional por arriscas
ções ainda incensas com as culturas transalpinas, mas (analoga rão diversificados como Goupil, Forruny, Meissonier, acaba por
mente ao que acontece na língua literária, como mosrra o caso de desaparecer do panorama artístico europeu. As etapas deste per
Carducci) enconrram sérias dificuldades em adequar as linguagens curso são conhecidas: das límpidas paisagens da escola de Polisipo
artísticas, onde é particularmente forte a permanência de estrutu à abertura à França dos Palazzi, do ambíguo realismo simbólico de
ras do passado, aos novos conceitos e aos novos conteúdos. Assiste Domenico Morelli ao breve parêncese da «escola de Resina>> ter
-se nos centros italianos a uma espécie de exaustão dos códigos e a minando com o roque empastado e as lantejoulas de Mancini, a �risra
wna incapacidade de os renovar. de grande sucesso europeu, «olhar agudíssimo, mas não educável » .
Nesta siruação de arraso, de omnípreserire hipoteca do passa Não é difícil reconhecer as causas dos incidentes d e percurso e dos
do, abre-se com a unifkação política o problema da unificação resultados finais desta progressiva derrapagem: uma actualização
lingu.ísr.ica da arte italiana. O processo irá surgir, antes de rudo, a com base em experiências francesas mal seleccionadas e mal com
nível temático com a proliferação e a difusão de uma iconografia preendidas, ur�a perene tendência ao compromisso entre realidade
patriótica comum que celebra a história italiana recenre, desde os e idealização, entre verdade e símbolo, uma subserviência às ex
feitos de Garibaldi até às guerras da independência e às campanhas pectativas quer de um público de largas disponibilidades financei
coloniais - processo em que se encontram envolvidos artistas de ras e gosto fácil, quer de mercadores internacionais em busca de
diversas origens culturais e geográficas: lombardos, véneros, tosca virruosismos récnicos e luxos profissionais. Tudo isro denrco do
nos, meridionais. Uma outra remática unitária, não já comemora quadro da crescente decadência económica da cidade.
tiva mas crítica, foi a do inquérito social: também aqui artistas de Os equívocos de que é feita esta crajecr6ria estão resumidos na
diversa origem se dedicam a trazer à luz as realidades ocultas e biografia de Vincenzo Gemico, potencialmente um dos grandes
obscuras do país, procurando realizar uma espécie de inquérito esculrores europeus do seu rempo. Por um lado, representa com
antropológico que apresente os aspectos peculiares, ainda os mais eficácia e vigor extraordinários toda uma galeria de pescadores, de
sombrios, de cada cultura regional. Em ambas as vias, porém, o garotos, de «doentinhos>> , procurando no bronze com virtuosismo
comum objectivo temático é acompanhado pela procura de uma os efeicos das obras-primas helenísticas; por outro lado, faz o cerra
unificação que também é linguística, só em parre satisfeita pela co de Fonuny, admira incondicionalmente Meissonier e obtém o<>rande
difundida exigência de realismo. Reafirmam-se os particularis sucesso nos sa/ons. A longa crise psicológica que o mantém segre-
mos locais: por um lado, os centros tradicionais, como Veneza gado durante mais de vinre anos pode ser vista como o desfecho
(emergindo de uma crise de decénios), Milão, Turim, Florença, do desencontro entre esperanças e realizações, enrre dotes artiscicos
Roma, Nápoles; por outro lado, as regiões esquecidas, como os excepcionais e ausência de horizontes estilísticos adequados. Para
Abruzos de Michetti, que pela primeira vez se apresentam à luz evicar cair no esbocismo, Gemico procura um correctivo na grande
da ribalta. tradição: mas a sua tentativa desesperada de rivalizar com os bron
Precisam-se as relações com a Europa: e trata-se, quase exclu zes helenísticos do museu de Nápoles rem um cunho inconfundível
sivamente, de relações com os arriscas, os críticos e mercadores que de auto-segregação provincial. Gemi co exemplifica, a elevado nfvel,
gravitam em torno dos salom oficiais, não com os grupos mais a culrura artística napolitana no seu processo de afastamento da
avançados e de ponta. Num período de conflito de classes, de tensões Europa moderna.
ideológicas, de lutas entre paradigmas como foi o século XIX, esta Roma e Milão em breve se rornam os dois centros hegemónicos:
opção é particularmente grave. Quando o aparecimento das van Roma é a sede das principais instiruições culrurais do reino, e é
em Mi l:"io que nasce o 1x.i meiro mercado de arce iraliano, que apoia,
guardas desencadear em França a crise da arre dos salons, muitos
arriscas, e até mui tos centros arcísricos i talianos, irão encontrar-se < l l t a�<: 1womove, a expe riênci a divisionista. Segantini e Pellizza da
completamente marginali zaclos. Um caso c x 1 · 1Y 1 p l ar ( o < l a cscoh1 Volp<·do .�;in, pr6xir1 1 1 > do Fim do s<·: c u l o , pintores de garra, de n ível
92 HISTÓRIA DA ARTE ITALIANA
CAP ITULO I 93
e problemática não provinciais, e tudo o que acontece entre Milão
italiano, mais uma vez, revelava-se mais forre do que qualquer
e Roma nestes anos de aspirações libetrárias e socialistas, de espe
tentativa centralizadora.
ranças vastas como as que pulsam no lento e imponente avanço do
Policenrtismo ou poliperiferia? Poderia aplicar-se a este dile
Quarto Estado - o «grande quadrO>> que fecha a pintura italia a
� m a um passo célebre de Lewis Carro!:
de Oitocentos -, tem marca e qualificação europeias, talvez mats
do que aquilo que se segui rá quando em Milão, em torno do co
? «- Quando dizes •monte' . . . - i nterrompeu a rainha -, po
grama de Marinerti, o movimento fututista for ular o propostto
� � . deria mostrar-te montes ao pé dos quais considerarias este um vale.
de repor a arre italiana no âmbito das expenenCJas ma1s modernas
- Não, não consideraria - disse Alice ( . . . ). - Um monte
da Europa, ou antes, de a colocar precisamente à frente �elas. Em
não pode ser um vale. Isso seria um absurdo .... » 176
certo sentido, o futurismo, ao mesmo tempo ft!ho do fasCismo e de
uma industrialização retardada174, pode ser visto como um caso
De facto o problema da cultura italiana - e não só a figura
exemplar de scarto periférico - o que pode contribuir para expli
tiva - continua a ser neste período o da relação com a Europa.
car o sucesso que obteve na Europa, especialmente nos sítios onde
Esta Europa rem uma capiral - Paris -, mas rraca-se de uma ca
cerras propostas e cerras aritudes deixaram de ser possíveis. A sua
pital em latga medida fantasmárica, isolada por uma historiografia
modernolacria optimista e provocarória só �ra realmente concebível
não menos sectária do que a historiografia de Vasari.
num país em que a revolução industrial esrivesse apenas no início1 7�;
. Mas fazer as concas com a Enropa significa, pata a Itália, fazer
uma síntese dinâmica que desroasse de experiências europe1as
as contas com o seu próprio passado. Com uma tradição tão pres
recentes, ralvez mesmo contraditórias (do pointillisme ao expressio
tigiosa i rremediavelmenre atrás de si, é impossível que não se sinta
nismo e ao cubismo), era também inco ncebível onde esras expe
periférica. Sair da periferia pressupõe, portanto, fazer as contas com
riências tivessem conhecido um desenvo lvimento orgânico. Acres
a tradição, com o museu. E aqui sobressaem as duas propostas
cente-se a isto que os futuristas, enquanro propunham uma política
mais radicais - a dos futuristas e a de De Chirico: deitar fogo ao
e uma acção de grupo, privilegiavam o aspecto heróico e demiúrgico
museu ou afastá-lo para longe, numa luz irônica e sublime.
do rrabalho artístico, colocando na sombra a moderna problemática
das «artes aplicadas » , que já, no encanto, alguns na Irália tinham
compreendido correctamente.
A exaustão da primeira vaga futurista, a deslocação para Roma
do centro do movimento, a breve duração da pintura metafísica,
alteram ainda mais a geografia dos centros artísticos italianos.
A tentativa futurista de criar um eixo Milão-Roma não dá resulta
do. Os decénios subsequenres, até à queda do fascismo, vêem o
ressurgir de tendências municipais mais ou menos ligad s às expe
�
riências europeias: dos Seis de Turim ao grupo mdanes de Cor
rente da escola romana da Via Cavour às experiências solitárias de
li
i
Rosa , em Florença, de Morandi, em Bolonha. O policentrismo
.' , C i l c p. l w l c o c c o , l'colpifco, o l lc>(l, ( 'n1o'dr:d do · c 'tctdilu l ( I 'I "YI' II I<�nh' da I 'nlnlrnl de· l 'irtll),
d , I >wnrnlru < lhirlunduil), ( 'orn11r1lfl d11 Virl{I.JUJ, Pnlil<.:io Comuna! de Narní
:l. Giovnnni Písnnn1 . l'lilplltl, I.)J.l, (. 'ah'tlml d•· l'isa.
(ptliVI'II i<•tiiC <la lf:I'<'Jil <ln•i I ))l"!lf llllll h;'' dt· S . .lcr·íutil\lo).
.'i . Giovannl di l'ictro, dito /,o SJllllllla. ( 'omll\'·'io tlu Vi'1l<'l!l, l 'i l l . l'inucnlt·t�lt <k Todi h. Olnvanni tli l'ktro, dito Lo S[lfl/lllll, ( 'omu�·Jtn c/u Vir/:UIII, l'inacott�<.;a dt: Tr�wi
(pruvrni<'lllt' du lflrl'!ll tioK l{l'forn md"" <k Monl<.' Sunlp), ( p1 •JVI1 1 tl<·nlr du 11\111]11 l'rundKI/11111 dt• S M a 1 l n 1 h 1 1 ) .
Domenico della Marca d'Ancona, Cinco Apóstolos, (pormenor elos frescos d;t :ll>side),
IgreJa de Santa Mana de Spinariano de Ciric.
'1. i\nlt�nio tlll Yitnht>, .<;, llnh no 'l"mJto, IJ(H'JII paroqni;,l d11 ( 'orchituttl (Vitnho).
ll. Oim;olllino d11 lvn:a, I'illltll"il Muml cl:1 fu dJac/1 1 , l tl(>:l, 1�\t'l'j:t dn Mndnluna dt• < in•1:nnn (i\(lsta).
10. Jacopo da Pontorroo, Cristo perante Pilatos, Claustro «delta Certosa», Florença.
25. Picr() di Cosimo, Pietlf, Onlerla Nucionul de tJmbria, l'urul-\iU (r"�rovenic·nlc !lc AhcL1>). 2CJ . Giuvunni fkllinl, S. l'l;dro Mlfrtir, Pi11:woh·�·;1. de Oari.
CAPÍTULO U
IDA E VOLTA
muitos tinham pensado num ataque atómico dos soviéticos, alguns pa de Turim. A crise perrolífera estava no auge, dando sequência à
numa sabotagem levada a cabo pelos oponenres à intervenção guerra do Kippur. «Crise Económica e não Catásrrofe>> , anunciava
americana no Vietname, e um aviador que sobrevoava a zona acre o título do arrigo. O edirorialista anónimo fazia uma grave adver
ditara simplesmenre que havia chegado o fim do mundo. Num tência: « E preciso dizer claramente que a sociedade industrial não
instante, escrevia um editorialisra anónimo do New York Times, «a está a caminhar para a catástrofe, não existe nenhum risco de que
capacidade humana de enviar foguetões à LLta, de voar em torno uma crise económica, mesmo gravíssima, degenere em cataclismo
do globo terrestre em condições de imponderabilidade, de produ geral capaz de destruir a civilização. A Idade Média não é para
zir sem esforço quantidades ilimitadas de bens materiais - tinha amanhã, nem mesmo para depois de amanhã . . . ,,. E prosseguia,
sido anulada>). Face à demonstração inesperada da extrema vulne consolador: «A catástrofe ecológica, que poderia ser provocada pela
rabilidade da sociedade industrial mais evoluída, um ourro jorna explosão demográfica, pelo esgotamento dos recursos essenciais, pela
lista lembrava como, nos anos que precederam a Primeira Guerra poluição coral do ambiente, até os mais pessimistas de entre os
Mundial, E. M. Forster, num conto intitulado The Machine Stops, ap6stolos do novo milenarismo a encaram como um acontecimento
rinha feito a descrição profética do colapso (lenro, neste caso) duma
susceptível de atormentar a humanidade num horizonte de várias deixar-nos-ia morrer. E eu, é ce rto que não tenho soluções, o u pelo
gerações, e não nos anos 70 do nosso século.>>6 Tanto pior, em menos não conheço senão uma: dizer e repetir aos homens que eu
suma, para os nossos ne tos e bisnetos. vi as colinas de Wessex como as tinha visto Alfredo quando pôs
Mas a atenuação, cujas razões são conhecidas, da crise energé em debandada os d inamarqueses.» A mesma ideia repete-se em
tica depois de 1973 não afastou o medo (e a possibilidade) duma tom enfático no fim da narrativa, no momento em que a máquina
catástrofe ecológica: pelo contrário. Foi sobre o pano de fundo destas pára, arrastando na sua próp ria perda toda a humanidade subterrâ
inquietações, partilhadas por grupos cada vez mais importantes , e nea, que sufoca nos esforços que faz para tentar respirar: «Morre
não já apenas por alguns profetas de desgraça isolados, que a moda mos», diz o filho à mãe, «mas dep oi s de termos reconquis tado a
da Idade Média prosperou. Procura-se obscuramente decifrar nesse vida. A v id a tal como era no Wessex no tempo em que Alfredo
passado os rraços ameaçadores dum futuro possível. pôs em debandada os dinamarqueses. » 7 A sobrevivência da espécie
humana está confiada aos raros exilados que, sobre a terra, entre os
3 . Todavia, isso é apenas uma face - a face escura - do es fetos, esperam· o fim da civilização fundada na máquina.
teriótipo. A outra é bem difere nte . Neste conto, como se viu, retoma-se, ampliado a uma escala
Retomemos The Machine Stops, o conto de Forster evocado pelo cósmica, o velho tema de F ranke ns tein - o aurómaro que se rebe
New York Times no dia que se segtúu ao grande black-ottt de 1965. la contra o homem que o criou. No contraste entre a artificiali
Não se rrara, dúvida, do que há de melhor em Forster, mas a
sem dade tecnológica, assente na recusa do corpo, e a naturalidade da
sua importância simbólica é conside ráve l. Os acontecimentos rela vida sem corrupção podemos ver o tema central dos grandes romances
tados desenrolam-se num futuro indeterminado. Os seres humanos de Forster, desde The Longest }ottrney ( 1 907) até Passage to India
vivem debaixo da terra, numa atmosfera artificial. Todas as rela (1 924). Mas é s ignificati vo que a fuga para a natureza não coma
ções são reguladas pela máquina: ning ué m, ou quase ninguém, minada pela peste tecnológ i ca se traduza por uma evocação da
ousa aventurar-se fora do seu próprio habitáculo, as palavras e os Idade Média - o rei Alfredo que derrota os di namarqueses nas
pen samentos são transmitidos de um ponto a outro do globo por colinas de W essex. No mesmo ano em que escrevia The Machine
uma espécie de videorelefone (o conto dara de 1 908). Poucos são Stops, Forster anorava no se u diário, com a data de 27 de Janeiro
os que se arriscam a aparecer à s uperfíc ie da Terra e, quando o de 1 908: «Na passada segunda-feira, um homem - um certo Far
faz em , devem munir-se de máscara que os proteja do oxigénio: os man - voou numa distância de três quartos de milha em um
seus pulmões j á não toleram o ar pu ro . Os que cometem infracções minuto e meio. Isto vai depressa e se eu chegar a velho ainda hei
graves são condenados ao Exílio Perpétuo , ou seja, abandonados -de ver o céu tão sujo como estão hoje as ruas. Trara-se realmente
sobre a terra, onde o ar lhes é fatal. Mas o filho rebelde da heroína de uma nova civilização. Nasci nos finais da idade da paz e não
do conto decide subtrair-se ao domínio da máqui na: deixa o mundo posso ter esperança em qualquer coisa que não seja um senrimento
subterrâneo, aventura-se numa zona que ele identifica com o Wessex, de desespe ro. A ciência, em vez de lib ertar o homem - pela rec
resiste ao concacto doloroso com a atmosfera hostil e consegue tidão do seu comportame nto os Gregos quase o tinham libertado
sobreviver. Depois volta para jun to da mãe e transmite-lhe a sua -, está a torná-lo escravo das máquinas . . . Meu Deus, que perspec
mensagem. E lutar conrra a máquina: «Fomos nós mesmos
preciso tiva! As pequenas casas a que estou habituado serão dentro em
que a criámos para que cumprisse a nossa vontade, mas agora j á breve d emoli das , um cheiro a gasolina evolar-se-á dos campos e as
não nos obedece. Se ela pudesse prescindir d e nós para funcionar aero naves destruirão as es trelas . . . ,R É neste sentimento de desespe -
' Cf. F.. M. Forster, L'01rmilm.r celeste, contos, tmd. it., Milão, pp. 1 1 5-154.
6 Encrevisrado nesta época pelo quotidiano StmnjJa Serr�, Roberto Vaccn de
" Cf". E. M . Forsn·r, Uowartl'.l' l'.ll.t, Londres, l9HO, introdução de O. Stally
clarava que a rdse petrnHfent rr�t Cl]uivnltnt.., ao wme�o da ll<lVa Id>�de Múlia,
hrnss, I'· I O . .'iohn· 'l'be' M,trhim• Sttif'r, r f'. M. H . l i i l kwts, Thu F11tm·e oJ Night-
pelo qu:l! tnl tH"c <"'>s:írio c·sl""�"'tr " i lida urn < > t i dois cl('< , : , , ios (i/ii,/., p. /.()fl).
124 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO li 125
to, hoje facilmente tachado de ptoto-ecologismo, que a nostalgia decadência compreendido entre o fim do Império Romano e o
de Fotster pela Idade Média tem a sua origem. Não é sem dúvida Renascimento das artes e das letras. Sabemos que este estereótipo
um exagero ver aí uma das primeiras manifestações dum estado de dificilmente cedeu o lugar a uma .imagem mais positiva e arti
espírito cada vez mais difundido nos dias de hoje. culada da civilização medievaP0 Subsisre o facto de que a própria
ideia de Idade Média estava inseparavelmente ligada a uma deca
4. A Idade Média como símbolo do medo difuso duma derro dência que se observava a partir do cume de um progresso -
cada iminente da sociedade industrial, ou como símbolo da nostal ambos de ordem cultural. Bastará recapitular rapidamente, através
gia, também ela cada vez mais difundida, de uma sociedade pré de alguns testemunhos muito conhecidos, a história de uma das
-industrial não contaminada. O estereótipo parece profundamente componentes fundamentais do estereótipo: a Idade Média como
contradit óri o e, à primeira vista, não rem nada de inédito. Mas época das trevas.
uma abordagem menos superficial deixa claramente transparecer o A oposição simbólica entre a luz e as trevas é um elemento
que há de novo numa e noutra versão d este estereótipo corrente que se enconti:-a nas culturas mais diversas - sem dúvida alguma
sobre a Idade Média. porque esrá substancialmente ligado à relação física da espécie
Vimos estiolar-se sob os nossos olhos a ideologia novecenrista humana com o meio ambiente que lhe é próprio. As conexões luz
que considerava inevitável e benéfico o progresso científico e tec -conhecimento e trevas-ignorância estão igualmente muito difun
nológico. Poucos anos foram necessários para isso: basta pensa·r didas11 . Mas, no que respeita ao nosso obj ectivo, é possível apurar
mos, por contraste, na otgia de declarações entusiastas suscitadas elementos de análise mais precisos e mais pertinentes. A imagem
pelos primeiros passos dos astronautas americanos sobre a Lua. Re das trevas medievais tomou forma no decurso das polémicas dos
trospectivamente, pode-se ver nessas declarações os últimos sobres humanistas contra a cultura escolástica. Em 1 5 1 7 , Budé escrevia a
saltos duma ideologia moribunda que tinha sido partilhada (e que Cuth bert de Tunstall que Erasmo, com a sua edição dos textos
seguramente ainda o é em cetra medida) pelas diversas ideologias sagrados, tinha feito sair a verdade das «trevas c.imer.ianas» (ex
que têm um nexo de filiação com o pensamento do século XIX, «Cimmeriis illis renebris » ) que a envolviam 12• Disto se fazia eco
desde as liberais às matx.istas9. Mas o duplo receio duma catástrofe Rabelais, em 1 5 3 2 , quando observava, no prefacio dedicado a André
nuclear e duma catástrofe ecológica instalaram no proscénio (e é Taquereau da edição l.ionesa das Epistolae Medicinales, de Giovanni
de crer que por largo período) o tema dos custos e dos riscos do Manatdi, que algumas pessoas «in hac tanta saecu l.i nostri luce»
progresso. (nesta tão grande luz da nossa época) não podem ou não querem
Entre os efeitos colaterais da mudança de clima cultural, pôde erguer os olhos para o sol libertando-se assim «e densa illa Gothici
-se assistir a uma modificação da imagem da Idade Média. É pre temporis caligine plusquam Cimmeria>> (desse denso nevoeiro mais
ciso não esquecer que a noção de uma media tempestas (e mais tarde
de medium af:Vum), formulada pela primeira vez pouco depois de 10
Sobre estes remas a bibliografia é, naturalmente, infinita. Aqui basta
1450, conseguia impor-se porque estava carregada de um conteúdo remerer o leitor para o livro de G. Palco, La polemica sul Medio EtJO, nova edição
muito negativamente conotado. A Idade Média era um período de apresentada por F. Tessicore, Nápoles, 1974 (a primeira edição data de 1933).
" Para uma primeira abordagem, purameme bibliográfica, cf. o capitulo
«Licht>>, in Historisches Worterbuch der Philosophie, hsg. Von ) . Ritter, V, Basel
rnat·e: H. G. We/ts and the Anti-Utopians, Ox:ford, 1967, passim; C. Pageni, <<Una -Estugarda, 1980.
utopia negativa di E. M. Focster», in Stttdi ingteii, I ( 1 974), pp. 203-230 (arti '" A carta de Budé é publ icada por P. S. Allen, Opm epistolamm Des. Erasmi
go útil, abstraindo a conclusão inacei tável e graruira). l�fJlG't'fldctmi, li, Oxonii, 1910, p. 5 6 7 ; a dedicará ria a Tiraqueau iu Rabelais,
9 Ver a este propósi w o ensaio pertinente, ainda que, sem dúvida , dema 01!1Jt"e.l" romjJ/tteJ, ed. P . Jomda, Paris, 1962, II, pp. 461 e �s. Esses tex:cos são
si.ado optimist<�, de H. M. Em.ensbt·rl:t:(, «Per hl c ri t ica ddl"c-rologia pol iti(a ·· irados por L ViHJ�ll, Oe/..1' S,h!tt8WI!ft '/IOlll •l'in.,·tn·rll Mittelolten• , Baden-Wicn
( 1 97 :1 ) » , in l'tdrm<�·. Conxido'1"<1Útmi políth·bu. rrad. Íl'., Turim, 1 '}7(>, Pl '· "1-19 }0-1. . ] .t·ip�il: l l r u n n , 1 'l \.�. pp. H') 90.
126 DAS TREVAS MEDIEVAIS CAPITULO li 127
que cimeriano da época gótica). Dentro do mesmo espírito inicia vermelha, não decerto contínua mas quebrada e múltipla, que
va Vasari a primeira das suas Vite dei piu eccelenti pittori, scultori ed um dia terá de ser reconstituída anal i ricamente, nas suas varian tes
architettori (15 50), a de Cimabue, com estas palavras: «Ü intermi metafóricas1 6 .
nável dilúvio de males que tinha inundado e sufocado a infeliz
Itália não só havia arruinado todos os edifícios dignos deste nome, 5 . Há j á muito tempo que não se encontra investigador que
mas também, o que era mais g rave, tinha reduzido a nada o número tome a sério a metáfora das trevas medievais. Só recentemente -
dos artistas. Foi então que a Providência fez nascer, na cidade de depois do black-out que ruergulhou Nova Iorque nas trevas, para
Florença, no ano de 1240, "para trazer as primeiras luzes" à arte escolher um acontecimento metafórico também - foram criadas
de pintar, Giovanni, que tinha o nome da nobte família dos Cima as premissas para uma abordagem da categoria historiográfica de
bue . . . ». A significação da expressão «trazer as primeiras luzes» Idade Média em termos nitidamente alheios à oposição entre deca
torna-se precisa no confronto com o passo equivalente que se encontra dência e p�ogresso no interior da qual se elaborou. Isto não equi
na vida de Giovanni e Nicola Pisano: «A Giovanni como a Nicoia, vale de modo algum - digamo-lo claramente - a valorizar de
seu pai, deve-se realmente muiro: nesses tempos em que o bom qualquer maneira as revisirações da Idade Média que podem efec
desenho fal tava , "eles trouxeram, nas trevas, uma luz apreciável" à tuar-se aqui e além em moldes reaccíonátios. Mas que a Idade
escultura e à a tquitecrura , que praticaram da melhor maneira para Média seja hoje percepcionada sob a forma de um «miro ecológico» ,
a época.>>n Dois séculos mais tarde, no Essai sttr les moeurs, Voltaire como observou Paul Zumthor17, não é um facto destituído de
irá reromar pontualmente o mesmo tema: «Mas embora nos sé significação. Esta percepção (ambívalente, corno vimos) coincide
culos XIII e XIV alguns iralianos «começassem a sair das trevas», com as questões levantadas pelos investigadores. Em 1966 já Lynn
toda a populaça estava ainda mergulhada nelas» 1 4 • Aqui Voltaire Whíte J r. se interrogava sobre as «raízes históricas da nossa crise
não reflecte sem dúvida Vasari, mas muito provavelmente um passo ecológica» e propunha, em conclusão, que se considerasse Francis
das Antiquitates ltalicae de Muratori (que, no entanto, está isento co de Assis o santo patrono dos ecologistas (vinte anos antes tinha
da imagem das trevas)15• Mas de Vasari a Voltaire, da condenação vis-to nele o iniciador indirecto duma reflexão· científica sobre a
quatrocenrista das trevas que precederam o renascimento das narureza, porque concreta e igualitária, não abstracta e hierarqui
letras e das artes à exalração setecencista das Luzes corre uma linha zada)l8. Em 1 97 3 , no momento mais grave da crise petrolífera,
Le Monde publicava extractos da lição i naugural pronunciada no Estes pensamentos de B uffo n - e muito particularmente a
College de France por Emmanuel Le Roy Ladurie, sobre o tema da questão que formulam a concluir - não podem hoje ser lidos sem
«história imóvel>> - imagem provocarória que iniciava a análise inquietação. A capacidade de autodestruição a que chegou a hu
do ecossistema desde a grande peste do começo do século XIII manidade (delegada presentemente nas mãos incontroladas de alguns
até à revolução industrial 1 9 • Em convergência parcial com o espí dos seus representantes) constitui uma conquista sem dúvida irre
rito desta análise, Jacques Le Goff avançava em 1978 a ideia versível. Quem faz investigações sobre a história não pode deixar
de uma Idade Média «longa», a começar nos séculos II-III e ter de ter em conta este ponto de chegada. «Ü termo da nossa carreira
minando no decurso do século XIX, no momento em que se impõem é a morre, é ela o alvo necessário dos nossos desígnios»; as palavras
as sociedades industrializadas20• A necessidade de fazer o apura que Montaigne pronunciava em nome do indivíduo22 não deverão
roemo sobre os efeitos a longo prazo provocados pelo corte radical passar a ser ditas em nome de roda a espécie?
que se operou durante o século XVIII vem indubitavelmente A consciência de que a possibilidade do fim da história (e
estimular essas buscas e essas novas reflexões. E esses efeitos re da espécie) humana faz patte dos frur os do progress o é coisa muito
lacionam-se com o progresso científico e tecnológico, e também diferente das fáceis nostalgias reaccionárias. Não viria à cabeça de
com a explosão demográfica, as armas nucleares, a poluição do ninguém querer regressar a uma sociedade como era a sociedade
ambiente. Tais fenómenos trazem consigo um efeito rerroac ri yo medieval, exposra às epidemias, às fomes, ao flagelo da mortali
que não se pode confundir com uma banal leitura anacrónica do dade infantil. Uma parte importante da humanidade, sabemo-lo
passado. Vamos ler, decorridos dois séculos, o que escrevia Buffon bem, sofre ainda esses horrores . Mas não está excluído que pro-
sobre os «animais selvagens» - esse mesmo Buffon que se com . gtessos tecnológicos imprevi sív eis (a dessalinização da água do mar,
prazia em poder exaltar «O domínio legítimo que nenhuma revo a utilização generalizada duma energi a nuclear «limpa>>) possam
lução poderá destruir>> exercido pelos homens sobre os animais: assegurar no futuro a sobrevivência da população humana, ainda
«Quanto mais a espécie humana se multiplica e se aperfeiçoa, tanto que numericamente muito superior ao que é hoje. Mas aquilo que
mais eles (os animais selvagens) sentem o peso de um domínio os ptóptios ecologistas têm muitas vezes tendência para subesti
tão terrível como absoluto - domínio que, deixando-lhes apenas mar, e mesmo para não tomar em conta, é o grau de coacção po
a existência individual, lhes rira rodos os meios de liberdade, toda lítica que poderia ser necessário para assegurar um equilíbrio entre
a noção de sociedade, e lhes destrói a inteligência no próprio ger a espécie humana em expansão e o meio ambiente2}. As cam
me. Aquilo em que se tornaram, aquilo em que ainda virão panhas para a esterilização que foram tentadas na Índia, e ai nda
a tornar-se talvez não manifeste suficientemente aquilo que foram mais aquelas que se começaram a realizar na China com a finali
nem aquilo que poderiam ser. Se a espécie humana fosse aniqui dade de impor o controlo dos nascimentos, constituem outros tantos
lada, quem sabe a qual de entre eles pertenceria o ceptr<> da presságios sinistros. Pode-se apenas desejar que, num futuro ecos
Terra?»21 sistema ameaçado, os reg imes fascistas do século XX não façam a
sua aparição, retrospectivamente, como modelos precoces de domínio
Wh.ite, relacionar com o ensaio «Narural Science and Naruralisric Art» ( 1 947), integral da sociedade (mesmo que se orientassem mais para uma
reeditado na colecrânea Mb:iieval Religion (md Tech1Jology, Berkeley, 1978,
pp. 37-39.
19 Cf. Le Mondt de 2-3 de Dezembro de 1973. A lição inaugural de Le Roy p. 62. Outros passos são trazidos à discnssão numa perspec t iva diferente por
Ladurie foi reeditada em Le territoire de l'hist�ie11, Paris, 1973. C. J. Gh• cken , Traces 011 the Rhodía11 Shorc, Berkeley, 1976, pp. 672-679.
Zl
2° Cf. a introdução a Po1<r rm arttre Moyen Age, Paris, 1978 ( c a s minhas Moo caig ne , Eswis, I, 1 , cap. XX (<<Que phi losopher c'est apprendre à
próprias observações em Critiqrte, 395, Abril de 1980, pp. 345-354) e La civi rnourir» ) , ed. A. Thibaude(, Paris, 1 950, p. 106.
11
lisatio11 de l'Occidmt Jtddieval, nova eJ., Paris, 1 9R2, p. 1 . Algumas ohsnva�·ék s oricnwdas lJ�·:; I t· st·tllido t·m E. Ga.lli, li mondo con
l ' (:f. B u ffi111 , fli.rtoi1·e Naturelle, I( , Pari�, I / '1 'I , 1 • . ' 1 7 0 , t· ú , P;�ris, 1 756, totll/ltll'lillt'O ( / 11th J < )i·W), llol1111ht<, l ')tl ' , 1 ' 1 ' l•i·1 '' 1 / ')
I
1 30 . DAS TREVAS MEDIEVAIS
• O presente texto é uma versão revisca e alargada (mas ainda assim provisória)
de um ensaio pcimeirameoce publicado em icaliano, «La colombnra ha apeno gli
('l<.: c h i , , i n Q#(tdemi .lt()l·iâ, 38 ( 1 978), pp. l'í3 l ·.'l9, co-autoria de Marco Fercari.
11. ro t t l rib 1 1 i ���o dC's(c (utna diss<:rl a�fio snhrr· brmh of.r8•l'OIJ) é supcjmjda por escar
Í l il:<'l'ldu no r:mbolho c i tado 1 11 1 Dol.t 1 �.
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trato (empregando uma metáfora geológico-Jinguística) atingem o dino nunca foram encont radas: restam apenas fragmentos das
processo de mediação culrutaP . O mediador tem, de qualquer modo, acusações contra ele formuladas e cuja reconsti tuição tem apenas
um papel acrivo e não passivo, e as suas acrividades podem rer por base testemu.nhos indirec;ros (denúncias e relaros publicados
éfeiros diversos: ele pode atenuar, reforçar ou distorcer os conteúdos depois da sua morte). De qualquer modo, os documentos que
culturais. Especialmente interessante é o tipo de distorção que conduz chegaram aré nós abrem algumas pisras de inves tigação que segui
a uma inversão pura e simples do significado dos símbolos cultu rei de forma su2inq1..
;ais. Haverá, pois, casos em que a criatividade do mediador domi Embora as duas profissões de Saccardino, bufão e alambiquei
na por completo o material que transmite. É essa a situação que o ro, possam à primeira vista parecer incongruentes, elas acabam por
episódio seguinte claramente concretiza. se fundir na sua real personalidade de charlatão e impostor. Em
Em Novembro de 1 62 2 , no meio de enorme multidão, quatro algumas páginas famosas da sua Piazza ttnitJersale de!le profmione del
homens eram levados à forca (e em seguida provavelmente à fo mondo, Tomaso Garzoni é claramente de opinião de que a commedia
gueira, tal era enrão a sorte dos penitentes hereges condenados à dell'arte não. nasceu na corre (como muitas vezes se tem afirmado),
morte) na praça do mercado da cidade de Bolonha. Eram acusados mas sim na praça pública3. É, pois, da piazza, da culnira carnava
de terem conspurcado com excrementos as imagens sagradas, bem lesca de que nos fala Bakhtin4, que emergem as principa-is perso
como de nelas terem afixado cartazes contendo blasfêmias e obs nagens da commedia (Brighella, Frittellino, Dr. Graziano), e é com
curas ameaças contra as autoridades políticas e religiosàs da ci o palávreado e as pantominices dos charlatães que irão a�rair a
dade. Um desses cartazes vaticinava a aniquilação do poder papal atenção de um público céptico e embasbacado . Saccardino, pre
pelo eleiror do Palarinado - expectativa que haveria de ser muito goeiro de remédios milagrosos, gue representava o papel de
rapidamente frustrada. Seduzido por recompensa avultada, um dos Dr. Graziano nos banquetes dos Anziani de Bolonha5, era, na ver
companheiros dos quatro conspiradores acabaria por traí-los, per- dade, um perfeico charlatão. Poderá talvez por isso dizer-se que os
. mitindo a sua caprura pelo Santo Ofício. Eram eles Constantino aspectos fecais e blasfemos da conspiração que lhe custou a vida
Saccardino, de Roma, o irmão deste, Bernardino, e os dois irmãos têm origem na pr6pria cultura carnavalesca, por sua vez enraízada
de Tedeschi, gue trabalhavam na portagem do moinho. A figura no obsceno e excremenroso, tal como nos demonstram o já clássico
proeminente entre eles era claramente Saccardino, o verdadeiro estudo de Bakhtin e, mais recenremente, o trabalho de Piero Com
' mentor da conspiração. Judeu converrido e em tempos bufão pro poresi6. As pantomimas nocturnas de Saccardino e dos seus com
fissional ao serviço dos grão-duques da Toscana e mais tarde dos panheiros convidam-nos, assim, a analisar mais cuidadosamente as
Anziani de Bolonha, Saccardino era, por seu lado, dono de uma relações entre rebelião e fesra7, entre carnaval e subversão.
destilaria. Possuía, no entanto, uma enorme fama como curandei O que resta dos escritos de Saccardino é o Libro nominato la
ro. Alguns anos antes de 1622 fora denunciado ao Santo Ofício de
Veneza e acabaria por ser julgado por heresia em Bolonha2.
Lamentavelmente, as acras do processo inquisitorial de Saccar- 3 T. Ganoni, La pazza
i univcrsale di tu.tte /e professioni de! mondo, Ve neza ,
1588, pp. 741-48 («De' formacori di spetmcoli in geuere, et de' Cererani, o
ciurmatori mass ime . Disc. CIII»).
1• No meu livro The Cheese and the Womu: the Cosmos of a Sixtemth-Centu.ry • M. Bakhrin, RabelaiJ and Hi.r Wl)r/d, Cambridge, Mass . , 1968.
Miller, tenrei estudar o modo pelo qual a cultura oml podia servir de filtro in � R . Campeggi, Racconto, p. 69. Ver também, para compa.ração, F. Giorgi,
consciente arravés do qual se liam os livros. Un btiffone degli Anziani di Dologna m/ seco/o XV, Bolonha, 1929 (reeditado do
2 R. Campeggi, Racconto de gli heretici Í77con()Tniasti gi11stizirtti in Bolog11t1, Bo L'Anhigirmasio, 24, 1929, 1 3 pp.).
lonha, 1623; L. Monranari, «Contesratori d'altri tempi » , in Smmna .rtoriw bologrt�se, (, M. Bakhcin, R.abelai.r mui bis World; e P.C�.rnpur�i, La maschet·a di Dertol
24, 1974, pp. 135-61, baseia-se quase integralmente em Canl pt'RJ� i. Pa�srt)tCns r/fl, (;, C. (.'riJCr. c la lett�et.ttwa wmat•dlrXt'fl Tudm 1 <)7(,.
do J<ac,·m7to sã.o rccJi1aclns na <t ni:O!Oi�Í<l , J.: 11 . Pros pw· i , ],t .llori11 nmdum.1 <�fim·· ., Y. M. Jkrd, /1lltu 111 nftl/l{t,• I >rr 1111Wirditfr fmfutlttin·r rl1r XVI�"' (til XV!ll1"'
tJtN:rn i dortmt.ollti, Bolonha, 'I <)7/j , 1'1'· 7:)0 .' I . .rli'rh•1 J '•ll'a�. I l }'f(,.
1 34 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO lll 135
· verità di diverse cose, quale rniruztame-nte tratta di mrtlte salutifere opera Maiorini, com a alcunha de Policinella; Francesco, com a alcunha
tioni spagiriche et chimú-he1 que foi publicado em Bolonha, em 1621 de Bi.scottino·; Pietro Muzzi, cGnhecido como ·o Bolonhês, e tantos
(existe uma cópia única deste livto na Biblioteca da Universidade outros. Entre os autores destes panfletos temos assim alguns que
de Bolonha)8 e que é em certos aspectos um produro de puto char funcionavam como inte�mediários entre a cultura das classes popu
latanismo. Apresenta como conclusão uma Lista detalhada de pes lares e a cultura da clas�e média superior. Esta parece ser a si tua
soas curadas por Saccardino, mencionando mesmo os escrivães que ção de Saccardino, dividido entre a corte e a piazw . O seu Libro,
poderiam comprovar os seus sucessos na cura desses doentes. Mas, com apenas trinta páginas e publicado pot um editor de opúsculos,
na verdade, estes poderes tão promissores de Saccardino não são usava o prefácio a D.ioscóúdes do médico P. A. Manioli e o tratado
senão a cobertura para uma enciclopédia médica popular - um Della física de outro médico, Leonardo Fioravanti 1 0 . A utilização
desses «livros de segredos» com enorme circulação entre os finais destes textos faz supor um nível mais elevado de conhecl.mentos,
do século XVI e os meados do século XVII, que continham recei por parte de Saccardino, em relação aos seus colegas Biscottino ou
tas e conselhos práticos de medicina, alquimia, veterinária, fisiog Pohcinella. Mas o que disti ngue Saccardino é a criatividade. com
nomonia, arte da perfumaria, erc.9 De entre esses pequenos livros, que usa esre ripo de fonres. Logo no seu subtítulo, o Libr<J pro
escritos em vernáculo e dirigidos a um público socialmente bas mete «argumentação prática que revela as muitas fraudes que, devido
tante heterogêneo, destacam-se alguns, que foram, sem dúvida, a interesses particulares, frequentemente ocorrem tanto na medicina
escritos por .indivíduos da laia dos bobos e charlatães: Tommaso como nos materiais medici nais» . De facto, são incluídas passagens
do médico Marrioli numa violenta polêmica acetca da medicina
galénica, em oposição, por um lado, à arte experimental «espagír.ica»
" Este título pode ser ri:aduzido: <<Livro chamado a verdade de várias coisas, (alquímica) de pendor paracelsista e, por outro, à medicina popu
que discute minuciosamente muitas salurares operações espagíricas e químicas.» lar. Fioravanti havia declarado que a arre de curar «pertencia a
A cota é Sala V, Tab.I, I, K. II (4). A cópia foi descoberta por Rossana Vet
todas as criaturas do mundo . ..uma parte aos animais irracionais,
tillo, no decurso de um seminário dirigido por mim, durante os anos lectivos
de 1975-1976 e 1976-1977. Há uma nota do possuidor, na página do título,
ourra aos camponeses , uma terceira às mulheres e outra, por fim,
da cópia da Biblioteca da Universidade de Bolonha: <<Pertence a Mat·escalco>> aos médicos racionais)> 1 1 • Saccardino adopta esta hierarquia ascen
(que aré ao momento coutinua por identificar). As palavras que se seguem dente, mas inverte-a na prática: enquanto os animais rêm capaci
foram escritas pela mesma mão depois do nome do autor: <<Um pobre homem dade para se curarem a si próprios, como acontece com as mulheres,
que foi queimado na fogueira com o filho, no ano (não mencionado) e que
os camponeses e os que vivem nas montanhas, certos «tnédicos
tinha um estabelecimento peno do pelradaro numa pequena loja onde havia
uma Madona muito bem ad ornada.>> (0 pelradaro é naturalmente o barbeiro.)
modernos estúpidos» perderam essa capacidade, por se preocupa
Como podemos ver, a nota do mauuscrito deixa transparecer compaixão, se não rem unicamente com «a ciência de fórmulas lógicas suavizantes e
mesmo uma verdadeira simpatia por Saccard ino, ele que fora condenado por outras teorias retóricas» . Eles são, sem dúvida, radicalmente dife
profanar imagens sagradas e que possuía <<uma Madona multo bem adornada>>. rentes dos <<sábios filósofos» dos «bons velhos tempos » , ·que «visi
Actualmenre de Sacca.rdino conhecemos apenas uma outra obra que tenha sido
tavam os enfermos sofredores e desinteressadamente lhes rr.aziam
impressa: Sonetto in morte dei Sn-enissimo FerdiiJando Medici, Gr. Dr�ca di Toscana,
dedicato ai mo SereniHimo Figliuolo Cosimo Medici, Gran DtJ.ca di Toscana, dalt'tlmitlú
remédios preparados pelas suas próprias mãos; sem ambição nem
simo servitore di S. A. Constantino Saccardíni detto il dottore, Florença, 1609. Cf. G. vaidade, sem mesmo qualquer desejo de pompa ou grandeza, visi
Cinelli Calvoli , Biblioteca 11olante... continuata dai dottor Dionigí Andrea Sancassani, tavam com a mesma humilde dedicação os ricos e os pobres. Não
Veneza, 1747, 4, p. 192. perdiam tempo com palavreado ou discussões estéreis, que é preci-
9 Para uma tentativa de enquadramento deste tipo de literatura no seu
contexto histórico, ver N. Z. Davis, <<Printing and the Peoplc» no seu Socíety
10
and Ctdtrtre in E�1rly Modem FratJCe, Stan ford, 1 975, pp. 189-22<-1, 126-36. Para L. Fioravanri , Delta fi.•-kcr., Veneza, 1 5 82, livro J , cap(t�l los 80-90, WO;
a respcçtiva bibliogmfia, vel" J 1�erxusnn, /Jibliflf!.mf,hicttl Not�l' 1m 1 I i.rtori•·• oj'Jn..
.
C. Sat:c1rd ino, l.ibn,, raps. I I .>') , ?.7.
' 1 1 . . JlioraV•I I I I i , IJc/ l't'Jl/:iiiiOI/11 ,fdf,, fmlt•, Vc·nc•t.l, I '> 1 > � . I . 7 v.
.
samenre o que alguns médicos fazem agora, de ral maneira que o Fioravanti, que bavia declarado, no seu Spech io di Jcientia universale
pobre doente, na sua presença, sucumbe e acaba por morrer» 12• Se {
(«Espelho de; onhecimento universal»), que «bem-aventurados»
o fosso entre a arirude desres «médicos de pé descalço>> (como eram os médicos de antigamente:
poderiam chamar-se hoje) e a dos que praticavam medicina oficial
mente já rranspatecia em rírulos de panfletos mais ou menos char «Nessa alrura as pessoas acreditavam em tudo o que eles que
laranescos - cais como Con il poco farete assai («Com pouco conse riam: porque nesse rempo havia uma grande falra de livros e sempre
guirás muito>>) ou Jl medico dei poveri ovvero lo stupore dei mediei («O que alguém mostrava que sabia falar sobre isro ou aquilo era venerado
médico dos pobres ou o espanto dos médicos») -, no Li!n·o de como um profera e tudo o que dizia era rido como verdade. Mas
Saccardino esta diferença torna�se explícita e intencional, tal como desde que a abençoada imprensa foi criada, multiplicou-se o número
já acontecera nos escritos de Leonardo Fioravan ri. Podemos even de livros e o número daqueles que os podem ler, porque na sua
tualmente descobrir, nesre confronto verbal, expressões de origem maioria são publicados na nossa língua materna. E assim os gati
paracelsisra. Mas, para já, pouco se sabe sobre o grau de prolifera nhos abriram os olhos . » 1 5
ção das ideias e escritos de Paracelso na Itálian.
Saccardino não limitava à arre médica a sua organização criati De «garinhos» a «pombos» foi apenas um passo, que signifi
va de mareriai s de «alta» cultura. Diversas denúncias .i nquisiro cou nada mais nada menos do que a transposição da metáfora da
�!ais mostram como Saccardino viajara por Veneza, Ferrara e esfera da medicina para a esfera da religião, do domínio dos médicos
Bolonha, para arranjar partidários entre grupos de artesãos (carni do corpo para o dos médicos da alma. Tal aproveitamento por
ceiros, impressores, etc.), convencendo-os de que a religião e muiro parre de Saccardino implica necessariamente familiaridade com a
especialmente a noção de inferno eram pura falsidade: «Sois burros rese, então corrente em círculos libertinos cultos, de que a religião
se acreditais neles . . . Os príncipes querem a vossa fé para poderem �ra mera impostura. Os libertinos pensavam, no entanto, que ral
manobrar à vontade, mas . . . os pombos abriram finalmente os C?_nvicção devia continuar na posse de uma élite intelectual e política,
olhos . » 1 4 Saccardino faz-se aqui eco de uma passagem de Leor;ardo de modo a impedir o colapso do edifício social. A religião, com as
suas mentiras nuas e cruas, era, assim, necessária para manter a
populaça sob conttolo16. Saccatdino adoptava a mesma tese, màs
1 2 C. Saccardi no, Libro, p. 14.
invertia-lhe o significado político: os «pombos» (ou, pondo de lado
ll Notar que «Filippo Aureolo Teofrasto Parace lso» é um dos poucos nomes
a metáfora, a populaça, o segmento mais h timilde da estrutura
introduzidos por Saccardino numa longa lisra de «nomes anrígos e modernos
social) estariam agora suficientemente esclarecidos para poder te
de filósofos e botânicos hábeis e famosos» (Li/n·o, p.l8) exrraída, na sua quase
roralidade , do prefácio de Matioli a Dioscórides. jei tar a religião, que eta usada pelos ptíncipes para manterem
Sobre os «livros de segredos» como possíveis veículos das ideias de Para os seus ptivilégios. Estamos, pois, perante um caso de <<liberti
celso em círculos populares, ver M. Ferrari, «Alcune vie di diffusione in Icalia nagem popular» - caracterização que não é de modo nenhum
di idee e di resri di Paracelso», in Scimza, credenze occtlte,
t live/li di cttltrtra, Flo
rença, 1982, pp. 21-29; P. Galluzzi, «Morivi paracels ia ni nella Toscana di Co
simo li e di Doa Anronio dei Medici: alchimia, medicina chimica e reforma
em «High and Low: rhe Theme of Forbidden Knowledge in rhe Sixteenrh and
»
del sapere , ibidem, pp. 33-34, que ilustra o caráccer por vezes eli risca e aris
Sevenceench Cenruries » , in Past and Presenf, 73, 1976, 35-36.
ll L. Fiorava nci, Del/o specchio dr mentia rmiversaie, Veneza, 1 5 7 2 , ff. 4 1 r.v.
cocl:ácico des ce tipo de liceracura, cri tican do a visão unilateral desenvolvida por
(alusão identificada por P. Camporesi) . Cf. P. Camporesi», Cultura popolare e
Ferrari. Devemos também evitar a outra forma de parcialidade: um caso como
o de Saccardino convida-nos a repensar os laços que podem unil: esfeG\S que
culcma cl'éli ce fra Medioevo e ecà moderna», in Storia d'ltalia. Amzali, ed. C.
Viva.n ci, Turim, 198 1 . 4, pp. 87-88, que qualifica as palavras de Saccardino
normalmente consideramos incapazes d� com un ica r �
. ocial e cultur:tlmcote.
1 4 Arch i vi o di Smco, Vel'leza, S. Ufilzio, h.72 («Con s r a n r i no Sarnrrd ino»). como "apan.·nrvrocncc» l i �·J'I itms.
) f, n. Pi n r ;I)'< I, I J! lilm-t Í/1. /./l,r: émrlif. dtiTIJ ltt jtr•&miiJr� IIUiitit! d
tt XVII1"'' .ricde,
O FJscículo con cém np<:'n:ts d. .n ú 11ci.1� e dl'poimr·111ns rolil(i do� pdns j rd�.l"l da
:� vols. 1 ' 111'11•, I 1)11 I .
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138 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPITULO lll 1 39
17 G. Spini ( «Nocerelle libertine", in Rivista storica italiana, 78, 1976, religiosas e políticas que esra conspiração de bufões inesperada
pp. 792-802) também fala de «libertinagem popular>> a propósiro de Domeni mente levantava.
co Scandella, o moleiro a quem chamavam Menocchio e que é o prota�onista Tais implicações aparecem pela primeira vez confirmadas numa
de The Cheese aud the Wonm. Mas essa afirmação é roralmente infundada. Uma carta, escrita pelo embaixador bolonhês em Roma, Francesco Cos
comparação entre as ideias e os antecedenres de Menocchio e de Saccardino
pi, a 1 3 de Agosto (alguns dias antes da carta de Millini) e cujo
(para não mencionar as respectivas claras) demonstra claramente acé que ponto
é legítimo falar de «libeninagem popular>> .
objectivo era informar os magistrados da cidade de que um tal
18 L F
ioravanri, De/la fi.Jir:a, pp. 1 1 2-114. Walloon, no seu leito de morte, em Livorno, havia confessado a
'9 Acchivio di Sraro, Veneza, S. Uffizio, b.72 («Constantino Saccardino») sua participação, juntamente com outros conterrâneos seus, em «um
depoimento do carniceiro veneziano Nicolo Srella (6 de Abril de 1617): «Ele conventículo teológico, uma virtual escola herética em Bolonha»,
também disse que a natureza produz homens que são diferenres e varlados entre
que, entre outras coisas, profanava imagens. Foi o Papa em pessoa
si, tal como a terra produz diversas plan tas e que Deus não se impona nada
que informou Cospi deste facto22.
com esras coisas»; R. Campeggi, Racconto , p. 88: <<Mas estranha e rfdicula era a
ideia que (Saccardino) tinha na sua menre confusa e corrupta sobre a origem Presentemente nada mais se sabe acerca das doutrinas desta
dos homens (negando que Adão e Eva tenham sido os nossos primeiros proge «escola herética». Ignoramos, por .isso, se e em que medida elas
nitores), pois declarava que os homens tinham nascido da rena fecunda, ral
como tantas rãs ou os sapos de Agosto, com a ajuda dos raios solares.»
O mesmo conceito aparecia formulado em Vanini, nestes mesmos anos, no seu 20 Biblioreca Comuna!, Bolonha, ms. B 1866. Esre volume de correspon
De admi.randiJ naturae arcanis, 1616; ver L. Corvaglia, Le opere di Gi11lio Ce;r.tre dência (tal como o -anterior, B 1865) conrém muitos documenros relacionados
Vanilú e le loro fomi, Cicrà di Casrello, 1934, 2, pp. 178-79. Saccatdino pode rer com esres factos. Usá-los-ei numa f:�se subsequente desra investigação.
lido a passagem de Diodoro Siculo, reco rdada por Vilnini na tmdução em vem:ículo, 21
l/lid�1/l..
publicada por Gio1ito (Diodoro Siculo, HiJtnria rmerr1 libra-ri<�. histnricrt, Vc:ne:t.a, n Archlvio di Stilto, llolollh.,, Alllilllcri" di ll'l.t!:ÍJir.tli. !.t!lltn• J*II'Am!J//Jl"i
tt
1575, 1, pp. 7-8). lon• .t_l!fi ti tw11ti ,ft,' M·'illl!r.ttl. I o: I I I • ' I.
140 OS POMBOS ABRIRAM OS OLHOS CAPÍTULO III 141
tinham alguma coisa a ver com as ideias de Saccardino, o qual infelizmente d e nos contentar com conjecturas porventura pertur
pertencia naturalmente a esta «escola» . Sabemos, no entanto, que bantes mas insuficientemente documentadas.
por altura do último j ulgamento Saccardino declarou que tinha Nas primeiras décadas do século XVII, intelectuais europeus
vivido em erro durante catorze anos - de 1609 em diante23. Nesse das mais variadas origens tomaram consciência de que uma grande
ano ele estivera empregado como copeiro (tinellante) de Don Anto crise estava latente. A polémica de Galileu contra os aristotélicos,
nio dei Medici, em Florença24• A biblioteca deste homem, que se os projectos de Bacon no sentido da reorganização da ciência, o
interessava pelo estudo da metalurgia e da alquimia, continha, pa apelo à renovação política, religiosa e cultural formulado por
ra além de texros de Paracelso, o primeiro manifesto dos rosa-cru Tommaso Campanella, bem como a literatura de Rosa-Cruz, re
zistas, o Fama fraternitatis.25 Somos levados a pensar que, na corte fl�ctiam, assim, a necessidade de ultrapassar os limites de uma
de Don Antonio, Saccardino aprendeu mais do que a profissão culruta que todos sentiam esrar a afundar-se. O próprio Discours de
de alambiqueiro que mais tarde exerceria em Veneza, Ferrara e la méthode, como mui to bem se sabe, nasceu de um impulso seme..:
Bolonha. lhante.
Talvez não por mero acaso era o eleitor palatino, invocado pelos O caso aqui descrito evidencia esse tipo de sensibi lidade -
conspiradores bolonheses nos seus cartazes, um importanre defen nomeadamente consciência da crise e esperança num renascimento
sor de reformas políticas e religiosas da sociedade - as mesmas político, religioso e culrural. Mas trata-se da sensibilidade de um
ideias que tinham dado forma aos programas dos rosa-cruzistas, charlatão profissional e não da sensibilidade de um intelectual -
cujos pressupostos assentavam no pensamento de Paracelso26. Sem o que rorna a situação .invulgar e mostra como, neste período, a
as acras do último processo inquisitorial de Saccardino27, remos · relação entre uma cultura superior e a culrura das classes inferiores
podia implicar trocas em círculo, cuja mediação assentava em códigos
diferentes, muitas vezes opostos. A troca, no enranto, era .intrinse
\ camente desigual - o fim trágico de Saccardino é disso exemplo
23 R. Campegg l, Raccortto, p. 94.
2 Ver Historia di Bologna, ca1Jata da ttna cro11ica pmso li signot·i Guidotti,
4 claro.
Biblimeca Universirária, Bolonha, ms, 1843, f. 29; Archivio di Staco, Florença,
Mediceo dopo i/ Principato, Guardaroba, n.0 279, f. 24, 1606, e n.0 3 0 1 , f. 23,
1609.
25Sobre Don Ant6nio ver o excelente esrudo de P. Galluzzi, Motivi paracel-
siani, pp. 3 1-62; sobre o Fama fraternitatis, ver pp. 44 ff.
26
Sobre tudo isto, ver F. A. Yares, The RoJi�itm Enlighte�7-ment, Londres, ano, escrevi ao cardeal Seper, que é o responsável pela Sagrada Congregação
1972. I para a Dourrina da Fé (anrigamenre Santo Ofício), pedindo autorização para
27 O processo original não se encontra enrre os poucos que sobreviveram à çonsulrar apenas os documentes de interesse imediato para mim. Em Janeiro de
dispersão dos arquivos da inquisição de Bolonha. Sabemos, no entanto, arravés 1980, foi o próprio cardeal que genrilmenre respondeu, informando-me de qne
de um a carta do cardeal Millini darada de 27 de Agosto de 1622 (Biblioteca não fora possível encontrar o julgamento de Saccardino e dos seus companhei
Comuna!, Bolonha, ms. B. 1866), que foi enviada uma cópia daquele à Congre ros - devia rer-se perdido em consequência dos estragos infligidos ao Arquivo
gação Romana do Santo Ofício. pela sublevação napoleónica. Em 6 de Março de. 1980 recebi outra carta, desta
O Arquivo do Santo Ofício em Roma é, como se sabe, inacessível aos vez da Secretaria de Estado (pror. número 27 3 3 7), assinada por E. Martinez:
estudiosos, embora a parre que passou a pertencer ao Trinity College, de Dublin, «Sem qualquer desconsideração pelo seu pedido - o qual se afigura perfeira
possa ser consultada sossegadamenre, em microfilme, na seçcão de manuscriros mente compreensível vindo da parte de ttm inrelectual dedicado ao esrudo da
da Biblioreca Vaticana. Tive ocasião de sublinhar o absurdo de tal situação em história -, é meu dever informá-lo de que o material arquivado em quesrão é
carta de 1 7 de Omubro de 1979 enviada ao Papa João Paulo li, na qual soli de naturc·ut cont)den<:ial, não parecendo por isso convenience o livre acesso ao
citava a aberrura do Arquivo Romano do Santo Ofício, para que uma i nvestiga mc.:smo.» O sencido d:os dm�� cu·t:�:; (ntdn uma i1:noraodo a omra) é bastante
ção séria pudesse finalmente ser (e i t:a. Não tc·ndo obddo <p talqm:r n:� pu�!n, daro: (IS doetiOl('ll[()S de < j l lt' 1 ' 1 1 Jll'<•l'is:l\lil ('wrdc•r:lnt :;c; m;l$, m�·srno <JUC não S(•
fiq\td-mc por liOl objcct ivo rm:nos :1111 h icioso . .1 '.111 h no; dr ])l'�.c · t H h W do 11ll'�lllll l i V\'�\l'lll pc·rdiclo, ('11 1 1 1 1 1 1 • . 1 c�><o l •"' l" l ill c r·1 vi·:ln.
CAPÍTULO IV
'
S aques rituais
Preâmbulo de uma investigação ern curso
li
1 44 SAQUES RITUAIS CAPÍTULO IV 145
Nesres episódios turbulentos cem-se visco geralmente a expres ao presidente da Câmara de Ossiglia, Galeazzo Anguissola, que
são dramática das tensões e dos rancores provocados pelo pontifi «pessoas arcevidas e temerárias ( . . . ) iriam considerar lícito» saquear
cado do Papa Carafa. Pouco ames de morrer, Paulo IV tinha pri as propriedades de Ercole. Os funcionários eram por isso convida
vado os próprios sobrinhos de roda a responsabilidade política e dos a emitir uma proclamação que obrigasse aqueles que tinham
administrativa e havia-os mandado para o exilio4. Mas do compor praticado roubos nas propriedades do duque a restituir o roubado.
tamento arrogante que eles tinham era o velho papa (83 anos quan Em caso de recusa, teriam de ser enviados a Mântua, sob a ameaça
do morreu) considerado o principal responsável. A política ancies de penas· adequadas6. Na realidade, a carta do duque era uma pro
panhola, que tinha contribuído para reacender a longa guerra entre fecia post ez�tntum: em Sermide e ourras localidades os saques já
a França e os Habsburgos, e a perseg uição fanática da heresia eram tinham começado no dia anterior. A 19 de Outubro, Camillo Suardo,
largamente impopulares . O deswncentamenro relativamente ao papa presidente de Secmide, tinha escrito ao duque de Mânrua informan
escava difundido, embora alguns testemunhos de contemporâneos do-o de que mal as notícias da eleição de Ercole se haviam espa
sugiram a possibilidade de que as desordens tivessem sido atiçadas lhado rebentaram tumultos em frente da igreja e em corno dos ban
pelos principais oposirores de Carafa - os Farnese. cos dos judeus7. Vinte pessoas armadas de espingardas, chefiadas
A 5 de Setembro começou o conclave para eleger o sucessor de por um cerro Mario Miari, expulso de Ferrara algum tempo ames,
Paulo IV. Entre os cardeais considerados elegíveis, Ercole Gonza tinham procurado assaltar os prestamistas hebreus: o presidente da
ga, filho de Isabella d'Esre, rinha aparentemente as maiores proba Câmara em pessoa havia protegido esces, pondo em fuga os saquea
bilidades de vir a ser o novo papa. Este refinado humanista, por dores. Também os caseiros da abadia beneditina de Felonica {que
muitos anos bispo de Mânrua, ti nha o apoio da França e da Espa fazia parte dos benefícios de Ercole) tinham sofrido um saque8.
,
nha, e também de muitas corres italianas menores. Mas a hostilida
de que lhe moviam os Farnese veio a ser decisiva. No dia de Natal 2 . Por um lado, acontecimentos notórios, tendo como pano de
de 1 559, o conclave, desusadamence longo, terminou: Ercole Gon fundo a capital da cris tandade; por outro lado, obscuros episódios
zaga, juntamente com a maior parte dos cardeais, votou a favor de de pequenos centros da planície do Pó. A ligação entre estes casos,
Gian Angelo Medici, que tomou o nome de Pio IV'. O conclave separados por um intervalo de poucos meses, prende-se com uma
escava ainda a decorrer quando, a 20 de Novembro, Guglielmo série de usanças muito mais amigas, sobre as quais se deteve R.
Gonzaga, duque de Mântua, sobrinho de Ercole, escreveu a Ca Elze num denso ensaio9. Limitando-nos de momento à hierarquia
millo Suardo e a Galeotto del Carrecro, respectivamente presidente
da Câmara de Sermide e comissário de Revere - duas pequenas 6 Arquivo do Estado de Mântua (daqui em dianre ASM), Archivio Gonzaga.
localidades sit uadas nos arredores de Mâncua, na margem direita Libri de/ Copalettere,
i b. 2945, livro 349, cc. 182-v.
do rio Pó. Nas duas cartas o duque de Mântua informava rer sabido 7 Um deles chamava-se Rafael Vigevano: cf. S. Simonsohn, HJtory
i of the
que Ercole («O ilustríssimo monsenhor nosso tio») tinha sido eleito jews in the Duchy of Mantua, Jerusalém , 1977 (1." ed. 1962), p. 223, nma 87.
Aquele que ti nha o banco de Revere era por sua vez Vira (Haim) Massarano,
papa. A notícia devia ainda ser confirmada, escrevia o duque (tra
cuja irmã era casada com o célebre literato e filósofo Asarià de Rossi (p. 218).
tava-se na realidade, como se viu, de um boaro sem fundamento).
Veja-se ainda E. Casrelli, «l banchi fenerarizi ebraici nel Manrovano (1386 -
Ele porém previa, conforme o que já tinha escrito no dia anterior - 1808)», in Atti e memqrie deli'Accademia Virgiliana di Mantova , XXXI 1959,
pp. 235-40 (sobre Revere), 250-55 (sobre Sermide). Sobre esta última locali
dade, cf. V. Colorni, «Gii ebrei a Sermide. Cinque secoli di sroria», in Sct·itti iu
� Os acontecimenros pri ncipais são exposros por R. De Maio, Alfonso Cara memoria di Sttily Mayer (1875-1 953), Jerusalém, 1955, pp. 35-72.
fa, Cidade do Vaticano , 1961, p. 63 ss. " ASM, At'chivio Gor;zaga, Cor·riJjJondenza fra Mantova e i Paesi dei/o Stato ,
l H. fig li o
Cf. Jed i n , ,,IJ di Isabella d'Este: i l cardinnle Erc:ole Got1�:1g<l», b. 2567 ( L 9 dt: Out·\1bro de 1.559). Sobt·t: Fdooi<:a, veja-se a palavra in Diction
in Chiesct del/a fede. ChieJa cletla stm·ict, trad. ir., mm 1m:hkio dt� G. Allx�ri}{o, rJ.airu eJ'fhrtoirt• e! ( ,·úi,/!.rttfJ/:Jie l!rdé.rimtiqm•.\'.
Bréscia, 1.97<'í, pp. 499-'5 1 2 . ., cr 1( . l ;.l.t,<' , «Sir 1 1'1\ll�; i l gloria 1 \ l l l l td i : hl 111<11'11' dc·l papa no·l Ml·dioCVO » ,
146 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 147
eclesiástica, encontramos, por um lado, o costume de espoliar o namentos, vestes douradas, jóias e até a preciosÍssima cruz de ouro
cadáver e saquear os bens dos bispos, cardeais e papas defuntos; oferecida por Belisário. A cantina e o celeiro haviam sido esvazia
e, por outro lado, o de saquear os palácios dos papas recém-eleiros dos: para prover ao sustento dos pobres o pontífice ceve de recorrer
(e por vezes de outros cardeais), e até a cela que tinham habitado ao património dos seus progenitores13. Menos de vinte anos depois,
durante o conclave10• o concílio convocado em Roma pelo Papa João IX para reabilitar
Os testemunhos mais antigos dizem respeito ao costume de a memória do Papa Formoso (904), censurou o costume de pôr a
saquear os bens móveis dos bispos aguando da sua morte. Segundo saque, depois da morte do pontífice, não só Latrão mas toda a
as actas do Concílio de Calcedónia (4 5 1 ) eram clérigos aqueles que cidade e os arredores, observando que este péssimo costume, pra
se maculavam deste crime11. Um século depois, na Espanha, o ticado também nas outras dioceses à morte do bispo, estava já
fenómeno assume uma fisionomia mais complexa: o Concílio de inveterado (inolevit)14. A menção da proliferação dos alvos e a au
Llerda (524) lamentou a presença frequente (portanto, não exclusi sência das particularidades contidas nos concílios precedentes (clé
va) dos clérigos nos saques; o Concílio de Valência (546) afirmou rigos, parentes do bispo defunto) deixam supor que os saqueadores
q 'ue neles tomavam parte, além dos clérigos, os parentes do bispo constituíam já uma multidão promíscua. O mesmo ressalta de resre�
defunto. A uns e a outros era ordenado que se abstivessem de munhos posteriores tanto referidos a Roma como a outras dioceses.
roubar os móveis guardados na casa do bispo ou na igreja e outros Em 1 0 5 1 , o Papa Leão IX enviou uma carta duríssima (redigida
sim dinheiro, utensílios, vasos, trigo, rebanhos e manadas 12. A ex talvez pot Pier Damiani) aos habi tantes de Osimo, que tinham
tensão deste costume à diocese de Roma ofereceu a possibilidade invadido e pilhado a habitação do bispo defunto, haviam cortado
de despojos variados e incomparavelmente mais ricos: em 1 8 8 5 , as videiras e os arbustos e pegado fogo às casas "dos camponeses.
como se depreende da biografia incluída no Liber pmttificalis, o Papa Actos de ferocidade selvagem - assim os definia o papa, deixan
Estêvão V, ao entrar no palácio de Latrão depois de ter sido eleito, do perceber que eles tinham s.ido motivados (embora nem por isso
havia descoberto que do vestiarium tinham sido roubados vasos, or- justificados) por alguma injus tiça comerida pelo bispo antes de
morrer: de qualquer modo não excepcionais, visto que eram consi
in Amta!i de!I'Istituto storico itct!o-germanico in Trmto, III, 1977, pp. 23-41 ( = cf. derados «cosrume perverso e execrável de uma certa plebe» 15. De
também Papste - Kaiser - Ko11ige tmd die mitte!a!r.erliche Herrschaftssymbo!ik, por
B. Schimmelpfennig e L Schmugge, Londres, 1982).
10 A respeito de tudo isto veja-se a documenração recolhida por G. Moroni, 13 Cf. Le Liber Pontifica!is, por L Duches ne, II, Paris, 1 9 5 5 , p. 192. No
Dizionario di erttdizione .rtorico-ecc!esiaJtica, XI, Veneza, 1841, vocábulo «Cella,, vestia1'irtrlt guardavam-se, além das vestes, cambém jóias e din heiro (cf. Du Cange ,
pp. 66-68; XX, Veneza, 1843, vocábulo «Difensori» ou «Difensore», p. 45; esse vocáb ulo). O saque do vestiarium efeccuado em 640 por Isacio, exarca de
L, Veneza, 185 1 , vocábulo «Palazzo» ou «Palagio», pp. 198-99; LXIX, Vene Ravena, logo após a eleição do Papa Severino, é um episódio de género com
za, 1854, vocábulo «Spogli eccles ias rici » , p. 4. Muitos são os resremunhos literá pletamente diferente, ligado a circunstâncias políricas específicas , embora pro
rios, a começar pela novela de Boccacio sobre Andcenccio da Perugia (Decame vavelmente facilirado pela situação de sede vacante: cf. Le Liber Pontificalis ci t . ,
ron, II jornada, nov. 5). Cf. rambém D. Gnoli, La Roma di Leon X, Milão, pp.328-29; O. Berrolini, Roma di froTJte a Bizancio e ai LongobrJt·di, Roma 1941,
1938, p. 81 (sobre a espoliação do cadáver de Estouteville). Ao assalto da habira pp. 312 s�; idem, «I l patcizio Isacio esarca d'Italia J (625-643)», in Scritti s,·elti
ção do recém-eleiro é associada justamente a destnüção do baldaquino do bispo di stm·ia medioeva!e, I, Livorno, 1968, pp. 65-68. De opinião difecenre, G . A.
(ou do papa) na cerimónia que se seguia à sua eleição: cf. G. Belvederi, «Ceri Ghísalberri, !I diritto di regalia srti bmefiá ecclesiastici in Ita!ia (spog!i e vacanze),
monie nel solenne ingresso dei Vescovi in Bologna durance i1 Medio Evo», se Pavia, 1914, pp. 8-9.
parata de Rassegna Gregoriana, Março-Maio de 1913, p. 172. 14 Cf. Mansi, XVIII, pp. 225-26.
1l
Cf. G. D. Mansi, Sacrorttm co-nci!iorum rl(wa et amplissi1na cof!ectio, VII, Florença, l l Cf. Baronio, Annales P.cclesia.rr.ici, XVII, Luca, 1 7 4 5 , pp. 59-60; F. Dresler,
1762, cal. 390 (daqui em diance abreviado em Mansi). Petrm D�•mir.mi l,uben und Werk, Roma, 1954, p. 105. E veja-se cambém V .
t2 Mansi, VIII, pp. 614-15, 619 ss. Cf. camhém, ibid''�"• pp. R3<'í (Cone.
PPCra, Cmrtmt11tm·kt ad Ctlmtitllliorm AjJnJto!ir:a.r .Ct'/1 B111lm inwda.r Smn11Wrtnn PMI
Aurelianense, a. 533); X, 541-42 (C<>nc. P�ris iens<:, u. (d 'i; Cm1c. Cabilontl l.�(·, ti/it'l!lll, l, Hntw�, 1 7 C I 'l , pJl. I 'SfÍ �s. DltS «rea!-'\'•�·s PPI'III;trc•s ;to indi}\ 10
1
a. óSO); XI, 2R .�9 (Cone. Tolc::mnum, a. 0'i5). t'�iJ•c·; I.Íc nlo tl(t r rtllic p qut" r.r· futin ' Ol ) t ··� l > t'fl• da lgft"JH " , l,tltl, .':nn Jpnd.llll!'ll·
148 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 14 9
facto, à morte do mesmo Leão IX, os habitantes de Roma invadi do uma «torpe usança», a cela que ele ocupara durante o conclave,
ram Latrão <<segundo o costume habitual» (como escreveu um bió apoderando-se das poucas pratas, dos livros e do vestuário; entre
grafo pouco tempo depois), roubando todos os móveis16. Que estas tanto, uma reles populaça ( «vilissima plebs atque infamis») saquea
violências acabassem por assumü formas quase institucionais é con va-lhe o palácio, levando os mármores e fazendo-os em pedaços19.
clusão que decorre mesmo dos formulários da chancelaria apostólica Também esta rápida recapitulação faz entrev er um fenômeno
do século XIII: «citadinos» (sem qualque r especificação) costuma (ou uma série de fenômenos entrelaçados) desconcercante pela
vam apoderar-se dos bens móveis do bispo defunto, impedindo o amplitude, a difusão e a continuidade. E cerro que desde os tem
sucessor de assumir o cargo enquanto não tivesse jurado respeitar pos do Concílio de Calcedónia o costume de saquear os bens do
a ttadiçãoli. A extensão dos saques à residência do papa recém bispo defunro tinha vindo a rransformat-se, sobretudo em Roma.
-eleito começou ralvez cerca dos finais de 1 300 - se bem que uma Mas em rodos os casos evocados até aqui o alvo dos saques (muitas
bula de Leão X, em 1 5 16, fale simple smenre de usança estabelecida vezes, como se viu, acompanhados de destruições) era co ns titu íd o
«há algum tempo» enrre o vulgo de Roma18. Nas suas memórias re por bens móveis. Fenômeno diferente, embora também l igado a
corda Enea Silvio Piccolomini como os servos dos cardeais, sabida a situações de vacatura do poder, é a confiscação dos bens imóveis
sua eleição para o sólio pontifício ( 1 458), ti nham despojado, seguin- dos bispos defuntos feita pelá nobreza feudal. Durante o século
XII, no clima da reforma gregoriana, rais accos susci taram resis
tê ncias crescentes da parte da h ierarquia eclesiástica. «Nenhum
to, S. Prece, «S. Pier Damiani, le chiese marcbigiane, la rifonna del secolo XI».
in Srudia Picena, 19, 1949, p. 1 2 3 ; a identificação do bispo Osimo co m Gisle
pr íncipe , nenhum casrelão, nenhwn leigo se atreva a invadir, de
rio (p. 1 24) impõe, se exacta, uma modificação da data da morte deste úlrimo maneira total ou parcial , os bens do bispo (à s uâ morte)» , escrevia
- 1057 - proposta por L.Banoccerri, ibidem, 1 5 , 1940, p. 108. por exempl o o Papa Adriano IV (falecido em 1 1 59) a Bere nga rio ,
16 «
. .. Romani, aesrimames illum (i. e . Leão IX) morruum esse, Lateranense arcebi spo de Narbonne, reprovando aquilo que definia <<Um per
adeunc palacium , quatinus more solito omnem illius deriperen c suppelleailem»
verso costume que j á há tempos se levantou contra Deus e a vossa
(cf. S. Borgia, Mem()YÚ i.Jt()Yiche del/a p1mtijicia âtttl di Benevento, II, Roma, 1764,
p. 327, nota).
igreja»20. Perco do fim·dos anos 200, a atitude da Cúria com eço u
1 7 Cf. G. Mollat. «A propos du d roi t de dépoui lle» , in Revue d'histoire ecclé a assumir formas abertamente agressivas relativ ame nte ao pode r
sia.rtique, XXXIX, 1953, em parricular p. 323. Sobre a participação de clérigos laico: a Câmara Aposrólica estendeu as suas pretensões, pelo menos
nestes acontecimentos vejam-se as páginas muito mais tardias (não relacionadas em teoria, às propriedades pessoais de todos os cl érigo s (não só
com Roma) do jurisconsulro napolitano S. Marrei, Saggio di risoluzioni di diritto
bispos mas rambém cardeais), independen t eme n t e do tà.cco de te
pubb/ico ecclesiastico, 1, Turim, 1745, pp. 1 -9, em particular p . 16: «Quem qui
rem deixado ou não restamento2 1 •
sesse ver uma viva imagem da licencios idade militar no saque de cidades ini
migas deveria estar presenre na morte do bispo, para obsexvar aré onde vai a
avidez duma classe que se considera sóbria, con r inence, etc.» Embora escrita
1 9 Cf. Pii li Commentarii remm memorabilium quae temporibus mis contigemnt,
com intuitO polémico, a desccição é fidedigna.
18 por A. van Heck, I, Cidade do Varicano, 1984, pp. 106-107. Os dois passos
Cf. Vanel, Histoire des cone/aves depuis Clément V jUJqu'rt présenJ, Colónia,
encontram-se erroneamente fundidos em Vanel, Histoin des Cone/aves cit., I,
1703 (3." ed.), I, pp. 15-16 (sobre o condave de 1378 em que foi eleita papa
pp. 47-4&. .
Urbano VI). Esta obra, que contém numerosas referências a saques, recorre lar
20
Cf. Mansi, XXI, pp. 826-27. Veja-se também, ibid. , XX, pp. 5 1 8-19
gamenre a crónicas manuscrica5: por exemplo, as páginas sobre os aconrecimen
ros que se seguiram à morre de Sisto IV (1, pp. 55-56) rtadtuem o Diario
(Cone. Claromontano, 1095); XXI, pp. 227 (Cone. Tolosano, convocado, em
1 1 19, pelo Papa Calisro li): «Pri m i tias , decimas, oblaciones, coemeter i a, damos
Rer11.m Roman()YJJIIl, de Srefano Infessura (veja-se a edição feita por O. Tom masi
etiam ct bona caetera deficicntis <"pÁscopi, et clericorum, a pri ncipibus vel qui
ni, Roma, 1890, pp. 1 6 1 -62). A bula de Leão X é reprodnzida em Bttl!amm
bu�libt:r laicis diripi et tl'lll;ri, ���·t1itus incerdicimns.»
jJrivilegiomm ac diplorwmm Romanomm pomifimm ampliuimrJ collutio, Ili, 3 , R oma ,
n Cf. G. Mn l l m , vodh 1 d o <d )(·pouille (droit de),,, in Dictiormaire de
1743, pp. 42:>-24. Cf. também o ck>creco «Con tra i n vad c n tcs domo� cardina droit
lr/7/llt!Ít{IIV; ir/<'771, ;\ /Jm{JOf ,/11 11!11/l, < < I ; «T..';tpp\i<.:ation d 1 1 droit ele dGpouille SOllS
lium», elo Concílio de Lardio V, in Conri/im'/11/1 (J�L'tirt/CI/ÍI:IW/1111 rl(!l.�·cttJ, por
.J<·1111 X X I I " , i 1 1 1(1'//f/1' clt< ,\, J,•I/1 • 1 1,',,/,gitllft'l. I �) , 'I<J1<), I ' · '!O ss.
G. Alb<-rÍ)�o c outros, Bolonhn, 1 ')/?>, P l '· �viO-'SO.
150 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 151
Pata legitimar: esta prática elabora-se a noção de «direito de bens pessoais e bens da ecdeJia, ou seja, da comunidade, se mostra
esp.ólio» (jus spolii) - embora, ao que parece, a expressão só tenha va problemática24• Em Veneza, de resto, o costume de abandonar o
entrado em uso nos fins de 400. Elze sugere com prudência a palácio ducal ao saque da multidão logo após a morte do doge
· hipótese de que o jus spolii tenha derivado historicamente dos saques durou até 1 3 282�.
de bens móveis perpetrÇJ.dos por clérigos, por parentes dos bispos Os saques que, após a conclusão do conclave, atingiam o palácio
ou por multidões anônimas aguando da morte dos bispos ou dos do cardeal elei to (ou, por um erro que era demasiado frequente
papas22. O certo é que as multidões de saguedores estavam con para não ser deliberado, os palácios de outros cardeais)26 parecem,
vencidas de que exerciam um diJ;eito, relegado para o plano dos numa primeira aproximação, um fenómeno diferente - ainda que
princípios (embora em parte tolerado de facto) pelas autoridades não seja senão porque envolviam os bens de um vivo. De uma
laicas. e eclesiásticas. «Poderia facilmente acontecer que houvesse série de sondagens, incidindo sobre crónicas, correspondência e
atreviçl.os e temerários que cons.iderassem lícito roubar e saquear os ptocessos criminais, depreende-se que acontecimentos análogos se
aposentos de Sua Senhoria Reverendíssima. . . '', escrevia o duque de verificavam também fora de Roma. Os saques e tumultos suscita
Mântua na carta já cirada. Mais de seis séculos antes, o concilio dos pela falsa notícia da eleição de E rcole Gonzaga não eram uma
romano de 904 tinha falado de abuso, de praesumptio. Quais eram extravagância isolada: podemos aproximá-Los de outros aconteci
as raízes deste obscuro, persistente direito consuetudinário ao sa me ntos do mesmo género, latgamente previsíveis nas formas e nos
que, reivindicado em ocasiões tão específicas? objecrivos, esperados e deutro de certos limires tolerados pelas
autoridades. Tais se mostram, por exemplo, os saques verificados
3. Segu ndo o cronista Wipone, os habitantes de Pavia, acusa em Mântua, em 1 5 22 (quando se espalhou a falsa notícia da elei
dos de terem destruído o palácio régio depois da mórte de Henti ção de Sigismondo Gonzaga ao pontificado; em Bolonha, em 1 5 90,
que II ( 1 024), tinham-se justificado perante o sucessor deste, Con em 1 62 1 e em 1 740 (após a eleição, respectivamente, de Urbano
tado II, dizendo: «Não podemos ser acusados de ter destruído a VII, Gregório XV, Benedito XIV). Em todos estes casos o cardeal
morada do rei, visto que o rei estava morto. '' Um navio sobrevive recém-eleito (ou assim cÓnsiderado) era também o arcebispo local,
à morte do seu timoneiro, havia retorquido Conrado II: «0 rei com a única excepção de Urbano VII, que no sécul o rinha o nome
estava morto, mas o reino continuava ainda (si rex periit, regnum de Giovan Battista Castagna. Mas ainda este, depois de se ter
remansit). » Este diálogo memorável terá sido reelaborado pelo cro doutorado em Bolonha, aí tinha voltado como governador, em 1 5 76-
nista, ao menos formalmente. Mas a substância da argumentação -77, e depois como núncio, em 1 584-85. Parece lícito admitir,
atribuída aos habitantes de Pavia talvez lance alguma luz, por ana provisoriamente, que também fora de Roma se verificavam saques
logia, sobre os saques que se seguiam à morte dos bispos e dos por ocasião de eleições papais, mas somente (embota não necessa
papas23. Pata quem vivia a relação com a autoridade como um riamente) em localidades às quais, por razões de nascimento ou de
vínculo puramente pessoal, era óbvio considerar os bens do morto carreira, o recém-eleito tinha estado anteriormente ligado. Tais cir
como res rtullitts, coisas ao dispor do primeiro que aparecesse: so cunstâncias desencadeavam comportamenros como aqueles que em
bretudo quando, como no caso dos eclesiásticos, a distinção entre
10 J >llhiH>Ilil dt'I I I J ( H'I I I f ,t•t ·Vr• 1 1 1 1 1 I J',rbJdho Í l l l l l ,lllll'llil' <'<1111 11111 / \1'1 1 1 " 1 d1• ,i]IIIHI'• ·
(
Bolonha, em l740, se seguiram à eleição de Benedito XIV (Pros quenta ovelhas, oitenta cavalos, vinte vacas, linho, camas, lençóis,
pero Lamberrini): a multidão em festa, depois de ter assaltado e trastes de cozinha, num valor global de 2 5 0 0 escudos. Mas dos
desbaratado, «sob a aparência de transportes de júbilo» , o corpo interrogatórios feitos por um pretor a mando de Suardo resultou
da guarda instalado na Piazza Maggiore, dirigiu-se para o palácio um quadro diferente. Após um litígio entre os nobres do lugar, os
Lamberrini «considerando-O>>, como se lê no Diario do Senado saqueadores tinham chegado a acordo quanto aos critérios de par
bo1onhês, «apropriado nessa ocasião»27• Sim, mas porquê «apro tilha: esta deveria ser feita «segundo as pessoas e não segundo o
priado>, I E porquê «nessa ocasião» ? valor», dividindo os despojos em quatro partes: uma para a Câma
O decreto «de non spoliando eligendum in papatu» aprovado ra, outra para os nobres, outra para o pároco, outra para o rendei
na quadragésima primeira sessão do Concílio de Constança ( 1 4 l7) ro. O comportamento da presumível vítima, ou seja, o rendeiro,
afirmava que «cercas pessoas, reclamando-se de um abuso licencio não tinha sido - concluía Suardo - «nem bonito nem bom».
so, pretendem falsamente que os objectos e bens do novo eleito, O cônsul de Felónica, Giovanni Francesco Andreasi, justificou
que teria atingido por assim dizer o cume da riqueza ( «quasi cul perante o pretor que o interrogava o comportamento da comuni
mine diviriarum adepto»), pertencem a quem os tomar»28• A con dade (e o seu próprio) nestas circunstâncias . Com a notícia da eleição
denação do costume dava-se por assente: o spolium praticado nestas de Ercole Gonzaga, gente provinda da vizinha Sermide ou do Fer
circunstâncias era um abuso, não um direito. Mas o inciso «quasi rarese tinha ameaçado saquear a abadia. Mas, «devendo as coisas,
culmine divitiarum adepto» testirui-nos claramente uma justifica não tiradas a ninguém, reverter a favor duma comunidade, como é
ção (verdadeira ou presuntiva) em favor dos autores do saque. Po costume em semelhantes eleições de sumo pontífice, era mais honesto
deríamos traduzi-la nestes termos: a apropriação violenta dos bens que fossem para esses homens do que pata quaisquer outros: tanto
do novo papa confirmava a imagem de uma sociedade harmoniosa mais que, em caso de restituição, essa comunidade era responsável
mente hierarquizada, na qual os desníveis de riqueza deviam ser pot tal dano, quer estes o cometessem, quet fosse cometido por
contidos dentro de limites definidos. A análise de alguns casos ourros, mesmo forasteiros. Portanto, foi por conveniência e honra
concretos de saque não desmente esta interpretação, antes a enri da comunidade que o cometeram » . O despojo ficava assim em
quece de novos elementos. depósito na Câmara, que estava pronta a restituí-lo no caso de a
notícia da eleição não se revelar verdadeira29.
4. A 20 de Outubro de 1 5 59, Camilo Suardo, presidente da Na realidade, a restituição não se realizou: as tentativas feitas
Câmara de Sermide, deslocou-se à abadia de Felónica, onde, che pelo duque para recuperar a posse dos bens roubados na abadia re
gada que foi a falsa notícia da eleição como papa de Ercole Gon velaram-se infrutíferas, certamente devido também à escassa cola
zaga, se tinham verificado saques. Foi acolhido por duzentos homens boração das autoridades locais. Em 20 de Abril de 1 560, seis meses
armados (como referiu o próprio Suardo numa carra ao duque de depois do saque, Raniero Rarnieri, o juiz mantuano encarregado
Mântua) com evidente hostilidade. O rendeiro da abadia contou de se ocupar do caso de Felónica, escreveu ao duque propondo
que o cônsul e os sábios de Felónica, à frente de um grupo muito uma absolvição geral, até porque «O dito Magnífico Presidente da
numeroso, tinham ex.igido que entregasse as chaves; haviam esva Câmara..nessaaltura não negava que a dita abadia, como coisa do pon
ziado completamente o celeiro e o palheiro e levado cerca de cin- tífice, se pudesse com boas razões saquear; antes disse no meio daque
le júbilo palavras que eram pelo menos de consentimento tácito»30.
Com efeito, à parte a confusão inicial com o rendeiro, o saque em 1 5 59, o presidente da Câmara teve de proteger os bancos he
processou-se com muita ordem. Toda a comunidade tinha nele braicos do assalto da multidão; o mesmo aconteceu em Mâncua,
participado: não só por cálculo racional ( «conveniência»), mas em 1 5 2 2 , quando se espalhou a falsa notícia da eleição de Sigis
também por considerações de natureza simbólica ( « honra,). Per mondo Gonzaga32• A violência dos saqueadores era verosimilmente
mitir que forasteiros se apoderassem dos bens do novo papa teria motivada pelo vínculo especial, feito de opressão e protecção, que
sido, sob todos os aspectos, uma vergonha geral. Através do rito ligava o papa (assim como, em França, o rei) aos hebreus. Estes
do saque era reafirmada a identidade local e reforçad a a hierarquia poderiam ser considerados <<gente do papa» e em cerco sentido
social da comunidade. propriedade sua: os seus bens, naquelas circunstâncias, estavam por
tanto à mercê do primeiro que aparecesse. Mas nem mesmo a escolha
5 . Mas por vezes a violência dos saques que se seguiam à elei da padaria a saquear tinha sido casual: a padaria anexa à Abadia
ção papal não era apenas simbólica. A 1 6 de Setembro de 1 5 90, de Santo Srefano gozava há séculos de privilégios pon t ifícios espe
quando se divulgou em Bolonha a notícia da eleição de Urbano ciais, que haviam sido confirmados em 1 5 8 7 e 1 588, no tempo em
VII (Giovan Battista Castagna), uma centena de pessoas, na maior que o abade comendatário era Alessandro Perecei, sobrinho do papa
parte <<miúdos pequenos» , gritando «aos judeus, aos judeus ! » , dirigiu reinante, Sisto V. Tratava-se da única padaria de Bolonha que tinha
-se para o gueto onde os judeus se tinham instalado três anos o direito de vender, a preço mais caro, pão branco da melhor
antes. A sinagoga da Via dell'Inferno foi saqueada; as janelas ar qualidade, teoricamente reservado a estudantes e a doentes. <<Trai
rancadas; livros, utensílios e bancos arirados para a rua. Uma caixa dor, que só queres. dar três onças de pão por um bolognilzo! » , grita
que conrinha esmolas acabou nas mãos de quatro transeuntes - vam os saqueadores. (Com um bolognino compr�vam-se geralmente
um taberneira, um maceiro, dois tecelões - que, após alguma in quatro a seis onças de pão comum.) Na impossibilidade de exercer
decisão, a entregaram ao vice-legado (Camilo Borghese, o futuro o seu direito consuetudinário sobre o palácio do recém-eleito
Paulo V). Três deles foram detidos e obrigados a resriruir o des (o cardeal Castagna não tinha um palácio em B olo nha), a multidão
pojo - dez bolog1zini, uma pequena soma - aos representantes da desforrava-se em alvos substitutos mas sempre conotados com o
comunidade hebraica. Mas entretanto, ao grito de «Viva Castagna, poder do pontífice.
viva o papa ! n , uma outra multidão, composta de jovens e adultos
(talvez duzentos, talvez quatrocentos), corria ao longo da Via Santo 6. Sem dúvida que nas violências contra os judeus ou contra a
Stefano. Depois de terem lançado pedras à padaria de San Bi-agio, padaria de Santo Stefano e os seus privilégios desabafavam-se sen
cercaram a padaria de Santo Srefano, arrombaram a porra e apode timentos de agressividade latente, a que a exultação geral assegu
raram-se de tudo o que estava dentro - pão e dinheiro. «Três rava uma impunidade temporária. Este elemento avulta com clare
onças por um bolognino! Queremos pagá-lo agora! O padeiro não za nas tumultuosas vicissi tudes que ocorreram, em Bolonha, a 1 1
fechou! Ao saque, ao saque ! » , griravam. Alguns dos respons·áveis e 1 2 de Fevereiro de 1 6 2 1 . A notícia da eleição de Gregório XV
foram identificados e sujeitos a processo31• (Alessandro Ludovisi) tinha chegado ao fim da tarde de 1 1 . Entre
A linha invisível que separava, aos olhos das autoridades, vio a multid,ão que se congregara na Piazza Maggiore estava um fidal
lências toleradas de violências inadmissíveis tinha sido portanto go de Verona, Domenico Brugnoli. Enquanto ele· conversava com
ultrapassada. Mas os alvos escolhidos pelos sa,lteadores não eram alguns. amigos, um homem de rosto coberto por uma máscara atacou
casuais, assim como não era casual, provave.lmeme, o facto de naquele o, disparando um tiro de pistola. No processo que se seguiu veio
ano a colheita ter sido má. É de Lembrar que também em Sermide, a saber-se que a emboscada tinha sido urdida por um nobre bolo-
.> t ASB, T,.ibunolu de/ Tor?mie, b. 2?38, cc. 207 v., }. Hl v., .�:1-'Í· v., 264. v., ,.. ASM, Anbiuio Cwrz.tg,t. Copi,,/cJ/CI'I', l1. 2927, tivro 2(,9 (5 e 9 de Janeiro
282 'l . , 2 8 9 v . de 1 '1 , ,0.
[
/
nhês, Giulio Sanuti, que, sabendo do novo papa, decidira aprovei Borgo Santa Caterina, um bairro de má fama onde habitava Vitto
tar a ocasião para vingar uma velha ofensa (e por este motivo foi ria Piccinini, uma cortesã de Modena que eta notoriamente a amante
primeiro mandado para o exílio e depois agraciado)33. Numa outra do chanceler. Atrás das janelas das casas vizinhas algumas prosti
parte da cidade um ourives entrou em casa de uma rapariga para tutas assistiram à cena. Assaltantes com o rosto enegrecido de fuligem
a raptar, aproveitando-se do facto de naquelas horas (como depois arrombaram a porta da casa de Vittoria. Guiava-os Giacomo Vac
recordou a vítima) «todas as coisas andarem de pernas para o ar»34. cari, proprietário duma mercearia próxima da praça. Gritava, com
Na manhã seguinte os camponeses que vinham para o mercado a espada desembainhada: «Viva o papa! Mataram sangue nosso!
eram detidos e roubados; as padarias esvaziadas, entre gracejos e Pilhem todos, pilhem rodo s ! » Durante meses e meses os j uizes de
risadas3). O alcaide decidiu restabelecer a ordem e desceu à praça Torrone continuaram a seguir o rasto dos vestidos roubados a Vitror.ia
com doze guardas. Um grupo de rapazes começou a atirar pedtas Piccinini37.
e bolas de neve (caíta um grande nevão). A multidão tornou-se
mais compacta; alguém começou a gritar «morra Sfreghino!» (era 7. A sumária exposrçao destes casos sugere algumas conside
o apelido de um guarda particularmente odiado). Um homem renrou rações. Que nenhum saque seja igual a outro é coisa natural, tra
arrancar ao alcaide o cordão de ouro que trazia o pescoço. Um dos tando-se de evenros por natureza aleatórios: mas as semelhanças
guardas disparou um tiro de arcabuz, ferindo gravemente um artffice que apesar de tudo se entrevêem parecem atribuíveis às circuns
(que morreu algumas horas depois). Neste momento a multidão tâncias específicas em que rais eventos se verificavam. Era sobre
descontrolou-se. Nos dias seguintes várias pessoas interrogadas pe as propriedades do novo pontífice ou sobre um grupo que ele
los juízes do Tribunale del Torrone conraram ter visto o vice-lega ambiguamente protegia (os judeus) que se c9 ncentrava a viol ncia �
do aparecer fugazmente a uma varanda e fazer um gesto - que dos saqueadores. A sua pretensão declarada de exercer um due1to
foi interpretado como uma autorização ou um incitamento. As casas consuetudinário, ao mesmo tempo arreigado e transitório, ligado a
do alcaide e dos guardas foram assaltadas e postas a saque. Cava uma situação completamente excepcional, inspirava gestos e com-
los, jóias, vestidos, quadros, móveis, porras, janelas: tudo foi leva portamentos onde se pode ver uma componente rirual.
do. Nos compartimentos vazios - contou uma testemunha - . .
Termos como «tito» ou «titual» contam-se entre os ma1s m
ficou apenas um cheiro forte de vinho entornado. Ao alcaide e aos flacionados das ciências sociais. Ao lado da acepção lireral de
guardas não restou mais do que apresentar wn minucioso inventário «cerimónia de culto>> encontramos uma série de usos cada vez mais
daquilo que tinham petdido36. metafóricos - até chegarmos aos «rituais de namoro>> que os etólogos
Entretanto a multidão furiosa procurava outros alvos. Um as atribuem a determinad� espécies animais38. Uma carga metafórica,
salto ao gueto estava excluído: os j udeus tinham sido expulsos de embora obviamente mais débil, está também contida na expressão
Bolonha em 1 5 9 3 . Umas cinquenta pessoas dirigiram-se para o «saques riruais» . Naturalmente «tiro» não designa aqui uma fórmula
preestabelecida, a seguir com exacridão escrupulosa: antes um
_ del!,arte.
esquema aberro, um esboço de enredo como os da commed1a
ll
ASB, Tribtmale de/ Torrone, vol. 5111, cc. 94 r., 103 v., 1 67 r., 1 8 3
272 v., 2 9 9 r., 3 4 8 v.
v., 2 5 2 r . , Poderíamos comparar os saques a um « contrateatro» apresentado
3 " ASB, Tribtmale de/ Torrone, vol. 5 1 00 , cc. 191 r., 7
1 9 3 v., 3 4 r., 399 sob formas improvisadas no «palco da rua»39• Certamente, estes
v., 404 r.
J; ASB, Tribuna/e de/ Tomne, vol. 5 1 20, cc. 85 r., 80 v., 349 r.v. ll
ASB, Tribttnafe de/ Torrone, b. 5 1 1 0, cc. 1 2 3 v., 1 2 5 r., 1 6 3 r.v., 204 v.,
36 ASB, Tribuna/e de/ Torrone, vol. 5 1 10, cc. 103 r., 108 v., 1 1 3 r., 1 2 3 r., 2 2 1 r., 224 r., 231 v., 2 3 2 r., 2 3 5 r., 236 r., 240 v., 246 r., 251 r.
7
1 2 5 r . , 1 3 0 v., 140 r., 1 5 2 v., 1 2 r., 1 7 3 r., 194 r., 197 v., 201 r., 204 r., 223 >• CF. «Ritualization o F Behaviour in Animais and Man>>, por ]. Huxley, in
r.v., 2 3 2 r., 235 r., 2 3 6 v., 240 v., 243 v., 244 v., 246 r . , 253 v., 280 r . , 289 �
Phi/o.rophi<'•l/ Trâll.l'<ll'tirm o( the Royctl Soâely o( Lrmdmt, 196 , vol. 2 5 1 , n.
.
77 � .
r., 297 r., 3 1 4 v., 322 v., 325 v., mais <JU8tro p8péis solcos e uma folha vo
''I Cf. r:.. P. 'fl t o 1 n p:;on, «Folcl or<", nntropolof�Í:J <' sl'oi'Ja SOCirtk», t ll Souettl
hme; vol. 5120, cc. 19 r . , 27 r., ."> 1 r., 4 5 v., )8 r.v.
/iillrlârJ, utltllr!l filrl•r', l, rl';�<l. i c . , ' l 'tii'Í J J l , l •lH I , p . l 'l �i . Oh�wrviHJws úttis de
158 SAQUES RITUAIS CAPiTULO IV 159
acontecimentos desenrolam-se em formas que deixam transparecer algum tempo depois - «duma iluminação interior que de repente
uma componente simbólica, não redutível ao puro e simples desejo tinha dissipado a escuridão em que vagueava há dez anos» 42• Mas
de apropriação. Vimos que os padres do Concíl io de Constança a realidade era um pouco diferente. A «iluminação>> de Van Gennep
tinham reconhecido, no diteico reivindicado pelos saqueadores sobre não teria sido possível sem a leitura do ensaio de R. Hertz, publi
os bens do papa recém-eleito, uma forma d e compensação mais ou cado, em 1907, no Année Sociologique com o título <<Contribution à
menos .simbólica relativamente a quem havia chegado ao cume do l'étude sur la représentation colleccive de la mort » 43. Numa página
poder. dos Rites de passage, Van Gennep aludiu de forma enigmática a este
Num ensaio famoso, E . P. Thompson definiu «economia mo contributo: aquilo que ele próprio no passado (Tabou et totémisme à
rah> como o complexo de valores que legitimavam, aos olhos dos Madagascar, 1904) tinha considerado como um conjunto de práticas
seus autores, os tumultos por causa do pão que se verificavam na negativas destinadas a circunscrever a impureza dos cadáveres, agora
Inglaterra dos anos 7 00'í0. Também os fenómenos que estamos con aparecia-lhe como «um estado marginal» através do qual os sobre
siderando parecem inspirar-se em valores análogos. Resta ainda ex viventes, e · por vezes o próprio morto, são primeiro separados e
plicar porque se manifestavam eles precisamente naq uelas circuns depois reintegrados, respecrivamente, na sociedade dos vivos e no
tâncias determinadas. Haveria aos olhos dos saqueadores qualquer mundo dos monos. E m nota, Van Gennep remetia para os escudos
coisa de comum entre a morte do bispo ou do papa e a eleição etnográficos realizados por ]. A. Wilken na Indonésia, cujas con
deste último/ clusões tinham sido «generalizadas» por Hertz�4. O lei cor da nora
Elze sublinhou que entre ambos os casos há uma passagem a não podia ter uma ideia da amplitude da generalização proposta
nova condição, a uma nova identidade - simbolizada até, no caso por Hercz: aos ritos de dupla sepultura �le tinha aproximado os
ela e lei ção papal, com a assunção de um novo nome. No entanto, que se ligam à iniciação, ao nascimento, ao matrimónio, acabando
não interpretou como «ritos de passagem» os saques que multas por concluir que <<a morte, para a consciência social, é apenas uma
vezes acompanhavam estes acontecimentos" 1 • Outtos historiadores, espécie particular de um fenómeno geral»45. Veremos den tro em
mais propensos ao uso de categorias antropológicas, não hesitariam breve que coisa teria sugerido esta extensão: mas pode-se observar
em enveredar por esse caminho. Ele implica, porém, uma dificul desde já que a análise da passagem por excelência (a morte) tinha
dade que a contraposição um pouco demagógica entre história «tra levado Hertz a formular claramente, no âmbito do rico, a sequên-
dicional» e «nova» história tende a camuflar. Até que ponto é
lícito (ou útil) utilizar, na análise histórica de situações específicas,
'2 Cf. N. Belmonr,. Ai·nold van Gennep, trad. ingl., Chicago, 1979, p. 58
categorias elaboradas em conrextos culturais completamente dife
(o texto francês é de 1974)'.
rentes? A questão que estamos a discutir lança alguma lnz sobre 43 Cf. R.. Hertz, St�lt<l mpprmntazione colletti·va della morte, com inrr. de
as implicações desta pergunta. P. Angelini, Roma, 1978 (o volume conrém ainda Lct preminertza de/ia mano
destra, do mesmo Hercz). Sobre Hercz veja-se ainda o ensaio de R. Needham
8 . A categoria «ritos de passagem» anda geralmente associada que precede a colecrânea (por ele feira) Right and Left ESJays on Dual Symbolic
C/assifi.€ation, Chicago, 197 3 .
ao l ivco que A . Van Gennep publicou em 1909 com esse título (Les
44 Cf. A. Van Gennep, Les rites de pmsage, Pa ris, 1909., Pl) · 210-2 1 1 ( = I
rites de passage). O livro era proveniente - declarou o seu autor
riti di passagio, rrad. it. de F. Remoti, Turim, 1 9 8 1 , pp. 128 e 201, no tas 1
e 2).
4> Cf. R. Herrz, Sul/a rappresenJazione, ci r. , p. 89. Esta afirmação assim rer
carácrer geral no vocábulo «Rira , , de V. Valeri, in Enciclopedi<� Einattdi , 12,
minance contradiz a opinião de N. Belmonr, segundo a qual caberi a a Van
Turim, 198 1 , pp. 2 1 0-243.
Ge nnep (e não a Hertz) o métito de ter deslocado o acenco das semel hanças de
4° Cf. E. P. Thompson, <<L'economia morale del le classi popolari ingl esi nd
COIII c·údo p:u�t ;tS semelhanças formais encre os vários riros (Arnold 11an Germep,
secolo XVIII>>, in Societc) jMt1'izia, cit., pp. 57-J.%.
tir., pp. ().1 (,'1). Nn n:ulidadc:, H•·rl�. . c:o,,o sr· w·r:'Í ,, :-w1�tdr, rorna :.unh: 1s em
" Cf. Elze, Sic Prcr.nsit, c i r . , l'P· 2R-2)l.
('OII':i,lc•rLu,llll,
/
cia separação-marginalidade-agregação, depois retomada e sistema ( 1 704): «Logo que a morte d o rei se torna d o domínio público,
tizada por Van Gennep46. cada um porfia em roubar o próprio vizinho e arrebata descarada
Esra sequência teria, segundo Van Gennep, uma validade rrans mente tudo o que pode sem que ninguém renha o direiro de o
cultural, esrando ligada a escalões necessários da vida associada punir, como se a jusriça tivesse morrido com o rei . o� furros con
(nascimento, puberdade social, matrimónio, erc.): da idenr.idade do tinuam até que seja eleito um novo soberano . . . »49 E impossível
fim derivaria a analogia dos meios (rituais) urilizados47• Mas trata não pensar nos saques que se seguiam à morre dos bispos ou dos
-se de uma analogia puramente formal ou também de conreúdo? papas. Mas remere também para o ensaio do reverendo L. Fison
Uma página do ensaio de Herrz sugere mesmo a segunda possibi sobre os costumes funerários nas ilhas Fiji (1880), que encerra uma
lidade (certamente mais embaraçosa). «A morte de um chefe » , analogia ainda mais surpreendente. «A morre do chefe a gente
sublinha Herrz, «determina no corpo social uma desorientação pro corre para a cidade, faz chacina de gado, rouba, .incendeia as habi
funda que, sobretudo quando prolongada, é fértil em consequên tações: mas esta usança (difundida também na Aftica Cenrral «e
cias. Parece de facro que, em muitos casos, o golpe que atinge o noutros sírios») está a cair em desuso, como mostra o facto de nu
vértice da comunidade na pessoa sagrada do chefe tenha tido como ma localidade o furto indiscriminado atingir apenas os bens móveis
efeito a suspensão temporária das leis morais e políticas e a explo do morto, e ser numa outra praticado apenas pelos parentes do mor
são de paixões normalmente contidas pela ordem social»48• Numa ro.» Segundo Fison (uma interpretação não recolhida por Hertz), o
longa nota, Hertz temere para testemunhos de missionários ou vazio do poder fazia aflorar uma anriga ideia comunitária ( «the old
viajantes referenciados a domínios culturais hererogéneos: as ilhas communal idea» ): numa localidade, Navarq, essa ideia exprimia-se
do Pacífico (Fiji, Sanduíche, Carolinas), o arquipélago das Maria de forma não violenta, através duma rroca 'recíproca de dádivas50.
nas , a Gu.i né. A propósito desta última cita um passo de Bosman
9. Muiros historiadores não tomariam de modo algum em
consideração a eventualidade de práticas consuetudinárias do
46 A prioridade de Hertz foi já no tada por H. S. Verso el num ensaio
cumentadas em Roma ou em Bolonha nos séculos X ou XVI po
muito rico, que será d iscutido mais ampl ameme na versão defini ti va deste tra
balho (um vivo agradeci men to a Xavie r Arce pela ind icação): cf. «Desrcucrioo, derem ser aclaradas por um confronto com usanças difundidas nas
Devorio aod Despair io a Si ruation of Anomy: the Mouroing for Germanicus ilhas Fiji. Outros aceitariam uma comparação entre dados tão
in Triple Perspecrive», in Pere1mitas. Studi in honore di Angelo Brelich, por hererogéneos para fins exclusivamente turísticos - observar de
M. Piccaluga, Roma , 1 980, pp. 541-618, em particular p. 5 8 1 , nora 182
um ângulo insólito uma documentação familiar. Só alguns, prova
(e veja-se ainda a nora 55). E. E. Evans Prirchard, por sua vez, limitava-se a
velmente, se aventurariam a .interpretar as eventuais convergências
sublinhar a utilidade de um confrontO encre os dois estudiosos (cf. a in trod ução
a R. Herrz, Death and the Right hand, nad . de R. e C. Needham, Glencoe, III . ,
entre as duas séries como um fenómeno unitário, baseado em ele
1960, pp. 15- 1 6) . Segundo M.Giuckman, que considera Les rúes tk passage «bastante mentos transculturais5 1. Em rodo o caso, a comparação com os
enfadouho», Van Gennep partiu das passagens rerriroriais para construir um
modelo válido para rodos os ricos de passagem (cf. «Les cites de pa.ss:age», in Il
rituale nei I'Opporti sociali, por M. Gluckman, trad. it., Roma, 1972, pp. 19, 2 1 , 49,.Jbid., p. 106, nora 127. A citação foi verificada e in teg rada na tradução
25, 29; e veja-se também F. Remott i, i ut r. cir., p . XVIII). Mas, como se viu, francesa (Voyage de Guinte, Urreque, 1705), para a qual Herrz remere. Sobre o
a exposição da «descoberta» de Van Gennep n� coincide, de modo algum, rexro de Bosman (que é utilizado por Bayle), cf. A. M. Iacono, Teorie de/ feticis
com a sua génese. mo, Milão, 1985, pp. 13 ss.
47 Cf. A. van Gennep, I riti di passagio ci t . , p. 5 . N. Belmon r (Arnold Vem )u C f. Rev. L. Fison, «Notes on Fijan Burial Cu sr oms » , in The }ot�rnal of the
Gemup, cir., p . 45) afirma, por seu lado, que para Vao Gennep os «ritos de A11thropological Instil'llte, X, 1H80, pp. 137-1.49, em particular pp. 140- 1 4 1 , que
passagem» são um esquema puramente metodológico, que procura pôr em ot re mete �a�1bém p;tra T. W i l l iams, l'iji anti thc Fijanx (est<1 úlci m11 ci tação oã()
dados ernográficos, quer na sua versão mais prudente (que procura Daggett aproximava as lendas sobre a criação difundidas nas i lhas
simplesmente motivações para novas perguntas), quer na sua ver Havai das lendas hebraicas (sem excluir uma remota origem co
são mais audaz (que não exclui a possibilidade de descobrir novas mum) e encontrava na mirologia indígena figuras paralelas a Helena,
·
Há um dado que salta imediatamente aos olhos: a partir das Hertz, que não cita Daggett, pode ter formulado a comparação
suas fontes, Hertz, que declaradamente trabalhava sobre elementos com as saturnais de maneira independente. Semelhantemente, a
de segunda mão, atingiu descrições impregnadas de elementos alusão ao «Carnaval» e às «Saturnalia» feita por M. Sahlins a
valorativos - não só factos, portanto, mas interpretações. A ob propósito de outros ritos praricados nas ilhas Sanduíche não evoca
servação sobre a «Suspensão temporária das leis morais e políticas» Hertz necessariamenre55. Mas o exemplo de Daggett sublinha de
na sequência do desaparecimento da pessoa sagrada do chefe reto maneira quase caricatural o evidente paradoxo implícito em qual
mava, reelaborando-a, a observação de Bosman: «Como se a justi quer interpretação e até em qualquer descrição: uma realidade des
ça tivesse morrido com o rei. » A indicação, aparentemente neutra, conhecida pode ser abordada apenas através de esquemas (necessa
da existência em certas sociedades de um «período de anarquia» riamente aproximativos e potencialmente deformantes) extraídos
após a morte dos chefes réproduzia literalmente uma frase do da realidade conhecida56. A projecção dos esquemas culturais fami
reverendo Fison sobre a «anarquia deveras selvagem» ( «wildest liares ao observador é, numa primeira fase, necessária para organi
anarchy») que se instaura em tais circunstâncias. Poder-se-ia ob zar os factos se não mesmo para ter a percepção deles. Ao debru
jecrar que «anarquia» é aqui um simples sinónimo (com conota çarem-se sobre civilizações de outros continentes, os viajantes e os
ções claramente negativas, pelo menos para o reverendo Fison) de estudiosos europeus serviram-se muitas ve'zes, e nem sempre de
desordem social. Mas a comparação que vem logo a seguir na nora forma consciente, dos conhecimenros e das categorias provenientes
de Hertz - «uma espécie de saturnal» - era mais compromete da Antiguidade Grega ou Romana ( «rito», por exemplo) como de
dora, porque arrastava consigo uma série de referências implfcitas um indispensável meio de orientação57: deste modo se lançavam as
a rituais de inversão social, a periódicas transgressões e coisas no bases de.uma projecção em senrido inverso, ou seja, da observação .
gênero. Acontece que essa mesma comparação foi proposta num da Antiguidade Grega ou Romana numa perspectiva antropológica.
llvro - The Legends and Myths �f Hawaii ( 1 888) - que rrazia no Até a análise global (e transculrural) dos ritos associados ao nasci
frontispício os nomes de Sua Majestade Kalakaua, rei das ilhas mento, ao matrimón.io e à morre como riros de purificação tinha
Havai, e do d iplomata estado-unidense R. M . Dagget. Este úlrimo sido sugerida a Hertz por uma nota dos Sibil!inische Blatter, em
(supostamente organizador, mas verdadeiro autor do livro52) afir que H. Diels, em polêmica com Wilamowirz, interpretava ele
mava que «à morte do rei, durante o período de luto, que às vezes mentos da religião grega e romana numa óptica implicitamente
durava semanas, a população entregava-se a uma desenfreada sa antropológica proveniente de Usener, o mestre comum58. Recente-
mente, H. S . Versne1 serviu-se também do ensaio de Hertz para por vezes assassmws, «toda a espécie de víci os » - praticadas nas
interpretar como manifestações de anomia, favorecidas por uma ilhas Sanduíche à morte dos chefes), perguntou aos indígenas, cuja
siruação de caos as cenas de desespero rransgressivo (lapidação de
, Língua tinha aprendido, porque se comporravam daquele modo: a
templos, enjeite de recém-nascidos, etc.) que, segundo Suerónio, dor era rão grande que os levava à loucura - responderam62. Tra
se seguiram à morre de Germânico ( 1 9 d. C.)l9. ta-se - comenra o anrropólogo Davenport - duma racionaliza
ção: «É como se a licenciosidade simbolizasse o esrado temporário
1 0. Naruralmeute, há uma profunda diferença entre o etno de anarquia e de suspensão do mandato divino de governar.»63
centrismo grosseiro de Daggert e a cuidadosa projecção, feita por Simbolizasse. Mas para quem! Para os actores do riro ou pata
Hertz, de conexões citadas da religão grega ou romana. No segun os seus observadores, direccos ou indirectos? Entre o ponto de vista
do caso pode-se falar de verdadeira e adequada comparação: o esquema de uns e o ponto de vista dos outros a coincidência não é iue
interpretativo inicial acaba por ser corrigido com a inclusão de virável64. Através da comparação é possível, em princípio, recons
elementos novos extraídos da documentação específica. Por exem truir um significado não menos autênrico do que o incorporado na
plo, a associação enrre a morte do rei e a morte da justiça, que experiência vivida - a qual, por sua vez, não se identifica nem
tinha sido sugerida a Bosmaó pela observação dos ritos funerários com a experiência consciente nem com a experiência que deixou
da Guiué, é reformulada por Hertz a propósito das ilhas Sanduíche vestígios documentais. Nos testemunhos etnográficos sobre rituais
através da noção de tabu (que Prazer tinha aproximado do termo de transgressão funerária, direccos ou reelaborados, a distinção entre
latino sacer, sublinhando a ambivalência de ambos60). As transgres estes níveis interp retativos está frequentemente m ui to longe de ser
clara
• ·
sões (incluindo os saques) que se seguem à morte elo chefe são .
CAPÍTULO V
nome e o como
O
Troca desigual e mercado historiográfico*
' Repcoduz-se aqui, com algumas variantes, uma comunicação lida no con
gresso «Le Amwle.r e la storiograria italiana», realizado, em Roma, em Janeiro
de 1979.
1 K. Pomian, «l.'h isi:Oir'l' d1· la sri<•nn· (·t l ' h i s l o i rc ele l'hiswire», i n Annctles
Hsc, \o, 1 •>n . p. 1>i -'
170 O NOME E O COMO CAPITULO V 171
3. Falámos de troca desigual e mercado histotiográfico, mas agora para o movimento da produção analisado através dos impos
país dependente não quer dizer necessariamente país pobre. A tos e da contabilidade empresarial. A este poderoso instrumento
situação de dependência historiográfica da Itália é notoriamente de pesquisa que é a história serial devemos, sem dúvida, apre
acompanhada de uma extraordinária riqueza daquele material de c.i.áveis conhecimentos. Por exemplo, a descoberta da mutação es
documentação sem o qual o historiador não pode trabalhar. (Esta ttutural das crises demográficas: das crises catastróficas de morta
mos a referir-nos não só aos documentos conservados nos arquivos lidade do cruel século XVII às crises de «morbilidade» - menos
e nas bibliotecas, mas à paisagem, à forma das cidades, à expressão pesadamente maltusianas - do século XVIII.
gestual das pessoas: a Itália inteira pode ser considerada - e tem Mas não parece arriscado afirmar que a investigação quantita
-no sido - um imenso arquivo.) Há anos Franco Venturi falou tiva de longo período pode também obscurecer e distorcer os fac
com amarga ironia das bibliotecas e dos arquivos italianos como tos. Preços, meios de subsistência e mortalidade são questões que
de terrenos submetidos a cultura extensiva em vez de intensiva2. têm significado no curto prazo. Principalmente se quisermos ana
Variando um pouco a metáfora, poderemos definir os arquivos ita lisar o modo como o poder político reage às flutuações económicas
lianos como jazidas preciosas de matérias-primas não exploradas. e às crises de subsistência. Pensamos no controlo dos preços, na
A distância entre matérias-primas (fontes de arquivo, etc.) e formação de reservas, nas requisições, na aquisição de cereais nos
possibilidades de exploração foi particularmente acentuada no período mercados externos, etc. Na perspectiva do longo período - isto
em que um pouco por toda a parte triunfou a história quantitati mesmo notava recentemente Steven Kaplan - é difícil compreen
va. As resistências subjectivas, associadas a uma tradição cultural der os problemas quotidianos da sobrevivência. Raciocina-se por
impregnada (ainda hoje) de idealismo, não deverão ser descuradas. médias decenais, médias móveis, extraídas de folhas quase lo
Mas limitar-se a elas, como frequentemente se faz, seria unilateral garítmicas. A vida real (expressão que encerra, sem dúvida, ele
- e, precisamente, idealista. Investigações quanritativas em grande mentos de ambiguidade) é largamente posta à margem. E a visão
escala pressupõem investimentos financeiros consideráveis, equipas de longo período pode «gerar uma abstracta, homogeneizada história
de .investigadores - numa palavra, uma avançada estrutura de in social, desprovida de carne e de sangue, e não convincente apesar
vestigação. Um estudo como aquele que foi corajosamente iniciado do seu estatuto científico»4.
(e até hoje não terminado ainda) por Elio Conti pode ser conside: Cremos todavia que a história quantitativa serial faz já parte
rado emblemático - principalmente se confrontado com aquele da «ciência normal », dando à expressão o sentido de Kuhn�, e que
que há poucos meses foi concluído e publicado por Christiane o imenso material conservado nos arquivos italianos deve em rodo
Klapisch e David Herlihy sobre o regisco cadastral de Florença em o caso ser averiguado para verificar os paradigmas e as regras da
142r. O capital franco-americano e o computador - se acertada análise serial, para os articular, os demonstrar, os. delimitar, os
mente utilizados - permitem empreendimentos inacessíveis a um manipular. (Precisemos que o termo «paradigma» ,tem, neste
.indivíduo isolado. (É a diferente escala dos dois trabalhos gue nos contexto, u m valor mais fraco e metafórico do que aquele que lhe
interessa aqui e não um confronto analítico dos resultados obtidos.) é dado por Kuhn; a historiografia continua a ser, apesar de tudo,
As investigações sobre a história da propriedade e da popula uma disciplina pré-paradigmática). Uma parte da comunidade
ção mostram que a história quantitativa está bem viva. E viva está ci.enrífica deverá dedicar-se toralmente e/ou parcialmente a este
também a história serial, a investigação quantitativa de longo período tipo de investigação.
que, partindo dos preços (antigo ponto de partida), se deslocou
� S. E. Kaplan , Bn;ad, Politics anel Political Bconomy in the Reign of Louis XV,
2 F. Veotuci , · Settecento riformatore. Da Muratori a Beam""Út, Turim, 1969, I h i n , 1 97(;, pp. XX-XXI.
pp. XVII-XVIII. l 'r. Knhn, I .tt .rlfllli ln·� � ,./f;/111 ri1mltr1.ioui .l",·ilolt�(lcbd, Tnri11 1 , 1 97H (edição ori
> D. Herlihy c Klapiscb.. 7.idwr, l.e.r to.rr. tm 1"1 l�!IIIJ .f;tmilkr, 1':1ri·:, l l)7�l. Ji irml ).
172 O NOME E O COMO CAPITULO V 173
4. Mas outros temas e outros tipos de investigação estão já a radoxalmente coincidiu com a unificação do mercado mundial) tornou
vir ao primeiro plano. Em particular, nora-se o aparecimento de insustentável a ideia de uma história universal. Só uma antropolo
maior número de investigações históricas caracterizadas pela análise gia impregnada de história ou, o que é o mesmo, uma história
extremamente próxima de fenômenos circunscritos (uma comuni impregnada de antropologia poderá repensar a aventura plurimi
dade aldeã, um grupo de famílias, mesmo um indivíduo), o que se lenária da espécie homo .rapiens.
explica quer por motivos inerentes à disciplina quer por motivos Há trinta anos escrevia Lévi-Strauss, num artigo depois reim
exteriores a ela. Comecemos pelos segundos, os motivos extra-his presso como introdução à colectânea Anthropologie structurale:
« ( .. . ) a célebre fórmula de Marx "os homens fazem a sua história,
totiográficos .
Nestes últimos anos, fenômenos muito diversos entre si, como mas não sabem que a fazem", j ustifica no seu primeiro membro a
as recentes guerras do Sudeste asiático, ou mesmo os desastres história e· no segundo a etnologia. Ao mesmo tempo mostra que os
ecológicos tipo Seveso, Amoco-Cádis, etc., levaram a repor em dis dois processos são indissociáveis.» 7 Mas a desejada convergência
cussão objectivos estratégicos há muito tempo considerados atingi entre história e antropologia deve superar mui tos obstáculos: pri
dos - e enquanto tais não sujeitos a análise - quer se tratasse do meiro entre todos, a diversidade da documentação utilizada pelas
socialismo ou do desenvolvimento tecnológico Himitado. Não é duas disciplinas. A complexidade das relações sociais reconstituíveis
arriscado supor que a voga crescente das reconstituições micro pelo antropólogo através do trabalho no terreno contrasta efectiva
-históricas esteja ligada às dúvidas crescentes sobre determinados mente com a unilateralidade dos depósitos de arquivo com que
.
processos macro-históricos. Precisamente porque não se está muito trabalha o historiador. Cada um destes · de pósi cos , proveniente de
seguro de que o jogo compensa é-se levado a reanalisar as regras uma relação social específica sancionada a maior parte das vezes
por uma instituição, pode fornecer uma legitimação ao especialis
do jogo. Surge a tentação de contrapor aos optimismos (reformis
tas ou revolucionários) dos anos 50 e 60 as dúvidas de índole radical mo do investigador, seja ele historiador da Igreja ou da técnica, do
dos últimos anos 70, provavelmente destinadas a acentuar-se no comércio ou da indústria, da pop.ulação ou da propriedade , da classe
decénio que se aproxima. Que os inquéritos micro-históricos te operária ou do PCI. Esta historiografia poderia ter como divisa:
nham, em muitos casos, como objecto de análise os temas do pri «Não saiba a tua esquerda aquilo que faz a tua direita.» Esta frag
vado, do pessoal e do vivido, propostos com canta veemência pelo mentação reproduz a fragmentação das fontes Os registos civis
.
movimento feminista, isso não é uma coincidência - visto que as apresentam-nos os indivíduos enquanto nascidos e mortos, pais e
mulheres foram indubitavelmente o grupo que tem pago os custos filhos; os registos cadastrais, enquanto proprietários ou usufrutuários;
mais elevados pelo desenvolvimento da história humana. os autos, enquanto criminosos, enquanto autores ou testemunhas
Sintoma e ao mesmo tempo instrumento desta consciência é a de um processo. Mas assim corre-se o risco de perder a complexi
relação cada vez mais estreita entre história e antropologia. (Tam dade das relações que ligam um indivíduo a uma sociedade deter
bém neste caso se trata de uma relação desequilibrada, não obs minada. Isto também é válido para fontes mais ricas, de dados às
tante o crescente interesse pela história manifestado por antropólogos . vezesri.mprevisíveis, como os processos criminais ou inquisitoriais
como ]. Goody6. Aos historiadores ofereceu a antropologia não só - sobretudo os segundos - que são o que remos de mais aproxi
uma série de temas largamente descurados no passado - desde as mado aos inquéritos in loco de um antropólogo moderno. Mas se o
relações de parentesco até à cultura material, desde os rituais âmbito da investigação for suficientemente circunscrito, as séries
simbólicos até à magia - mas qualquer coisa de muito mais im documentais podem sobrepor-se no tempo e no espaço de modo a
permitir-nos enconrrar o mesmo i ndivíduo ou grupos de indivíduos gisros paroqU1a1s e cadastros) onde deveriam estar contidos, em
em conrextos sociais diversos. O fio de Ariana que guia o i nvesti princípio, os nomes de rodas as famílias e de rodas as propri ed ad es .
gador no labirinto documenral é aquilo que distingue um indivíduo Por um processo análogo é possível reconsriruir, com base em auras
de um outro em todas as sociedades conhecidas: o nome. notariais, as estratégias matrimoniais de famílias aliadas e afins. O
percurso da investigação pode ulteriormente alongar-se procnrando
5 . A utilização do nome para abrir novos campos à investiga nos arquivos eclesiásticos (episcopais) as autorizações de casamento
ção histórica não é nova. É conhecida a m udança de perspectiva entre consanguíneos. O fio condutor é, mais uma vez, o nome.
que a demografia nominal (a pesqui:sa de Henry sobre Crulai8) Como já foi .indicado, este jogo de vaivém não fecha necessa
produziu no âmbito da demografia histórica, apontando um novo riamente a porra à indagação serial. Serve-se dela. Uma série, so
objecro de pesquisa: a reconstituição das famílias. Mas o método bretudo sé não manipulada, é sempre um bem urilizável. Mas o
onomástico pode ser alargado muito para lá das fontes estritamente centro de gravidade do tipo de investigação m.icronom.inal que aqui
demográficas. Nos regisros das paróquias ruraiS em zona de arren propomos encontra-se noutra parte. As linhas que convergem para
damento a meias - referência directa aos campos de Bolonha - o nome e que dele partem, compouclo uma espécie de teia de
ao lado do nome e apelido do «gerenre» e dos membros da sua malha fina, dão ao observador a imagem gráfica do tecido social
família está rambém o nome da casa agrícola e da propriedade em que o indivíduo está inserido.
cultivada (Casa Vermelha, Casa Branca, Palácio, etc ) . . Tomando Uma investigação do mesmo género é possível mesmo no caso
este último nome como guia não é difícil enconrrar nos registos de indivíduos que pertençam a estratos sçciaís de elevada mobili
cadastrais (portanto, num outro arquivo) um dado importante, que dade geográfica. Aqui, naturalmente, é necessário proceder um pouco
é o da área da propriedade . Mas ao lado do nome e da área da pro mais às apalpadelas, confiando na sorte; mas o nome revela-se,
priedade encontra-se no cadasrro o nome do proprietário. A partir mais uma vez, uma bússola preciosa. Tomemos um fabricante de
deste nome, é fáci l recorrer ao arquivo privado da propriedade, Jícores e bufao profissional, Constantino Saccard ino, pr:ocessado como
onde, com um pouco de sorte, poderemos encontrar nos registos herético pelo Santo Ofício de Bolonha, e condenado à morte, jun
de admi nistração as conras agrícolas anuais e portanto, j untamente tamente com rrês sequazes, em 16229 O processo (infelizmente
com o nome do rendeiro e da propriedade que cultiva, também o impossível de encontrar) teve um eco notável : c:rónicas citadinas
andamento da produção agrkola (anual), com a discriminação do manuscritas e narrari-vas impressas fornecem particularidades ulte
tipo de planta cultivada (trigo, cânhamo, milho, videira, floresta, riores sobre o caso .e sobre. o seu protagon.isra. Deduz-se que Sac
etc.), a divisão por dois do produto l íqu i do e o movimento do .cardino tinha habitado em Veneza: uma sondagem no arquivo do
débito agrícola por cada propriedade e cada família arrendatária. Santo Ofício veneziano traz à luz um grupo de denúncias contr:a
Por outras palavras, encontramos dados seriais (em geral de período ele. Um sinal fugidio apresenta Saccardino em Florença, ao servi
curro, mas nem sempre) com os quais é possíve l reconsrru.ir o en �o dos Medici na qualidade de bufão: e o seu nome é realmente
trelaçado de diversas conjunturas. encontrado entre os destinarár.ios dos pagamentos da corte no pri
É óbvio que o- rrajecro pode começar em qualquer ponto da meiro dec�nio de Seiscentos. Um .controlo bibliográfico faz apare
cadeia. O melhor ponro de partida não é, provavelmente, o arqui cer um peq ueno tratado da arte médica publicado por ele, que ter
vo paroquial, mas o arquivo da grande propriedade. Isso permite mina com uma lista de clientes tratados e curados, como consta de
seleccionar nomes de camponeses e nomes de lugares qne podemos outros tantos autos lavrados po-r notários bolonheses, .indicados pelo
procurar com maior esperança de sucesso nos outros �rquivos (re-
'' Pllr:< u m a sumáriot 1Ultt·<·i p<1Ção d;< ptsquis:t aqui nw11cionada, rf. C. Gi nz
H l. Henry, «la populati()n de C n d : � i , P•II'IIJ.��;<· nor<<l:llldc· .. , i 1 1 'J 'r.ll'. tll.': < 't l n ll'J I M . l't'ITH r i , ,,L;, • n lou d•llfl• l i.< i\1 11 ' 1 1 1 > 1 : l i 111 1 h i , , in (JII,idllmi Jl1rrici, 1 1 .'' :Hl.
dmYtments de 1'/NED, Pl,ri�, 1 9 '5 H . Á J:h'.l < l dt 1 ' )/ H , 1 •11. 11 � 1 / , ', ' 1 .
1 76 O NOME E O COMO CAPÍTULO V 177
nome. Isro é confirmado por uma investigação no depósito norarial menros e as crenças da maioria» 1 2 . Mas um exame dos processos
conservado no Arquivo de Estado de Bolonha. Mas um documen criminais anteriores ao século XIX (ou seja, anres de se afirmar a
to remete para urn auto análogo lavrado alguns anos antes por um figura do criminoso profissional na acepção moderna do termo)
notário de Ferrara. Pouco a pouco emerge uma biografia, seja embora leva o investigador a conclusões menos pessimistas. A esmagadora
ineviravelmente fragmenrária, e a rede das relações que a circuns maioria desres processos diz respeiro a delitos vulgaríssimos, às
crevem. vezes de pouca monra, cais como rixas, pequenos furtos e coisas no
género, cometidos por indivíduos absoluramenre não excepcionais .
6. As duas investigações que delineámos têm, na sua disseme Não é paradoxal afirmar que um cerco tipo de transgressões cons
lhança, dois elementos comuns: serem referidas a estratos subalter riruía, nas sociedades pré-indusrriais, a norma (de facto, embora
nos da sociedade e terem o nome como fio condutor. Há alguns não de direito).
anos, rraçando um balanço das investigações prosopográficas, Law Mas ci «excepcional normal>> pode rer ainda um outro signifi
rence Scone distingUiu duas correntes: uma, qualitativa, centrada cado. Se as fontes silenciam e/ou distorcem sistemac.icamence a
sobre o estudo das élites (políticas , culturais, etc.); a ourra, quanri realidade social das classes subalternas, um documento que seja
realmente excepcional (e, portanto, estatisticamente não frequente)
caciva, virada para a inquirição de agregados sociais mais amplos10.
pode ser muito mais revelador do que mil documentos estereotipa
A nossa proposta pretende combinar a óprica não elicista da se
dos. Os casos marginais, como norou Kuhn, põem em causa o
gunda corrente com a análise particularizada da primeira - uma
velho paradigma, e por .isso mesmo ajudam a fundar um novo ,
pro-sopografia a partir de baixo (análoga à proposta por E. P. Thom . .
pson), que deveria portanto desembocar numa série de case studies, mats artlculado e mais rico. Quer dizer, funcionam como espias ou
embora sem excluir, como já se disse, investigações de tipo serial. indícios de uma realid ade oculra que a documentação, de um modo
Que uma prosopografia a partir de baixo se atribua como geral, não deixa transparecer.
objeccivo uma sé rie de case studie.r é coisa óbvia: uma investigação . Parrindo de experiências diversiflcadas e trabalhando em temas
que seja ao mesmo tempo qualitativa e exaustiva apenas poderá diversificados, os dois autores desce escrito são unânimes em re
tomar para exame entidades numericamenre circunscritas - élites, conhecer a importância decisiva daqueles traços, aquelas espias,
precisamente . O problema será então o de selecc.ionar, na massa aqueles erros que perturbam, desordenando-a, a superfície da do
dos dados disporúveis, casos relevanres e significativos . cumentação13. Para além dela é possível atingir aquele nível mais
Significativos no sentido de esrat.iscicamente freq uentes � Nem profundo, invisível, que é constituído pelas regras do jogo , «a história
sempre. Existe rambém aquilo a que Edoardo Grendi chamou, que os homens não sabem que fazem » . Reconhecer-se-á neste ponto
sugestivamente, o «excepcional normal >>11• A esta expressão pode o eco da lição, diferente e conjugada, de Marx e de Freud.
mos atribuir pelo menos dois significados. Antes de mais nada, ela
designa a documentação que só aparencemenre é excepcional. Srone 7 . A análise micro-histórica é , portanto, bifronte. Por um lado,
dava relevo ao facto singula r de os únicos grupos subalternos em movendo-se numa escala reduzida, permire em muiros casos uma
que é possível recolher, em cercos casos, um bom número de infor
mações serem «grupos minoritários, por definição excepcionais, dado
12 L. Stone, <<Prosopography», cic., p. 59.
que se trata de indivíduos que se revolram contra os comporta-
ll Cf. C. Ginzburg, <<Spie. Radici di un paradigma scientifico», in Rivistd
di storia contemporanea, 1978, pp. 1-14 (recolhido em Miti, emblemi, spie. Mmfolo
10 L. Stone,
gia e storia, Tucim, Einaudi, 1986, pp. 3-28); C. Poni, «lnnovazione contadi na
«Prosopogtaphy » , in DaccktlttJ, n." 100, 1 97 1 , pp. 46-79
e cnncwllo padronale» (título pcovis6rio), apresentado no colóquio «Arbeics
(F. Gilbert).
1 1 F . G�:endi, «Microanalisi prozessc:», <::m Gnttingc:n (22-2f! de junho dl· '197H), e a publicar proxima
c Sl:l>l'iil s1wiale», in Qt/tl(/crni rtoriâ, n." 5 ', , Mn i o
mc.:t'll:c i11 J>t�.rl tlltr.l Prm'l!!/1,
- Agosto de 1977, p. 'i 1 2.
178 O NOME E O COMO
derent la cemerité de nos proposi cions: a l 'avancure, aucunemenc, po jurídico foi ignorado pelos historiadores contemporâneos . Até
quelque, on dict, Je pense, et semblables . » 3 há pouco tempo a polêmica contra a histoire événenJentielle em nome
Com uma sensação de mal-estar que teria recebido a aprovação da reconstituição de fenômenos mais amplos - economias, socie
de Monta.igne, Natalie Zemon Davis declara que sentiu, no filme dades, culturas - tinha cavado um fosso aparentemente in trans
sobre o caso de Mattin Guette em que tinha colaborado, a falta de ponível entre indagação historiográfica e indagação judiciária . Esta
«todos aqueles talvez e aqueles pode ser a que recorre o historiador última era até apontada como modelo deletério dos requisitórios
quando a documentação é insuficiente ou ambígua•• . Compreen moralizances pronunciados pela velha his toriografia política. Mas,
deríamos mal esta declaração se víssemos nela apenas o resultado nos últimos anos, a redescoberta do evento como terreno privile
de uma prudência adquirida com o trabalho em arquivos e biblio giado para a análise de en crechos de tendências históricas profun
tecas. Pelo contrário - diz Nacalie Davis - foi precisamente no das (mesmo a baralha campal, como a de Bouvines estudada por
decurso do trabalho do filme, ao ver «na fase de montagem Roger Duby6) veio a repor imp licitamente em causa certezas que pare
Planchon a experimentar variadas entoações pata o papel do juiz ciam definitivas. Além disso, e mais especificamente, a tentativa
(Coras), que me pareceu ter à minha disposição um verdadeiro e · -. atestada também por este livro de Natalie Davis - de captar
apropriado laboratório historiográfico, um laboratório em que a o concreto dos processos sociais através da reconstituição de vidas
experimentação não produzia provas irrefuráveis, mas sim possibi / de homens e mulheres de condição não privilegiada voltou a esta
i
lidades históricas» (p. X). belecer de facto a contiguidade, gue em parte existe, entre a óptica
A expressão «laboratório hisrotiogtáfico» é naturalmente me do historiador e a 6pcica do juiz, ainda que não seja senão porque
tafórica. Se um laboratório é um lugar onde se realizam experiên a fonte mais . rica para pesquisas desse género é consti tuída pelo
cias científicas, o historiador é, por definição, um investigador a registo de .acras provenientes de tribunais leigos ou eclesiásticos.
quem as experiências, no sentido rigoroso do termo, estão vedadas. Nesras situações o historiador cem a impressão de efecruar uma
1 Reproduzir uma revolução, um arroteamento ou um movimento indagação por interposta pessoa - a do ·inquiridor ou a do juiz.
religioso é impossível, não só na prática mas em princípio, para As acras processuais, acessíveis direcramente ou (como no caso de
uma diciplina que estuda fenómenos temporalmente irreversíveis N. Davis) indirectamente, podem ser comparadas à documentação
«enquanto rais»4 . Esta caracterís tica não é apenas própria da histo de primeira mão recolhida por um antropólogo no seu trabalho de
riografia - basta pensar na asrrofísica ou na paleontologia. E a campo e deixada como herança aos historiadores futuros. Trata-se
impossibilidade de recorrer a experimentações no sentido próprio de uma documentação preciosa, embora inevitavelmente insuficiente:
não impediu nenhuma destas disciplinas de elaborar critérios de uma infinidade de quesrões gue o historiador se põe - e que
cientificidade sui generis5 fundados, para a consciência comt�rn, sobre poria, se pudesse recorrer à máguina do tempo, aos acusados e às
a noção de prova. testemunhas - não as formularam os inquiridores do passado nem
O facto de esta noção ter sido elaborada inicialmente no cam- podiam fazê-lo. ão se trata apenas de distância cul tural, mas de
diferença de objecrivos. A embaraçosa conrigu.idade profissional entre
his coriaoores ou antropólogos hodiernos. e j uízes e inquiridores do
l Monraigne, EssaiJ, cit., p. 1 1 5 5 («Tornam-se-me odiosas as coisas ve passado a cerra altura cede o passo a uma divergência nos métodos
rosfmeis quando elas me são apresentadas como iofalfveis. Gosto das palavras e nos objectivos. Isco não impede que entre os dois pontos de vista
que adoçam e moderam a temeridade das nossas afirmações: «talvez», «de certo haja uma parcial sobreposição, que nos é clamorosamente recorda
modo», «algum», <<d iz-se» , «eu penso» e outras semelhantes.
da oo momento em que historiadores e juízes se encontram a tra
4 Mas vejam-se as observações de M. Bloch, discutidas por quem escreve
estas Jiuhas, no prefácio a I re taumaturght, Turim, 1973.
balhar fisicamente em con cacto, na mesma sociedade e em corno
) Cf. de guem escreve, «Spie, Radic.í di llt\1 p;mtdígmH indi�iario», i n C1·iJ'i
dd!t.t t'fiKiot�e, por A. Garg<1.n í , Tnrim, I ')7'), p. � n .
182 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPITULO VI 183
dos mesmos fenómenos7• Um problema clássico, que podia parecer sentimentos de Bertrande são infelizmente inacessíveis), mas, para
definitivamente uttrapassado - o da relação entre indagação histórica nós, duma evidência quase óbvia. Aqueles historiadores - lembra
e indagação judiciária - revela implicações teóricas e · políticas polemicamente N. Davis - que tendem a ver nos camponeses
inesperadas. (e com maioria de razão nas camponesas) desre período seres quase
As actas do processo instaurado em Toulouse contra Arnaud privados de liberdade de escolha poderão objectar neste ponto que
du Tilh, bígamo embusreiro, foram lamenravelmente perdidas. se trata de um caso excepcional, e portanto pouco representativo
N. Davis teve de contentar-se com reelaborações literárias, como o - jogando com a ambiguidade entre representatividade estatística
Avrest me-morable, do juiz Jean de Coras, e a Admiranda historia, de (verdadeira ou presumível) e representatividade hisrórica. Na reali-
Le Sueut. Na sua obsrinada leitura destes testemunhos nota-se o / dade, o argumento muda de senrido: é precisamente o carácrer
pesar (que o leitot plenamente partilha) pela fonte judiciária per excepcional do caso Mattin Guerre que lança alguma luz sobre
dida. Dificilmente podemos imaginar que mina de dados invo- . uma normalidade documentalmente imprecisa. Inversamente, si
luntários (isto é, não procurados pelos juízes) aquele processo não tuações análogas conrribuem para de algum modo preencher as
teria oferecido a uma estudiosa como N. Davis. Mas ela pôs-se lacunas do acontecimento que N. Davis se propôs reconstiruir:
rambém uma série de questões para as quais, quatro séculos antes, «Quando não encontrava o homem ou a mulher que estava a
rinham procurado resposta Jean de Coras e os seus colegas do Par procurar, voltava-me na medida do possível para outras fontes do
lement de Toulouse. Como teria feito Arnaud du Tilh para repre mesmo tempo e lugar para descobrir o mundo que eles devem ter
sentar tão bem o papel de Marrin Guerre, o verdadeiro marido1 conhecido e as teacções que podem ter tido. Se aquilo que apre
Teria havido um acordo prévio entre os dois? E até que ponto a senro é em parte invenção minha, está no entanto solidamente
mulher, Bertrande, teria sido cúmplice do impostor! É evidente ancorado às vozes do passado» (pp. 6-7).
que, se se tivesse limitado a tudo isto, N. Davis não teria saído da O termo «invenção» (invention) é deliberadamente provocatório
anedota. Mas é significativo que à continuidade das perguntas - mas, vendo bem, desorienta. A investigação (e a narração) de
corresponda a continuidade das respostas. A reconstituição dos factos N. Davis não se baseia na contraposição entre «verdadeiro» e
efectuada pelos juízes quinhentistas é substancialmente aceite por «inventado» , mas na integração, sempre assinalada pontualmente,
N. Davis, com uma excepção relevante. O Parlement de Toulous� de «realidades>> e «possibilidades >>. Dai vem, no seu livro, a proli
considerou Bertrande inocente e legítimo o filho nascido da se feração de expressões como «talvez» , « tiveram de», «pode-se pre
gunda união, visto que concebido na convicção de que Arnaud sumir», «certamente» (que em linguagem bis toriográfica costu
fosse o verdadeiro marido (ponto juridicamente delicadfssimo, no mam significar «muito provavelmente>>) e assim por diante. Neste
qual Coras se deteve com doutos argumentos numa página do Arrest ponto a divergência entre a óptica do juiz e a do historiador rorna
memorable). Segundo N. Davis, porém, Bertrande percebeu .imedia � se data. Pata o primeiro, a margem de incerteza tem um signifi
tamente ou quase imediatamente que o pretenso Marrin Guerre cado puramente negativo, e pode conduzir a um non liqttet - em
era na realidade um estranho e não ·o seu marido: se o aceitou termos modernos, a uma absolvição por falta de provas. Para o se
como tal, fê-lo portanto de livre vontade e não como inconsciente gundó, isso obriga a um aprofundamento da investigação, ligando
vftima de um engano. o caso espedfico ao conrexro, entendido aqui como campo de
Trata-se de uma conclusão conjecturai (os pensamentos e os possibiiiclades hisroricamente determinadas. A biografia das perso
nagens de N. Davis torna-se de vez em quando a biografia de
outros <<horm.:ns c· tTitl lherç·s elo mesmo tempo e lugat» , reconstituí
7 Considerações muito sugestivas en.contram-se no aitigo de L. ferrajoli
ck da com :><tp,:\e idad<· c· prH.:i0nc irL, n"cOl'J'(>ndo a fon tes notariais , judi
sobre o chamado <<caso 7 de Abril" .(«11 rnanift'�to» , 2? c 24 de l'cvcrcíro
1 98); veja-se em particuhr a prJJlli:Ím p;ute). Mas a c p n:slrLo o l: 1 « h í s rorio1:raf'ia
e i . i i ' I : IS , J i tTJ';Í r i : l � . ·• Vnd : H k i rn •> !' (• V( ' I' OH Í I J i j J , , •' l li'OV:IS I'• L' <ipOs.� i b i
) l � < l l , i:í.ria•> que nele �<:: )'I H ' I I < i � > l'lil ira :;t · r "l "·of'l , l l•i:ltLI J i i L 1 • 1 < ": · · t ' l l l l'l ' l , l \ , 1 1 1 1 ·:r• . l l l l l f l r 1 1 1 1 r H lr l t' l l d •l l l ol 1 l,r�OI'O'. . L i l l l ' l l l l ' < I 1 � 1 1 1 1 1 ; I ' ; ,
1 84 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPÍTULO VI 185
Temos falado, a propósito do livro de N. Davis, de «narração » . antiga era ponto importante: o ptóprio Coras tinha comparado as
A tese segundo a qual rodos o s livros de história - incluindo os peripécias do falso Marrin Guerre com o Anfitrião, de Plauro. De
que se baseiam em estatísticas, gráficos, correspondência - têm <<tragédia» falara também Le Sueur, por duas vezes. E na parte
uma componente intri nsecamente narrativa é rejeitada por muitos que, em 1 5 65, acrescentou à nova edição do Arrest, ornamentada
(sem razão , penso eu). Todos porém estão na disposição de reco com cento e onze anotações (em vez de cem), Coras seguiu o seu
nhecer que alguns livros de história - entre os quais, sem dúvida, exemplo. A in trodução do termo <<tragédia» era seguida de um
li ritorno di Martin Guerre - têm uma feição mais narrativa do comentátio: «C'esroit vetitablemenr tragédie, pour ce gentil rus
que outros. A uma opção expositiva desse género prestava-se o rre: d'autant que l'issue en fur forr funeste, et miserable pour luy.
caso de Martin Guerre, tão dramático e rico de golpes de teatro. Smquoy nul ne sçaic la différence entre tragédie er comédie. » Esra
O facro de ter sido contado sucessivamente por juristas, romancis última afirmação era imediatamente contraditada por uma apara
tas, historiadores e realizadores de cinema faz dele um caso útil rosa digressão em que Coras, seguindo a formulação de Cícero,
para a reflexão sobre um problema muito debatido nos dias de contrapunha a comédia, que «descrit er représente en srile bas, et
hoje - o da relação entre as narrações em geral e as narrações hís humble, la fortune privée des hommes, comme les amours, et
roriográficas. ravissemenrs de pucelles>> à tragédia, na qual são «represenrées par
As mais antigas exposições do caso - a Admirandct hútoria, un sryle haut et grave les moeurs, adversites et vie calamiteuses
de Le Sueur, e o Arrest memorable, de Jean de Coras - têm, como des capitaines, ducs, roys et princes . . . »10. A esrrita correspondên
observa N. Davis, um aspecto dissemelhante, sendo embora ambas cia entre hierarquia esril.ísrica e hierarquia social que inspirava esta
escritas por juristas de profissão. De comum têm a insistência sobre contraposição tradicional era implicitamente rejei tada por Coras,
a inaudita novidade do falso marido: mas enquanto a Admir.mda que se limirava a aceitar a equivalência (que nos é ainda hoje familiar)
hi.rtoria se inspira no filão muito em voga nessa alrura das histórias entre comédia e desfecho alegre, por um lado, rragédia e desfecho
de prodígios, o Arrest memorable é um texto anómalo, que na alter
nância da narrativa com anotações doutas decalca a estrutura das um outro exemplar da tiragem que contém uma gralha no título (1-listotte por
obras jurídicas. Na dedicatória da primeira edição, a .Jean de Monluc, Histoire), assinado Rés. Z. Fontanieu, 1 7 1 , 1 2 . Numa reimpressão feita mais
bispo de Valência, Coras sublinhava com modéstia as limitações 1. tarde, não referida por N. Davis (Reât veritable d'un fattx et suppo.ré mary, arrivé à
literárias do livrinho - «le discours est petit, ie le confesse, mal une Femme notable, ai/. pays de La11g11edor, en ces dernien troubles, a Paris, chez Jean
Brunet, rue neufve sainct I..ouys, à. la Crosse- d'Or, MDCXXXVI: BN. 8° Ln
tyssu, rudement poly, et d'une phrase par trop agreste » , exaltando 27815), o sonero não aparece.
por outro lado o tema: «Ung argument si beau, si delectable, et si 10
Jean de Coras , An·est memorable ... , Paris , 1 57 2 , arrest. CIIll. Na introdu
monsttueusemenr estrange . . . , R Mais ou menos por essa alrura, ó ção a esta edição acrescentada, o impressor (Gaillor du Pré), além de definir o
soneto dirigido ao leitor, que abre a tradução francesa da Historia livrinho, como releva N. Davis, uma «tragicomédie», declarava não ter <<chan
gé un iota du langaige de l'aurheur, à. fin que plus facilement on pui sse discer
de Le Sueur (Histoire ct.dmirable d'tm fattx et suppoJé mary), declarava
ner cerre presente coppie, avec plusieurs a tu res imprimées parcidev ant : l'au
enfaticamente que o caso ultrapassava <des histoires prodigieuses>> theur desquelles s'eswit tellement pleu à amad izer, qu'il avoit assez maigre
de autores cristãos ou pagãos, « les escrits fabuleux» dos poetas ment fecité la verité du faít » . O sentido desta declaração não é claro : o termo
antigos (citando logo a seguir as Metamorfoses, de Ovídio) as «peinc coj!jlie faz pensar em anteriores edições i ucorrec ras do texto de Coras; o termo
tures monsrrueuses » , as artimanhas de Plauto, de Terêncio ou dos am<tdizef, por outro lado , faz pensar em verdad eiras e completas reelaborações
«nouveaux comiques» , e <des plus estranges cas des arguments con1anescas do caso de Martin Guerre segundo o modelo do Amadis de Cauta .
A favo c da segu nda hipótese está o facto de os primeiros doze livros da tradu
tragiques »9. A analogia com as substituições de pessoa na comédia
ção h·ancesa do A m�t<lis 1:cr<:m sido reimpressos, entre 1 5 5 5 e 1)60, por Vin
n:m St'rt<:na� ,. Hsl'i<'lll)<' ( ;mulkau, ,. de o próprio Sertc::m 1s ter publicado a
H Jeau de Coras, A.rre.rt metrlltrable. . . , T.i1io, l. ) ( d , dc·clil':otc'>ri;t, 1 / htoin• .tdllli�<thll', < J , . I,,. S1wur. Aq1tvk ' ] I Il' 1 i nhn <•lll.IÍ.I'.I'<'/11 1 ' 1 1 1' rhir6 la vtrité
du . . l'"•l•·riu """""' •,, r t d < · t o l i h • 11d" • nu1
·> Além daqlldt qu<: N . Davis mcwio1><1, <'XÍ,:Ic' 11>1 l l i h l i o l l1n J II!' Nal'ioll;tlr- (,til <';.lt t d c l l i \ 1 1 ,
186 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPiTULO VI 187
triste, pelo outro. Aquilo que o levava a recusar a doutrina tradi condição humana comum - o rema que estava n o centro das re
cional (que conhecia bem, embora afirmando ignorá-la) era o carácter flexões do seu contemporâneo e crítico Monraigne . Como viu muiro
excepcional do caso e sobretudo do seu protagonista: Arnaud du bem Naralie Davis, o juiz tinha conseguido de cerro modo identi
Tilh, chamado Pansette, «ce gentil rustre». A fascinação ambiva ficar-se com a sua vítima. Quanto teria contribuído para isso a
lente exercida sobre Coras pelo seu herói (esse herói que, enquanto provável adesão de ambos à fé reformista é difícil dizer. Mas en
juiz, tinha contribuído para enviar ao patíbulo) é analisada por quanto escrevia o Arrest memorable, Coras não supunha estar des
N. Davis com muita finura. Pode-se acrescentar que esta ambiva tinado a um «mísero fim» - a forca - igual àquele que tinha
lência é acentuada pelo uso da expressão fortemente contraditória infligido a Arnaud.
«gentil rustre » , verdadeiro epítetO que Coras repete duas vezes u . A dourrina clássica da separação dos estilos e a sua transgres
Pode um camponês ser capaz de «gentileza» - virtude ligada por são sob a influência do cristianismo são os fios condutores da grande
de finição a um privilégio social? E como descrever este contra obra de Erich Auerbach sobre a representação da realidade na lite
ditório prodígio? Com o estilo «alro e grave» da tragédia, como ratura da Europa Ocidental. Analisando passos de historiadores da
convinha ao adjectivo ( «genti l •> ), ou com o estilo << baixo e hu Alta e Baixa Antiguidade (Tácito, Amiano Matcelino) e da Idade
milde», o único adequado ao substantivo ( « rústico»)? Também Le Média (Gregório de Tours) juntamente com passos de poetas,
Sueur tinha sentido a cerro ponto a necessidade de dar prestígio às dramaturgos ou romancistas, Auerbach indicou uma via que não
personagens da sua história, observando a propósito do casamento tem sido seguida. Valeria a pena fazê-lo mostrando como relatórios
precoce de Martin Guette com Bertrande, menina de dez anos, de factos mais ou menos extraordinários e livros de viagens a países
que o desejo de descendentes é comum « non pas seulement aux longínquos contribuíram para o nascimento do romance e, através
gra nds seigneurs, mais aussí aux mechaniques » 12• Coras vai ao ponro deste poderoso medianeiro, para o nascimento da historiografia
de dizer, num impero enfático, que perante a «grande félicité d'une moderna. O reconhecimento, por parte de Jean de Coras, de uma
si heureuse mémoire» evidenciada por Arnaud du Tilh no decurso dimensão trágica na história de Arnaud du Tilh encontrará então
do processo, os juízes quase o equipararam a «Cipião, Ciro, Teoda um lugar adequado entre os testemunhos de como se desmorona
to, Mitridares, Temístocles, Cina, Metrodoro ou Lúculo», ou seja, uma visão rigidamente hierárquica no choque com a adversidade
àqueles «capitães, reis e príncipes» que são os heróis das tragédias. - social, cultural ou natural, conforme os casos11.
Mas o <<mísero fim» de Arnaud - co m ent a, como que despettan
do, Coras - teria ofuscado o esplendor de tais personagens13. 2. Nos últimos anos a dimensão narrativa da histori ografi a tem
A vida humilde e a morre infamante no patíbulo impediam assim sido vivamente discutida, como já foi lembrado, por filósofos e
de ver em Arnaud du Tilh, chamado Pansette, uma personagem merodólogos e, mais recentemente, por historiadores de primei ro
de tragédia no sentido tradicional do termo: mas num outro sen plano 1�. Mas a absoluta falta de diál og o entre uns e outros não
rido - o assumido por Coras e chegado até nós - era precisa permmu aré agora chegar a resultados sarisfarótios. Os filósofos
mente graças àquela morre que a sua histó ria podia ser definida
como trágica. Neste Arnaud, neste camponês imposror, que lhe · hamemo a uma
, r um encamtn pesq ut·sa do mesmo género "
10i dado por.
aparecia como que envolto num halo demoníaco, Coras, forçando a T. Todorov com o seu belo livro La c())1quête de I'Am6·iq11e: la quesúo11 de /'autre,
jaula da doutrina clássica baseada na separação dos esrilos, reco Paris, 1982.
nhecia implicitamente uma dignidade que tinha a sua origem na " Para duas r<·ntpir ulaçõts recences, cf. «Theor.ie und Erzahlung in der
Ct:schichn.:», poc J. 'L'ol'ka t T. Nippcrdey, in Theorie tkr Gm·hirhre, 3, Muni
qu<.:, I ') 79; t·l.Whirc·, ,,J .1 qur·srion<· de· li<- nam1%ÍOnl· ndla Lc·nria concempoca
11
Jean de Coras, Armt memorable (1.572), cic, pp. J lj (, c: I IÍ Y. Jlt',l clt·llu Slcu·io}'l�Jtil'"• in / .•• Jmritt ti�I/,J .rtorioxntfl,t IIJ:.c:i. por 1'. Ros�i. Mi liJo,
12 Guillaume Le Sueur, liiJtoitQ (!) rt,hnir6tlill', l'i1· . , 11. [[ r. 1 '111.� . pp. 5� IH. I ),, tlllllllt iu•.1t "''' " de P. l< u ''''"'• 'I'"'''' , , ,,;,/, ··· ' " ' por
.Jc:nn de Corus, r1 1'1'e.l'l memomh/1', 1 ' • 7 ' , i1·. . p. '•'>.
1 ·1 • I ' I I ' J I I I I I I I I ) ,II'I IHJ', ( I ( • 1 Í l l l<'ll l l \'Ci h t<\11 ( 11,111'10 J ' llt l j
188 PROVAS E POSSIBILIDADES
CAPITULO VI 189
têm analisado proposições hisroriográficas soltas, geralmente sepa
radas do contexto, ignorando o rrabalho ptepararório de investiga exemplo dos historiadores: mas quais? « . . . We intend in it rarhet
ção que as tornara possíveis16. Os historiadores têm-se perguntado to pursue rhe method of those wtiters, �ho profess ro disclose the
se houve nos últimos anos um regresso à hisroriografla narrativa, revolutions of councries, rhar ro imirate che pa.inful and volumi
descurando as implicações cognirivas dos vários tipos de narra nous historiao, who, to preserve rhe regularity of his series, thinks
ção17. Precisamente a página de Coras há pouco discutida adverre himself obliged to flll up as much paper wirh the detail of monrhs
-nos de que a adopção de um código esrilísrico selecciona certos and years in which norhing remarkable happened, as he employs
aspectos da realidade e não ourros, valoriza certas relações e não upon those notable areas when the greatest scenes have been rrans
ourras, estabelece certas hierarquias e não outras. Que tudo isro acted on rhe human stage . » 19 O modelo de Fielding é Clarendon,
esteja ligado às muráveis relações que, ao longo de dois milénios e o autor da History of the Rebellion: foi dele que aprendeu a conden
meio, se esrabeleceram entre narrações hisroriográflcas e outro ripo sar ou dilatar o rempo da narração, rompendo com o tempo uni
de narrações - desde a epopeia até ao romance e ao filme - forme da. crónica ou da epopeia, marcado por um invisível
parece óbvio. Analisar historicamenre estas relações - de vez em �
m�trónomo2 . �sra aquisição é tão imporrante para Fielding que
quando feiras de permutas, de hibridações, contraposições, influxos foi levado a mntular todos os livros em que Tom Jones é subdividi
de senrido único - seria muito mais útil do que propor formula do, a partir do quarto, com uma indicação temporal - indicação
ções teóricas absrraccas (muitas vezes implícita ou explicitamente que, até ao décimo, se torna progressivamente, convulsivamente,
normativas). cada vez mais breve: um ano, meio ano, três semanas, três dias,
Baseará um exemplo. A primeira obra-prima do romance bur dois dias, doze horas, cerca de doze horas . . . Dois irlandeses -
guês inti tula-se The Life artd Surpri.ring Adventures of Robimon Cmsoe Sterne21 e Joyce - levarão às últimas consequências a dilatação do
of York, Mariner. No prefácio Defoe insisria sobre a veracidade do rempo narrativo relativamente ao tempo do calendário: e teremos
conto (story), conrrapondo history a fiction : «The srory is told wirh um romance inteiro consagrado à descrição de um único, inter
modesty, with seriousness . . . The ediror believes rhe thing to be a minável dia de Dublin. Na origem desra memorável revolução
.
just history of faces; neither is rhere any appearance of flction i n narrativa encontramos assim a hisrória da primeira grande revolu
it . . . . » 18 Fielding, por sua vez, i n titulou simplesmenre o seu livro 1 ção da Idade Moderna.
maior The History of Tom joues, a Foundling, explicando que prefe Nos últimos decénios discutiram muito os historiadores sobre
riu history a life ou a «an apology for a life» por se inspirar no os ritmos da história; pouco ou nada, de modo significarivo. sobre
.
os ritmos da narração histórica. Um esn1do sobre evenruais reper
cus sões do modelo narrativo inaugurado por Fielding sobre a his
16 .
Cf. W. ] . Mommsen e ] . Rusen, i n La terwi4, c1r . , pp. 109 e 200, que ronografla de Novecentos, se não me engano, está ainda por fazet.
todavi a não vão ao ponto de reformular os cermos em que a questão é posta Muiro clara é pelo contrário a dependência - não limitada ao rra-
geralmente. Valea pena o bservar que a s imple s contraposição entre narrativas
ramento da sucessão temporal - do romance inglês proveniente, j e réaliserais, sur l a France au XIX s.iecle, ce livre que nous regrer
em oposição ao filão gótico, da historiografia anterior ou coeva. É cons rous, que Rome, Athenes, Tyr, Memphis, la Perse, l'Inde ne
no prestígio que envolve esra última que escrirores como Defoe ou naus ont malheureusement pas la.issé sur leurs civilisations . . . »25
Fielding procuram uma fonte de legitimação para um género li Este desafio grandioso é lançado aos historiadores, reivindicando
terário incipiente, ainda socialmente sem crédito. É de lembrar a um campo de investigação que eles têm deixado substancialmente
magra declaração de Defoe sobre as aventuras de Robinson apre inexplorado: «J'accorde aux faits constants, quorídiens, secrets ou
sentadas como «a just history of facts» sem «any appearance of patents, aux acres de la vie individuelle, à leurs causes et à leurs
fic tion>> » . De maneira mais elaborada, F.ielding afirma que quis príncipes, auranr d'importance que jusqu'alors les historiens ont
deliberadamente evitar o termo «tomance» , que todavia teria sido attaché aux événements de la vie pubLique des nations.»26
adequado a Tom jones, para não cair no descrédito que rodeia «ali Balzac escrevia estas palavras em 1 84 2 . Cerca de dez anos anres,
historical writers who do not draw their materiais from records>>. Giambattisra Bazzoni, na introdução ao seu Palco delta Rupe o la
Tom jones, pelo contrário - conclui Fieling -, merece deveras o guerra di Musso, exprimira-se em termos que não eram diferentes.
nome de hiJtory (que figura no título): rodas as personagens estão «Ü romance histórico » , escrevia ele, «é uma grande " lenre" que se
bem documentadas porque são tiradas do «Vast, authenric, dooms aplica a um ponro do imenso quadro rraçado pelos historiadores,
day-book of nature>> . 22 Fundindo brilhantemente a alusão ao re povoado de grandes personagens. Deste modo, aquilo que era difi
censeamento ordenado por Guilherme, o Conquistador, com a ima cilmente visível recebe as suas dimensões naturais; um contorno
gem tradicional do «livro da natureza», Fielding reivindicava a levemente esboçado torna-se um desenho regular e perfeito, ou
verdade histórica da sua obra equiparando-a a um trabalho de arqui melhor, um quadro em que todos os objectos recebem a sua verda
vo. Tão historiadores eram aqueles que se ocupavam de «pubiic deira cor. Não já apenas os reis, os chefes, os magisrrados, mas a
transactions» como os que, por exemplo ele, se limitavam às «Scenes geme do povo, as mulheres, as crianças fazem a sua aparição; são
of privare life». z:> Para Gibbon, pelo contrário, se bem que no âmbito postos em acção os vícios, as virrudes domésticas e revelada a in
de um elogio hiperbólico ( « tbat exquisi te picture of human man fluência das instituições públicas sobre os costumes privados, sobre
ners will outlive tbe palace of the Escurial and the Imperial Eagle 1
as necessidades e os prazeres da vida, que é quanto, no fim de
of the house of Austria» ) , Tom }ones continuava, não obs tante o contas, deve interessar a universalidade dos homens.»27
tírulo, um «romance ». 24 O ponto de partiea destas considerações de Bazzoni eram
Mas, com o aumento de prestigio do romance, a situação muda. naturalmente I promessi sposi. Mas devia ainda passar algum tempo
Continuando embora a equiparar-se aos historiadores, os romaucis
tas desligaram-se pouco a pouco da sua situação de inferioridade.
A declaração falsamente modesta (altiva, na realidade) de §alzac 25 «A sociedade üancesa seria o historiador, eu o secretário (. . . ) talvez eu
na int rodução à Comédie Humaitre - «La Société française allait pudesse vir a escrever a história esquecida por ramos hiscodadores - a dos cos
tumes. Com muita paci ência e muit a coragem ceria realizado, sobre a França
être l'historien, je ne devais être que le secrétaire» - adquire
do �culo XIX, aquel e livro cuja falta rodos lamemamos, aquele livro que Roma,
rodo o seu sabor com as frases que se seguem daí a pouco: «Peut
Arenas, Tiro, Mênfis, a Pérsia, a India, infelizmente nos não deixaram sobre as
-êrre pouvais-je arriver à écrire l'histoire oubliée par tant d'histo suas civilizações.»
riens, celle des moeuts. Avec beaucoup de patience et de courage, ?� <<Eu atribuo aos fac tos conscances, quotidianos, secretos ou transparemes,
ao� acros da vida individual, às suas causas e aos seus princípios, aquela mesma
importância que nc(· e ntão os his roriaclores atribuíram aos acontecimentos da
22 Cf. Fielding, The Hútory of Tom.fones, cit., I, p. 5 1 6. violn públic: 1 elas 1\li<,Cws . ..
21 lbid.. pp. 4 1 7-18. • 1 ( : 1 . /)om111mti r ;m/n:.irmi tkl 1'1 1111rlli'l.o ítrdirmu ,/.efi'Ott(/{,,.,.,tll, p nr R. Berra
2' Cir. por L. Braudy, N<trYcttivc Porm in lli.rtiiYY rmd Fir1i1m, Prin< T i u n , I <)7(), c h i n i , l( o, lo l, J < J(,<l, I '· ;/, ondv \oi' l'<'i ii'P. i l l 't. 11 Ílll l nd ll<,,l" :1 l o -t'� <·ira •·diç:ío de
p. 1 }
!',,/"' .!l'{f., 1<11/" , M1h1n, l ll I I .
192 PROVAS E POSSIBILIDADES CAPITULO VI 193
antes que Manzoni se decidisse a publicar as páginas De/ romanzo ou menos complexos» . Palavras vagas, que imediatamente ava
�
�
storico e, in genere, de' componimenti misti di storia
qual roda a questão eta discutida analiticamente. A um i nterlo
e d'invenzione, no lugar ao reconhecimento, frouxamente vela o ' de q e a h1stóna
.
� �
tinha «ficado atrás daquilo que um tal ptopositO pod1a pretender,
cutor .imaginário atribuía ele uma .imagem de romance histórico
que era não só uma forma diferente mas também superior à histo
atrás daquilo que os materiais, procurados ou o servados com � �m
propósito mais vasto ou mais filosófico, podenam dar . . . » Da1 a
riografia corrente: «A intenção do vosso trabalho era pôr diante exortação ao futuro historiador de vasculhar «em docu entos de
�
dos meus olhos, de forma nova e especial, uma história mais rica, toda a espécie», fazendo «que se tornem documentos tambem certos
mais variada, mais humana do que aquela que se encontra nas
escritos cujos autores estavam longe de imaginar que punham no
obras a que se dá este nome vulgarmente e como que por anto 2B
papel documentos para a postet1'dade . . . » • • •
melhor que qualquer outro, mostrou que princípio de realidade e Mas precisamente aquele que Momigliano apontou como símbolo
ideologia, conrrolo filológico e projecção no passado dos problemas da fusão entre a Antiguidade e a historiografia filosófica, Edward
do presenre se entrelaçam, condicionando-se reciprocamente, em Gibbon, quis denunciar - numa nora autocrítica ao capitulo XXX f
todos os momenros do rrabalho historiográfico - desde a identifi da History of the Decline and Pai/ ofthe Roman Empire, consagrado à.�
c�ção do objecto até à selecção dos documencos, aos métodos de condições da Inglaterra na primeira metade do século V - o
pesquisa, aos critérios de prova, à apresentação literária. A redução condicionamento exercido pelos esquemas narrativos sobre a apre
unilateral de tão complexo entrelaçado à acção, isenta de atritos, sentação dos resultados da investigação. <<l owe to myself anel co
do imaginário h.isroriográfico, proposta por White e por Hartog, historie rruth» , escrevia Gibbon, «to declare, that some "circums
revela-se empobrecedora e, no fim de contas, .improdutiva. É pre tances" in this paragraph are founded only on conjecture and ana
,
cisamente graças aos atritos suscitados pelo princípio da realidade logy. The stubboroess of our language has sometimes forced me m
(ou como se lhe queira chamar) que os historiadores, de Heródoto deviare from tbe "condicional" into the "índ icacive" mood.» 36 Por
em diante, acabaram, apesar de tudo, por se apropriar do «Outro » , sua vez Manzoni, numa página do escrito Del romdTlZO storico e, irt
às vezes d e maneira domesticada, ourras vezes, pelo contrário, mo genere, de' componimenti misti di storia e d'invenzione, concebeu um;L
solução diferente. Depois de ter contraposto mapa geográfico l '
dificando profundamente os esquefllas cognitivos de que tinham
rI carta topográfica como imagens, respectivamente, da historiografia
partido. A «patologia da representação» , para usar a expressão de
Gombrich, não esgota a possibilidade desta última. Se não tivesse I tradicional e do romance histórico, entendido como <<forma nova l '
especial . . . , mais rica, mais variada, mais completa» de h.i st6ri;L,
. sido capaz de corrigir as suas .imaginações, expectativas ou ideolo
gias sob o influxo das indicações (nem sempre agradáveis) vindas Manzoni complicou a metáfora, convidando a distinguir explici 1:1
do mundo exterior, a espécie Homo sapiens ter-se-ia extinguido há mente, dentro da carta, parres certas e partes conjecturais. A pm
muiro tempo. Enrre os insrrumenros intelectuais que lhe permiti posta, em si, não era nova: procedimentos semelhantes escavam h:í.
ram adaptar-se ao ambiente circundante (natural e social), modifi tempos a ser usados por filólogos e arqueólogos, mas a sua extén
cando-o cada vez mais, coma-se afinal também a historiografia. são à história narrativa escava longe de ser adaptada, como mo.� na
/
o passo de Gibbon há pouco citado. Escrevia pois Manzoni:
3 . A insistência actual sobre a dimensão narrativa da historio <<Não deixa de vir a propósito observar que rambém do ve
grafia (de qualquer historiografia, embora em graus diferentes) rosímil a hisrória se pode algumas vezes servir, e sem inconve
associa-se, como já vimos, a atitudes relativistas que tendem a anular niente, porque o faz segundo a boa maneira, isto é, expondo-o na
de facto qualquer distinção enrre fiction e history, eorre narrações sua ·forma própria e disti nguindo-o assim do real. ( . . . ) Faz pane da
fantásticas e narrações pretensameote verídicas. Contra esta ten miséria do homem o não poder conhecer mais do que fragmen tos
dência acentua-se, por outro lado, que uma maior consciencializa daquilo que já passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte
ção da dimensão narrativa não implica uma diminuição das possi da sua nobreza e da sua força o poder conjecr urar para além dagui
bilidades cognitivas da historiografia, mas, anres pelo contrário, a lo que pode saber. A história, quando tecorce ao verosímil, não htz.
sua intensificação. E é precisamente a partir daí que deverá come mais do que favorecer ou estimular essa tendência. Então, por u m
çar uma crítica radical da linguagem hiscoriográfica, da qual por
enquantO só temos alguns esboços. 1r. E . Gibbon, Stnrio de/.la decadm :u1 e L"rtdllltt rk/l'illlf!ero rnmann, twd. i t . c l < ·
Graçasa Momigliano sabemos do contributo decisivo que o estu G. Pri:t�i , iocroduc;:i() d•· A . MomiJ.;liano, lf, Turim, J l>67, p . 1 H í6, n o rn ·1:
.. o dcv<:t J':U<I çomi1:o c · p.1m < 0111 a v<·rci:lcl<· hisl cÍ<'io : a ol u·i,1:a nw a dcril!rllf ' I ' " '
do da Antiguidade trouxe ao nascimento da historiografia moclerna3 1.
l li'SCl' pal�ÍJII'a{() 11)}\ 1 1 1 11!1.� "fir!'I IIISI<IIII'Í:<�" \,Ltl Íllll•h11l.l� iiiWII:I� ''lll rolljt'f'l'l l l';l:i I'
IIIHdo/;ia. 1\ c h u·o1• c l . < 11< >'1 ' ' 1 1<<1\ t l ol <>l •r�r."" <>lt' I '"' vo·tn . 1 '-oiÍr olo 1 1 1 1 1 o l o
}l Cf. , idem, <<Ancienc Hiswry aod 1:h� A n 1 iq11ariu n n , in )mn'rMI 1!f'tlu1 w,,.,. " c 1 1 1 1 c l i c ionnl" I '•< LI (I illolclll " I ! l o 1 1 1 1 1 1 1\'11", 1\ 1 ! 1 1 1 '111 1 11 1 1 1 ) ,, olc ·.lo· )hi�I H I• oi'l� 1 1 1 .1
bm'l!, mui Cnttrttllild fn.rlillltc.r, X I I I , 1 1)í0, 1 '1 ' · !H.., •.:1, h�ol11, 1 1 1 1 1 1 1 o C I I I I I M f l l old1 1 i 0 t l l o' , p1 11' J l l o l l <o l \ , N,/ 1 /ol/11• /•o tl'/0 • O I , l t· ' l t1.
'I
�\
198 PROVAS E POSSIBILIDADES
) CAPÍTULO VI 199
momenro, deixa de narrar, porque a narrativa não é naquele caso âa nelle fonti de/ seco/o XII, ele combateu asperamente o «método
um instrumento bom, e adopta em vez dele o instrumento da filológico-combinatório» , ou seja, a confiança pertinaz e ingénua
indução: e desce modo, fazendo o que é pedido pela diversa natu dos estudiosos na providencial complementaridade dos testemu
.
reza das coisas, acaba por fazer o que convém ao seu novo intento. nhos do passado. Esta confiança tinha criado de Arnaldo de Bres
De facto, para poder idenrificat a relação entre o posirivo narrado cia uma imagem postiça e falsa, que Frugoni desfazia lendo cada
e o verosímíl proposto, é necessária uma condição: que eles se fonte a partir de denrro, em contraluz, na sua irreversível singula
apresentem distinros. É pouco mais ou menos como se alguém, ridade. Das páginas de São Bernardo, de Otão de Frisinga, de
desenhando a planta duma cidade, acrescentasse, a cor diferente, Gerhoh de Reichersberg, emergiam outros tantos retraros de Ar
ruas, praças e edifícios projectados: e com o facto de apresentar as naldo de B rescia, colhidos de ângulos de visão diferemes. Mas esta
partes que poderiam exisrir disrintas daquelas que exisrem faz com operação de «restauro» era acompanhada da temativa de reconsti
que se veja a razão por que as pensou reunidas. Direi que a história tuir, na medida do possível, a personalidade do «Verdadeiro» Arnaldo:
abandona então a narrativa, mas para se ajustar, da única maneira «0 nosso retratO virá a ser como tun daqueles fragmentos de es
possível, àquilo que é o objecto da nartativa. Conjecturando ou cultura antiga, mas com traços (estarei enganado?) de grande poder
narrando, tem sempre em mira o real: af reside a sua unidade. »37 sugestivo, liberto da contrafacção de acrescemos posteriores. » 40
O preenchimento das lacunas efec tuado (e logo a seguir decla O Arnaldo, publicado em 1 9 54, foi discutido apenas pelos
rado) por Gibbon poderia ser comparado a um restauro pictórico especialistas, mas é evidente que ele não se dirigia só aos here
/ \
por meio de completa repintura; a sinalização sistemática das siólogos e aos estudiosos dos movimentos religiosos do século XII.
conj ecturas historiográficas proposta por Manzoni a um restauro Hoje, rrinta anos depois, podemos lê-lo como um livro de anteci
em que as lacunas fossem indicadas a tracejado. Uma solução como pação, que talvez tivesse sido prejudicado com uma certa timidez
esra era, em todo o sentido, uma antecipação no tempo. A página em levar até ao fundo o projecto crírico inicial. A um olhar retros-
de Manzoni ficou sem eco. Dela não se encontra vesrígio, nem , pectivo torna-se claro que o seu alvo não era apenas o método
sequer no ensaio lmmagirtazione, aneddotica e storiografica, na qual filológico-combinatório mas a narração histórica tradicional, mui
Croce discute com muita agudeza alguns exemplos de frustradas tas vezes irresistivelmente propensa a preencher (com um advér
integrações narrativas inspiradas pela «imaginação combinatória. » 38 '· bio, uma preposição, um adjectivo, um verbo no indicativo em vez
Croce, de resto, limirava fortemente o peso das suas observações, de no condicional . . . ) as lacunas da documentação, transformando
referindo-as exclusivamente ao anedótico nas proximidades do i.!·lll rorso numa estátua completa.
romance histórico: a historiografia, no sentido mais próprio ] mais Um crítico perspicaz como Zerbi descortinava com preocupa
profundo do termo, estava para ele intrinsecamente imunizada·contra ção no livro de Frugoni uma tendência para o «agnosticismo bis
riscos desse género. Mas, como já vimos, um historiador como toriográfico», apenas debilmente contrariada pelas «aspirações de
Gibbon não era da mesma opinião. uma verdadeira mentalidade histórica, que se sente desgostosa por
Quem entendeu em sentido muito mais radical as implicações não descobrir senão pó, ainda que o pó seja de ouro» 41 . Não se
do ensaio de Croce foi Arsenio Frugoni39. No seu Arnaldo da Bres- trata de- uma preocupação .infundada: '!- sobrevalorização das fontes
de carácter narrativo, visível em Frugoni (como é visível hoje, com
todos os pressupostos culturais, em Hartog), contém o germe de espelhos lembra-nos um facto bem conhecido: e é que o emara
uma solução idealista da história na história da historiografia. Mas, nhamento entre realidade e ficção, entre verdade e possibilidade,
em princíp io, a crítica dos testemunhos exposra com tanta finura está no centro das elaborações artísticas deste século. Natalie Zemon
por Frugoni não só não exclui mas até favorece a i� teg ·aç�o e
�
� Davis pôs em relevo as vanragens que os historiadores poderiam
séries documentais diversas, com um g cau de consClenClahzaçao tirar dai para a seu trabalho .
desconhecido do velho mécodo combinatório. Há ainda neste sen Termos como «ficção» ou «possibilidades>> não devem induzir
tido muito caminho a percorrer. em erro. O ptoblema da prova continua mais do que nunca no
centro da investigação histórica: mas o seu estatuto é inevitavel
4. No próprio acto de propor a inserção das conjecruras, assi menre alrerado no momento em que são abordados temas diversos
naladas como tal, na narração h.istoriográfica, Manzoni sentia a ne relativamente ao passado, com o apoio de uma docwnentação também
cessidade de realçar, de maneira um tanto retorcida, que «a hi.srória. . . diversa42. A tentativa· feira por Natalie Zemon Davis de contornar
abandona então a narrativa, mas para se ajustar, d a única maneira as lacunas com uma documentação de arquivo contígua no espaço
possível, àquilo que é o objecto da narrativa. Entre conjecturas e e no tempo àquela que se tinha perdido nunca se materializou: é
narrativa histórica, entendida esta como exposição de verdades apenas uma das muitas soluções possíveis (exrensiva até onde? Valeria
positivas, havia aos olhos de Manzoni uma incompatibilid a e evi
. .
� a pena discutir isso). Entre as soluções a excluir rerminantemente,
dente. Hoje, porém, o emaranhado de verdade e poss1bil1dades, está a invenção. Seria, além de contradi tória com tudo o que foi
assim como a discussão de hipóteses de investigação em contraste, dito, absurda. Até porque alguns dos mais célebres romancistas de
alrernada com páginas de reevocação histórica, já não causam es Oitocentos fa laram com desprezo do recurso à invenção, atribuin..:
tranheza. A nossa sensibilidade de lei tores modificou-se graças a do-a quando muito, ironicamente, aos próprios his toriadores. «Cene
Rosrovzev e a B loch - e também a Proust e a Musil. Não foi invention est ce qu'il y a de plus facile et de plus vulgaire dans le
apenas a noção de narração historiográfica que se transformou mas rravail de l'esprit, ce qui exige le moins de cefléxion, et même le
�
a de narração tout court. A relação entre quem narra e a realidade moins d'imaginacion» , escrevia Manzoni na Lettre à M. Chauvet,
1
afigura-se mais incerta, mais problemárica. . . reivindicando para a poesia a pesquisa no mundo das paixões, vedado
/
Os historiadores, porém, hesitam às vezes em admm-lo. E neste à história - aquela história que, «por sorte» , é inimiga da adivi
ponro compreendemos melbor que Natalie Zemon Da:vis tenha nhação, como diz a célebre frase de 1 promessi sposi4�. «Porque é que
podido definir a sala de monragem do filme :�bre Martlll C:�err-:. a história é cão enfadonha » , perguntava uma personagem de Jane
como um verdadeiro e apropriado «laboratotlo hJstorwgráfl..:O». Auscen, «embora seja necessariamente, em grande parte, fruto da
A alternância das cenas em que Roger Planchon procurava pro i nvenção?» 44 «Representar e ilustrar o passado, as acções dos ho
nunciar com entoações diversas a mesma frase do juiz Coras trans mens, é tanto tarefa do historiador como do romancista; a única
formava de repente (teria dito Gibbon) o indicativo da narraci �a diferença que posso notar», escrevia no fim do século Henry ]ames,
.
histórica num condicional. Todos os espectadores de Otto e Meta
(histOriadores ou não) viveram uma experiência de cerro modo se ·
42 arte,
melhanre assistindo à cena em que várias candidaras a intérprete
Sobre este problema, no que respeita à história da remeto para a
disc\lssão entre A. Pinelli e o autor desras linhas, in QtJaderni storici, n.• 50,
se sucedem no palco de um teatro experimental pata representar a Agosto de 1982, pp. 682 ss.
mesma personagem , pronunciando à saciedade e desajeitadamente '13 Cf. A. Manzoni, út «Lettre à M. Cha11vet», por N. Sapegno, Roma, 1947,
a mesma frase perante o protagonista-realizador. No filme de Fel pp. 59-60. «Esca invenção é o que hf\ de mais fácil e vulgar no rrabalho do
lini o efeito de realização é acentuado pelo facto de o espectador já esrf(i to, aquilo que rcqu<::r rnenos reOexíio e até rnenos imaginação »; idem,
{il'tlfru·J.ri .rJm.ri, r01r. X J J' I .
cer visto agi c o personagem «real» , qw.: (: por sna vt:'L., narural
I
H /1 l'r:t�t· dt· .JIIItt' i\psl'1'11 (<k Nonbrttltl'l' Ah/J,,v) li1i po:.l:t por 11 . H . Carr
menct, uma personagem ci nt'm·,ttognífi<;a. r.ste vtrt i g i noso jn}'.O d<' '''lllllld i v t ·.tt d!l ;,1 ' 1 1 \Y'/1, 11 ; , llittol')'!, l,olldi<"/, I ' )l d .
202 PROVAS E POSSIBILIDADES
A história pode parecer velha - no entanto, uma atitude se Londres, 1969.
4 A. Momigliano, «Linee per una valutazione della. storiografia del quindi
melhante foi relatada por Hugh Trevor-Roper há menos de vinte
�
cennJO 1 9 1 - 1 976», i n Rivista storita italiana, LXXXIX ( 1 977), p. 5 8 5 ss.
1 E. E . Evans-Pwchatd, Witchcraft, Orac/es <md Mag)c among the Azande,
.
Veneza, 1897.
l
I.ondrr::s, 1 9 � 7 .
n i , i n li l!i eM '· A . M:wfnda nç, Witr:hr:mfl i n 't'ttr.ltw ,mr/ Stttt/.t'l l�ll!;l<'t!U/, Londres, 1970;
2 A. Del Col, «La Riforma cattolica nt:l l'ril.lli vista da Pasd1i
K. , I . horna:;, l?dti;n!l!
. .n11/ 1111 I >rl'/h111 ti/ Mrtwt', l.o11<lrr•::. 1 ') / 1 .
'
tonvo/{nO di ,rt11dio ,w Pio Parchini 11cl t:efllt!nrtrio dtillt� na.râlr.t, � . l . n .d . , p , I / .\ �s.,
'c :r, il·l.k111.
r·stx:r i,olnwnl·r· p . I vl,
206 O INQUISIDOR COMO ANTROPÓLOGO CAPÍTULO VII 207
que a analogia entre inquisidores e antropólogos (e historiadores ros dos arquivos, nesta perspectiva, não são substitutos dos gravado
também) se revela ambígua nas suas implicações. O que os juizes res de som. Secá que os historiadores têm, para além dos estereótipos
da Inquisição tentavam exrorquir às suas vítimas não é, afinal, tão dos juízes, provas suficientes para reconstituir as crenças da feiti
diferente daquilo que nós procuramos - diferentes eram sim os çaria na Idade Média ou na moderna Éuropa? Estamos obvi�mente
meios que usavam e os fi ns que tinham em vista. Quando estava a perante um problema de qualidade e não meramente de quanti
ler processos dos tribunais da Inquisição, muitas vezes dava por dade. Num livro bastante afastado das actuais correntes de inves
mim a espreitar por cima do ombro do inquisidor, seguindo os tigação, Richard Kieckhefer esboçava uma disti nção en tre estereótipos
seus passos, na esperança, que também ele teria, de que o réu con cultos e bruxaria popular, baseando-se numa análise detalhada
. (embora não convincente) da documentação disponível. Curiosa
fessasse as suas crenças - por sua conta e risco, claro. Esta con
tiguidade com a posição dos inguisidores não deixa de entrar em mente, a avaliação que fazia das confissões dos réus perante a
contradição com a minha identificação com os réus. Mas não gos Inquisição era negativa, se comparada com queixas de pessoas
taria de insistir neste ponto. Um outro tipo de contradição pode anteriormente acusadas ou com depoimentos de tescemw1bas nos
fazer-se sentir a nível i ntelectual. Foi a ânsia de verdade por parte julgamentos9. Segundo Kieckhefer, estes documentos dão-nos uma
do inquisidor (a sua verdade, claro) q ue permitiu que chegasse até imagem mais fiel das crenças da bruxaria popular. Assim, a com
nós essa documentação extraordinariamente rica, embora profun paração por mim anteriormente sugerida (entre os j ulgamentos da
\ Inquisição e as notas de campo dos antropólogos) teria, do ponto
damente deturpada pela pressão psicológica e física a que os acu
sados estavam sujeitos. Há, nas perguntas dos juízes, alusões mais de vista do hisroriador, uma implicação negativa: a presença desses
que evidentes ao sabat das bruxas - que era, segundo os demono antropólogos mortos constituiria uma intrusão tão grande que aca
logistas, o verdadeiro cerne da feitiçaria: quando assim acontecia, bava por impossibilitar o conhecimento do pensamento e das cren
ças dos pobres nativos trazidos à sua presença. ·
?s ré� re p�tiam mais ou menos espontaneamenre os estereótipos ·
mqwsttonrus então divulgados na Europa pela boca de pregadores, Não perfilho de modo algum esta conclusão pessimista. Para
teólogos, jurisras, etc. 1
mostrar porquê, gostaria de ir mais longe nas minhas reflexões
sobre a analogia de que vos estou a falar. As suas bases são tex
É provavelmente por se tratar de um terreno escorregadio que
muitos historiadores preferem debruçar-se sobre a questão da per tuais. Em ambos os casos remos textos que são i ntri nsecamente
seguição (e não sobre os depoimentos dos acusados), analisando dialógicos. A estrutura dialógica pode mesmo ser explícita - é o
amos eras regionais, estereótipos inquisiror i ais, etc. - posição mais que acontece na série de pergunras e respostas que pontuam canto
tradicional, mas decerto mais segura, sobretudo se comparada com um processo inquisitorial como uma transcrição das conversas entre
a tentat iva de reconstituir as crenças respeitames à feitiçaria. Re o antropólogo e o seu informador -, mas pode também ser implícita,
ferências ocasionais às bruxas Azande não podem ocultar o facto de como, por exemplo, nas notas etnográficas referentes a um rirual,
serem muico poucos os escudos dedicados à fei tiçaria na Europa um miro ou um utensílio. A essência daquilo a que chamamos
que realmente se inspiraram numa pesquisa antropológica. O debate uma atitude antropológica, quer dizer, o confrontO entre culturas
levado a cabo por Keith Thomas e Hildred Geertz em Tbe journal diferentes, reside numa disposição dialógica. Os seus fundamentos
oflnterdisâpiinary History mostra como é difícil o diálogo entre his teóricos, a nível linguístico (e no psicológico), foram apontados
toriadores e antropólogos8. O conceito de prova parece ser a ques por Roman Jakobson numa densa passagem em que define «OS
tão crucial neste contexto. Os historiadores das sociedades elo passado dois traços principais e complemencares do comportamento ver
não podem indicar as suas fontes como os an tropólogos. Os fichei- bal» , dizendo «que o discurso interior é na sua essência um diálogo
<' q u e todo o discu rso incl irecto é uma apropriação e uma remode-
" Cf. l i . Geert7..-K. Thom;1s, <ci\n 1\mhlnl 'nlory of' l < ! · l i i ' Í ! I I I n11d MliJ.:Í<
.
" •
recentes, que um texto é apenas a prova de si próprio, das suas auréola mítica. Ambas afirmam ir todas as qui ntas -feiras a uma
próprias categorias? O cepticismo requintado de que enferma a reunião presidida por uma senhora misteriosa, Madona Horiente.
crítica da chamada «falência referencial» afigura-se uma armadilha Havia lá toda a espécie de animais, à excepção do burro e da rapo
perigosa15. Mais uma vez a comparação entre inquisidores e an sa; enforcados e decapitados também faziam parte da reunião; res
tropólogos parece proficua. Conforme mostrei anteriormente, uma suscitavam-se bois, etc. Mas o que eu gostava de discutir aqui era
realidade cultural contraditória pode transparecer mesmo de textos a líder feminina, Madona Hotienre. Em 1 390, uma das mulheres,
controlados como os dos processos da Inquisição. Esra conclusão Sibillia, disse ao inquisidor Beltramino da Cernuscullo que seis
pode ser também extensiva aos relatórios etnográficos. anos atrás tinha confessado ao seu antecessor, Rugero da Casale,
Um céptico extremista poderia achar ilegítima a palavra «rea que costumava ir «ad ludum Diane quam appelant Herodiadem»
lidade» ou mesmo «realidade cultural» ; mas o que temos num (ao jogo de Diana, a que chamam Herodíades), saudando-a com a
texto são vozes contraditórias e não realidades contraditórias. Qual expressão «bene stage (fica bem), Madona Horiente» . Esta série de
quer inferência deste tipo seria injustificada. Refutar uma tal nomes pode parecer um pouco confusa, mas a explicação é bas
objecção pode parecer perda de tempo; no fim de contas, a possi tante simples. Tanto Sibillia como Pierina sempre se referiam a
bilidade de integrar textos diferentes para escrever história ou et Horienre: a identificação desta com Diana e Herodíades fora ob
nografia reside na sua referência comum a qualquer coisa a que viamente sugerida pelo ioquisidor Ruggero da Casale, em cujo
teremos de chamar, faute de mieux, «realidade exterior». Penso, no \ texto eram mencionados os nomes de Diana e Herodíades. Escusa
entanto, que rais objecções cépticas apontam, embora de forma do será dizer que o segundo inquisidor, Beltramino da Cernuscul
disrorcida, para uma dificuldade que é real, e de que vou dar um lo, tomou esta identificação como um facto adquirido e atribuiu-a
exemplo esclarecedor. tacitamente a Pierina: foste - reza a sentença - <<ad ludum Diane
No final do século XIV, em 1 3 84 e 1 390, duas mulheres, quam vos appelaris Herodiadem» (ao jogo de Diana a que chamais
Sibillia· e Pierina, foram julgadas pela Inquisição de Milão. Os Hetodíades)18. É evidente que estamos perante a habitual projecção
processos perderam-se; restam apenas duas sentenças circunstan de estereótipos inquisitoriais nas crenças populares, mas neste caso
1
ciadas (uma delas citando in extenso uma outra anterior). Estes do as coisas são mais complicadas. Nestas figuras femininas da reli
cumentos foram descobertos e analisados por Ettore Verga num gião popular podemos detectar, subjacente, uma inegável unidade.
ensaio brilhante, escrito nos finais do século XIX16. Posteriormente Perchta, Holda, a dama Abonde, Madona Horiente, aparecem-nos
foram estudados por diversas vezes e de diferentes perspectivas. No como variações locais de uma deusa feminina única, profundamente
livro já citado, European Witch-Trials, Richard Kieckhefer inter ligada ao mundo dos mortos. A interpretatio romana ou bíblica (Diana
pretou-as como provas da existência de « festejos ou riruais popu ou Herodíades) sugerida pelos inquisidores não seria afinal uma
lares» 1 7 • Esta afirmação aparece-nos como uma homenagem ines tentativa de penetrar nesta unidade subjacente?
perada à famosa «tese Murray » , segundo a qual rinha realidade Não quero com isro sugerir que os .inquisidores fossem de al
física o sabat das feiticeiras. De facto, as confissões destas duas gum modo os precursores da mitologia comparada. Aquilo que
mulheres milanesas estão cheias de pormenores, envolvidos por uma pretendo salientar é um facto ainda mais .delicado: a existência de
uma relação de continuidade en t re a nossa mitologia comparada e
as interpretações dos inquisidores. O que eles faziam era traduzir, espaços d e terra ) 2° Mas Herolt não citou o texto d o Canon lite
. . . .
quer dizer, interpretar, crenças que lhes eram estranhas para um ralmente: usou-o como quadro de referência, ora suprimindo, ora
código diferente e mais claro. O que nós fazemos não é assim tão acrescentando pormenores com base na sua experiência pessoal, no
diferente, nem a nivel dos princípios nem a nível da prática, por seu trabalho de campo, por assim dizer. A alusão a montarem
que o material de que dispomos esrá, neste caso, contaminado pela certos animais desapareceu; foram incluídos sinónimos de Diana,
interpretação que eles lhe deram. Em certo sentido, a nossa tarefa de tradição alemã, não só pelo autor mas rambém pelos edirores; a
torna-se mais fácil quando os inquisidores não percebem - é o Diana, por seu lado, foi atribuído um exército (cum exercicu suo).
que se passa com os benandanti. Quando eles tinham mais facili O último pormenor é aquele que mais me inttiga. Não consegui
dade em perceber, o interrogatório (pelo menos em certa medida) encontrar-lhe qualquer paralelo, nem em textos clássicos, nem em
perdia os seus elementos dialógicos. Neste caso a fonte é menos rextos medievais. Pode, no entanro, explicar-se facilmente no contexto
valiosa, menos pura. do folclore europeu, relacionado com as crenças de Wild Horst ou
Afirmei: «contaminado pela interpretação que eles lhe deram». Wild Hunt21. No rexto de Herol t, Diana aparece-nos como con
Trata-se de uma afirmação bastante injusta para com a análise dutora de um exército de almas penadas. Eu viria a tomar este
antropológica dos inquisidores. Devia acrescentar: «mas também pormenor, numa clara bastante anterior, como prova da hipótese
clarificado» . Segmentos dispersos da inrerpreração, sugerida por por mim formulada de uma relação enrre este estratO de mitos
inquisidores, pregadores, canonistas, podem fornecer-nos elemen pré-sabáticos, já registados no Canon episcopi, e o mundo dos mor
tos preciosos, que irão preencher as lacunas da nossa investigação. tos22. Pode criticar-se o facto de o meu quadro de referências ser
Vou dar-vos outro exemplo. O frade dominicano Johannes Herolr coincidente com o de inquisidores ou pregadores como Johannes
incluía na sua colecção de sermões uma longa lista de gentes su Herolt, só que eles não eram intelectuais inocentes: tentavam, mui
persticiosas. Entre elas, «OS que acreditam (credunt) que durante a tas vezes com sucesso, induzir as pessoas a acreditar que o que eles
noite Diana, em vernáculo chamada Unholde, quer dizer, die se ensinavam era a verdade. Será que esta conrinuidade enrre provas
lige Frawn (as mulheres abençoadas), marcha de noi re. com o seu e interpretações primitivas quer dizer que nos deixamos inevita
exército, percorrendo grandes distâncias (cum exercitu suo de nocte velmente enredar na teia de categorias que os antigos antropólogos
ambulat petmulta spacia)». Esta citação foi extraída de uma edi - pregadores e inquisidoces - usavam?
ção dos SennoneJ de Herolt, impressa em Colónia, em 1487. Edi Esta questão reflecre, a um nível mais circunscrito, o tipo d('
ções mais tardias, publicadas em Estrasburgo, depois de 1478, e objeco do cepticismo extremisra que referia anreriormente. Deste
em 1484, acrescentariam aos sinónimos de Diana os de Fraw Berthe modo a crítica da « fa iácia referencial>> perderia as suas implicaçór·�
e Fraw Helt (como substitutos de Unholde)1 9 . O texto .de Herolc epistemológicas universais, apontando só para algumas caracretísticas
repercutia obviamente o famoso Canon episcopi: há mulheres que específicas do material de investigação com que estou a trabalhar.
«credunc se er profitentur nocturnis horis cum Diana paganorum Mas nem sequer este cepticlsmo moderado se j ustifica. Podemos
dea et inn umera mulcirudine mulierum equitare super quasdam testar as nossas interpretações num contexto comparativo y uc (
bestias, ec mui ta tetrarum spacia in tempestae nocti s silenrio per mui�;o mais lato do que o contexto de que os inquisidotes dispu ..
transire. . . » (acreditam e confessam em horas nocturnas montarem
cercos animais com Diana, deusa dos pagãos, e com uma enorme J.n Tradu<;:to in,r;lcsa de ]. B. Russd, Witchcmfl in th11 Middlc Ag�.r, .fr,,m <:
riais23. De qualquer modo, a relat1va ocorrência de um fenómeno ressados em explorar as implicações teóricas do seu trabalho. Os
não pode ser interpretada como indicador da sua relevância histórica. colaboradores de jornais como History and Theory são a maior parte
Uma leitura atenta de um número relativamente pequeno de tex das vezes recrutados entre os filósofos, que debatem questões de
história de um ponto de vista um tanto distanciado, dado que
tos respeirantes a uma crença determi nada pode, a meu ver, dar
mais fruros do que um amontoado de documentação repetitiva. estão mais familiarizados com livros de história do que com a prática
23 G. Hennigsen, «The Ladies from Outside: Fairies, Wircbes and Povec ' Yt·rs:io n:mock·lada d,· <1111 trabalhn antl'riorrncnt{' p<� hlicado t:m Tjjdschrift
cy», in Early Modern Síâiy, a ser publimdn ua� at:cns elo m16quio svbfl· h:iriça . . t'O/JI" (liJIJ.rl!f!c,�o. I 'JIH\, l 'l'· � 1 •1
ria rea l i zado, e m Estocolmo, e m 1 9R<I. 1 ' r/, 1'>11'<'., l ' ltí l , I ' · ;"l,
< "it11do por I ; , 1 ) 1 1 1 1 1 1 til 111 r ,,.,ll,l;tl I 1111111
216 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAJ>h'Ul.O VIII 217
mente np1cas, extraídas de livros de história bem conhecidos que Aristóteles faz notar que Heródoto poderia ter escrico em verso
sem curar de saber que espécie de investigação concreta está por sem deixar de ser um historiador - net medida em que fez sobre
detrás deles. Mais recentemente, foi sugerida uma abordagem a realidade afirmações que considerava verdadeiras.
semelhante da metodologia histórica, partindo, wn tanto paradoxal Hoje em dia palavras como «verdade» (ou « realidade») estão
mente, de ptessuposros diferentes, para não dizer opostos. Um ensaio fora de moda. Os historiadores· aprenderam com os fil.ósofos, os
como o de Hayden White, «The Burden of History», publicado, críticos literários e os antropólogos simbolistas a evitar toda a espécie
em 1966, em History and Theory, pode ser rerrospecrivamenre en de ingénuas «falácias referenciais». A distinção entre narrativas de
carado como um sinroma do aparecimento de uma nova atmosfera ficção e narrativas históricas está a tornar-se cada vez mais confusa.
inrelecrual. «Este campo supostamente neutro entre a arre e a ciên Muitas objecções, ranto de natureza intelectual como moral, se
cia•>, escreveu Whire, «que muitos his toriadores do século XIX rêm levantado contra esta atitude neocéptica. Não simpatizo com
ocuparam com tanra autoconfiança e tanto orgulho, dissolveu-se ela mas, como disse uma vez Bertolr Brecht ao seu amigo Walter
com a descoberta da natureza criativa que é comum às realizações Be �jami n, ·«devemos avançar partindo de más coisas novas, não de
da arce e da ciência. » 2 O pêndulo tinha começado a deslocar-se do coisas boas do passado» . Neocépticos ou derrotistas obrigam os
neoposirivismo para uma atitude agressivamente anti positivista: mas hisroriadores a olhar mais de perto para alguns dos pressupostos
a ênfase esrava ainda (e aré com intensidade maior) no produto fundamentais do seu trabalho.
literário final da acrividade do historiador. Alguns anos mais tarde, \
em 1973, Hayden White tentou demonstrar, no seu livro Metahis 3. A nível formal, não há a menor diferença entre uma frase
tor-y, que as obras históricas escritas por Micheler, Ranke, Marx,
falsa e uma frase verdadeira. O mesmo pode dizer-se quanto à
Tocqueville, Burckhardr, tinham sido inspiradas por modas espe relação entre as narrativas de ficção e as narrativas históricas. As
cificamente lirerárias. «Todos os grandes historiadores e filósofos potencialidades literárias desta analogia foram brilhantemente
da história que tenho estudado» , lemos no final do livro de White, exploradas por Roger Caillois nwn conto (Ponce Pitate, 1961) cen
« revelaram um ralento para a narrativa histórica 1'ou uma firmeza rrado sobre as incertezas morais sentidas por Pilatos duranre a longa
de visão que rornaram a sua obra um sistema de pensamento noite que passou anres do julgamento de Cristo. Para convencer
eficazmente fechado, incomensurável com quaisquer outras que Pilacos a condenar Cristo à morte, uma das personagens fez uma
surgissem em oposição a ela. »3 A partir do momento em que longa série de profecias, incluindo igualmente acontecimentos
White decidiu não fazer caso da ínteracção entre «imaginação importantes e triviais (rodos verdadeiros) que se seguiriam à morte
hisrórica» e prova histórica, entre um artefacto li terário e história de Cristo. Por fim, inesperadamente (pelo menos para o leitor),
como actividade de investigação, a sua conclusão não era impre Pilares decide libertar Crista. Os seus discfpulos repudiam-No, e
visível. toda a história do mundo segue um caminho diferente. A conri
guidade entre ficção e hisrória cria um efeito de estranheza inquie
2. White gosra de nos lembrar que rodo o trabalho histórico é tante, gue faz lembrar aqueles guadros de Magritte que mostram
«uma estrutura verbal na forma de wn discurso em prosa narrati semcinterrupção uma paisagem e o s�u reflexo num espelho parrido.
va»4. Nós preferiríamos evocar aquele famoso passo da Poética em Dizer que um texro hisr6rico, como narrativa que é, partilha
alguns elementos com um texto de ficção não passa de um truísmo.
2 Cf. H. Whice, «The Burden of Hisrory», in Hi.rt� cmd Theory, V, 1966, É muito mais i nteressante, penso eu, dar um passo em frente pro
pp. 111 ss.,parricularmente p. 112. curando indagar porque se percepcionam como reais os factos contidos
� Idem, Metahist()ly. Tbe Historicctf [mo(lgination í11 Nimtecnth ·Cl!lltllry /]tl.rope, num texto histórico. Este efeito é normalmente produzido por ele
Balrimore, 1973, p. 432.
mentos que tanto podc·m ser extratextuais como textuais. Concen
4 Ibidem , p. lX
tr;J r- lll(' ·t'Í �ohH· CJ.': M t i l l H ls, !"('l l l ; l t l l o ;lpl'('S< " n m r n l g uns dispositi-
218 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPÍTULO VIII
vos, sugeridos por convenções literárias, com os quais historiadores tividade, energia» ; enargeia significa «clareza, nitidez, viv aciJ ad t' · · .
de vérité que tem sido encarado como elemento inerente ao seu formação do nosso trabalho intelectual explica a sobrevivên<:Í<\ c lc
4. Tomemos um fragmen to das Histórias, de Políbio (XXXIV, reconstituir o seu significado - ou melhor, o conjunto de s i gn i h
4, 3), ci tado por Estrabão. No i ntui ro de demonstrar a veracidade cações que lhe estão ligadas.
de Homero, Políbio escreve: <<Agora o fim almejado pela história é Em Homero não se encontra enargeía mas enarges - urn adjvc
a verdade, e assim vemos o poeta a mencionar no Catálogo d.os tivo referido à «presença manifesta» dos deuses (Il., XX, 1 3 1 ; ()ti,
Navios os aspectos pecul ia res de cada l uga r , dizendo de uma ci XVI, 1 6 1 ), e relacionado com argos, significando por sua vez « b l"<l l l< . ' ·
dade que é "rochosa" , de outra que está "na fronteira", de outra dato» � como um ganso, como um boi - o u «ligeiro >> . S t: ,l � tl l l > 1 . .
que "cem muitos pombos", de outra que está "à beira-mar"; e o Piette Chanttaine, «il faut admettte à 1' origine une no t io 1 1 r ( 1 1 1
fim que pretendeu atingir com a localização é a vivacidade, como exprime la blancheur éclaranre de l'éclair er en même t:em p�: I n
nas suas cenas de combate, enquanto o fim do miro é agradar vüesse7 ''. Consoante os contextos, enarges pode ser traduzido 1 •1 11
ou maravilhar .. . » Na oposição entre história e miro , portanto, «claro» ou até «evidente» . Tal como enargeia, está semp re rd(·rld� >
Homero está seguramente no campo da história (e da verdade), ao campo da experiência direcra. Tomemos um outro fragn � < 'l t l � >
porque o objectivo (te/os) da sua poesia é a «vivacidade» (enar ele Polib.io (XX, 1 2 , 8): «Avaliar as coisas a partir do que se O I IV I I I
geian). dizer não é o mesmo que avaliá-las a partir d o que efec ti vanw l i l l '
· se presenciou. Há nisto uma grande diferença. Em rodos os as� ' " 1
Em alguns manuscritos encontra-se energeian em vez de enar
geian (sendo o último, em conformidade com o texto, uma alterna tos, uma certeza fundamentada no testemunho dos olhos (lw I 1 1 1 .1
tiva muito mais convincente5). A mesma confusão ocorre na tradu ren enargeian piseis) é duma enorme importância.» Comp:u',ll l c l"
este passo com o de Homero aci ma referido pode-se ver: lf'"
ção manuscrita dum passo da Retórica, de Arisc6 eles ( 1 O b, 36), as � I)
sim como em algumas discussões dos séculos XVI e XX6• As duas em ambos os casos se presume um contexto relacionado c·c u 1 1 u
palavras, todavia, nada têm de comum: energeia significa «acto, ac- conhecimento histórico; 2) que em ambos os casos se toma m. rn:''''
como garantia da verdade his tórica.
Supunha-se nos tempos clássicos que um hisroriador l f t l l l',
1 Cf. F. W. Walbank, A Hstorical
i ComrJt11nta1-y on Polybim, III, Oxford, mitia a verdade elo que dizia fazendo uso da ertargeia para 8<'1J:;d,,
lizar e persuadir o leitor. Ertargeia era, de facto, um conn·i 1 o , , ,
1979, p. 5 8 5 (baseado em P. Pédech, La méthode hiJtoriqtte de Polybe, Paris, .
1 964, p. 5 8 3 , nora 389); idem, A Hi.rtorical Commentaty, cit., n;· Oxford, 1967.
nico: segundo o autor do tratado Do Sublime (XV, 2), ;_L l 'a l .• v 1 ,,
p. 496 (e P. Pédech, La méthode, cit., p. 2 5 8 , nota 1 9). Ver, contudo, A. Roveri ,
Stttdy stt Polibio, Bolonha, 1964, pp. 75-77, e acima de rudo G. Schepens, «Emphasis define a aspiração específica dos oradores, naq ui l o qw:: os d i::1 i t • ll ' "
und enargeia in Polybios' Geschichtsrheorie», in Ri1JiJta storka dell'arttichità, 5 , dos poetas, que procuram antes fascinar. Na tradição J't'Ulfi\ o i 1.11 i
1975, pp. 1 8 5-200. Para uma leitura diferenre de XXXIV, 4 , 3 , de Políbio r·na encontramOS V<Í.riaS tentatiVaS de craduzÍt 0 !'CI:ITlO gl't',l\<1 t'l/,1/
(energeia em vez de enargeia), cf. K. Sacks, PolybittJ on the W1·iting of HiJto1:y, Ber geia. Quinriliano (lmtittttio Ortttoria, TV, 2, n3) sug<.:r(' como c·c pt�
keley, 1 98 1 , p. 154, nota 80.
valente «eu iclencia i n narration<· » , ..'i'.a na narrariv;c .. .
«vivt ' � '· " ' ' ' '
6 Cf. A. Wartelle, Lexique de ta «Rhétoriqtte» d'AriJtoÚ, Paris, 1982,
pp. 142, 144; P. Pirani, Dodiâ capi pcrtimmti all'arte historica dei Mascardi, Ve
neza, 1646, pp. 56, 84 (possivelmente um erro de impressão); S. Leontief Al 1 ( : 1 . P . C:h,ll l l l l l i nc·. I lll ilfi!I/J,Iiu• rfV!Indfi,�Íilfl' tlt /,J I.JJtgm• .<! 1'1'11/lir, 1 . 1 ' l rh,
pers, «Ekphrasis and Aesrheric Attitudes in Vasari's Livcs » , in )o11mal 1!{ the I Wtll. J 1 l l l , 1 . y,,,,, ,,, ' '"" I "''" I l M u l dc•t , • < ;o< t o · t .llli'llf'c•••f•,c·n , , , l hu 1111>1
Warb11rg and Courta11ld lnstitmes, 23, 1 96 0 , p. 194· , nota I H , c l '·t·utpado por ( lc l y•,>�'f ' " · 1 1 1 /\IJI'I'!IIdlo 1 Mll l o /U/1, / ' I , ' ' I ·1, FJ/tll.l!<'> l(,fp t' lll"lll lon.ido 1 "11
F. Junius, Tbe Painting of the l wármt.r, Londn:s, I<• ·iH, p . .·�oo (m�rp)ct): ma·: Vl'j<t I : 1 1 , M l l)>, l i < t , Plo /IIJIIII•IIr • llnlcll ll(ll ,/, /, I INI/IH/c•�lr ll{tflo(l•• .f, ., ( o l o l \ , l '" '· f ·t, 1 • 11 I
-se O texto original, De /IÍcttmt t'CtCrf/111, ,1\ m s l c•ro l:io, H i;\"/. 1 I H', (1'11,11:,:1•ir�).
'·
220 EKPHRASIS E CITAÇÃO
CAPITULO VIII 22 1
quanto me é dado perceber, explica ele, «euidentia in narraríone
escreveu um longo rrecho sobre margeia11 • Este efeito estilístico,
. . . esc quidem magna uircus, cum quid ueri non dícendum, sed
diz ele, nasce «duma narração exacra, que não descuida nenhum
quodam modo eriam ostendendum esc (viveza na narrativa. . . é,
pormenor e que não suprime nada» . Citando uma comparação de
sem dúvida, uma grande qualidade sempre que algo de verdadei
Homero (Il., XXI, 257), explica que «a comparação deve a sua
ro deve ser não apenas dito mas, de cerro modo, mostrado)» . Nou
vivacidade (enargeia} ao facro de todas as circunstâncias concomi
tro passo (VI, 2, 32), observa que Cícero usava, como sinónimos
tantes serem mencionadas e nada ser omitido>> . Mais rarde, porém,
de ertargeia «inlustratio et euidentia . . . quae non tam dicere uiderur
Demétrio alargou a sua definição, notando que mesmo as palavras
quam estendere, et adfectus non alirer quam si rebus ipsis in tersi
cacofónicas ou onomatopaicas, como as usadas por Homero, eram
m�s seq_ue �tu� (que parece não tanto dizer como tornar real e cujo
exemplos de «vivacidade>>. Comentários deste tipo não deixam de
efe 1ro nao e d1ferente do que teríamos se estivéssemos fisicamente
estar relacionados com o tema de que estamos tratando - a história
presentes» )8. De facco, Cícero (Partitiones Oratoriae, 20) define in
e os seus métodos. A identificação entre margeia e acumulação de
lustris . . . oratio como « haec pats orationis, quae rem constituat paene
pormenores lança uma luz inesperada sobre aquela aspiração pe
a � te oculos (esta característica do discurso que quase põe as coisas
culiar ao hisroriador grego: ter registado todos os acontecimentos
d1ante dos olhos)» . O autor anónimo da Rhetorica ad Hermnium
(ou todos os acontecimentos relevantes) na sua narrativa. Numa
(IV, 68) usava termos semelhantes para definir demonstratio: «De
\ sociedade sem arquivos, em que a cultura oral desempenhava ain
monstratio est, cum ita uerbis res exprimitur, ut geri negotium et
da um papel predominante, Homero proporcionava aos historiado
res �nte oculos esse uídeatur. .. Stacuit enim tem cotam et prope
res um modelo, não só estilístico mas também cognitivo12.
pon1 t ante oculos.»
Podemos lembrar aqui o famoso capítulo que abte aquele livro
Demonstratio. Os equivalentes da palavra latina nas modernas
fecundo, Mimesis, em que Erich Auerbach confrontava dois tipos
línguas europeias - demonstração, démonstration, dimostrazione . . . -
diferentes de narrativa: a abundância analítica de Homero e a so
oculram o seu núcleo rerórico sob um véu euclidiano. Podemos
briedade sintética da Bíblia. O papel desempenhado pelo estilo
ver, no entanto, que demonstratio implicava o gesto do orador apon
narrativo de Homero no aparecimento de uma nova maneira de
tando para um certo objecto inexistente, tornado visível - marges
representar o cotpo humano, assim como no aparecimento da história
- ao seu auditório através do poder quase mágico das suas pala
como gênero literário específico, foi posto em evidência, respecti
vras9. De modo semelhante, o historiador estava apro a transmitir
vamente, por Ernst Gombrich e Hermann Strasburget13. Este último
a sua própria experiênca - directa, como testemunha, ou indirec
realçou nitidamente as implicações teóricas da enargeia1 4 • Segundo
ra - pondo uma realidade invisível debaixo dos olhos dos seus
·7 l �ítores. Enargeia era um meio de realizar autopsia, ou seja, visão
.
on
l i Cf. W. R. Robercs, Demetrius
• \ daecta, pela acção do estilo10. Style, Híldesheim, 1969 (1." ed. 1902),
pp. 209 ss.
Veja-se também D. M. Schenkeveld, Studies in Demetriu.r on Style,
Amsrerdão, 1964, p. 61; B. Weinberg, «Translarions and CommenÚries of De
5 . Também o autor do famoso tratado Do Estilo - Demétrio
meuius o� Sryle ro 1600: a Bibliography» , in Philological Q11artedy, XXX (Outubro
durante muito tempo identificado com «Demetrius Falereus» _'
de 195 l), n.0 4, pp. 3 S 3-80; Catalogm tramlaJionum et comentariorum. . . , ed. por
P. O. Kcísreller e F. E. Cranz, li, Washington DC, 107 1 , pp. 27-41 (B. Wein
c
Cf. Qui � riliano, lnslitNtion Oratoire, como IV, l ivros VI e VII, ed. por berg); G. Morpurgo-Tagliabue, Demetrio: del/o stile, Roma, 1980.
1 7 Cf. L. C'lnfora, Totalità e selezione mlla storiografia ciamca, Bari, 1972.
J. Cous ln, Pans, 1977, pp. 194-195 (o edíror assinala juscamenre o papel de
·� Cf. H . H. Gom br ic h , Arr. rmd Illusion, Londres, 1962, .pp. 1 10 ss.
sempenhado pelo conceito de margeia no pensamento histórico gr('go e romano).
9 Cf. J. de Romilly, Magic and Rhetoric in At1âcnt Grcot:e, Cambcidge) Mass. , . L"hichte durch die antike
1 � Cf. l-1. Srrashur!\t'r, Die Wc.rcr�sbe..-t irmmmg det· Gllr
1975. (,'ntbil'biJI< hrrd}(mg , W i•·:;l M< l<-1 1 , l ')7 H (Si 1 Wnl(slx-richtt: de r wissenschaf tlichen
lo Cf. , sobre esre conceito, G. Srhepl'll.� , /.' �t/.llt/Jj,.riev r/. 111.1 {, , lilfthorlc tle.r bi.r C ; , .,ellsc l w l l 1111d dc·1• .Jol1111111 Wnl l'l\1111� ( ; oc·t ll(' I llliv<·rs i l a l l'ranldi1r1/Ma i n , nand
tnriefiJ l!,rrtr.)' rl11 V'"" .ried� m.�tmt .f. <:., llrux1·lw�. [ I)HO. • . . Jul"I'�IIIJ\,
. l ' !( d o . Nt 1 1. 1 '1'· / ! ! , 110111 I . / 1 ! , 11 11111 I N 1 1 nlil I W • ·�p•·•"l ivn rpai ..l
l i H I I IIld,l. \'1 Jl1 ��· E l h tl'l . / >,• ,,., . ,h/JI /n:rlllml ,/,1 'f 1 1 1111• , llt dhtl 1 · 1 � 1;
222 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPÍTULO Vlll 223
ele, o conceito adquiriu na época helenística um significado novo, - uma demonstratio apontando um objecto invisível tornado
-
mais técnico, quando historiadores como Durius de Sarnas e o seu visível, palpável, até ao «cúmulo da enargeia» , pelo podet da
continuador Filarcos criaram uma nova espécie de historiografia, ekphrasiJ. Podemos agora perceber porque é que Plutatco, no seu
inspirada nos poetas trágicos e centrada nos efeitos miméticos0 . tratado Sobre a Fama elos Atenienses, pôde comparar uma pintura de
Eufranor, representando a batalha de Mantineia, com a descrição
6 . Até agora, a enargeia tem surgido como um conceito situado da mesma batalha feira por Tucídides. Depois de ter louvado deste
na fronteira entre a historiografia e a tetótica. A esta átea semân último a «vivacidade pictórica» (grapbike enargeia), Plutarco demo
tica há que acrescentar a pintura, é o que se pode inferir duma ta-se a explanar as implicações teoréticas desta comparação. Comen
comparação existente num diálogo de Platão, o Político: « . . . A nossa tando o famoso dito de Simónides sobre «a pintura (como) poesia
conversa, tal como o retrato de uma criatura viva, parece ter um que não fala e a poesia (como) pintura gue fala», escreve: «Quanro· 'i
esboço bastante bom, mas não ter ainda recebido a vivacidade (enar
geia) que lhe vem dos pigmentos e da combinação das cores. » Estas
implicações espec ífi cas e quase técnicas da enargeia ressaltam ple
às acções que os pintores representam como se estivessem a decor
rer, narta-as e regista-as a literatura depois de tetem decorrido.
Mesmo quando o artista, com a cor e o desenho, e o escritor, com
J
namente de um outro texto: um passo extraído das Imagens, de as palavras e as frases, representem os mesmos objectos, diferem
Filóstrato, o .Jovem, wna série de descrições (ekphraseis) de objectos todavia no material utilizado e no modo de figuração: e apesar de
l
\
artísticos, teais ou fictícios. Uma delas, um escudo representando \ tudo o objectivo final desejado é um só e o mesmo pata ambos; e
Pirro, supunha-se imitar o primeiro espécime deste género literário: o mais eficiente historiador é aquele que, através de uma vfvida
a descrição feita pot Homero do escudo dado a Aquiles. «E se tu representação das emoções e �os caracteres, faz que a sua narrativa
notares também», escreve Filóstrato, «O rebanho de vacas que se se pareça com uma pintura. E fora de dúvida que Tucídides se es- ,
encaminha para o pasto seguido pelos pastores, não te vais de certo força constantemente por transmitir esta vivacidade (enatxeia) aos
maravilhar do colorido, embota todo o quadro seja feito de ouro e seus escritos, sendo o seu desejo fazer do leitor uma espécie de es
estanho; mas o facto de poderes como que ouvir as vacas mugindo pectador e produzir vivamente naqueles que se i nteressam pela sua
na pintura e de o rio, em cujas margens estão as vacas, parecer que narrativa os sentimentos de assombro e consternação que foram
emite um som de água caindo - não é isso o cúmulo da vivaci sentidos por quem esteve presente.>>
dade?»
Esta pergunta retórica pode ser equiparada a um gesto retórico 7 . A atitude de Plutarco relativamente à ekphraJis enquanto
aspiração da narrativa histórica tem sido ulrimamente abonada pelas
G. Avenarius , Lukians Schrift zur Ge.rchichtsschnibung, Meisenheim/Glan, 1956, maiores autoridades em historiografia clássica. Segundo Hermann
pp. 1 3 0 ss. E11arg�a é mencionada em ]. Martin , Antike Rhetorik, Munique S tasburger, ekphrasis era um conceito que cobria uma área muito
1974, pp. 252-53, 288-89. Pa a uma. análise mais completa veja-se H. Laus be rg,
r vasta, na m edi da em que incluía não só as patéticas cenas de batalha
Handbuch der literm"i.rchen Rhetorik, Munique , 1960, pp. 810-819. Veja-se tam ou a descrição da peste em Atenas feita por Tucídides, m as tam
bém G. Zanker, <<Enargeia in the Ancient Criticism of Poetrp, in Rheirtisches
bém descrições geográficas e etnográficas - ekphra_seis tou topou16•
MuJ"eum, NF 124, 1 98 1 , pp. 296-3 1 1 ; P . Galand, L'"ena.rgia" chez Po1itien, in
Biblioth�que d'HurnaniJme et R.trtniumtre, XLIX, 1987, pp. 25-53 (ambos muito
Como vimos, a enatxeia era a aspiração da ekphrasis e a verdade o
úreis embora não tratem de his toriografia). Sobre as implicações filosóficas da enar efeito produzido pela enargeia. A sequência era a seguinte: narrati
geia, c( A. A. Loog, «Aischesis, Prolepsis and Lingui s dc Theory in Epicurus», va histórica - · descrição - vivacidade - verdade. Poderíamos
i n Bulletin of the lnstittt.te of "Ciassical Studie..r, Looches, 18, 1971 . pp. 114-133. r<'�umir a diff'rl'nça t: n t rc o nosso conceito de história e o conceito
I) Além de H. Strasburgec, Die Wesm.rbe.rJimmung, cic, veja-se a discussão
d:íssico norando < ] U I ' , d(' ac-ordo com Stmshurgcr, a verdade histól"ica
entre G. Schepens, Emphasis, cir., e K. Sacks, J>olyhiu.r, cic., p. H9 ss. 13il>Uo
gmfia recence sobre Duris em n. Gcnri I i-G. C<·ITÍ, ,\'tfn't<� c bio,<!l'tlfit! nd /ll'!ll'il·m
mltÜ:o , H11 1.·i , 1 9H l
I I
224 EKPHRASIS E CITAÇÃO
CAP[TULO VIIl 225
li
226 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPiTULO VIII 227
em cuja realização esteve presente aquele que narra)» . Flaco ainda discípulo sem nome era certamente o próprio Speroni: Zabarella
tinha algumas dúvidas sobre a justeza desta distinção. Ela reapa actua no diálogo como o alter ego do autor. Se os comentários de
rece alguns séculos mais tarde em Isidoro de Sevilha (Etymol. , I, Pomponazzi estavam de algum modo relacionados com o seu ensi
44): «Historia», diz ele, «est eorum temporum quae uidimus, no académico sobre Aristóteles, isso não sabemos. Em todo o caso,
annales uero sunt eorum annorum quos aetas nostra non uidit. » a tese principal de Pomponazzi nã.o era ambígua: os anais, não
A história era, certamente, um empreendimento muito mais com obstante a sua rudeza estilística, mereciam ser mais apreciados do
plexo do que os anais, na medida em que mostrava (como diz que a história, pois que são o verdadeiro fundamento dela. A famosa
Aulo Gélio, invocando a autoridade de Semprónio Asélio) não só o analogia entre as estátuas de Sócrates e de Sileno, apontada por
que acontecia mas também «quo consilio quaque ratiqne (com que Alcibíades no Simpósio de Platão, era referida por Pomponazzi aos
fim e por que razão)>> acontecia. anais, como género literário. O não serem atraenres, devido à rudeza
Durante o século XVI esta hierarquia começou a ser subverti do estilo e à falta de uma real estrutura narrativa, esconde um
da: o papel da história foi desvalorizado com a exaltação da impor grande tesouro, algo de mais precioso do que o ouro e as jóias: a
tância dos anais . Um dos mais antigos exemplos desta atitude verdade. Embora sejam de forma fragmentária, semelhantes, por
é-nos dado por Sperone Speroni. Nascido em Pádua, conhecido tanto, às ruínas de templos e estátuas romanas, os anais deviam ter
como autor de uma única tragédia, Canace, e também como co \ preferência sobre as imagens, atraentes mas não dignas de fé, que
menrador da Poética de Aristóteles, Speroni foi na sua juventude a hisrória oferece. Termi nados os comentários de Pomponazzi sobre
um discípulo do famoso filósofo manruano Pedro Pomponazzi . Num a história, seguem-se alusões que não são muito claras. Em todo o
longo diálogo Acerca da Hist6ria, publicado postumamente em 1 596 caso, a posição de Pomponazzi foi calorosamente apoiada por Zabarella
Speroni imaginava uma discussão enrre Silvio Antoniano (huma� (ou seja, por Speroni). Isro implicava a rejeição de uma imagem ri
nisra e, mais tarde, cardeal), Paulo Manuzio (filho do famoso edi gidamente hierárquica da realidade, centrada na retórica. A um
tor veneziano) e um jovem de nome Gerolamo Zabarella, presu pomposo elogio da linguagem como o mais esplendoroso instru
mivelmente relacionado com Giacomo, o conhecido professor de mento dado aos seres humanos seguia-se, no Diálogo sobre História,
? losofia aristotélica na Universidade de Pádua. Na parre mais de Speroni, a surpreendente observação de que «língua» não era
apenas o grego e o latim, mas rambém os obscuros dialectos fala
Interessante do diálogo, Zabarella dá notícia detalhada de um co
mentário histórico não publicado, escrito por Pomponazzi muitos dos em lugares como Valtellina ou Valcamonica. Aqui reconhe
anos antes: um texro que tinha permanecido ignorado dos discípulos cem-se as .ideias de Pomponazzi. Como se pode ver no diálogo de
de Pomponazzi, mesmo dos que lhe eram mais chegados (incluin Speroni Sobre as Diferentes Línguas, ele costumava dizer que Aristóteles
do o cardeal Gaspar Contarini)18. Uma cópia deste comentário foi
dada a Zabarella por um outro aluno de Pomponazzi, ainda vivo rido implica que Speroni (nascido em 1 5 00) esrava em 1586 a trabalhar na
primeira parre de Dell'hiJtrtria: ver as observações do editor em S. Speroni degli
(em 86), em Pádua, fei ta por ele próprio quando jovem19. Esre
Alvaro tti, Ç)pere. . . tratte da ' mss. origina/i, Veneza, 1740, II, p. 328; V, p. XLIX.
Uma alusão a Ticiano no pretéri to (<<COme Titian solea. . . )>, P· 327) parece implicar
18 termimtS post
Um tanro sutpreendentemence, esta obra perdida não foi objecro de aten a dara da morre de Ticiano - 1 5 7 6 - como qt<em: o passo está
ção por parre de estudiosos de Pomponazzi, rais como B. Nardi ou P. O. Kris omisso em Vat. lat. 6528, uma miscelânea que inclui (cc. 1 3 5 r., 1 5 5 r.) uma
1.: prov�velmence llnterior, versão de Dell'hi.rtoria, que não foi idemificada
L
teller. cw:ra,
1 9 Cf. Sper ni,
.
<:_ f!ialogi, Veneza .1 596 ,
pp. 361-502, especialmente pp. 372- nem poc B. Wcínberg (A History, ci , I, p. 14) nem por P. O. Krisceller (lter
-373. Esra ed1çao posruma (SpetonJ morreu em 1588) inc l uía muiros di á Jo,.os ittdíotrn , 1 1 , T.t· idcn, 1�<•7, p . \tiO), que se apoin em Weinberg. Um fragmento
não publicados. B. Weinberg, não conseguindo enwncmr. «nenhum fllnda m ,:11 d< · um diálugo sclhn h111 1Ír i�r < 'll l'rt· t ;,,�l'ar C :o n 1 n r i n i l' Trifon (;abriek (ver
·
r o para arribuir uma dam aproximada» , udm i t i u qut Ddl'bi.rtori" 1 ív< ·s.�c· sido lij>t'l'(', 1 i t . , l i , l 'JI• � I \ 1'1()) <'�hl 1!" 1 111 t o ll!lldo> """ l l lll:t oh111 .U I I < 'I'Ío>r 1>nhrç n
escri ta muiws anos anres (/\ Hi.rtnry of I.im;,ry ( :ri/h i.1111 i11 lhP Jt.t!�.tn Nm,1i.r l l l ",l l lCl ll\'lii ii i O , < i ll'lll l ll l lt't l " l " " :O.J •1' 11 l l l l 1 101 '.t lol '!fro/ioplo l ( o "il r i l . l i'J II l 'l/1, vc·1·
scmce, Chicago, 1.96.\ ! , f>P· :H I "il.). Nu n·:diclll(lc , i '( "''�' " • o l'·•�•:o ,,. í n 1 1 1 1•d1 ilf'olr', 1 1 1 , I , I' \� \) •' • l lvr• l n trll i l ) '' r . lldot.
228 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPiTULO VIII 229
deveria ser craduzido em lombardo para o tornar acessível a um que situado na Anriguidade - mais próximo da erudição do que
público mais vasto e menos selecrivo. da retórica. Na introdução geral aos seus Annales Ecc!esiastici, pu
As ideias de Pomponazzi sobre a história parecem cer sido cão blicados pela primeira vez em 1 588, Baronio declara cer rejeirado
pouco convencionais como o eram sobre oucros assuntos, rais como o costume, generalizado entre os historiadores pagãos, de incluir
as línguas, a imortalidade ou os prodígios religiosos do espírito. longos discursos fictícios, cheios de ornamentos reróricos, uma vez
O seu primeiro discípulo, Speroue Speroni, tomou por vezes uma que desej ava seguir o conselho de Crisro: «Sit aucem sermo uescer:
posição moderada: sobre os discursos, por exemplo. Seguindo o Esc esc, non non» (Maceus S , 3 7)
exemplo de Tucídides, os historiadores do século XVI que tinham dos anais (sabemos que alguns anos ames projeccara escrever algo
formação humanista costumavam incluir nas suas obras longos e diferente, uma Historia ecclesiastica controttersa) foi devida a crirérios
cerimoniosos discursos atribuídos a generais, embaixadores, reis. que não eram só literários mas também religiosos� Por razões se
Uma vez que a hisroriografia era concebida como um empreendi melhantes decidiu citar, sempre que possível, os termos exaccos de
mento eminencemence retórico, os discursos eram encarados como antigas fontes, não obstante a sua repulsiva falta de elegância
o ponto alto de uma obra histórica correcca. A insegurança de ( «quamuis horridula ec incomposita>> ).
Speroni relativamente a este assunto é rípica da sua acicude pe A coexistência entre a piedade cristã e a retórica, entre ser
rante a retórica. Em cerco sentido, diz ele, os discutsos de ficção ......,_ chris tianus e ser ciceroniantts foi muitas vezes diflcil - pelo menos a
não fazem parte da tarefa do historiador: mas podem ser admiti julgar pelo sonho de São Jerónimo. A decisão de Baronio quanto
dos na sua função ornamental, como as éstáruas e os frescos que à rejeição de toda a espécie de discurso fictício fazia claramente
:- adornam os muros dum edifício. Deve ser claro, no enranto, que o parte de uma estratégia geral anti-retórica. Para ele, a busca da
! historiador encara estes discursos como realizações teóricas, não mmo verdade não era compatível com um discorrer suave e estilística-
transcrições de palavras realmente pronunciadas por generais no . mente homogêneo. O efeito dissonante criado pela citação de ve
'-- campo de batalha - caso em que ninguém acreditaria nelas. lhos e obscuros textos era acentuado pelo recurso a notas. Baronio
E óbvio o valor sintomático desta posição. Dir-se-ia que Speroni é, sem dúvida, um dos mais antigos historiadores a usar este sis
acreditava que havia uma obrigação mocal associada aos sinais de tema de referência21. Achava que isto era muito mais eficaz do que
citação: estes deviam ser inequívocos, na medida em que se supõe o sistema tradicional, baseado em longas listas de autores·. Os ele
transmitirem uma verdade que não pode ser alterada. Os discursos mentos que me autorizam, dizia Baronio, encontrar-se-ão na mar
de ficção, portanto, podiam ser tolerados nas obras históricas como gem de cada página: não escrevo doctas fabulas.
·exercícios retóricos, mas completamente banidos pelas duras re
gras da tradição dos anais.
1 0 . Como já se deve ter reparado, esrou a sugerir um confron 20 C. Baronio, Armales ecdesiastici, I, Roma, 1593 (4.• ed.), incr.: «Reli nque
to entre a enargeia e os sinais de citação. Ambos podem ser enca mus hiscorféis Ethnicis locutiones illas per longiorem ambirum periphrastice
rados como dispositivos destinados a produzir um effet de vérité que circumduccas, omtionesque summa arte concinnaras, fictas, ex sentencia cuius
Lhes é próprio. O primeiro escava relacionado não só com a persua que composicas, ad libitum clisposicas; et Annales porius quam Historiam scri
são retórica mas, pelo menos .indirectamenre, com uma cultura bemus. » Um recente escudo sobre Barooio pode encontrar-se em Barmúo storico
e la Cont1'orifilmJ<�., �d. por H. . De Maio, etc., Soca, 1982 (actas de uma confe
centrada na oralidade e no gesto. O segundo era, por sua vez, o
rl'n�:i�t).
produto duma cultura largamente dominada pela .imprensa - 11
E111 I ' )(,() isso 1 i nhn . . t dn
,• ronsidrn�<ln dwmnt·•·, 1)\f·srno st· usttdo por um
eventualmente reforçada por outros elementos. j , j ,;�nl'indor dl' i l l t l i g l l i , l.uk·· ' "' " o I ( , p,,•:quic•l' (d, 1', Vi'Y I "'• !�· C,'nn rmt· ilr <'1'11
Como já vimos, anais e história foram comac los como dois 1'. ': ,) lc:IJI'� 111 )'11•••• '', l 'itdi. , l 'lfl l , 1 '1 ' 1 / 1 1 1 1 1 '• " 1 ' O qiHd Cttll t o l l l t ' r\ 1 1opulo }:<' l o r i l -
neros literários d"i ferentes, s<·ndo o prinwi ro .- <'SJ w,·i:\Jn,('llt , . fH>J'. . 1111'111 ! ' 1 \ l t ' I I ,, , t l l l > i l tl 111 1' ' , , ,t i ,,,
230 EKPHRASIS E CITAÇÃO CAPITULO VIII 231
1 1 . . Em 1636, um tratado sobre história (Dell'arte historica) foi tem sido sempre, tanto quanto eu sei, um elemento básico de toda
impresso em Roma. O autor, Agostinho Mascardi, era, segundo a espécie de conhecimento histórico, onde quer que esse conheci
um julgador perspicaz como Gabriel Naude, o mais brilhante entre mento histórico, como forma de actividade social, tenha sido pra
os escritores romanos do seu tempo. O seu livro, cheio de intui ticado até hoje.
ções, discutia o método histórico numa perspectiva estritamente
retórica. Não é de surpreender que uma longa secção, comentando 1 2 . Um velho paradigma, baseado na estreita relação entre
passos de Tiro Lívio ou de Cúrcio Rufo, fosse consagrada à enar história e retórica, foi superado por um paradigma diferente, que é
geia . A investigação arqueológica e a história eclesiástica daquele ainda hoje o nosso. Enargeia (ou, preferindo, euidentia) foi substi
tempo estavam ambas naturalmente ausentes do livro de Mascardi. tuído por prova (ingl. t:Jidence). Como e quando se realizou esta
Não menciona Roma sotterranea, a obra póstuma do «arqueólogo substituição de paradigmas' Momigliano evidenciou, como já disse
eclesiástico» Antonio Bosio, que quatro anos antes tinha revelado antes, o papel desempenhado por aqueles arqueólogos do século
a incalculável riqueza das catacumbas cristãs. Até os Annales eccle XVII que enfrentaram os ataques contra a prova literária lançados
. I.
siastici de Baronio, que entretanto se tinham tornado um best-seller pelos cépticos (os chamados pirronistas), mostrando que a prova
europeu, eram ignorados por Mascardi. Os erros de Baronio quan não literária pode ser usada como base segura pata a reconstituição
to a factos foram denunciados relativamente cedo, bem como a histórica. A pesquisa arqueológica, no entanro, tinha começado pelo
estreiteza da sua perspectiva. Apesar dos seus propósitos , foi muito menos dois séculos antes. Transportava provavelmente desde o seu
pronto a acreditar, e também a transm�tir, uma boa quantidade de começo uma subril desvalorização dos trabalhos históricos. Seja-me
«fábulas doutas » , principalmente sobre heréticos, judeus, etc. De permitido citar algumas passagens de um famoso texto de Manuel
certo modo; porém, ele é nosso contemporâneo - muito mais do Chrysoloras, o erudito grego que veio para a Itália cerca de 1 3 95.
que Mascardi. Nós continuamos a acreditar que os historiadores Em 14 1 1 , depois de ter estado em Roma, enviou uma carta ao
devem estar aptos a fundamentar as suas asserções com algum tipo imperador João VIII Paleólogo na qual descrevia «arcos triunfais
de prova. Ou, se se preferir uma formulação descritiva a uma for erguidos (pelos Romanos) comemorando os seus triunfos e procis
mulação normativa: nós (incluindo, suponho eu, os neocépticos) sões solenes >> . Seguia-se uma longa descrição - uma verdadeira
ainda acreditamos que os historiadores (incluindo os historiadores ekphrasiJ - do Arco de Constantino, segundo a tradição clássica.
neocépricos) só consegue� produzir um e(fet de vérité referindo as « . . . Há baralhas de navios, de cavaleiros e infantes, e toda a espécie
suas asserções a algum tipo de prova. A citação (dírecta ou indi de armas e engenhos de guerra; e reis capturados (dos Medos, talvez,
recta) superou a enargeia - uma vitória fatal, que poderia ser descrita, ou dos Persas ou dos Iberos ou dos Celtas ou dos Assírios), cada
em termos bachtinianos, como a vitória de uma atitude dialógica um com o seu vestuário próprio . . . pode-se ver tudo isto nestas
sobre uma atitude monológica22• figuras como se estivessem realmente vivas, e saber o que cada
É claro que os processos são diferentes, mas o alvo a atingir era uma é por meio das inscrições que lá estão. De maneira que é
o mesmo: produzir um �f!et de vérité. Digo ef{et de vérité em vez de possível Vfi!r claramente que armas e que vestuário as pessoas usa
vérité para acenruar que a verdade rem sido concebida de diferentes vam em tempos antigos, gue insfgnias tinham os magistrados , como
maneiras em diferentes culturas. Mas a distinção entre asserções era consti tuído um exército, como se travava uma batalha, como
falsas e asserções verdadeiras - acima de tudo a nível factual - se fazia um cerco, como se dispunha um acampamento . . . » Eis a
conclusão de Chrysoloras: «Pensa-se que Heródoto e alguns outros
c·scr.icores da hist6da fi;-. C.!rarn al,L(O ck grande valor quando descre
Zl Cf. M. Bachrin, «La parola oel romao:w ( 1 934-3 5), , i n fl.rtetír(/ e ml!um
vc·m t•sras coi,�::a.�; nt:l': rw� r1.lS c·sc u lturas poci 1'4 S<· V(!l' cudo o que
zo, trad. it., Turim, 1 979, pp. 67 ss., parricuhcrmcntt: pp. 1 3 .1 ss. Vc·ja- .�•· cau c
c · x i s r 1 : 1 llll( j l l ( ' l . t :l i ' J >nc �•" t' l l l lt' 1111 ' l l tc·r�·niC'H c 1� l'1 , c• .c� � i t n aq c c iln é
bém M.. Steroberg, «Prort'll� i n Qumarion J .a n d > • , in P(lc•tit:r 'Far/,1\', �. I ')IV.
pp. 1 07-l5h; n. Morl:cr:l ( ; :�ravc • l l i , ' " ' jMrol./ ,/',rfll'i, p,tlc·llllO, J ' )H'•, 1 1 1 1 1 1 1 c C > l l t pl c · t n c· V< l c hldt• t l ll l c h t c o t f.c (/111 111!'111/J) 1 1 1 1 .l l c t c J L l t t t l l l l ll
·,
232 EKPHRASIS E CITA ÇÃO
história mas uma visão directa (atttopsian), por assim dizer, e uma
presença (parousian) de tudo o que existia em roda a parte naquele
rempo.»2�
I
ÍNDICE TEMÁTICO
DEMOGRAFIA, clássica, 197, 2 2 3 , 224, 225 REGIÃO, 62 , 65 SAQ! JES, 74, 7f,, 1 · 1 i , 1 4 6 . I -'iH, 150,
crises demográficas, 1 7 1 filosófica, 197 desequilíbrios regionais, 24 , 2 5 , 1 5 1 , 1 511 . 1)5, 1 5 6, 1 5 7
expansão demográfica, 128, 130 francesa, 169, 178 28, 30 riluais, 143, 146, 1 4 7 , 148, 149,
d�mografia histórica, 1 7 4 italiana, 169, 178, I 79 querenças entre regiões, 69 150, 154, 1 5 5 , 1 57 , 1 5 8, 164,
natalidade, 1 2 9, 17 J moderna, 196 RES!STENC!AS (vide tb. Alternativa), 165, 166, 1 67
ESPÓUO (fPO/itnn), 152, 1 5 3 mercado hisw dográfico, 170 59, 60, 6 1 , 62, 7 1 a sinagogas, 154
direito de espólio, 1 5 0 INQUISIÇÃO, 19, 132, 136, 175, 203,
(vide tb. Saque) 205, 208, 21 o
ESTILO arquivos da, 140, 1 4 1 , 143, 1 7 5 ,
artíscico, 6, 9, 14, 16 203, 204, 205
internacionlll, 6 Congregação Douccina Pela Fé
literário, 18 5, 186, 187, 220 (sucessora da 1nq .), 1 41
ESCOLA ARTÍSTICA, 8, 9, 1 0 , 1 1 , 13, denúncias inquisiroriais, 136
14, 1 5 , 16 inquisiclores, 138, 206, 208, 209,
FEITIÇARIA, 179, 204 , 205, 20 7, 2 08 , 2 1 1 , 2 1 2 , 2 1 3 , 214
209, 2 10 processo inquisi corial, 132, 140,
FRONTEIRA (zonas de), 64, 65 204. 2 1 0, 2 1 1
GOSTO, 34, 3 5 , 69 . UBERDADE
periférico, 3 3 , 35, 36, 46, 50, de criação 23, 24 , 69
52, 84 política e criação arriscica, 2 1 , 22,
HERESIA, 74, 1 3 2 , 1 3 9, 140, 144, 204, 23
230 LIBERTINAGEM, 137
HISTÓRIA popular, 13 7, 13!l
I
da arre, 6, 7 libertinos, 137, 138
da ci€ncia, 60 teoria libertina da criação, 138
da historiografia, Hí9, 200, 216 MECENATO, 18, 20, 45, 82, 83
da Itália, 8, 27, 1 78 MORTE, 1 59
das mentalidades, 193 do chefe, 1 60, 161, 162, 164, 166
da população, 170 mundo do.� mortos, 1 5 9
da propriedade, !70, 17 3 ricos de passagem, 1 5 8, 159,
e ancropolog ià, 1 7 3 , 2 1 0 165
e arqueologia, 2 2 5 , 231 PERIFERIA (vide cb. cencro/perileria), 5 ,
e «invenção,,183, 192, 198, 6 , 18, 47, 5 1 , 52, 5 3 , 5 4 , 5 5 ,
201, 202, 216, 2 1 7 59, 6 2 , 67, 7 1 , 7 3 , 74, 81, 84,
e romance, 192, 193, 1 9 5 , 197, 90, 93
208 e criação artística, 6
facmal, 181 dupla periferia, 64, 65
milicar, 193, 22 3 , 2 24 periferização, 5 9, 60, 6 1 , 72, 7 3,
narrativa, 184, 187, 188, 194, 76
196, 198, 1 99, 216, 223 (vide rb. gosto periférico e culrura
oral, 203 periféric3)
polftica, 1 8 1 , 193, 223, 224 PROGRESSO, 1 2 9
quanrirativa, 1 7 0 cieocffico e recnol6gico, 1 24, 128,
serial, 170, 1 7 1 129,
social, 171 artístico, 20 , 32, 33, 38, 43, 5 3 ,
uuiversal, 17 3 5 7 , 66
mac ro-história, 1 7 0, 177 PROVíNCIA, 5, 40, 4 1 , 50, 7 1 , 75
micro-hisróda, 172, 1 7 7 , 'J7 8 provincianismo, 45, 46, 47, 50, 5 3
anais históricos, 225, 226, 2 2 8, PÚBLICO, 1 9 , 20, .12 , 3 3 , 3 5 , 3 6 , 4 l , 5 6,
229, 230 62, 64, ó7, 6!l, 75, 8 3 , 91, J J I ,
fim da história, 120, 1 25, 129 U4
HISTORIOGRAFIA, 93, 1 7 1 , 17}, l HO, ac'Oill(•l'ill "tt' IHO p1'1l \)j, u, 1 1))..
195, 196, 222 dn�ninío 111il�li ro, l t ,O
do.< Âllllalo, 1.6';) prnttjtr: pt'1l11i• (1:,, 11)
\
Capírulo 11 - «Des ténebres médievales au black-out de New York», Ev.rope, 61, 654,
Outubro de 1983.
Capítulo UI - «The Dovecore Has Opened its Eyes: Popular Conspit-acy in Sevenreenth
Century lraly», in Gustav Henningsen e John Tedeschi (eds.), The ln qrúsititm in Early
Mod•m Ettrope, Dekal b, Norrher n Illinois Universicy Press, 1986.
Capítulo IV - <<Saccheggi riruali. Premessa a una ricerca in corsO>> , QrJaderni Storici, 65,
XXII, 1987.
Capfc �lo V (com Carlo Poni) - <<Il nome c il come: scambi ineg ual e e mercato storio
grafico» , Qttademi Sro1'ici, 40, 1979.
Cuplrulo Vll .. 'l"h,· Ir" pd·.hor• ru; Ar li h r n J > < >I < >J-:i·:r : :111 Ar�u lolt Y and its lmplicatinns » , in
<.'fiM, Mwl•.•· '"'" il••• 1/l•i"l'f,t i !Ht•ll'flll. 1\nlr i r > rl>l'>', .loloo l loplti n " l ln iwrsir·y Prcss, 1 989.
Cupi1 1 d " V I I I
ÍNDICE
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