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Copyright — Nedra zoo tradugéc® — Vernando de Moraes Barros Ttule original — Uber Wahrheit und Lijge im aupierimoratishen Sinn André Fernandes Brune Costa Turi Pereira Jorge Sallum Oliver Tolle Ricarde Martins Valle Ricardo Vhuisse Corpo editori Dades — Dados Internacionais de Catalegagao Publicagan (CIP) | (a8ce-i0dy. rg. weed ce orate Earrae. - 5 o Madea, “SbF Eereanté de Horne = 18 Direitos res portuguesa somente ados em lingua ara 0 Brasil EDPrORA HEDRA LTDA. Endaregs — KR. Fradique Coutinho, 1149 (subsolo) 05.416-011 Sao Paulo SP Brasil Telefone/Fax | (011) 3097 8504 S-mail — cditora(ajhedra.com.br site — wawhedra.com.br Poi feita depasito legal, Friedrich Nietszche (Récken, 1844-Weimar, 100), fildsofo dogo alemao, foi um critica mordaz da cultura ocidental © m dos pensaderes mais iniluentes da medernidade. Descendente de pastores protestantes, opta no entantn por seguir carreira aead@miea. Aos 25 anus, torna-se professor de letras classicas na Universidade da Basiléia, onde se aproxima do compositor Richard Wagner. Serve como enfermeto: voluntaris nu guerra franco. prussiana, mas contrai difteria, qual prejudica a sua smide definitivaraente. Retorna a Basiléia © passa a freqiemtar mais a easa de Wagner, Em i829, devido a constantes recaidas, deixa a universidade e passa a feceber uma ronda anual. A partir dai assume uma vida errante, dedicando-se exchisivamente 4 reflexao ¢ & redacaa de suas obras, dentre as quais se destacam: O nascimento da traéitia ~ (87a), desi flare Zaratustra (4885-1885), Pare além de ben € mat (1886), Pare a genealogia da morat (1887) e Oanticristo (1895). Em 188g, apresenta os primeiros sintomas de problemas mentais, provayelmente decorrentes de sifilis, Falece em 1900. Sobre a verdade ea mentira no sentido extra-moral (Uber Wahrheit und Lage im aufermoratisehen Sinn) é um optiscule westiga o aleance efetivo da linguagem, sobre a qual se ssenita todo o conhecimento da civilizactio ocidental. Para Nietsche, a confianga do hemem maderno no poder das palavras se funda ne esquecimento de que algo que era evidente quando as criou: elas sao apenas uma metifora para as sas ¢ jamais poderiain encarnar o seu significade. Constata-se, portanto, um desacerie entre o conhecimento: intuitive e as abstracées conceituais. A obra foi ditada pelo autora um amigo no veriio de 1875, mas saiu a lume apenas pds a sun morte. A presente ediclo contém ainda uma seleta oportuna de Fragmentas pbstumos. Fernanda de Moraes Barros ¢ doutor em filosofia pela Universidade de Sao Paulo (Usp) ¢ professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (esc). E autor de A maldic&a transvatoracta ~ 0 problema da civilizacao em O anticriste de Nietzsche (Disourso/Unijul, 2002) # O pensamento musical de Mictasche (Perspectiva, 2007), SUMARIO Introdugae, por Fernando de Moraes Barros 9 SOBRE VERDADE & MEN THEA NO SENTIDO EX PRAGME PRA-MORAL 23 TOS POSTUMOS 53 INTRODUGAO ® De todos os textos de Nietzsche, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral & decerto um dos mais singulares e pregnantes. Ditado ao colega K. von Gersdorff em junho de 1873, 0 escrito é fruto nao apenas de uma refinada espiritualidade, mas também de um importante redimensionamento teérico-especulative. A diferenga de ponderagdes ele o filésofo alemao — anteriores, época, pro- fessor na Universidade da Basiléia — ja nie toma a palavra a fim de caracterizar o despertar da ANOS © inte- gédia atica. ‘Tomado por novos pl resses, abandona-se agora a novas auto-satisfagée: Pe chamadas ciéncias da natureza, comprazendo-se dor livre e laic , debruga-se sobre as assi na leitura de textos tais como, por exemplo, Phi losophiae naturalis Theoria de KR. J. Boscov Luz a eliminar preconceitos e intolerancias, o espirito contide nos métodos cientificos tal ajude a desanuviar as sombras metafisicas que se acumulam em torne do conhecimento. Mai até. Now tiomar »mento em que aprende a que a si mesma, a verdade talvez termine por revelar alguma na tande um »verdade A sua base, pres INTRODUGAO, testemunho inteiramente inesperado sobre si pré pria. & precisamente essa suspeita que vigora en Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Movid tal do pensamento & a mesma de suas r pela crenga de que a forma fundamen- nifesta- goes por palavras, desde cedo, a filosofia nao he sitou em identificar discurso e realidade. Conce- bendo o pensar como uma inequivoca atividade de simbolizagao enunciativa, ela parece ter sempre dado atengio especial a dimen linguagem, tomando enunciados verbais por ver dadeiros ou falsos, & > apofantica da 1 fungao de desereverem cor retamente ou néo o mundo. O que ocorreria, po rém, se a verdade dos enunciados ndo passasse de um tipo de engano sem o qual o homem nao pode- ria sobreviver? E se a condigao da verdade fosse a tavico mesma da me Revela entao, o atira? ei carater dissimulador do intelecto humamno e, com ele, a suspeita de que entre o “refleti: no vigora nenhuma identidade estrutural. eo “di tamente a essa conclusio que Nietzsche espera conduzir-nos. O caminho encontrado pelo filésofo alemao ara abordar a questdo nao se inscreve num regis tro tradicional. Negando-se a separar 0 homem da natureza, sua abordagen procura mostrar que foi para satisfazer as injungées imediatas de sobrevivéncia que os seres humanos for aram e FERNANDO I MORAES BARROS aprimoraram 0 conhecimento. Servindo ao desejo de conservacgdo imposto pela gregariedade, o in- Zaria nogdes aptas a assegurar a vida telecto prior en ijunto e, pelo mesmo trilho, seria obrigada a produzir falsificagdes. Nesse sentido, lé-se: Como um meio para a conservagio do individuo, o in telecto desenrola suas principais forgas na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo qual os individuos mais fracos, menos vigorosos, conservam-se, como aqueles ender uma jut pela exiss aos quais é de gado em] téncia com chifres e presas afiadas. No homem, arte da dissimulagao atinge seu cume.' Por ser criada sob a pressdo da necessidade de comunicagaio © sociabilidade, a consciéncia de si nao faria parte, em rigor, da existéncia do indi viduo enquanto tal, mas de sua interagdo com o meio e aqueles que o radeiam, referindo-se aquilo que nele ha de comum e trivial. Admitir isso, po m, implica aceitar que os recursos de que o pen- samento se serve para ganhar forma e conteido sio pré-formados pela coletividade, de sorte que estariamos fadados a exprimir nossos racioc sempre com as palavras que se acham & dispo! de toda crew A esse respeito, Nietzsche es ' Friedrich Nietzsche, Stimliche Werke. Kritische Studie naus, ri, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, p. 876, abe, Giorgio Calli e Mazzino Montin: ti INTRODUG. quando justamente a mesma imagem foi gerada mi Ih mens [. sde vezes ¢ foi herdada por muitas geragées de ho- ] entao ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo, o mesmo significado para o homem, como se fosse a imagem exclusivament firia (..,] assim como um sonho que se repete eternamente seria, sem davida, sentido ¢ julgado como efetividade. # Reincidentes, as experiéncias em comum com © outro terminariam por se sobrepor aquelas que ocorrem com menor freqiiéncia no seio da colet vidade, Sem ter acesso, em principio, a ov p liberar aquelas de que dispde para outras aplica ras pa a fac lavras, o individuo tan uco ter lidade para cessibilidade, ele é livre gdes. Resignado a tal in somente para falar e pensar como os outros. Com efeito, dizer que sio as palavras comu- mente p: ilhadas que possibilitam a conscientiza- gio do préprio sentir ¢ pensar impel , ao Menos, a nei uma relevante conseq 1: a de que aquilo que o homem sente e pensa a respeito de si mesmo ja se encontra condicionade pelas mais elementares estruturas da linguagem, Para Nietzsche, todavia, as palayras nos iludem quando as tomamos A risca e deixamos de perceber, por meio delas, aconte ci milar. nentes que clas mesmas nao podem a A seu ver, o pensamento tornado consciente seria apenas u produto ac ssério do intrincado pro- 2 Id. ibid, p. 884, FERNANDO DE MORAES BARROS cesso psiquico que 0 atravessa e constitui. Quando 6 vertida em palavras e gnos d comy pagdio, a atividade reflexiva j& se acharia circunscrita esfera da calculabilidade, e estari. iserida en esquemas longamente consolidados de simpli ficagtio e abstragio, com vistas ao nivelamento entificador do fluxo polimorfo do vir-a-ser e da natureza Visto como um epifenémeno de nossas fun ges orgdnicas fundamenta adguire, entao, um sentido ligado a um universo ifra-conseiente bem mais recuado, que engloba o pensamento processos vitais cujo sentido ultimo sempre nos escaparia, Ao dispensar uma subjetividade que os estabelecesse e determinasse, tais processos reguladores assumem um significado associado a recéndita consciéncia pensante detentora de suas rey gdes, que, de resto, nfo pe s operagdes do corpo, nao mais de uma senta- ssaria de um mero vetor auniliar ou instrumento diretivo, A esse respeito, lé-se ainda: abe o hemem, de fate, sobre sim Og Nao se Ihe emudece a natureza acerca de todas as outras coisas, até mesmo rea d seu corpo, para bani-lo e traneafié-lo numa consciéncia orgulhosa ¢ nadora, ao large dos movimentos intestinais, do veloz fluxo das correntes sangiiineas e das complexas vibrages das fi bras! Ela jogou fora a chave: @ coitad desastrosa 13 INTRODUGAO er de riosidade que, através de uma fissura, fosse capa: sair uma vez sequer da cimara da conseiéncia e olhar para baixo, pressentindo que, na indiferenga de seu nao- saber, o homem repousa sobre o impiedoso, voraz, 0 Para chegar a compreender melhor como a linguagem exerce seu efeito dissimulador sobre nsa sobre si mesmo, aquilo que 0 homem sente e ps impée-se saber o que sio as proprias palavras ide: Questio essa A qual se espe De antem4o, um estimulo nervoso t nspasto em wir imagem! Primeira metAfora. A imagem, por seu turna, odelada num som! $ da metafora.* egul Duplo, 0 processo de for ago da palavra com- portaria a seguinte transposigio: uma excitag’o 1 mental e, em nervosa convertida numa im, seguida, a transposigao de tal imagem num som articulade. Heteréclita, a passagem operaria, em rigor, com elementos que pertencem a esferas dis- juntivas, de sorte que uma correspondéncia biu- nivoca entre coisas ¢ palayras sé poderia ser ob tida pela negagao da distancia que separa a sensa- Ao experimentada pelo individuo © o som por ele emitido. Ao acreditar que cada palavra pronunc ido e acertado acerca da designa algo bem defi > Id. ibid., p87, # Id. ibid, p. 879 FERNANDO DE MORAES BARROS do mundo exterior, ele mal pressemte que se trata, aqui, de dominios desiguais. Mas, precisamente por que a palavra foi criada para exprimir uma sensacao subjetiva, ela s6 pode referir-se as relagBes entre as coisas ¢ nés mest nunca as préprias coisas: Acreditames saber algo acerca das proprias coisas. quando falamos de drvores, cores, neve ¢ flores, mas, com isso, nada possuimos senie metaforas das coisas, que nao correspondem, em absolut, As essencialidades originais.* Tod as palavras que veicula, o individuo abrevia aquilo desejoso de encont ar correlatos para que se lhe apresenta conforme seus interesses, op tand , de modo unilateral, ora por este, ora por aquele aspecto da efetividade. Niveladora, a lin guagem da qual ele se serve depende da igualagao do ndo-igual para adquirir autovaloragac o que se torharia patente, por exemple, na propria consti tuigzo das conceit ‘Tao certe como uma folha nunca é totalmente igual a uma outra, é certo ainda que o conceito de folha é for- di io dess mado por meio de ui rbitraria abstrag2 ferengas individuais, por um esquecer-se do diferenc vel? > Id. ibid, p. 879. * Id. ibid. , p. 880 INTRODUGAO ‘Tomada num sentido univoco e inabalavel, no sentido que Ihe foi dado em todas as épocas, a istindo palavra mesma passa a ser vista como ¢ m 0, © ad aeternum. Instituida nw tempo falante talvez até acreditasse que ela adquire rea- lidade num mundo supra-sensivel. Contrariando esse estado de coisas, o filasofo alemao empreende a pergunta pela produgdo mesma do signo lingiiis- lico e, ao faz lo, termina por colocar a questo cerca das circunst neias de seu aparecimento Com isso, pretende conduzir-nos a idéia de que, na linguagem, o que vigora nao é a imobilidade de s itido ¢ tampouco uma estrutura invaridvel dotada de sign ao idéntica, ma um exército mév foras, metonimias, antropo- meta morfismos, numa palavra, uma soma de relacdes huma nas que foram realgadas poética e retoricamente.? o de formas Porque passa ao largo dessa profus € figuras, a compressao essencialista da inguagem revela-se, desde logo, uma fonte inesgotavel de auto- aganos, Tom ado acidentes por substdne e relagdes por esséncias, ela transpée e inverte as categorias que cla mesma se dedica a engendrar: substituindo coisas por significados, faz crer que as designagées e as coisas se recobrem e, com ? Id. ibid., p. 880. FERNANDO DE MORAES BARROS ilude quem nela procura fiar-se;> condicionando o homem ao habito gramatical de interpretar a realidade vendo nela apenas sujeitos e predicados, incita-o a postular a existéncia de um autor per det as de toda ago; enquadrando aquilo que os seres humanos pensam e¢ falam nos padrdes da causalidade, tal concepgio os impele, em suma, negar 0 carater processual da existéncia. A exigéncia analitica de um modo de expres sio perfeitamente adequado ¢ objetivo, qual um a efe- decalque transparente da esfera que design tividade, s6 poderia ganhar relevo, no ft ndo, pela falta de cautela critica, Dai a oportunidade des cerrada por Nietzsche de combater a idéia de que se possa obter, por meio das palavras, um acess ao nucleo indivisivel e inquestionavel do existir. A seu ver, a verdade que as palavras nos colocari m em mios set ade ordem tautolégica. Através delas, o homem apenas reencontraria aquilo que ele pro prio teria introduzido nas designagdes. A fim de es- clarecer essa curiosa espécic de auto-ofuscamento, © fildsofo alemao prové o seguinte exemplo: Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, ‘0 conceito ‘lapis"” — escreve Nietzsche — “é trocado pela ‘coisa’ lapis.” (Id. Fragmento péstumo do verdo de 1872, n® 19 [242]; em Saneliche Werke. Kritische Studienausgabe, Gi Berlin / Nova York, Wal p. 495), no Montinari 199, vol, orgio Collie Maz ter de Gruyter, t 17 INTRODUGAG volta a procura-lo justamente 14 onde © escondeu ¢ além de tudo © encontra, nao ha muito do que se vangloriar nesse procurar e encontrar [...] Se crio a definigdo de mamifero ¢, ai entao, apés inspecionar um camelo, declare: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida A plena luz, mas ela possui um valor limit © processo que consiste em definir o conceito de animal mai ral ero para, a partir de um ani particular, compor o enunciado “Veja, eis um ma- mifero”, teria como : qiiéncia a idéia de que o “ser” mamifero pertenceria essencialmente ao exemplo individual. O que ja nao ocorreria no se guinte caso: Denominames um homem honesto; perguntamos en tao: por que motive ele agit hoje de modo tao honest? Nossa resposta costuma ser a seguinte: em fungie de sua honestidade.'® A despeito de figurar como uma_proprie dade acidental do suje to da proposigio, o termo “honesto” da a entende: aqui, que a propria “honestidade” pertence & esséncia do sujeito em questao, nie sé como atributo, mas como subs tancia, jA que foi em virtude de tal termo que a denominagao ganhou sentido, de sorte que a entre esséncia e acidente nao alardeada difereng * Id. ibid, p. 883, + Id. ibid, p. 880. FERNANDO DE MORAES BS ROS seria nada inconcussa, mas inteiramente casual. © que também revelaria, uma vez mais. a tauto- logia subjacente 4 propria linguagem: o ser do homem honesto estaria, no fundo, no fato de ele ser honesto. Assim, se pela definigde geral — animal mami fero, por exemplo — niio se te “verd cesso deiro em si”, tampouco cabera as palavras que se aplicam as propriedades particulares torn4-lo aces sivel a nds, Antropomérfica, a oposigio entre un versal e particular nao proviria da esséncia das coi sas, mas de um abuso: Nada sabemos, por certo, a respeito de uma qualidade essencial que se chamasse a honestidade, sdo an mais, de imimoras agées individe alizadas @, por conse- guinte, design " nestas.'" M redar na trama de suas proprias fic que igualamos por omissio do desi- al © passamos designar, desta feita, como agdes ho- $ se, por aj, o homem nao faz senao se e lhe r uma dimensio mais es, mi seria permitido vislumbr ral, atr se reencontrar vés da qual ele pude ta das coisas em si mesmas, mas aquilo que ha de “inexplorado” na palavra? oa presenga imed afirmativa Na tentativa de responde ente a per- gunta, Nietzsche espera descobrir e afirmar um ' Td. ibid. , p. B80, 19 INTRODUGAO modo de representagio anterior A propria palavra articulada, que viria A tona sob a forma de uma metafora intuitr va. Acerea desta que poderia s racterizada como uma ancestral remote dia do préprio conceito, ele pondera Mesmo o conceito, ossificado © octogonal como um dado € tao rolante como este, permanece tdo-somente 0 residuo de uma metéfora, & do que a ilusio da trans- posiciio artistica de urn estimulo nervose em imagens. se nio éa mie, ¢ ao menos a avé de todo conceito. Como inequivoca parédia da compreensio do uitiva homem acerca da linguagem, a metafora i surge, se nao como a mae, pelo menos enquanto a mae da mae de toda representagao conceitual. Mas, evitando investigar a historia de seus “ante- passados”, a rede humana de conceitos jé niio re conhece as metaforas de origem, como metaforas, e as toma pelas coisas mesmas. E justamente por proceder dessa maneira que a linguagem renuncia ri 4 oportunidade de tomar para si ov ras fungde: soterrando o poder criador ¢ inaudito que traz con sigo. A ess © propésito, 0 filésofo alema iO escreve ainda: minho re A partir dessas inte acesso a terra dos esquemas fantasmagoricos, [...] 0 he mem emudece quando as vé, ou, entao, fala por meio 2 Td. ibid., p. 882 FERNANDO DE MORAES BARROS de metaforas nitidamente proibidas e combinagées con, ceituais inauditas, para av menos carresponder criativa- mente, mediante o desmantelamento e a ridiculariza- cao das antigas limitacdes conceituais, 4 poderosa intui gao atual."* Em vista disso, quem procurasse na linguagem um, nove 4mbito para sua agdo","* seja por m de metaforas j io ‘aibida: seja por meio de arranjos conceituais médites, cncontraria tal senda, “em linhas gerais, na arte. conseqiiéncias dessa aceitagdo que irao impelir Nietzsche, mais tarde, a tentar assegurar a lin el, mas guagem niio um fundo sonoro supra-sen uma musicalidade atinente & propria palavra. E tambén por ai que se compreende o moti » pelo qual a chamada linguagem dos gestos terminara por converter-se, como expressio derradeira e paroxistica do estilo nic ano, na_ propria “elogiiéneia tornada mi Razies bastantes para que a ponderacao contida em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral possa ser vista como a semente a partir da qual nasce e cresce che ¢ a orienta © filoséfica exigida pelo Nietz . Ao mostrar que a ilusao faz upostos da vida, seu autor faz ver maturidade. E nao s5 parte dos pre: 's Id. ibid., p. 889 48 Id. ibid., p. 887. ‘8 Td. ibid., p. 887 INTRODUGAO. 22 | que nés também, a despeito de nossas portentosas verdades, mentimos para viver. SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL SOBRE VERDADE E MENTIRA no sentido extra-moral rT Em algum remoto recanto do universe, que se desdgua fulgurantemente em inumerdveis temas solares, havia uma vez um astro, no qual animais astuciosos inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais audacioso ¢ hipécrita da “histé- ria universal”: mas, no fim das contas, foi apenas um minuto. Apds alguns respiros da natureza, 0 astro congelou-se, e 0s astuciosos animais tiveram de morrer. Alguém poderia, desse modo, inventar uma fabula e ainda assim nao teria ilustrado sufi cientemente bem quao lastimavel, quéo sombrio e efémero, qua sem rumo ¢ sem motivo se des taca o intelecto humano no interior da naturez: houve eternidades em que ele nao estava presente; quando ele tiver passado mais uma vez, nada tera ocorride, Pois, para aquele intelecto, nao ha nenhuma missao ulterior que conduzisse para além da vida humana. Ele é, ao contrdrio, hu mano, sendo que apenas seu possuidor ¢ gerador © toma de maneira to patética, como se os eixc 26 | SOBRE V RDAD IRA mundo girassem nele. Mas se pudéssemos pér-nos ito, aprender ao de acordo com 0 mosq mos & que ele também flutua pelo ar com esse pathos ¢ sente em si o centro esvoagante deste mundo, Na natureza, nao ha nada tao igndbil e insignifieante que, com um pequeno sopro daquela forga do conhe io inflasse, de stibito, como um imenta, n saco; € assim como todo carregador de peso quer ter seu admirador, 0 mais orgulhoso dos homens, 9 filésofo, acredita ver por todos os lados os olhos do universo voltados telescopicamente na direcao de seu agir e pensar.! curioso que isso seja levado a efeito pelo inte te ele, que foi outorgado apenas lecto, precisame como instrumento auxiliar aos mais infelizes, fra- geis © evanescentes dos seres, para conserva-los um minuto na existéncia; da qual, do contririo, sem essa outorga, eles teriam todos os motives para fu- gir tao rapidamente quanto o filho de Lessing? Nietzsche, Wher Wahrheit und Liige tm ausser Werke. Kritische Studie nausgabe, Giorgio Collie Mazzino Montinari, Berlim / Nova York, Walter de Gruyter, 1999, pp. 875-890, 2 ‘Tido por Nietzsche como um “erudito ideal” (Cf. BR. Ni Friedric morelischen Sinne. Fan Sderilic etzsche, Fragmento postumo do inverno de 1869 ¢ da pri mayera de 1870, n® 2 [12], Em Samsliche Werke. Kritis che Studienausgabe, Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Ber lim / Nova York, Waker de Gruyter, 1999, vol. 7, p. 49), Gouthold Ephraim Lessing (1729-1781) ponders numa re Aquela audacia ligada ao conhecer e sentir, que se acomoda sobre os olhos e sentidos dos homens qua! uma névoa ofuscante, ilude-os quanto ao va lor da existéncia, na 1 dida em que traz em si a mais envaidecedo: 1 das apreciagdes valorativas so bre o proprio conhecer. Seu efeito mais universal é engano — Lodavia, os efeitos m. s particulares tan bém trazem consigo algo do mesmo cardter. Como um meio para a conservagio do indivi p na dissimulagao; pois esta constitui o meio pelo duo, o intelecto desenrola suas neipais forgas me qual os individuos mais frac »s vigore conservam-se, como aqueles aos quais ¢ denegado empreender uma lata pela existéneia com chi fres e presas afiadas. No homem, essa arte da dissimulagéo atinge seu cume: aqui, o engano, o adular, me itr e enganar, o falar pelas costas, 0 repre: ar, o viver em esplendor consentide, o velador arta a Johann Joachim Eschenburg, sobre a morte prematura de seu filho: “Min legria durou pouce: perdi o com tamanha rehutancia, esse filhot Pois ele tinh la entendimente! ‘Tanto entendimento! Nao pense que minhas poucas he as de paternidade fizeram de mim uma besta de pail Scio que falo, Nao foi o entendimento que obrigon a puxa-lo a férreo forceps para o mundo? Que tao cedo o levou a pereeber sua desrazio? Nao foi do entendin onto que ele se valeu na primeira opornunidade que teve para abandona lo novamente: (Em G. E, Lessing, Avitit una Dramarungie, fusgerwithlie Prosa, Stuttg S08, RDADE E MENTIRA SOF mascaramento, a convengio acobertadora, o fazer drama diante dos outros e de si mesmo, numa pa- lavra, 0 constante saracotear em torne da cham uinica da vaidade, constitui le como pode vir 4 luz entre os homens um legitimo al ponto a regra ea que quase nada é mais incompreensivel do que fun- sham pr e puro impulso 4 verdade. Eles se damente imersos em ilusdes ¢ imagens oniricas, seu olho desliza apenas ao redor da superficie das coisas ¢ vé “formas”, sua sensagao niio leva verdade em nenhum lugar, mas antes se satisfaz im di er, um em receber estimulos e tocar, por teclado sobre o dorso das coisas. Para tanto, o ho na vida, mem consente, 4 noite e através de toda u ento ser enganado em sonho, sem que seu sen moral jamais tentasse evitar isso: nao obstant deve haver homens que, pela forga de vontade, deixaram de ronear. O que sabe o homem, de fato, sobre si mesmo! Seria ele sequer capaz, em algum momento, de perceber-se inteiramente, como se estivesse numa iluminada cabine de vidro? Nao se lhe emudece a matureza rea de todas as outras coisa a de seu corpo, para é mes bani-lo e trancafid-lo numa consciéncia orgulhosa e enganadora . ao largo des movimentos intes nais, do veloz fluxe das correntes sangiiineus ¢ das complexas vibragées das fibras! Ela jogou fora a chave: e coitada da desastrosa curiosidade que, através de uma fissura, fosse capaz de sair uma vez sequer da camara da consciéncia ¢ olhar para baixe, pressentindo que, na mdiferenga de seu na aber, o homem repousa sobre o impiedeso, © voraz, 0 insacidvel © assassino, como se, em sonhos, estivesse dependurado sobre as costas de um tigre no mundo inteiro, nessa constelagao? wo de onde viria o impulso a verdade Enquanto o individuo, num estado natural das coisas, quer preservar-se contra outros individuos, ele geralmente se vale do intelecto apenas para a dissimulagdo: mas, porque o homem quer, ao mesmo tempo, existir socialmente ¢ em rebanho, por necessidade e tédio, ele necessita de um acordo de paz e empenha-se entao para que a mais cruel belium omnium contra omnes ao menos desaparega de seu mundo, F acordo de paz traz consigo, po- rém, algo que par ce ser 0 primeiro passo rumo a obtengiio daquele misterioso impulso a verdade. Agora, lixa-se aquilo que, doravante, deve ser “ver- dade”, quer dizer, descobre-se uma designagio uni formemente valida e impositiva das coisas, sendo que a legislagio da linguagem fornece também as primeiras leis da verdade: pois aparece, aqui, pela primeira vez, 0 contraste entre verdade « mentira; © mentiroso serve-se das designagées validas, as palavras, para fazer o imagindrio surgir como efe tivo; ele diz, por exemplo, “sou rico”, quando para 29 RDADE E MEN AN sen estado justamente “pobre” seria a designagdo mais acertada. Ele abusa das convengdes consoli- dadas por meio de trecas arbitrarias ou inversdes dos nomes, inclusive. ‘ az isso de ume ira man > a SO individualista e nda por cima nociva, en ciedade n&o confiard mais nele ¢, com isso, tra lo. N tanto ser ludibriados quanto lesados pelo engano. 0 evitam de exch so, oS homens nm Mesmo nesse nivel, o que eles odeiam fundamen talmente nao é o engano, mas as conseqiiéncias ruins, hostis, de certos géneros de enganos. Num sentido sernelhantemente limitado, o homem tam bém quer apenas a verdade. Ele quer as conseqiién cias agradaveis da verdade, que conservam a vide frente ao puro conhecimento sem conseqiiéncias ele é indiferente, frente 4s verdades possivelmente indispGe com hos prejudiviais ¢ destruidoras ele ulidade, inclusive. E, mais até: come ficam aque- las convengées da linguagem? Sao talvez produtos do conhecimento, do sentide de verdade: as desig- nagdes © as coisas se recobrem? Entao a lingua gem é a expressio adequada de todas as realida des? Apenas por esquecimento pode o homem al guma vez chegar a imaginar que detém uma ver 1 ora mencionado. Se ele r o espera dade no contentar-se com a verdade sob a forma da tauto logia, isto 6, com conchas vazias, entdo ira per. uw tar evel te tlusde ame! s por verdades, O que é uma NIETZSCHE palavra? A reprodugiio de um estimulo nervoso em sons. Mas deduzir do estimule nervoso t a causa fora de nés ja ¢ o resultado de um aplicagao fals justifieada de principio de razdo. Como pode- jamos, caso to-somente a verdade fosse decisiva na génese da linguagem, caso apenas o ponto de gna goes. como poderiamos nos, nao obstante, dizer: a pedra é dur: vista da ce s des za fosse algo decisério ne ; como se esse “dura” ainda nos fosse conhecido de alguma outra maneira € nao s6 come um estimulo totalmente subjetivo! Seecionamos s coisas de acorde com géneros, designamos a ar vore como feminina e 0 vegetal como masculino: mas que transposicdes arbitra ast Quo longe vo ames para além do cinone da certeza! Valamos sobre uma serpente: a designagio nfio tange se nao ao ato de serpente: servir e, portanto, poderi também ao verme. Mas que demarcagées arbitré as, que preferéne s unilaterais, ora por esta, ora Dis- postas lado a lado, as diferentes linguas mostram por aquela propriedade de uma dada c que, nas palavras, o que conta nunca é a verdade, jamais uma expressio adequada: pois, do contré 0, nao haveria tantas linguas. A “coisa em si” (ela seria precisamente a pura verdade sem qua quer conseqiiéncias) também é, para o criador da linguagem, algo totalmente napreensivel e pelo qual nem de longe vale a pena esforgar-se. Ble de- 34 SOBRE VERDADE EM TIRA signa apenas as relagdes das coisas com os homens ©, para expressi-las, serve-se da ajuda das mais o1 sadas metiforas, De antemao, um estimulo ner ve imagem! Primeira n etd 0 (ransposio em umn. fora. A imagem, por seu turno, remodelada num som! Segunda metifora, E, a cada vez, um com pleto sobressalto de esfei 1 di as el egao a ur ou- tra totalmente diferente « nova. Pode-se conce ber um homem que seja completamente surdo e que jamais tenha tido um ‘o do som e da mi ica: da mesma forma que este, um tanto es pantado com as figuras sonoras de Chladni sobre a areia,* encont suas causas na vibragio das corda: 2 © texto faz meneo ao experimento levado a cabo pele fi sico alemao Ernst Chladni (1756-1827) que se destina a ve rificar a ocorréncia de certas formas vibratérias e que con vém, aqui, explicitar. Basicamente, trata-se de cobrir a su perficie de uma placa circular de madeira, vidro ou metal, com leves partic: as de areia — em realidade, cortiga em po para, com o auxilio de um arco de violino, provecar vibra ges em lugares especificos na borda do disco assim disposto. conseqiiéneia das vibragies, as particulas da placa ter ninam por se dividir em diversas segdes, movimentando-se qqui c acol para cima ¢ para baixo, formando tragas limi trofes ¢ linhas nodais entre as ar s mais agitadas e as xonas com menor intensidade vibratil. Ao longo de tal proceso, as particulas poly hadas tendem a espalhar-se em meio as extensdes mais vibrantes ¢ acun lar-se la, onde a vibrag menor, de sorte que, de acorda com a forma do disco e conforme o local em que nele é provocado © movimente vi rio, diferentes figu brat 3 vem A superfici Aqui NIET e jurard que agora nfo pode mais ignorar aquilo que os homens chamam de som, assim também suede a todos nés com a linguagem. Acredit mos saber algo acerca das préprias coisas, quando fa- lamos de arvoi es, cores, neve e flo es, mas, con isso, nada possuimos seniio metaforas das coisas, que nao correspondem, em absoluto, 4s essencia- o melhor mesmo é recorrer as palavras do préprio fisico ale f acitstica, ele dit Em sua principal obr “As placas podem ser de vidro ou de um metal bastante sonoro (...) sd ade’ a que a elasticidade nao é a mesma nos diferentes sentidos, Normalmente, sirvo-me Pode-se servir, inclusive, de pl mas, nesse caso, as figuras nao serie regulares, las facilmente de placas de vidro, ja que é possivel encontr: sols a mesma espessura e porque sua transpari cia permive enxergar os locais nos quais so tocadas, com os dedos, por debaixe”. (Ernst Chladni, Die Asustit, Leipzig, Breitkopf u, Hiirtel, 1802, p. 118-19), Mais adiante, especifican sobre as placas circulares, ele esclarece: “No que tange aos ti pos de vibra? lente ode ul is linhas nodais si ou diametrais on circulares|...] Exprimire o mitmero de linhas nodais da mesma forma que os das placas retangulares, po. ndo © mimere atinente as linhas nodais 1 sicione as dire diametrais antes do traga que separa os dois nimeros por has ne: mim indicades, e, depois de trago, o nitmero de li dais parale em algarismas romanos, Assim, por exemple, 2/00 ira indicar @ tipa de vibragao no qual nao ha senao duas linhas diame A borda, sendo que estes tiltimos sero escritos trais; 0/1 aquele que n&o apresenta sendo wie linha circular [...] 2/0.em que duas linhas diametrais se eruzam no centro [figura 99] é, dentre todas as figuras possiveis, vale ao som mais grave” 33 34 | SOBRE VERDADE IRA lidades originais. Tal como o som sob a forma de figura de areia, assim se destaca o enigmAatico “X” da coisa em si, uma vez como estimulo nervoso, em m.* De nento da linguagem nao seguida como imagem, e, por fim, como s qualquer modo, o surgi (Ubid.p. 156-157.) * As figuras de Chladni sie oportunas a Nietzsche, porque servem para indicar, a partir de Ambito sonore, a mpossibili dade de expressar adequadamente a “verdadeira” realidade do mundo. Assim eo » tais figuras se incumbem de © cépias dos sons noutre meio — na areia, no caso, assim tam bém se relacionariam as palavras com as coisas, a sab apar Ja transposigao de um estimulo nervosa em imagem c, de em som. © hos em, inflexivel em relagio ao enigmatico x” por detras do que fala ¢ escuta, contemplaria em vio os desenhos sonoros sem neles descerrar qualquer j sagem ao mo “ser” das coisas. Afinal, como dira Nietzsche alhu leg res: “N&o podemos pensar as coisas tais como elas so, pois nae deveriamos justamente pensi-las. “Tudo permanece as sim, tal como é: isto é, todas as qualidades revelam uma ma térin indefinida ¢ absoluta. A relagdo aqui se dé como aquela que as figuras sonoras de Chladni estabelecem com as vibra goes” (F. Niewsche, Fragmento péstumo do verio de 1872 e inicio de 1873, n° 19 [140], Em Stmrliche Werke. Krinische procede, pois, logicamente, sendo que o inteiro ma- terial no qual e com o qual o homem da verdade, © pesquisador, o filésofa, mais tarde trabalha e edi fica, tem sua origem, se nao em alguma nebulo: ja, em todo caso nao na ess¢ncia das cud sas Ponderemos ainda, em especial, sobre a forma- cio dos conceitos: toda palavra torna-se de imedi- ato um conceito 4 medida que nao deve servir, a titulo de recordagao, para a vivéncia primordial completamente singular e individualizada 4 qual deve seu surgimento, sendo que, ao mesmo tempo, deve coadunar-se a inumeraveis casos, mais ou me nos semelhantes, isto é, nunca iguais quando to mados a risca, a casos nitidamente desiguais, 5 tanto. ‘Todo conceito surge pela igualagae do nao 6 como uma folha nunea é total- igual. ‘Tio mente igual a uma outra, é certo ainda que o con- ceito de folha é formado por meio de uma ar! s dife um esquecer-se do diferenciavel, despertando en trdria abstragio dessa ngas individuais, por ldo a representacao, como se na natureza, além das folhas, houvesse algo que fosse “folba”, tal come uma forma primordial de acordo com a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, contornadas, coloridas, encrespadas e piutadas, mas por mios Studienausgabe, Giorgio Calli ¢ Mazzino Montinari, Berlim Nova York, Walter de Gruyter, 1999, vol. 7, p. RDADE E MEN AN ineptas, de sorte que nenhum exemplar resultasse correto e confiavel como copia auténtica da forma primordial, Denominamos um homem honest perguntamos enti: per que mative ele agia hoje de modo to honesto? Nossa resposta costu 1a ser a seguinte: em fungao de sua honestidade. A ho a: a folha € a causa das folhas. Nada sabemos, por certo, a nestidadet Uma vez mais, isso signi respeito de uma qualidade essencial que se cha masse honestidade, mas, antes do mais, de intime- ras agdes individualizadas e, por conseguinte, de- sig passamos a designar, desta feita, como agées hones gual e ais, que igualamos por omissao do de: s formulamos, finalmente, uma tasy a partir de quaiitas occulta com 6 nome: honestidade. A inobservancia do individual e efetivo nos for rma, ao pa nece o ce nceito, bem como a f sO que a natureza desconhece quaisquer formas e conce tos, ©, portanto, também quaisquer géneros, mas lao-somente um “x” que nos é inacessivel e inde- finivel. Pois até mesmo nossa opos cdo entre in dividuo e género é antropomdérfica, e ndo advém da esséncia das coisas, ainda que nao arrisquemos isso seria, efeti- dizer que ela nio Lhe corresponde vamente, uma assercado dogmatica e, como tal, ao indemonstravel quanto o seu contrario. O que 6, pois, a verdade? Um exército mével rlismos, de metdforas, metonimias, antropom numa palavra, uma soma de relagées humanas que foram realgadas poética e retoricamente, transpostas ¢ adoradas, ¢ que, apés uma longa utilizagio, parecem a um pove consolidadas, nic jas: as verdades siio ilusées das s € obrigatés quais se esquecen que elas assim 0 sio, metaforas que se tornaram desgastadas e sem forga sensivel moedas que perderam seu troquel e agora séo levadas em conta apenas como metal, e nado m: como moedas, Ainda nao sabemos donde provém o impulso a verdade: pois, até agora, ouvimos falar apenas da obrigaga’o de ser veraz, que a isto é, de utilizar te socjedade, para existir, institu as metiforas habituais; portanto, dito moralme! da obrigagao de mentir conforme uma convengio consolidada, mentir em rebanho num estilo a to dos obrigatério. O homem decerto se esquece que é assim que as coisas se Ihe apresentamy ele mente, pois, da maneira indicada, inconscientemente ¢ conforme habitos seculares — e prec amente por meio dessa inconsciéncia, justamente mediante verdade. esse esquecer-se, atinge o sentimento di. No sentimento de estar obrigado a indicar uma coisa como vermelha, outra como fria e uma ter- ceira como muda, sobrevém a emogao moral atinente 4 verdade: a partir da coutraposigiio ao mentiroso, Aquele em quem ninguém confia e que todos excluem, o homem demonstra para si o 37 SOBRE VERDAD IRA que ha de veneravel, confiavel e itil ma verdade. Como ser racional, poe seu a ir sob 0 império das abstragées: j4 nao tolera mais ser arrastado por i tit ipressBes repentinas, p igdes, sendo que universaliza, antes, todas essas i ipressdes em con ceitos mais desbotados e frios, para neles atrelar © veiculo de seu viver e agir. Tudo aquilo que sobreleva 0 homem ao animal depende dessa capa- cidade de volatilizar as metaforas intuitivas num esquema, de dissolver uma imagem num conceito, portanto; no ambito daqueles esquemas, torna-se possivel algo que nunca poderia ser alcangado sob a égide das primeiras impressdes intuitivas: erigir uma ordenagdo piramidal segundo castas e gradages, criar um nove mundo de leis, pri vilégios, subordinagées, deli itagdes, que agora faz frente ao outro mundo intuitive das primeiras impressées como o mais consolidado, universa conhecido, humano e, em virtude disso, como o r fa indo regulador ¢ imperative. Enquanto metafora intuitiva é indivi dual ¢ desprovida de seu correlata, e, por isso, sabe sempre eludir a todo rub 1, © grande edificio dos conceitos exibe a inflexivel regularidade de um columbario romano e exala na légica aquela du “za e frieza que sao proprias 4 matematica, Aquele que é baforado por essa frieza mal acreditard que mesmo o conceito, ossificado ¢ octogonal como um dado e tao rolante como este, permanece tio-somente o residuo de uma metéfora, sendo que a ilusae da transposigao artistica de um estimulo nervoso em imagens, se nao é a mae, 6 ao menos a avé de todo conceito. Mas, no interior de: jogo de dados dos ¢ itos, denomina-s “verdade” a utilizagiio de cada dado tal como ele é designado; ¢ iar Seus pontos cor acuidade, formar rubri Ss corretas ¢ jamais aten- tar contra a ordenagao de castas, bem como contra a seqtiéneia das classes hie arquicamente organ zadas. ‘Tal como os romanos e etruscos dissecavam o céu através de firmes linhas matematic se ado, sobre si relegavam um deus num espago assim demi come num templo, assim cada povo ten um equivalente céu conceitual matematicamente dividido ¢, sob a exigéncia da verdade, agora en tende que cada deus conceitual deve ser buscado apenas em sua esfera, Aqui, cabe muito bem admirar 0 homem como um formidavel génio da construgio, capaz de erguer sobre fundamente instaveis ¢ como que sobre agua corrente um domo de conceitos infinitamente complicado; por certo. a fim de manter-se firmemente em pé sobre tais fundamentos, cumpre ser uma construgao como que feita com teias de aranha, suficientemente delicada que possa ser levada pelas ondas e firme © bastante para mio ser despedagada pelo sopre do vento, Como génio da construgao, o homem eleva- 30 “verdade” no inter SOBRE VERDADE ME IRA se muito acima da abelha na seguinte medida: esta iltima constréi a partir da cera, que ela recolhe da natureza, ao passo que o primeiro a partir da materia muito mais delicada dos conceitos, que precisa fabricar a partir si mesmo. Aqui, « umpre admira-lo muito, mas néo somente por causa de seu impulso 4 verdade, ao conhecime: to puro das coisas. Quando alguém esconde algo detras de um arbusto, volta a procura-lo justamente lA onde o escondeu e além de tudo 0 encor io ha muito ra, 1 do que se vangloriar nesse procurar e encontrar: é assim que se d& com o procurar e encontrar da or do dominio da razao. Se o a definigao de mamifero e, ai entde, apos speci onar um camelo, declaro: veja, eis um mamifero, com isso, uma verdade decerto é trazida & plena luz, mas ela possui um valor limitado, digo, ela € antropomériica de fio a pavio e n&o contém um timico ponto sequer que fosse “verdadeira em si”, efetive e universalmente valido, deixando de lado o homem. Em principio, o pesquisador dessas verdades procura apenasa metamorfose do mundo nos homens; esforga-se por uma compreensio do mundo visto como uma coisa propria ao homem na melhor das hipéteses, granjeia para si o sentimento de uma assimilagio. A semelhanga do astrélogo que observa as estrelas i servigo dos homens ¢ em conformidade com sua felicidade TZSCHE e sofrimento, assim também um tal pesquisador observa o mundo inteiro como conectado ao ho- mem, como o ressoar infinitamente fragmentado de um som primordial, do homem, como a c6pia rn imordial, do ho Juplicada de nagem yf mem. Eis seu procedimento: ter o homem por medida de todas as coisas, algo que el faz, porém, partinde do erro de acreditar que teria tais coisas como objetos puros diante de si. Ele se esquece, pois, das metaforas intuitivas origimais tais como sdo, metaforas, e as toma pelas proprias coisas. mento desse mundo me Somente pelo esqui taférico primitivo, apenas pelo enrijecimento e petrificagio de uma massa imagética que, qual um liquido fervente, desaguava originalmente em torrentes a partir da capacidade primitiva da fantasia humana, tde-somente pela crenga nela, esta mesa sao imbativel de que este sol, esta ja uma verdade em si, em sma, apenas por que o homem se esquece enquanto sujeito e, com efeito, enquanto sujeito artisticamente criador, cle vive com certa tranqiiilidade, com alguma seguranga © conseqiiéneia; se pudesse sair apenas por ur instante das redomas aprisionadoras dessa crenga, entao sua “autoconsciéncia” desapareceria de ime- diato. Exige-Ihe esforco, inclusive, admitir para si mesmo o fato de que o inseto ou a passare per cebem um mundo totalmente diferente daquele aw SOBRE VERDADE E MENTIBA percebido pelo homem, sendo que a pergunta por qual das duas percepgdes de mundo é a ma correta nao possui qualquer sentido, haja vista que, para respondé-la, a quest@o teria de ser previa mo critério ati mente medida ente a percepodo correta, isto é, de acordo com um eritério que nao esté & disposicao. A mim me parece, em todo caso, que a percepcdo correta — que significaria a expressiio adequada de um objeto no sujeito — é uma contraditéria absurdidade: pois, entre duas esferas absolutamente diferentes tais como entre sujeito e objeto nao vigora nenhuma causalidade, nenhuma exatidae, nenhuma expressiio, mas, acima de tudo, uma relagdo estética, digo, uma transposigao sugestiva, uma tradugao balbuciante ha, Algo que esfe para uma lingua totalmente estra requer, de qualquer modo, um ‘a interme- diaria manifestamente poética e inventiva, bem como uma forca mediadora. A palavra aparéncia contém muitas tentagdes, dai eu evita-la sempre que possivel: pois no é verdade que a esséncia das coisas aparece no mundo empirico. Um pintor im, cujas maos Ihe faltassem e quisesse, ainda as expressar pelo canto a imagem por ele visionada, se} sa troca de esferas, muito ipre revelara, ne: mais sobre a esséncia das coisas do que aquilo que ico. A propria relagio de revela o mundo emy um estimulo nervoso com a imagem gerada nao é, em si, algo necessdrio; mas, quando justamente a mesma imagem foi gerada milhdes de ve e foi herdada por muitas geragdes de homens, até que, por fim, aparece junto A humanidade int a da mesma ocasido, ira sempre na seqiiér entao ela termina por adquirir, ao fim e ao cabo, o mesmo nem, como se fosse gnificado para 0 he a imagem exclusivamente necessdria ¢ como se aquela relagao do estimulo nervoso original com isse a imagem gerada constita na firme relag causal; assim como um sonho que se repete eterna me e seria, sem duvida, sentido e julgado como ‘ao efetividade. Mas 0 enrijecimento e a petrific de uma metafora nao asseguram coisa alguma a sua necessidade e justificagao exclusiva. Sem duvid. , todo homem que possui familia ridade e 1 tais consideragSes ja sentiu uma pro funda desconfianga frente a todo idealismo desse tipo, logo que se convenceu de maneira suficiente me e clara da eterna conseqiiéncia, onipresenga e infalibilidade das leis naturais; dai extraiu a se guinte conclusdo: desde que penetremos em dire cdo as alturas do mundo telescopico ¢ ruma as pro- fundezas do mundo microsedpico, aqui tudo é se. guro, completo, infinito, regular e sem lacunas; a ciéncia cavara eternamente com éxito nesses po gos, endo que todo seu achado concordara consigo mesmo € ndo ird contradizer-se. Quaoe pouco i 13 SOBRE VERDADE E MENTIRA se assemelha a um produto da fantasia: pois, se fo: lugar, a apart esse o caso, teria det nar patente, em algum cia ¢ a irrealidade. Em contraposi © a isso, cumpre dizer: se cada um de nés tivesse ‘ para si w a percepgio sensivel diferente, poderla- mos por nés mesmos perceber ora como passaro, ora como verme, ora como planta, ou, entio, se al- gum de nés visse 0 mesmo estimulo como verme- lho, outro como azul e um terceiro o escutasse até mesmo sob a forma © um som, entio ninguém falaria de uma tal regularidade da natureza, mas, de maneira bem outra, trataria de apreendé-la ape nas como uma criagdo altamente subjetiva. A ser assim ra nos, uma lei da natureza? Ela & F oqu nao se da a conhecer em si mesma, mas somente em seus efeitos, isto é, em suas relagées com outras leis r sa se d&o a co- turais, que, uma ver mai nhecer como relagoes. Por conseguinte, todas es: 8 relagdes referem-se sempre umas as outras, sendo que, quanto & sua esséneia, elas nes sio iIncompre- ensiveis de ponta a ponta: apenas aquilo que nés lhes acrescentamos se torna efetivamente conhe cido para nés, a saber, o tempo, o espago e, portanto, as relagdes de sucessio e os ntimeros. Mas, tudo o que ha de maravilhoso, que precisame nos as- sombra nas leis da natureza, que exige nosso escla recimento e que poderia conduzir-nos A desconfi anga frente ao idealismo, assenta-se tinica e exclu- sivamente no rigor matematico, bem como na invi- olabilidade das representagdes de tempo e espaco. Estas, no entanto, sao produzidas em nds e a partir de nés, com aquela necessidade com a qual a ar nha tece sua teia; se so! lidos a apreender os comp todas as coisas apenas sob tais formas, entéio nao é 1 de se admirar que, em todas as coisas, apre- endemos taio-somente essas formas: pois todas elas devem trazer consigo as leis do niimere, sendo que pmbroso das coi- € exatan =o mimero o mais sas, ‘Toda regularidade que tanto nos impressiona na trajetéria dos planetas e no processo quimico coincide, no fundo, com aquelas propriedades que nés mesmos introduzimes nas coisas, de sorte que, com isso, impressionames a nés mesmos. Dis se segue, por certo, que aquela formagio artis! de metaforas, que, em nds, dé inici pa toda sen: cao, ja pressupoe tais formas, e, portanto, real A-se nelas; somente a partir da firme persisténcia de sas formas primordiais torna-se possivel esclarecer como péde, assim como outrora, ser novamente cri gido um edificio de conceitos feite com metaforas. ‘Tal edificio é, pois, uma relagdes de tempo, espago e 1 ‘os sobre o solo das metaforas. SOBRE VERDADE E MED I Como vimos, a Hinguagem trabalha na constru cao dos conceitos desde o principio, ¢, em pertodos 210 a abelha cons- posteriores, a ciéncia. As: tri os favos e, ao mesmo tempo, enche-os de mel, assim também opera a ciéncia irrefreadamente so- bre aquele enorme columbario de conceites, ce- mitério das intuigdes, sempre construindo novos elevados pavimentos, escorando, limpando e renovando os antigos favos, esforgando-se, sobre tudo, para preencher essa estrutura colossalmente armada em forma de torre e ordenar, em seu in- terior, o mundo empirico imteiro, isto é, o mundo antropomérfice. Se o homem de agao une sua vida A razao € a seus conceitos, para ndo ser arrastado e mao se perder a si mesmo, o pesquisador, de sua stréi sua cabana junto a torre da ¢ parte, eo Anicia, a @ encontrar, para que possa prestar-lhe assisté ele proprio, amparo sob 0 baluarte a sua disposig E, com efeito, cle necessita de amparo: pois ha for- gas terriveis que lhe irrompem constantemente e as verdades cientificas “verdades” de que opoe um tipo totalmente diferente com as mais diversas espécies de emblemas ‘Tal impulso a formagiio de metaforas, esse in pulso fundamental do homem, ao qual nao se pode iar nem por um instante, ja que, com renunciar-se-ia ao proprio homem, nao é, em ver dade, subjugado ce minimamente domado pelo fato de um novo mundo firme e regular ter-lhe sido construido, qual uma fortificag&o, a partir de seus produtos volatizados, o mesmo é dizer, os concei tos. Ele busca um novo ambito para sua agio e F s um outro regat . sendo que o encontra no mito e, em linhas gerais, na arte, Perpetuamente, mistur as rubricas e as divisorias dos conceitos ao intro- duzir novas transposigdes, metaforas, metonimias; perpetuamente, demonstra 0 dvido desejo de con- figurar o mundo a disposigaio do homem desperto sob uma forma tao coloridamente irregular, incon seqiientemente desarménica, instigante e eterna mente nova como a do mundo do sonho, Em si, o homem desperto adquire clara conseiéncia de que esta acordado somente por meio da firme e regular teia conceitual, ¢, precisamente por isso, Chega as vezes A crenga de que esta a sonhar, caso alguma vez aquela teia conceitual seja despedagada pela P. arte, Pascal tem razdo ao afirmar que, se fossemos acometides pelo mesmo sonho toda noite, iriames ocupar-nos dele tanto quanto das coisas que vemos todo di “Se um artesio tivesse certeza de que a cada noite sonha, doze horas sem parar, que é rei, ereio” diz Pascal “que seria tao feliz quanto um rei que todas as noites sonhasse, ao longo de doze hora 0”. O dia desperto de um te; . que é um povo miticam ado, c nite inspi mo, por ex mplo, 48 SOBRE VERDADE & MENTIRA os antigos gregos, é, de fato, mais semelhante ao sonho do ue o dia do pe sador que se tornou ci- entificamente sabrio, devido ao milagre constan temente atuante tal como é e cap um deus, sob a aparéncia de um t seito pelo mito cada arvore € de falar como ninfa, ou, entao, ure, pode raptar donzelai Atena é subitamente se a propria deus vista ao passar, na companhia de Pisistrato, pelos mercados de Atenas com um belo par de cavalos © nisso acreditava o ateniense honesto —, entao, como no sonhe, tudo é possivel a cada momento, sendo que a inteira natureza se alvoroga em torn do homem como se fosse somente a mascarada dos deuses | Maskerade der Gétter], que, enganando os homens sob todas as formas, pregava-lhes apenas uma pega. No entanto, o proprio homem tem uma inclina- Gao imbativel a deixar-se enganar e fica como que encantado de felicidade quando © rapsodo narra icos como se estes fosserm verdadeiros, lhe contos ép ou, entéo, quando o ator, no espetaculo, senta cpre o rei ainda mai soberanamente do que 0 exibe a efetividade. © intelecto, esse mestre da dissi u lagio, acha-se, pois, livre e desobrigado de todo seu servico de escravo sempre que pode enganar sem causar prejuizo, © festeja, entao, suas Satur nais; nunca cle é mais opulento, rico, orgulhoso, til © arrojado. Com satisfagao criativa, bara- lha as metaforas ¢ desloca as pedras demarcatérias da nplo, de: bbst agao, de sorte que, por exe gra c rio como o caminho que se move e que carrega o ‘Ao ao lo 1, do con homem em dire rumo ao qu trario, ele teria de caminhar. Agora, ele apartou de sia marca da subserviéncia: antes, dedicando-se com afinco a mérbida ocupagado de mostrar a um pobre individu, avido de existéncia, o caminho e as ferramentas e, qual um servical, empenhadoem roubar e saquear para o seu senhor, ele ag Ta se Lo nou senhor ¢ lhe 6 permitido remover de seu rosto a expressiio de indigéncia. Em comparagao com © que fazia antes, agora tudo o que faz traz em si a dissimulagio, assim como sua conduta anterior traaia em si a deformagio, Copia a vida humana, mas a toma por uma coisa boa e parece esi ar ple namente sa sfeito com ela. Aquele enorme ent blamento ¢ andaime de conceitos, sobre 0 qual o homem necessitado se pendura ¢ se salva ao longo da vida, é para o intelecto tornado livre apenas um cadafalso ¢ um brinquedo para seus mais audacio sos artificios: e quando ele o estragalha, embaralha e ironicamente reagrupa, emparelhando o que ha de mais diverso ¢ separando o que ha de mais proximo, ele entio revela que néo necesita daque- les expedientes da indigéncia ¢ que agora nao é conduzide por conceitos, mas por intuigdes. A par- tir de: 1s intuigdes nenhum caminho regular da 49 RDADE E ME acesso a terra dos esquemas fantasmagéricos, das sendo abstragdes: a palavra nao ¢ feita para ela que o homem emudece quando as vé, ou, entdo, fala por meio de metaforas nitidamente proibida ibinagdes conceituais inauditas, para ao me- nos corresponder criativamente, mediante o des mantelamento e a ridicularizagdo das antigas limi- tagdes conceituai: Ha é@pocas em que o homem racional e o 4 poderosa intuigao atual. homem intuitive colocam-se lado a lado, ur com medo da intuigao, outro ridicularizando a abstragdo; o Ultimo € tao irracional quanto o primciro é inartistico. Ambos contam imperar sobre a vida: este sabendo encarar as mais basicas necessidades mediante precaugio, sagacidade e regularidade, aquele, como “herdi sobreexaltado”, passando ao largo de tais necessidades e tomando por real somente a vida dissimulada em aparéncia e beleza. Onde o homem intuitivo, tal como na antiga Grécia, alguma vez manipula uas armas mais violentamente c mais vitoriosamente do que seu oponente, entao, sob circunstincias favoraveis, pode tomar forma uma cultura e fundar-se o dominio da arte sobre a vida: quela dissimulagio, aquele reptidio A indig@ncia, aquele brilho das intuigdes metaféricas e, em linh is, aquela gera imediatez do engano seguem todas as manifesta goes de tal vida. Nem a casa, nem a maneira de PZSCHE, andar, nem a vestimenta, nem a jarra de argila inventou; evidenciam que foi a necessidade que os tudo se passa como se em todos eles devesse ser declarada uma felicidade sublime ¢ um olimpico desanuviamento, bem como uma espécie de jogo com a seriedade, Enquanto o homem conduzi por conceitos e abstragdes apenas rechaga, por meio destes, a infelicidade, sem granjear para si mesmo uma felicidade a partir das abstragdes, en quanto ele se esfe ga ao maximo para libertar-se da dor, o homem intuitivo, situado no interior de ‘Ses, alérm da uma cultura, j4 colhe de suas intuig defesa contra tudo que é mal, uma iluminagdo continua e caudalosa, jibilo, redengao. Por certo, sofre om mais intensidade, quando sofre; sim, sofre at sabe com mais assiduidade, porque 1 aprender a partir da experiéncia, voltando a cair sempre no mesmo buraco em que ja havia caido. Ele é, a mi, tao irracional no sofrimento quanto na felicidade, grita alto e nio dispée de qualquer consolo. Qui diferentemente ali se coloca, sob 0 mesmo revés, o homem es dico versado na expe ri s de conceitos! Ele, nicia, que se governa atrav que de mais a mais s6 busca probidade, verdade, liberdade frente aos enganos e protegdo cont idade, a obra-prima da dissimulagao, tal como aquele na feli incursées ardilosas, executa agora, na infeli dad oulo 10 carrega um rosto humano, tré 51 52 | SOBRE VERDADE E MENTIRA movente, mas uma espécie de mascara com digna simetria de tracos, nao grita © tampouco muda sua voz uma vez sequer, Se uma vultosa nuvem de chuva de gua sobre ele, enrola-se em seu manto e, passo a passo, caminha lentamente para debaixo dela FRAGMENTOS POSTUMOS NOTA LIMINAR Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral foi ditado por Nietzsche ao colega Gersdorff no ve Go de 1873 a partir de apontamentos que, em io de 1872. T é claro, de fragmentos © anotagdes preparatérias 1 © cujo léxico nao se coaduna perfeitan realidade, remontam ao vy utico incomum gados a um horizonte hermen: ente con © vocabulario tecnico convecional. Todavia, con trariando a maxima estruturalista segundo a qual notas preparatorias nfo assumidas pelo autor onde © pensamento apenas se insinua e se experi menta — devem ser vistas como “/érets sem erenga e, filosoficamente, irresponsiveis”,' acreditamos que tais esbocos precisam ser levados em conside- ragio e compreendidos no registro especulativa a partir do qual se langam e ganham relevo. Se uma ascendéncia eles n iter 0 podem adqt pretativa absoluta sobre os trabalhos publicados ou preparades para publicagdo, possibilitam, ao aro acerea da menos, um discernimento ma Victor Geldschmidi, “Tempo histérico e tempo lagico na interpretagio dos sistemas filoséficos”. Em A religiito de Pla- tao, Ao Paulo, Difel, 1963, p. 146. NOTA LIMINAR formulagio camaleénica de certos problemas, isto 6, de questées que surgem num dado contexto, ‘em tao-somente mas que ressurgem e amadw noutras ocasides, variando de forma ¢ contetido de acordo com os diferentes patamares reflexivos em que se inserem. Dai, a oportunidade das paginas que se seguem. Acompanhando as indicagdes historico-filologicas da edigéo critica das obras completas de Nietzsche, organizada e estabele cida por Giorgio Colli e Mazaino Montinari, a ordenagao numérica dos fragmentos é seqiien- cial e cronolégica, mantendo-se a paginagaio da mencionada edigao. FRAGMENTOS POSTUMOS 19 [48], verdo de 1872 — inicio de he, Sdmtliche Werke. Kritische edrich Nietz: Studienausgabe, Giorgio Collie Mazzino Mon- im / Nova York, Walter de Gruyter, 434 tinari, Ber! A sentenga deve ser declarada: vivemos so- mente através de ilusdes, sendo que nossa consci éncia dedilha a superficie. Ha muita coisa que se esconde diante de nosso olhar. ‘Também nunca se deve temer que o homem termine por se econhecer inteiramente, que cle, a todo ins ante, penetre em todas as leis da impulsdo, da mecAnica, bem como em todas as formulas da arquitetura e da quimica que sao necessarias @ sua vida. E bem possivel que tudo se torne conhecido por meio de esquemas. Isso nfio altera em quase nada no: vida, Ademais, trata-se apenas de formulas para forcgas absolutamente desconhecidas. 58 | RAGMENTOS POSTUMOS 19 [49]. mesmo periodo, op. cit., p. 4 efe através da superficialidade de nosso intelecto: 0, numa ilusdo continua Vivemos, con para viver, precisamos da arte a todo instante. Nosso olho nos prende as formas. Se, no entanto, somos nés mesmos a adquirir, aos poucos, esse olho, entdo vemos vigorar em nés propries uma forca artistica, Vemos, pois, na natureza mesma, o filésofo mecanismos contra o saber absolut reconhece a linguagem da naiureza e diz: “preci samos da arte” e “carecemos apenas de uma parte do saber”. 19 [64], mesmo periodo, op. cit, p. 459. O ser sensivel precisa da ilusie para viver, Ai Galo. io & necessiria para progredir na civiliza © que quer o insacidvel impulso ao conhe ment Em todo caso, ele é barbaro. A filosofia proc ra domé-lo; constituinde, pois, um instrumento civilizatério. Os f osofos ma s antige 60 | TOS POSTUMOS 19 [G6], mesmo periodo, op. cit, p. 440. Nosso entendimento 6 uma for, pouco pro- funda, ¢ superficial, Ou, como também se lhe denomina, é “subjetivo”. Ele conhece através de concettos: isso significa que nosso samento é um rubricar, um nomear, Algo, portanto, que re- sulta de um arbitrio da homem e que nao remonta a propria coisa. Apenas mediante o cdlculo e tio- somente nas formas do espago possui 0 homem os Ultimos conhecimento absoluto, quer di limites do que pode ser conhecide sia guantida des, sendo que ele [0 homem|] nao compreende dade. nenhuma qualidade, mas apenas uma qu Qual podera entao ser a finalidade de tal forga superficial? Ao coneeito corresponde, em primeiro lugar, a imagem; imagens s&o pensamentos primordi ais, isto é, as superficies das coisas abreviadas no espelho do olho. imagem é uma coisa, 0 modelo maiemético é outra, Imagens nos alhos humanos! Eis o que domina todo ser humano: a partir do olAe! Sujeito! Q ou- vido escuta 0 sor ! Uma concepgao maravilhosa e inteiramente diferente do mesme mundo, A arte baseia-se na inexatiddo do othar. E tam- 61 bém a inexatidao do ouvido para o ritmo, o tem- peramento € rissa se f a, uma vex Mais, a arte. FRAGMENTOS POSTUMOS 62 | 19 [81], mesmo period, op. cit., p. 4.47. O sonhar como o prolongamento seletivo das lagens Opticas. No Ambito do intelecto, tudo o que ¢ qualitativo nao passa de um quantitativo. As qualidades somos conduzidos pelo conceito, pela palavra © homem reinvindica a verdade e a despende WV relagio moral com outros homens, sendo que nisso se baseia toda vida gregaria. As conseqiién clas ruin: das mituas mentiras sao por ele antect- padas. A partir dai surge, entiio, a obrigaca@o da verdade. Ao narrador pico é permitida a mentira, civo, As- pols, aqui, nfo se anteve nenhum efeito ni sim, la onde a mentira parece agradavel, ela é per- mitic dabilidade da mentira, a beleza e a agr desde que nao cause danos, Eis como o sacerdote forja os mitos de seus deuses: el ul ja [a mentira] jus: va sua sublimidade. [ incrivelmente dificil fa- zer com que o sentiment mitico da livre mentira volte a viver. Os grandes filésofos gregos ainda vi vem nesse consentimento a mentira. La onde nao se pode conhecer nada de verda deiro, a mentira é permitida A noite, ao sonhar, todo ho: nem deixa-se enga nar continuamente. A aspiracio @ verdade & uma aquisig&o infinita mente tardia da humanidade. Nosso sentimento Jo. Seri histérico é algo totalmente novo no mu el que ele reprimisse por completo a arte. A afirmagio da verdade a todo custo é socrdtica. pos: 63 NTOS POSTUMOS FRAGM 64 19 [106], mesmo period, op. cit., p. 454. 9 P F Pe 4545 Lutar por wna verdade é algo totalmente dis unto de lutar pela verdade. 1g [121], mesmo periods, op, cit., p. 458. © conhecemos a verdadeira neia de wna causalidade tintca. Ceticismo absoluto: necessidade de arte e ilu Go TOS POSTUMOS 66 | 19 [142], mesmo period, op. cit, p. 464. Todo conhecimento surge por meio de sepa ragio, delimitagio ¢ abreviagio; nao ha conhe mento absoluto de uma totalidade! NIETZSCHE 19 [157], mesmo periodo, op. cit. p. 468. 0 imenso consenso dos homens acerca das sas co iprova a uniformidade de seu aparato pe ceptivo. RAGMENTOS POSTUMOS 19 [158], mesmo period, op. cit., p. 468. Para o vegetal, o mundo é tal e t 1—e, para nés, tal ¢ tal, Se compararmos as duas forgas per ceptivas, a nossa oncepcao de mundo nos parecera mais correta, isto é, mais condizente com a ver- dade. O homem desenvolveu-se a passos lentos ¢ © conhecimento ainda se desenvolve: a imagem do universo torna-se, pois, cada vez mais veras e completa. Evidentemente, trata-se apenas de uma imagem refletida, e cada vez mais nitida. O proprio espelho, porém, nao é de todo estranho e contra rio 4 esséncia das coisas, senfo que também veio & tona vagarosamente como esséncia das coisas. Ve- mos um esforgo para tornar o espelho mais ¢ mais adequado: a ciéneia leva adiante 0 proceso natu- ral, Assim é que as coisas se refletem de modo cada vez mais transparente: libertagao gradual do que é demasiado antropomoértico. Para o vegetal, o mundo inieiro é vegetal, sendo que, para nds, é hum TZSCHE. 1g [160], mesmo periodo, op. cit. p. 46; eta in- Considero um equivoce falar de uma nite da humanidade, a ndo constitul wm cons¢ todo tal como um formigueiro. Pode-se talvez fa eta inconsciente de uma cidade, lar sobre uma 1 de um povo: mas 0 que significa falar a respeito da meta inconsciente de todos formigueiros da terra! FRAGMEN'TOS POSTUMOS 70 | 19 [165], mesmo period, op. ty pe 47a Conhecemos apenas uma realidade —a dos pen samentos, E se isso fosse a esséncia das coisas! Se memd: do fossem 0 material das e sen coisas! NIETZSCHE 19 [166], mesmo periodo, op. cit, p. 471. ece-nos © conceito de uma © pensamento fe forma inteiramente nova de realidade: ele 6 com- posto de sensaciio ¢ memoria. 71 NTOS POSTUMOS FRAGM 19 [175], mesmo periodo, op. cit., p. 475 Og Quando se acredita possuir a verdade, a vida a verdade faz com os homens! mais elevada e pura parece possivel. f crenpa na verdade é necessaria ao homem, A verdade vem a luz como necessidade social: por meio de uma metastase, ela 6 posteriormente aplicada a tudo aquilo que dela independe, ‘Todas as virtudes surgem a partir de caréncias. Com a sociedade, nasce a necessidade de veraci dade. Do cont ofuscamento. A fu o, 0 homem viveria em eterno idagaa do estado incita a veraci dade. O impulso ao conhecimento tem uma origem morad. Zz TZSCHE 19 [179], mesmo periodo, op. ¢ A natureza acomodou o homem em flagrantes ilusdes. Eis seu elemento proprio. Ele vé formas e, em vez de verdades, sente estimulos. Sonha e o sendo a na- gina para si homens divinos ec ture: O komem tornou-se acidentalmente um ser que conhece, por meio da unido nao intencional de du- plas qualidades. Algum dia, ele desaparecera e nada tera acontecido. Durante muite tempo eles [os homens] nao existiram e, quando eles préprios tiverem deixado de existir, no terao aplicado-se a coisa alguma les nao tém nenhuma missfio ou finalidade a eumprir. O homem é um animal extremamente patético e toma todas suas propriedades por algo de suma relevancia, como se os eixos do universo girassem nele. © semelhante lembra do semelhante e, com $80, passa a se comparar: eis o conhecer, o apres sado absumir daquilo que é similar. Apenas o se- melhante percebe o semelhante: um processo fisio- lagico. Aquilo que é memaria é também percepgao do novo, Nao pensamento sobre pe samento, 73 FRAGMENTOS POSTUMOS 1g [181], mesmo periodo, op. cit., p. 4 O valor objetivo de conhecimento — ele nao torna methor, Nao possui fins universais Gltim Seu surgimento é acidental. Valor da veracidade, Ela sim torna melhor! Seu fim é 0 declinio. FE. a sacrifica, Nossa arte ¢ cépia do conhecimento desesperado. NIETZSCHE 1g [182], mesmo periodo, op. c p. 476. A humanidade possui, no conhecimento, helo meio para o declinio. um S$ POSTUMOS RAGME 19 [185], mesmo periodo, op. c Que o homem tenha se torr 0 que ele é © nfo outra coisa, cis algo que se deve a ele mesmo: que tenha submergido na ilusdo (sonho) e se nado dependente da superficie (olho), eis 0 que constitui sua esséneia, Seria entao de admirar se 6 impulso 4 verdade resultasse, no fim das contas, de sua esséncia fundamental? TZSCHE. 1g [204], mesmo periodo, op. 1, p. 481. As abstracdes sio metonimias, isto é, permuta- gées de causa e efeito. Mas todo conceito é uma metonimia, sendo que, nos conceitos, o conhecer termina por se antecipar, A “verdade” converte-se num poder, assim que a liberamos como abstragao. FRAGM 78 | 19 [218], mesmo periods, op. cit. p. 488. ntira, O pathos da verdade num mundo da mi O mundo da mentira reencontrado nos m elevados cumes da filosofia Oc to do indelineavel impulso ao conhecimento. Surgimento do impulso ao conhecimento a par yjetive dessas elevadas mentiras 6 6 amansa- me! tir da moral. NIETZSCHE 1g [220], mesmo periodo, op. cit., p. 488. ‘Todo infimo conhecimento tem em si uma enorme satisfagao: nao enquanto verdade, m $ como crenga de ter descoberto a verdade. Que tipo de satisfacao é ¢ 72 FRAGMENTOS POSTUMOS 19 [228], mesmo periode, op. cit, p. 490. O imitar é, 1 propésito, o oposto do conhecer, j que este justamente nao pretende fazer valer ne- ss40 Sem nhuma transposigdo, mas reter a impre: metifora e sem conseqiiéne as. Para tanto, ela [a impressao | € petrificada: por meio de cone tos, a impressio ¢ capturada e isolada, e, depois de morta e esfolada, é mumificada e conse ada enquanto concelto, Nao ha, porém, quaisquer expressées “pré im como, sev me prias”, as dfora, néo hé nenhum conhecer propriamente dito. Mas nisso consiste © engano, quer dizer, a crenca numa verdade da el. As metaforas mais habituais, impressao sen: usuais, agora sei omo verdades ¢ medida em para as metaforas mais raras. Em si, vigora aqui a diferenca entre 0 familiar e 0 novo, o fregitente e o excepcional. O conhecer & téo-somente um operar com as metaforas prediletas, e, a ser assim, nada mais que uma imitagao do imitar sensivel, Ele 1 » pode, evi dentemente, penetrar no 4mbito da verdade. O pathos do impulso a verdade pressupde a ob- se! agiio de que os diferentes universos metaféri cos sio discrepantes e permanecem em luta, como, por ex plo, o sonho, a mentira ete. € a versao usual e comum: eis por que uma é a mais rara ¢ 81 a outra a mais freqiiente. O habito luta, pois, con- tra a excegio, o regular contra 6 mabitual, Dai a cautel da efetividade diurna diante do mundo dos sonhos. Oraro ¢ inabitual ¢, porém, o mais pleno de esté mulo—ar ntira é sentida como estimulo, Poesi RAGMENTOS P6S1 IMOS 1g [229], mesmo periodo, op. cit, p. 491. Na sociedade politica, um rigido acordo fa necessario, ja que ela se funda no uso comum de metaforas. Tudo o que foge ao costumeiro desestabiliza-a, aniquila-a inclusive. Utilizar cada palavra tal como a massa a utiliza ¢, pois, o mesmo que moral e conveniéncia poli ea. Ser verdadcira significa apenas nao se desviar do sentido usual das coisas. O verdadeiro é 0 existente, em contra posigio ao ndo-efetivo, A primeira convengio & aquela concernente aquilo que deve valer como “existente”. Mas, constrange a ser verdadeire produz a crenga de Lransposto & natureze, o impulso que que também a natureza circundante deve ser verdadeira, O impulso ao conhecimento baseia-se nessa transposicao. Por “verdadeiro” compreende-se, antes de mais nada, apenas aquilo que usualmente consiste na metafora habitual — portantoe, somente uma ilusio que se tornou familiar por meio do uso freqiiente e que ja nado é mais sentida como ilusdo: r etdfora esquecida, isto é, uma metifora da qual se esqueceu que é uma metafora. NIETZSCHE 19 [230], mesmo periodo, op. cit, p. 492. O impulso 4 verdade comeca com a forte obser- vagaio de quéo antipédicos sie o mundo efetive eo mundo da mentira, bem como de que quio incerta se torna a vida humana, se a verdade convencio- nalmente estabelecida nao valer de modo incondi- cional: hé que se ter uma conviegio moral acerca da necessidade de uma firme convengao, caso uma sociedade humana deva existir. Se em algum lu- r, entao isso tem gar o estado de guerra deve ce que se dar com a fixagio da verdade, isto 6, com uma designac@o valida ¢ impositiva das coisas. O mentiroso emprega as palavras para fazer com que © irreal venha a luz como algo efetivo, quer dizer, ele abusa do firme fundamento. Por outro lado, o impulso em diregao a metaforas sempre novas permanece presente, descarregando-se no poeta, no ator ete, e, em especial, na religido. O filé vigoravam as religides, o “efetivo”, o permanente, ofo também busca, no mbito em que isto ¢, no sentimento do eterno e mitico jogo da mentira. Ele quer uma verdade que permaneca. Estende, pois, a necessidade de firmes convengdes verdadeiras sobre novos ambitos FRAGMEN TOS POSTUMOS 8+ | 19 [254], mesmo periodo, op. cit., p. 493- Gostaria de tratar da questao acerca do valor do conhecimento tal como um anjo frio que penetra na inteira escumalha. Sem ser maldoso, mas sem cori 19 [255], mesmo periodo, op. ci +s Ps 495+ ‘Todas as leis naturais sao tio-somente relagdes de um X com ¥ eZ. Defintmosas leis maturais como relagdes entre X, Ye sis por que tudo se vos torna hovamente conhecido apenas como relagdes entre ros X, ¥ eZ. FRAGMENTOS POSTUMOS 19 [236], mesmo periodo, op. cit, p. 495 1 forma Der possui apenas da tautologia e é vazio, Todo conhe imento por nés promovide consiste numa identéficagdéo do nao igual, do semelhante, quer dizer, trata-se de algo essencialmente ildgico. Somente por esse trilho adquirimos um con ceito, sendo que, depois, agimos como se 0 conceito “homem” fosse algo real, quando, no entanto, ele odos é por nés formado mediante a abstragao de 0s tragos individuais, Pressupomos que a natureza procede de acordo com tal cor ito: mas, aqu a natureza, bem come o conceito, é antropomartica A falta de consideragao pelo individual fornece-nos © conceito e, com isso, tem inicio o nosso conhe- cimento: no rubricar, nas tabulagdes de géneros. das coisas nao corresponde, porém, a i coaduna com a esséncia das coisas. Muitos tragos sso: é um processo de conhecimento que néo se particulares podem definir uma coisa, mas nao to- das: a igualagiio desses tragos nos da o ensejo para agrupar muitas coisas sob um sé coneeito. Enquanto portadores de propriedades, produz mos esséneias e abstragSes como causas de tais pro priedades, Que uma unidade — co ), por exemplo, uma arvore se nos apresente como uma multiplicidade de propriedades, de relagdes —, eis algo a ro- pomdérfico num duplo sentido: antes de mais nada, ¢ fa, “ - de algo que foi arbitrariamente unidade delimi rvore”, nao existe, trata- seccionado (de acordo com o olho, corm a forma); e, ademais, nenhuma do istitui a relagao verdadeira ¢ absoluta, senféo que ¢, novamente, colorida antropomorficamente. FRAGMENTOS POSTUMOS 88 | 19 [240], mesmo periodo, op. cit., p. 4¢ O mundo é aparéncia — mas nado somos tunics e exclusivi nente a causa de seu aparecer, Ele tar bém é irreal a partir de um outro lado. 19 [242], mesmo periodo, op. cit, p. 495. A esséncia da definigéo: o lap é um corpo alongado ete. A ép. Aqui, aquilo que é alongado 6 a0 mesmo tempo, colorido, As propriedades contén apenas relagies, Um corpo determinado equivale a tais ¢ tais re- lagdes, Estas jamais podem ser a esséncia, mas ape as da esséncia, O juizo sinté is cor eq iiéne descreve uma coisa de acerde com suas conseqiién- clas, isto @, esséncia e consegiténcias sio tdentifica- das, quer dizer, uma metonimia Assim, na esséncia do juizo sintético acha-s uma metonimia; ou seja, trata-se de uma identifi- cago enganosa. {outros termos, as inferéncias sintéticas sdo ilé- gicas. Quando as empregamos, pressupomos a me- tafisi 8. ca popular que toma efeitos por cau: O conceit “lapis” é trocado pela “coisa” lapis. © “6” contido no juizo sintético é falso, encerra uma transposigao por meio da qual duas esferas distintas si colocadas lado a lado, sendo que entre > uma igualagdo. ambas jamais pode dar Vivemos ¢ pensames sob indisfar do i/6gico, na ignorancia e no falso saber, 89 FRAGMENTOS POSTUMOS 90 | 19 [244], mesmo periodo, op. cit., p. 496. De onde vem, no inteiro ur verso, 0 pathos da verdade? Ele nao aspira i verdade, mas a crenga, a confi anga em algo. 19 [249], mesmo periods, op, cit, p. 4.98. Metdfora significa tratar como igual algo que, num dado ponto, foi reconhecido como semethante. OL FRAGMENTOS POSTUMOS 92 | 19 [254], mesmo periodo, op. cit., p. 499- O filésofo busea Nao, pois, nesse caso, esperar-se-ia del a verdade? seguranga, A verdade é fria, a crenga ua verdade é¢ pode- rosa. 19 [258], mesmo periodo, op. cit., p. 500. A verdade é indiferente ao homem: isso revela a tautologia como sendo a tinica forma acessivel da de, verd. Pois, buscar a verdade também significa rubri- car com exatidao, isto é, subordinar corretamente os casos individuais a um conceito existente. Aqui, porém, o conceito é um feito que nos pertence, tal das. Subsumir o mundo in como as épocas pas teiro em conceitos precisos significa tdo-somente enfileirar as coisas particulares sob as formas de re lagio mais gerais e primordialmente humanas: a ser assim, os conceitos sb avestam aquilo que intro- duzimos neles e que, mais tarde, procuramos nova mente sob eles — o que, no funda, também é¢ uma tautologia 03 o4 | FRAGMENTOS POSTUMOS 29 [14], veraio — outono de 1875, op. cit. p. 651. Nao ha um impulso ao conhecimento e a ver- dade, mas t@o-somente um impulso 4 crenga na verdade, O conhecimento puro é desprovido de im- pulso. Capa e projets grafico Programacio em LaTeX — Diagramacdc em LaTeX Imagem de caps Revisao — Colefio Julio Dui e Renan Costa Lima Marcelo Freitas André Fernandes & Jorge Sallum Jo, Law de Jiipiter (Nasa) André Fernandes e Bruno Costa Adverte'se aos curiosos que se imprimiu esta obra nas oficinas da grafica Vida & Consciéncia em 7 de novembro de 2007, em papel off-set go gramas, composta em tipologia Walbaum Monotype de corpo vito a trese e Courier de corpa sete, em plataforma Linux. SVN e Trac.

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