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FACULDADE DE LETRAS DO PORTO. ESPIRITUALIDADE E CORTE EM PORTUGAL (Séculos xvi a XVIII) Porto, 28 a 30 de Maio de 1992 INSTITUTO DE CULTURA PORTUGUESA PORTO — 1993 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Série «LINGUAS E LITERATURAS» ‘Anexo V ESPIRITUALIDADE E CORTE EM PORTUGAL. Porto, 28 a 30 de Maio de 1992 Espiritualidade ¢ corte em Portugal: séculos XVI a XVIII. — Porto : Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras do Porto, 1993. — 264 p.; 24cm. Anexo V da Revista da Faculdade de Letras; Série Linguas ¢ Literaturas BIBLIOTECA CENTRAL — SERVIGO DE PUBLICACOES Rua do Campo Alegre, 1055 + 4100 Porto + PortucaL. NOTA DE APRESENTACAO Representa este volume as «Actas» do coléquio Espiritualidade e Corte nos Séculos XVI a XVIII em Portugal que se pensou ndo s6 como um modo de traduzir alguma da actividade de investigacdo do Instituto de Cultura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas também como uma tentativa de materializar, através da aproximacdo a um tema Particularmente fecundo — e quase inexplorado —, algumas das pistas de investigacdo que se foram perfilando no coléquio anterior (1986) dedicado @ examinar algumas das Problematicas de Histéria Cultural (Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Instituto de Cultura Portuguesa, 1987). Como entdo, mesmo sabendo que, por esta vez, ndo poderfamos contar com a presenca «espevitante» de um Hans U. Grumbrecht, optamos voluntariamente — e ndo s6 por razées de ordem econémica ou de especializagao de matéria — por um coléquio de tipo semindrio que permitisse aos participantes ndo s6 ouvir, mas também imtervir, inclusivamente, para além do que costuma considerar-se razodvel, Em principio s6 um pequeno grupo pode dar-se a esse aristocratico luxo de (abjusar, com eficdcia, do tempo e da benevoléncia. A escolha do tema foi derminada por um motivo quase Sbvio: a centralidade da corte nos tempos modernos, centralidade essa que em Portugal the permitia funcionar pacificamente — 0 que ndo quer dizer tranquilamente —, mercé de uma série de «instrumentos» (sociais ¢ institucionais) e de um espaco nacional de relativamente facil controlo, como um foco irradiador e normalizador da espiritualidade e do sentimento religioso que a envolviam. Espiritualidade e corte deveriam, assim, aparecer como dois referentes que, até certo ponto, se co-definem..., se interpenetram... e se propéem paradigmaticamente. Por isso, a partida, no se privilegiou qualquer deles na esperanca de que as perspectivas de andlise € de debate se encarregassem de evidenciar convergéncias e solidariedades ‘muituas. Umas e outras, como se verd, estendem-se (entendem-se) desde a organizacdo da Casa real como ponto de cruzamento de liturgias — essas liturgias que a capela real evidencia ostensiva e ostentoriamente pelo gesto ritualizado e pela pregacéo nao menos ritualizada da palavra sacra — até a exploracdo politica de «santos profetas», passando pela proposta de Ss modelos de educagao para damas..., de «bibliografia» para cortesdos devotos... € pela meméria de ditos e conflitos de gosto e de etiqueta... Isto ara ndo falar dos seus retéricos anseios de evasdo (a aldeia de uma aurea mediocritas inalterdvel...) e dos seus envolvimentos no alvitre politico... A Exposicdo que entdo decorreu, de encadernacées com Super-Libros (ou, Se se preferir, de Ex Libris exteriores) herdldicos, muitos deles apostos em obras de cardcter religioso — do simples livrinho de devogdo particular a obras de hagiografia — poderd ter permitido «visualisar», de'algum modo, tais convergéncias e solidariedades... Infelizmente, ndo foi possivel, a tiltima hora, contar com a colaboracdo do Prof. Carlos Pérez Reyes, Catedrdtico de Histéria da Arte na Universidade Complutense de Madrid, e do Doutor José Luis Peset Reig do CS1.C. (Madrid). A funcdo da escultura no jardim de palécio e as liturgias académicas da universidade quinhentista ficaram, por essa razéo, apesar das garantias da Amizade, sem hist6ria. Esperamos, contudo, voltar a contar com a sua presenca quer no ambito do Instituto de Cultura Portuguesa quer no do recém-criado Centro Inter-Universitério da Historia da Espiritualidade em Portugal, da Universidade do Porto. Cumpre-me agradecer em nome do Instituto de Cultura Portuguesa a todos os que nos deram a honra de participar nesta iniciativa e, de um modo especial, ao Prof. Doutor Carlos Azevedo, entdo Presidente do Consetho Directivo da Faculdade de Letras do Porto, a prontiddo com que apoiou logistica e financeiramente a sua organizacdo; ao Conselho Cientifico da Faculdade, na pessoa do entdo seu Presidente Prof. Doutor Oliveira Ramos, 4@ sua aprovacdo; ao Prof. Doutor Candido dos Santos, Vice-Reitor da Universidade do Porto, as facilidades de utilizagao das instalagées do Circulo Universitério do Porto; aos ilustres livreiros senhores Comendador ‘Nuno Canavez e Luts Barroso a generosidade com que acederam a expor os preciosos exemplares das suas coleccdes de Super-Libros; e, finalmente, de uma maneira muito especial, ao Prof. Doutor Jorge Osorio, coordenador da Revista da Faculdade de Letras do Porto (Série de Linguas e Literaturas) que, para além de ter aceitado propor ao Conselho Cientifico a inclusdo destas «Actas» na série de «Anexos» da mesma Revista, se prontificou a encarregar-se de tudo o que dissesse respeito a ainda imprescindivel Nobre Arte de Tipografia. Porto, II de Maio de 1993 José Adriano de Freitas Carvalho REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —LINGUAS E LITERATURAS ANExO V— ESPIRTUALIDADE CORTE EM PORTUGAL, SECS. 1 -XVII, PORTO, 1993. Erasmo, a cortesia e a piedade Jorge A. Osério* Numa obra elaborada no inicio da segunda metade do séc XII, 0 Policraticus, Joio de Salisbiria tentou incorporar todo um saber politico de contexto feudal, caracterizado pelas concepgées do servigo vassélico proveniente do século anterior, percorrendo problemas como a res publica, © principe e 0 seu governo, a lei e a tirania, o poder da Igreja, Tratava-se de uma obra enciclopédica, no s6 no sentido de que compilava 0 con- junto dos saberes sobre esta temética, mas também no sentido de que essa mesma compilagio representava 0 mundo de referéncias dispontveis no campo da doutrina politica, pelos anos em que Chrétien de Troyes trazia para o discurso literdrio da corte francesa as narrativas de aventuras cava- leirescas que, sob a forma do romance cortés em verso, buscavam exem- plificar também a dignidade do feito guerreiro bem como das relagdes privilegiadas que o rei devia cultivar com os seus servidores na guerra. De facto, 0 Policraticus organizava-se, no fundo, como um tratado sobre 0 governante, 0 que implicava uma doutrina sobre o principe, na sua condi- do de vigirio de Deus, sobre os seus deveres e altitudes, no género dos specula principum que proliferam do séc. XII em diante, até que a difustio da Politica de Arist6teles se processe de forma mais extensa. Ora 0 subtitulo do Policraticus era’ precisamente De nugis curialium et vestigiis Philosopharum, traduzindo de forma explicita a importancia que a corte detinha, enquanto circulo directamente ligado ao rei com capacidade para intervir na administragdo dos assuntos politicos e sociais. A inscrigiio do termo nugae nesta designag3o aponta para uma vasta literatura anti-curial € depreciativa, como 0 De nugis curialium desse Walter Map, cujo nome * Universidade do Porto, viria a ficar ligado a uma das redacgGes em prosa sobre a grande «aven- tura» da corte arturiana para encontrar o graal', Deste modo se enraiza um tipo de discurso anti-cortés que vai insti- tuir um didlogo entre defensores e adversérios da corte e dos modelos de comportamento que com ela se poderiam identificar e que, em certa medida, iré passar pela fronteira entre perspectivas aristocriticas e pontos de vista mais defendidos pelos homens da cultura literéria 2, ‘Ora os ambientes © os locais onde esta problemitica nos aparece explorada foram, de facto, as cortes. At a importéncia do fenémeno erético ocupou uma largufssima drea da reflexio ¢ da meditagio, sobre- tudo na fase final do que, na linguagem poética de Johan Huizinga, se designa por «outono da Idade Média». Com esse fim, as cortes medievais foram instituindo, desde os tempos carolingios, formas especificas do dis- curso, em verso e em prosa, assim como promoveram a valorizagio de Iéxicos e de linguagens em dominios t4o variados como a miisica, a pin- tura, 0 teatro, de uma maneira tal que nenhum outro pélo de cultura foi capaz de fazer de forma sistematica durante séculos na historia da Europa. Quando sobrevém o séc. XVI, a corte € uma instituigd0 fortemente enrai- zada © consolidada no sistema politico, cultural e social dos Estados, 0 que justifica também a concentragdo de atengdes sobre ela e a emergéncia de uma literatura que fica marcada, a partir do Cortegiano no primeiro quar- tel do séc. XVI, pela perspectiva politica do cortesdo >. Nestas condigées, poder-se-ia talvez considerar que a corte foi a instituigao da histéria euro- peia emergente da reorganizagio que sucede & desmontagem do Império Romano que, de forma mais constante, acompanhou 0 processo de conso- lidagdo do poder real e, concomitantemente, da formagdo dos Estados ao longo da Idade Média e dos tempos modemos. * Cir. Curtis, E. R.— European Literature and the Latin Middle Ages, trad. inglesa, 2 ed., Princeton University Press, 1967, Excurso XVI, «The «Chivalry System of Virtues»», P. 5195s. * Um estudioso italiano, num tivro dedicado & questio da consciéncia literSria na Idade ‘Média, salientou que nove décimos da literatura e do pensamento medievais se podem consi- derar absorvidos pela ideal do amor (0 amor profano, como 0 corits, e © amor religioso, como ‘8 caridade), numa busca constante de apaziguamento do conflito entre o amor da alma, que aspirava espiritualmente ao cu, ¢ 0 amor do corpo, atraido, no seu grau mais intenso, pela luxtria, Esta dicotomia, que se revestiu de forma polémica mais de uma vez, manifesta-se na -«nogio sensibilissima e quase dolorosa ¢ obsessiva do fenémeno erético», para cuja lingua- ‘gem Ovidio foreceu, a0 longo dos séculos Xi, XIII e XIV, a principal referéncia autora. fr. Bartaatia, L. — La Coscenzia Letteraria del Medioevo, Népoles, 1965, p. 28 > Cr. CaRvALHO, José Adriano de — A leitura de «ll Galateo» de Giovanni Della Casa na Peninsula Ioérica: Dantisco de Frias, L. Gracidn Dantisco e Rodrigues Lobo, «, 5-1987, Genebra, p. 4s. Para a questio do relacionamento do rei com a nobreza, em tempos de D. Joao Ill, vid, Aunty, Jean — La noblesse ttrée sous D. Jodo Ill: inflation ou fermewre?, «Arquivos do Centro Cultural Portugués», XXVI, Paris, 1989, p. 417s; Le Capitaine Leitdo: un sujet insatisfait de D. Jodo Ill, «Revista da Universidade de Coimbra», XXX, Coimbra, 1984, p. 87s. Cir. ainda Maceo, Jorge Borges de — Para o estudo da mentalidade portuguesa do século XVI. Uma ideologia do cortesdo. As Sentencas de D. Francisco de Portugal, «Revista», n 78, Lisboa, ICALP, 1987, p. 73s. u Deste modo, pode dizer-se que a corte constitui uma espécie de espago fechado, que tende progressivamente a ser definido como um espago com uma linguagem prépria, que 0 senhor interpreta como a sua audiéncia ou a cena do teatro da sua palavra ®. Nesse espaco cultivam-se formas variadas do discurso e da expressividade, tendencialmente formas breves e teatralizveis da palavra (0 dito, a invengo, a poesia de tipo cancioneiril, a écloga, a novela, 0 soneto, etc.), que caracterizam o ambiente cortés e se articulam bem e eficazmente com a fungdo que a corte também desempenhou, face ao principe: um escudo protector, como que uma zona intermédia entre o principe eo exterior, mas também € ainda um teatro do jogo politico que o monarca procurava manipular a seu gosto. No fundo, um espaco definido, delimitado e codificado pelo monarca para a circulagio de figurantes que pertencem a origens e tra- digdes sociais ¢ politicas por vezes distintas, mas que interessava ao rei manter em estado de quieta e sossegada submissio ™, O que ficou dito atr4s nao visava sé fazer uma introdugdo ao que Poderd ter sido a atitude de Erasmo sobre a corte, mas também e funda- mentalmente equacionar alguns vectores de uma tradig&o que estava pre- sente no pensamento € no jogo de referéncias do Holandés, sempre que evocava a instituigao cortés no interior dos seus textos, quase sempre com intuitos de exemplificagdo negativa e condenatéria. Por outras palavras, hd que olhar para as alusdes ou evocagées de Erasmo a propésito da corte como inseridas em perspectivas de tradigo doutrindria e moral, mais do Que reflectindo uma percepcdo do fenémeno histérico, social € politico que a corte vinha exercendo hé cerca de quatrocentos anos. Antecipando um pouco o sentido das linhas subsequentes, talvez possamos considerar Que Erasmo nio se deu conta da importancia histérica da corte nem do que ela significava no momento politico do seu tempo. E, no entanto, Erasmo foi dos homens que, nos primeiros quarenta anos do século XVI, de forma mais variada conheceu a Europa culta. Para Erasmo, a corte aparecia como um pélo de referencias negativas assentes numa alusdo mais religiosa e devota do que politica. Por isso, nio podia ver nela um espago de «vinculagao recfproca» entre a actividade intelectual e as estruturas do poder, tema a que ele todavia ndo foi RONCAGLIA, Aurelio — Le corti medieval, in «Letteratura italiana», vol. 1, Turim, 1982, p. 33s. "9 Vid. Berra, Sergio — 1! concetto di corte, in «Ragione e Civilitas. Figure del vivere associato nella cultura del’ 500 europeo», Milio, 1986, p. 141s. ® Cir. BIGALLI, Davide — «Justtian € econsensus»: figure del sovrano nel Cingue- ento portoghese, in «Ragione e civilitas», cit, p. 955. % Roncactin, A. — Le corti medieval cit, p. 33 12 alheio. Quer isto dizer que Erasmo se coloca de fora de todo 0 movimento de gradual cortesanizagio das formas de expressio cultural, especialmente literdrias, observével entre 0 séc. XII e 0 séc. XVI”. Um bom exemplo encontra-se na maneira como Erasmo aprecia 0 gosto pelas leituras de narrativas de ficgdo da tadi¢o cavaleiresca, como as de Lancelote e de Amadis, condenando-as por nocivas para a formagio moral dos leitores, numa postura que era alids corrente entre os humanistas. Erasmo ndo via nessa literatura quaisquer méritos e por isso no estava em condigées de avaliar 0 seu contributo para a formagdo do gosto cortés, nomeadamente no capitulo da utilizagdo da prosa em lingua vulgar”. O fosso que sepa- rava Erasmo desta cultura passava também por aqui. Nestas circunstincias, para Erasmo a corte nao constitufa uma refe- réncia a ter em conta na perspectiva de um discurso que era escrito em latim como 0 seu ¢ que era destinado preferentemente a homens de letras com preocupagées religiosas mais ou menos interiorizadas. De facto, embora tenha permanecido algum tempo em Itilia, onde a cultura das cortes atingia, nesses primeiros anos do séc. XVI, indices notéveis de esplendor, que faziam de algumas delas pélos de cultura muito dinamicos, Erasmo no manifestou aprego particular pelos meios cortesios. E que para ele a corte no podia ser evocada como referéncia para a pritica de comportamentos directamente tteis para os cristios do seu tempo e, por conseguinte, os meios corteses no representavam um auditorio a ter em considerago particular. Deste modo, ainda que, com fundamento numa matriz humanista muito semelhante, se possa falar de coincidéncias entre a concepgio eras- miana do principe ¢ a de Castiglione *, existe no entanto uma forte diver- géncia. E que Erasmo permanece essencialmente numa perspectiva que Tecuperava uma tradigdo letrada medieval, bastante orientada para a apre- sentagdo de regras de conduta, sustentadas, na sua dimensio didéctica, por formas pedagégicas do discurso, como a concio ou sermio, a carta, a oratio, a declamatio, enquanto no autor do Cortegiano € toda uma filoso- fia de base sobre 0 homem de armas visto na forma do cortesdo que est4 equacionada *, com o fim explicito de justificar a utilidade do homem de ® Mas também das cincias, como a medicina; eft. RONCAGLIA — Le corti medievali, cit. p. 86, p. 88. E tenhamos em consideragio a produgio de prosa cientfiea na conte de Afonso X de Castela » Cir. FLoniant, Piero — 1! dialogo ¢ la Corte nel primo Cinguecento, in «La corte e il Contigiano. I — La scena del testo», Roma, 1980, p. 87. ™ Cir. Gaeta, Franco — Dal comune alla corte rinascimentale, in «Leteratura italia- na», cit, I, p. 248, ® Vid. a «lntroduslo» de Amedeo Quondam a CASTIGLIONE, Baldassar — I! Libro det Cortegiano, 3. ed., Milfo, 1990, p. XUls. 13 corte num contexto claramente moderno*. Isto assinala uma diferenga efectiva: Castiglione investia fortemente no aproveitamento da contribui- ¢40 das filosofias idealistas de filiagdo platonicizante, nomeadamente mediante a forma dialogada do discurso, e por isso enfatizava a corte como teatro desse espectéculo mundano que era a manifestago do homem superior, por isso mesmo destinado & fungo de complementar o principe, sublinhando a sua necessidade para 0 exercicio do poder politico. Vista a questo por este prisma, o livro de Castiglione representava de facto uma inovagdo, enquanto Erasmo se situava numa linha muito mais tradicional; bastaré anotar que no Enchiridion o princfpio fundamental que ordena todo 0 modelo de vida proposto para o cristio se reveste da forma de uma regra, «Vigilandum esse in vita». A verdade é que Erasmo estava preo- cupado por outro tipo de questdes ¢ dirigia-se a um auditério que nfo se identificava necessariamente com o piblico cortés, independentemente do facto de ele se ter correspondido com muitas individualidades dos meios cortestios. Atentemos, por conseguinte, em alguns textos de Desidério Erasmo onde é possfvel verificar, de forma mais evidente, a sua postura critica perante a corte. Utilizemos a Confabulatio pia sive pietas puerilis, 0 Enchiridion militis Christiani e a Institutio principis Christiani. primeiro texto referido aparece na edi¢do dos Colloquia feita em Basileia por Froben, em margo de 1522, num momento em que as «con- versagdes familiares» de Erasmo surgem a piblico assumidas pelo seu autor, que aproveita a oportunidade para ampliar de forma notével um livro que alegadamente corria sem a sua autorizagio. A ediglo de marco de 1522 — e note-se que logo em julho-agosto Froben faz sair uma outra, aumentada com uma nova redaccao do célebre Convivium religiosum e com a Apologia de Johannes Reuchlin — trazia perante 0 publico uma colecgio de didlogos ostensivamente enderegados a um auditério juvenil, constituido por estudantes das letras, em quem Erasmo, quigé sob a influéncia da sua prépria experiéncia biogréfica, pressentia angustias desejos de fundo religioso e existencial, para os quais pretenderia contri- buir com alguns escritos ”. A Confabulatio pia, depois de 1524 conhecida principalmente por Pietas puerilis, evoca ao leitor uma situagdo cénica bastantes vezes utili- % Trata-se de uma vasta problemética, relacionada com a prdpria tradigo cultural ¢ erudita fortalecida no Renascimento pela literatura politica da Antiguidade; cfr, SOARES, Nair Castro — O principe ideal no séc. XVI e 0 «De Regis instiuione et disciplina» de D. Jerdnimo Osério, Coimbra, 1989. ® Sobre a utilizagio retérica de dados biogréficos em Erasmo, cfr. BIETENHOLZ, Peter G.— History and Biography in the Work of Erasmus of Rotterdam, Genebra, 1966, p. 57s. 14 zada por Erasmo nos Colloquia, de clara inspiraco terenciana, Trata-se de uma cena urbana, baseada num encontro de rua entre dois interlo- cutores, Erasmius™ e Gaspar, que de certo modo evoca a Domestica confabulatio, uma das «férmulas familiares» constante da mesma edigio frobeniana de 1522. Notemos que o sintagma pietas puerilis evoca um outro, civilivas puerilis, que se impée na literatura pedagégica a partir de meados do séc. XVI™, para denotar a capacidade que os jovens deveriam adquirir para viverem em comunidade com os outros, 0 que implicava, por sua vez, a aprendizagem de um saber polarizado essencialmente em torno do individuo. O termo civilitas pertence ao latim pés-ciceroniano, sobretudo na dimensao semantica de «benignidade», «bondade», «simpli- cidade», tudo aspectos que giram a volta do ideal de um relacionamento pacifico amAvel com os outros. Por baixo estava 0 sentido de civilis, profundamente marcado pelas referéncias originais de politico no voca- bulirio socritico-platénico, que Cicero utilizou também ®. Ora é bom ter presente que Erasmo publicou em 1530, portanto jé quase no fim da sua vida, um tratadinho dividido em sete capitulos, intitulado De civilitate morum puerilium *!, com preceitos muito pragméticos sobre 0 comporta- mento diério do jovem, num latim que, nfo obstante a aparente facilidade, indiciava que 0 auditério visado era ainda e também o pablico letrado humanista. Neste discurso normative a pietas aparecia evocada como devotio, isto € reportada As modalidades do comportamento religioso exte- rior que néio pudessem ser identificadas como desvios de uma mediania sabia que 0 adolescente devia aprender precisamente na letras uteis. Para fazer passar esta mensagem, Erasmo recorria a estratégias que Ihe pareciam de grande eficécia, como era 0 uso do didlogo. Deste modo, © que importa aqui anotar no caso da Pietas puerilis € a sugestio de familiaridade que 0 texto quase teatral do didlogo inculca no leitor, factor de persuasio e envolvimento do mesmo leitor que nao pode desligar-se da intengdo pedagégica por que vai passar toda a exposicZo doutrindria sobre 0 comportamento devoto do jovem, Por af passa efectivamente uma estratégia muito habitual no discurso doutrinador de Erasmo: insist % Filho de Froben. » Para o séc. XVII, eft. $aNT0S, Zulmira C. — Racionalidade de corte e sensibilidade barroca: Os «Avisos para o Paco» de Luls Abreu ¢ Mello, in «Actas do 1 Congresso Interna- ional do Barroco», vol. Il, Porto, 1991, p. 381s. 2 E preciso ver, no entanto, que em castelhano o termo civil assumia, no séc. XVI, também um sentido de «vil» e de «cruel», © que eve incidéncia no processo de tradusao do Cortegiano para essa lingua. Sobre isto, vid MORREALE, M. — EI mundo del Cortesano, «Revista de Filologia Espafiola», XLII (1958-59), Madrid, 1960, p. 229s. Sobre isto, vid. ManGOUN, Jean-Claude — La «Civilité puérile» selon Erasme et ‘Mathurin Cordier, in «Ragione ¢ Civilitas», cit, p. 198. 1S numa familiaridade sugerida pelo recurso a situagdes dialogadas com intervenientes revestidos também de uma verosimilhanca familiar que enfatiza a coloquilidade do texto e fortalece a eficécia da lig, Ora na Confabulatio pia essa estratégia reveste-se de um significado importante para a tarefa que se nos pOe aqui, de avaliar 0 modo como Erasmo equacionava as relagdes entre a coriesia e a piedade. A ideia de pietas, cuja exemplificagao 6 proposta ao leitor através da conversa entre 08 dois amigos, pressupde um auditério identificado com 0 populus Chris- tianus, entendido este numa dimensio seméntica que se articulava, em ultima instncia, com a ideia de menosprezo pelas coisas terrenas, no que Erasmo inclufa as atitudes mais exteriorizadas da devoco. Por isso, a0 comentar a assergiio de que «Sed sunt qui se non credant esse Christianos, nisi quotidie missam, vt appellant, audierint» ®, © interlocutor Gaspar esclarece que, embora nfo queira condenar priticas institufdas, sobretudo no relativo aqueles que tém uma vida muito ocupada em assuntos e afazeres profanos, critica, por pemiciosa, a atitude de «superstition de muitos que saem direitos da igreja para se dirigirem «vel ad negotiationem, vel ad praedam, vel ad aulam» ®, imputando ao facto de assistirem 4 missa tudo 0 que de favordvel Ihes vier a suceder. O que importa aqui assinalar € a sequéncia frisica em que surge o termo aula: Precisamente na enumeracio daquelas actividades profanas e prejudiciais para a formacio devota do jovem cristo que 0 didlogo postula como leitor adequado ™. Nestas circunsténcias, e como é corrente em Erasmo, a aula é situada no plano do superstitiosus, oposto frontalmente ao religio- sus € a0 piedosus. Deste modo o ir «ad aulam» pertence & categoria do ir «ad praedam» e distingue-se radicalmente do ir «ad templum» e do ir «ad ludum». E que, nesta pedagogia muito orientada para um leitor identifi- cado com 0 adolescente que estuda as litterae humaniores, 0 estudo e a piedade constituem duas facetas de uma mesma questio: a da concepgio da felicidade do cristio, segundo Erasmo. $6 que, como € evidente, 0 aulicus néo partilha o grupo daqueles que a podem alcangar. Erasmo fala muito de pietas, mas no de corte. A insinuagdo menos positiva em que envolve a opiniio que tem sobre esta manifesta-se, por isso, de forma variada, nomeadamente na evocagGo dos aulici no mesmo ® Opera Omnia Desiderit Erasmi Roterodami, 1-3, Amesterdio, 1972, (ASD), p. 176.1 1661-2. 3 ASD, 1. 1666-7, ™ Cir. MaRGouN, Jean-Claude — La ecivilité puérile» selon Erasme et Mathurin Cor- dier, in «Ragione e civilits», cit, p. 198. 16 plano — e, no interior do texto, em sequéncias enumerativas conforme Ihe € to habitual — dos monachi e dos sacerdotes. Ora € do conhecimento geral a linguagem de diatribe e por vezes quase vitupério que Erasmo utiliza. a propésito dos que assumiam estas modalidades de vida religiosa. E na Vidua Christiana, que Erasmo faz editar num livrinho de pequeno formato em Basileia em 1529, que podemos encontrar um dos melhores textos erasmianos enderegados ao «menosprezo da corte», para uusarmos a expresso de Fray Antonio de Guevara: «Sed donemus aulam vulgarem, in qua regnent delitiae, luxus, choreae, alea, chartae, moriones, nugae, fuci, lascivia, profusio, ‘pum ostentatio, fastus, ambitio, adulatio, stultitia. Nam haec est fere summa vitiorum, Magnatum aulis familiarium> *, que recorda outros passos célebres do Holandés, como este do Enchi- ridion: «Aulicam vitam quis nescit esse aerumnarum plenam, nisi vel inexpertis, vel certe stultissimus? Deum immortalem!...» %. Em ambas estas frases convém atentar na presenga do procedimento literdrio j4 aludido, habitualmente posto em pritica por Erasmo — como, alids, por muitos outros autores moralistas —, o qual consiste em ampliar a frase & custa de enumerationes que procuram suscitar no leitor a imagem do desdobramento de um catdlogo de vicios mais ou menos coneretizados (por ex. «aerumnarum plenam»). Deste modo, ao aplicar A caracterizago da corte procedimentos de construgdo do seu discurso literdrio que nor- malmente utilizava para a evocagdo deformativa de comportamentos humanos criticdveis, Erasmo inseria a corte na mesma categoria des- prezivel da stultitia "”. E 0 léxico convocado para enfatizar as conotagdes menosprezadoras da vita aulica era colhido nos campos sémicos dos pra- zeres sensoriais, como voluptas, cupiditas, servitudo, delitiae ou expres ses do tipo «rerum non necessariarum cupiditas», «cupiditas ardor», « Erasmo — Opera Omnia, Lovaina, 1703-6, (LB), V, 732 A. » LB, V, 23 E; ERAsMo — Ausgewdhite Werke, ed. de Hajo Holbom, Munique, 1964, p. 60, * Deve notar-se que a nogo de stultita em Erasmo andava ligada 8 ideia de auséncia ou perda da liberdade, por exemplo a contagio corporis, situando-se, por conseguinte, no ‘campo semintico oposto ao de pureza © unidade de Cristo, ponto sobre © qual ele sempre insistu; cfr. ScRmmcH, M. A. — Ectasy and the Praise of Folly, Londres, 1980, p. 76, p. 85. % LB, I, 301A-304F, por exemplo. 17 © caso do Enchiridion & bem significativo. Na primeira edigo, nas Lucubrationes aliquot de Antuérpia, 1503, 0 autor identificava-se como « e dirigia a obra a um «aulico cuidam amico», que na edigao de 1515 vem identificado como «Ioanni Germano amico cuidam aulico». No Catalogus Lucubrationum, de 1524, Erasmo evoca as circunstincias que terdo estado na origem desta obra, contando uma pequena hist6ria que gira em tomo de um homem de palicio ou cavaleiro conhecido pela sua vida dissoluta e pela maneira como tratava a mulher e mostrava aversio aos homens de Igreja®. Teria sido por solici- tagio da mulher que Erasmo tomou a iniciativa de escrever essa pequena «arte de piedade», como designa o tratadinho numa carta a John Colet, em fins de 1504 . Trata-se de uma hist6ria que evoca de imediato 0 coléquio Coniugium, introduzido na edigdo dos Colloquia de 1523, Na sua edigdo de 1518, 0 Enchiridion faz-se acompanhar da carta de Erasmo a Paulo Volz, onde 0 autor alude ao enigmatico dedicatério como sendo um «prorsus GvaAgEPntog». Por outras palavras, 0 dedi- catério era apresentado ao leitor como um «aulicus» e ainda por cima como alguém de poucas letras. Nao se tratava, no espirito de Erasmo, de proceder 2 ridicularizagdo do cortesio, mas, ao que se afigura mais cor- recto imaginar, de evocar uma situagdo de referéncia que, aos olhos dos leitores, permitisse contextualizar a doutrina que o texto procura veicular- -lhes: a corte no aparecia como local onde o cristo pudesse praticar uma «arte da piedade> vocacionada para o recolhimento interior € preo- cupada mais com as letras do que com as préticas litirgicas exteriores. Allis, esta atitude articulava-se bem com o pendor de Erasmo para aquilo que Huizinga caracterizou como «luxo dos pormenores», ou seja um «tealismo velado», sensfvel nos seus escritos com maior acolhimento “!. A conclusio da obra deixa bem explicita a ideia de que 0 «aulicus quidam amicus» da dedicatéria no podia ser visto como exemplo do bom cristo. Por isso Erasmo, dando & mensagem uma certa dramaticidade, acentua a pressa com que escreveu o tratadinho, para evitar que um cris- tio, que buscava arrepender-se dos «vicios e aplicar-se a viver bem», caisse nas maos daqueles que para tais casos s6 sabiam oferecer as solu- gOes ou os remédios exteriores, como por exemplo a entrada num con- vento ou © mero cumprimento formal de ceriménias também exteriores; » Chr. LBL “© Cir, Huvzinaa, Johan — Erasme, wad. franc, 4 ed., Paris, 1955, p. 95s, * Huwznca, J. — Erasme, cit, p. 183s. Cir. wmbém Erasmo — El Enguiridion 0 Manual del caballero cristiano, ed. de Damaso Alonso, Madrid, 1971, p. 409; ed, Holbom, cit, p. 22. Bd, Alonso, cit, p. 409. 18 numa palavra, daquilo que Erasmo repetidamente apelidava de «supersti- tio». A pietas ficava precisamente do outro lado, do lado daqueles que estavam atentos as arremetidas do mundo e que, por isso mesmo, néo deveriam buscar as «aulae principum» como locais apropriados para a salvago da alma, no quadro da «imitatio Christi», que sempre anda no pensamento de Erasmo. Deste modo, bastava-Ihe evocar a opinio com- munis sobre a corte para fazer passar a sua mensagem, sem ter neces- sidade de entrar em apreciagdes mais pormenorizadas, A Institutio principis Christiani saiu pela primeira vez em Lovaina em 1515 e até 1520 € editada todos os anos, 0 que denuncia bem a acei- tagio do publico € a sua identificago com os pontos de vista emitidos nela pelo autor sobre a formagao do principe cristo. Um dos aspectos que deveria cativar os leitores era a preocupagdo em destacar algumas ideias universalmente aceites pelos circulos letrados humanistas sobre a supe- rioridade do fildsofo sobre o cortesio adulador e impregnado dos vicios mundanos “, que Erasmo tipificava mediante um vocabulirio de natureza coneretizante *, Nestes moldes, a opinido erasmiana sobre a corte aparece-nos condi- cionada por duas ordens de factores: por um lado pela tradigao literdrio- -cultural que ele utilizava; por outro lado pela prépria experiéncia pessoal. Poderia considerar-se que Erasmo tinha experiéncia mais directa das cortes germinicas, de costumes e niveis de cultura bastantes distintos das italianas, normalmente utilizadas para modelos da valorizagio positiva da cortesania “. Nesse quadro, dificilmente Erasmo faria equivaler cortesia a piedade, aceitando que a corte pudesse ser, de per si, um local acon- selhavel para a pietas Christiana pautada por aquilo que de vez em quando chama de «philosophia Christin, Sem grande andlise critica, Erasmo assume assim uma depreciago tradicional da vida cortés, que identificava 0 corteséo com 0 mau conselheiro, vendo nele um elemento de utilidade discutivel para a formagdo do principe cristo”. O facto é que o saber adquirido através das leituras se sobrepunha & experiéncia directa *. Neste contexto, Erasmo encontrava por exemplo em “ Cir. Mazzacuram, Giancarlo — Percorsi dell ideologia cortigiana, in «La come ¢ il Contgiano. 1- La scena del testo», cit, p. 1498, Por excmplo, as alusGes deprociativas &s «mulheres de baixa qualidade», normal- ‘mente evocadoras da loquacidade, como acentua no Lingua, de 1524 “ Cir. Doxa, Claudio — L'idea di nobilta in lalia, Secoli XIV-XVIM, Bari, 1988. © Vid. Exasmo — Obras escogidas, ed. de Lorenzo Riber, Madrid, 1964, p. 274 a; P. 283 a: p. 309 a ss Um dos autores que mais prendeu a atengio de Erasmo foi, como & sabido, S. Jerénimo, em cujos escritos podia facilmente encontrar analogias com 0 seu modo de pensar; cfr. Wisse, David S.— Si. Jerome as a Satirist. A Study in Christian Latin Thought and Leters, Whaca - Nova lorque, 1964, 19 Luciano de Samésata uma autoridade que muito Ihe agradava. De facto, 0 Holandés apreciou imenso 0 discurso critico de Luciano sobre questdes normalmente identificadas com a opinio communis e, como se sabe, tra- duziu alguns diélogos. A pritica de uma abordagem de matriz cinica dos assuntos sociais por parte de Luciano, aliada & estratégia diatribica de grande parte dos seus escritos, seduzia Erasmo, sobretudo quando se sentia empurrado para uma argumentagdo polémica em defesa da «philosophia Christi». Ora um dos factores essenciais desta nogdo consistia precisa- mente na ideia de que o cristio devia ter sempre presente a «imitago» de Cristo © esta assentava, por sua vez também, na ideia de que a pietas andava associada A humnilitas comum dos homens. Para Erasmo, Cristo fazia parte do populus communis. Era o modelo universal, cujas palavras, como defende na Paraclesis, deviam andar na boca de todos, mesmo dos mais humildes como as mulheres. O termo que comummente Erasmo uti- liza para significar 0 desvio da pietas Christiana em direcgo a realidade das coisas deste mundo era, como se referiu, «superstition, em relagdo a qual mostra sempre uma animosidade que no deixa de recordar a de Luciano para com a mentira ou falsidade, ou seja o wed8og ”. Assim, quando nos didlogos deste sltimo encontrava alusdes diatribicas contra ‘0s «cortestios palavrosos e corrompidos» ®, 0 Holandés sentia-se acom- panhado por uma auctoritas cléssica. Nestas condig6es, a alusiio depreciativa & vida de corte constitufa uma atitude generalizada em cfrculos letrados como os dos humanistas, ‘A carta em verso que André de Resende enviou a Damiiio de Géis De vita aulica *" € um bom exemplo da retoma de argumentos tradicionais sobre © constrangimento que as cortes exerciam sobre a liberdade individual, entendida esta no sentido de desprendimento em relagdo a vontade dos outros. Ora a corte aparecia aos olhos desses homens de letras como um espago de constrangimento, contraposto & referencia idealizada do Tetiro no campo, variante dos temas do locus amoenus e beatus ille, ou na serra de Ossa, como nessa carta tanto parece desejar Resende. E o tema mistura-se com outra problemética, como a ideia da «auséncia», que a literatura novilatina tanto trabalhou, recorrendo por exemplo a Ovidio © Cir. Bompas, J. — Lucien écrivain. Imitation et création, Patis, 1958, p. 127. % Cr. Obras escogidas, cit, p. 3098. % Vid. Sauvace, Odetle — L'itinéraire érasmien d'André de Resende (1500-1573). Paris, 1971, p. 145s. % Sobre isto, vid. ANDRE, Carlos Ascenso — Mal de auséncia. O Canto do exilio na rica do humanismo portugués, Coimbra, 1992; sobre a Epistula de uita aulica, eft. p. 103 s., assim. 20 Eram entdo convocadas para o espfrito do leitor as imagens da agitagio do bulicio da vida ulica, que Erasmo recopila em locais onde a fungio pedagégica do discurso se toma mais evidente, como no De cons- cribendis epistolis ®. No fundo, estamos perante referéncias correntes a uma enciclopédia geral de saberes relativos a esta problemética, que fundamentaram a glosa da oposi¢do entre a corte € a aldeia, em obras como 0 Menosprecio de corte y alabanza de aldea, de Fr. Antonio de Guevara (1539) ou no erudito Duarum virginum colloquium de vita aulica et privata, que Lutsa Sigeia dedicou em 1552 & infanta D. Maria *. No mesmo plano se devem ver as referéncias criticas de Erasmo contra a astrologia, 0 que de certeza o impediria de apreciar 0 enorme esforgo de reflexiio e de especulagdo cientffica e filosGfica que, para além de tudo 0 mais, os estudos sobre a magia, a astrologia e 0 esoterismo também reflectiam, no seu tempo, em algumas das principais cortes italianas . Os sintomas dessa atitude erasmiana encontram-se em col6- quios como 0 Exorcismus sive spectrum e sobretudo 0 Alcumisia, ambos de 1524. Por tudo isto, Erasmo nio estava em condigdes de apreciar a vida de corte nem de avaliar os aspectos histéricos e culturais que Ihe concediam importincia. Assim, ndo se apercebe de alguns aspectos que representam contributos fundamentais da corte para a hist6ria europeia, como seja a questio da importincia das linguas vulgares e do seu papel cultural, ou entio 0 seu contributo no complexo mecanismo de evolugio politica que conduziu ao fortalecimento dos Estados ¢ para a instituigdo dos factores de identificago nacional em tomo do reforgo do poder régio, ou da Promogao de formas de expresso cultural e artfstica que outros circulos no estavam em condigées de levar a cabo. Bem pelo contrério, Erasmo. nfo reconhecia qualquer aspecto positivo nas cortes. E que o preo- © Cir. LB, I, «Aliud exemplum de vita aulica», onde € possfvel ler um passo que, do Ponto de vista intertexwual, lembra a Epistula de vita aulica de André de Resende a Damido de Gis, a que mais adiante fazemos referéncia: «Scribis te nolentem ac reluctantem, voluntate Parentum rapi, protrudique in aulam Principum. Quando igitur necessitas vinci non potest, superest ut commode utendo perfcias, ut aliquando te isthinc explices quam minimo malo» (4488), * Cf. State, Louise — Dialogue de deux jeunes filles sur a vie de cour et la vie de retraite (1552), ed. de Odette Sauvage, Paris, 1970. % Cir a este propésito Vasol1, Cesare — La eultura delle corti, Florenga, 1980, cap. ‘ Assim, dois anos mais tarde, em carta régia de D. Afonso V, datada de vinte e sete de Abril de 1475, procedia-se ainda as avaliagdes do dote leonorino, sendo nesta altura 0 castelo de Lagos estimado em dez mil cruzados, enquanto as jéias e corregimentos que a futura soberana havia recebido da sua mie, a infanta D. Brites, so avaliados em 24 898 cruza- dos, valores que possibilitavam estabelecer 0 assentamento de D. Leonor ‘em um milhio, cento € sessenta e cinco mil reais, a que se somavam mais, trezentos e trinta e cinco mil reais pelas rendas, direitos e jurisdig6es das vilas de Sintra, Torres Vedras e Obidos, enquanto a joven princesa no pudesse deter estes senhorios‘. Trata-se de valores importantes para a época, mas que nao se podem considerar, em rigor, extraordinérios... Na sua génese, os rendimentos leonorinos afiguravam-se pautados Por uma dimensio patrimonial no muito impressiva, escorando-se cen- tralmente no seu assentamento e nas donatarias atrds referidas que, no entanto, a futura rainha apenas receberia entre 1480 e 1482. De facto, a0 longo destes dois anos, coincidindo com o fim do reinado afonsino e a subida a0 trono do seu marido, D. Leonor comegaria a concentrar um patriménio verdadeiramente importante, gerando de imediato um dos maiores espagos senhoriais do Portugal desta época. Vejamos rapidamente quais os seus componentes fundamentais. A primeira doago patrimonial relevante seria ainda realizada por D. Afonso V, em trinta e um de Janeiro de 1480, entregando a D. Leonor — como ficara estabelecido, alids, no seu contrato matrimonial — a vila de Sintra com a sua alcaidaria, rendas, direitos, jurisdigGes e padroados*. A monarca recebeu seguidamente, por doagao régia joanina de 1482, um conjunto extenso de senhorios: a vila de Alenquer com todas as suas rendas, direitos e jurisdigdes *; a vila de Obidos, igualmente com todos os seus direitos, rendas ¢ jurisdigdes 7; 0 concelho de Aldeia Galega também com todas as suas jurisdigdes, rendas > ANTT — Chancelaria de D. Afonso V, Livro 33, f1. 194, “ ANTT — Gavera 18, M. 4, 0. 6. + ANTT — Corpo Cronolégico, Pante I, M. 1, doc. 27. © ANTT — Chancelaria de D. Jodo II, Livro 3, fl 49-49v.; Livro 10, fl 76; Chancela- ria de D-Manuel, Livro 13, 0. $7; Livro 1.* de Misticos, l. 135; Livro 2.° de Misticos, fl. 87: Livro 1° de Reis, £1.10. ? ANTT — Chancelaria de D. Jodo Il, Livro 3, fl 49v. ¢ Livro 10, 1. 76; Chancelaria de D. Manuel, Livro 43, f1. 57; Livro 1.* de Misticos, f. 135v.; Livro 2.° de Misticos, 1. 87; Livro 1.* de Reis, fl. 10v.; Agiolégio Il, p. 705 24 € direitos *; Aldeia Gavinha, de novo com todas as suas rendas, direitos e jurisdig6es *; a vila de Torres Vedras com a sua alcaidaria, direitos, rendas € jurisdigdes ®;, Torres Novas com a sua alcaidaria, rendas, direitos e juris digdes "; ainda Alvaidzere, com todas as suas jurisdigdes, rendas, direitos ¢ padroados ". Mais tarde, em 1495, D. Manuel alargaria de forma deci- siva os dom{nios leonorinos com as doagdes das vilas de Silves ¢ Faro, com todas as suas jurisdigdes, rendas e direitos, incluindo 0 dizimo do pescado e dos atuns que entravam nos seus portos . Encontramos, neste iiltimo caso, um conjunto de rendimentos e impostos que viria mesmo a ter um peso significativo na colec¢do das rendas monetérias da rainha € também na apropriagio de géneros que sustentavam néo apenas a sua casa, ‘mas que a soberana distribuia igualmente com generosidade pelas ordens religiosas da sua protecg%o, principalmente as comunidades de clarissas coletinas da Madre de Deus de Xabregas e de Jesus de Setubal, as claris- sas urbanistas de Lisboa, os cendbios franciscanos de S. Francisco de Xabregas e de Lisboa, os conventos de Idios também de Xabregas e Lis- boa, bem como 0 Mosteiro de dominicanas de Nossa Senhora da Anun- ciada “, Nesta mesma data, 0 monarca doaria ainda A rainha varias casas junto ao pago que D. Leonor mantinha na freguesia de S. Bartolomeu em Lisboa e que viriam a permitir instalar alguns dos seus servidores, criados, bem como parte significativa dos seus servigos administrativos e buro- créticos, em particular a sua chancelaria e escrivanias "8. A expulstio dos judeus viria, contudo, a alterar os rendimentos das suprimidas judiarias que faziam parte dos senhorios mais importantes das terras da rainha, pelo que, procurando compensar esta situago, D. Manuel resolveria ainda doar 4 sua irma, em 18 de Junho de 1499, os senhorios de Vila Franca de Xira, Castanheira do Ribatejo, Azambuja e Cascais, com todas as suas rendas, jurisdigdes, direitos e padroados ", Mais tarde, em 1506, com a morte da sua mae, a infanta D. Brites, a rainha receberia a donataria de Almada e * ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Livto 10, 1, $8v. € 60, Livro 43, Is. 57-57¥. € 60; Livro 1.* de Misicos,f1. 135. ° ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Livro 10, f, $8v. € 60, Livro 43, fs. S7-57v. € 60; Livro 1. de Misticos, 0.135. ANTT — Chancelaria de D. Jodo II, Livro 3, fl. 40v:; Chancelaria de D. Manuel, Livo 14, f1. 72 € Livro 17, . 3v Chancelaria de D. Jodo Ill, Livro 10, f. 137. ANT — Chancelaria de D. Jodo I, Livro 3, fl. 49¥. 4% ANTT — Chancelaria de D. Jodo Il, Livro 3, 1. 4. 8 ANTT — Livro 1: de Misticos, 0.57 ™ ANTT — Mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, docs. 14, 16. 8 ANTT — Livro I de Reis, fl. 96. \ ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Livro 41, 11. 98 25 varios pequenos senhorios fundiérios e prédios urbanos na cidade de Beja”. Este foi, em linhas gerais, 0 patriménio senhorial de D. Leonor. Apresentava-se, porém, como um patriménio espectfico, largamente privi- legiado e insinuando-se com generosa autonomia na sociedade portuguesa do seu tempo. Na verdade, sublinhe-se que D. Joao II confirmaria ainda em vinte € oito de Janeiro de 1492 os privilégios que D. Leonor possufa os seus senhorios, esclarecendo consistirem na apropriagZo privada, em termos dominiais ¢ patrimoniais, de todas as suas jurisdigdes e direitos, passando, assim, a caber exclusivamente & rainha a nomeacio e eleiglo das estruturas que garantiam a sua administragdo, justiga e fiscalidade ". Alguns anos passados, na viragem para o século XVI, D. Manuel reforga- tia mais profundamente a autonomia jurfdica e patrimonial dos dominios Teonorinos, prescrevendo a possibilidade dos oficiais da coroa entrarem nas suas terras, cuja jurisdicdo pertencia inteiramente, de facto e de iure, a soberana ®, Trata-se, assim, de um patriménio senhorial-dominial que, depois deste percurso, com esta estrutura privilegiada e privada, acabaria por se transformar num dos principais dominios do pafs. A sua integragio car- togréfica no conjunto dos grandes senhorios territoriais do Portugal ante- tior a 1525, rapidamente permite perceber que nos confrontamos com um. dominio espacialmente impressivo, conquanto, com a excepcao de Faro e Silves, concentrado na Estremadura e, mais concretamente, em tomo das vilas de Obidos e Alenquer, aqui edificando mesmo um niicleo patrimonial extremamente denso que vinculava a rainha uma verdadeira «rea regio- nal» (V. Fig. 1)™. Apesar das terras da rainha comparecerem no espago nacional continental da época a apropriar 0 espago com menos extensio generosidade do que outros grandes dom{nios nobilidrios e das Ordens Militares, ao tratarmos de reconstruir a sua dimensio econémica ¢ finan- ceira, teremos oportunidade de perceber que os senhorios leonorinos formavam verdadeiramente um dos cinco patriménios mais importantes do reino. 8 ANTT — Antiga Casa da Coroa, M. 155, n.* 16; Chancelaria de D. Jodo Il, Livro 5, f1. 95; Livro 1.* de Misticos, fl. 5Sv. e 156v.; BNL — Cod, 8402, 1. 24-; BPADB — Livro .* de Regisios da Climara de Beja, {l. Cf. SALGADO, Anastécia Mestrinho € SALGADO, Abflio José — 0 Testamento da Infanta D. Beatriz (Duguesa de Beja), Beja, 1988, ™ ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Livro 10, 1. 58v. ¢ Livro 43, 1, 57v © ANTT — Livro 1* de Misticos, f1. 136. ™ A investigagio cartografica oferecida neste trabalho baseia-se em GALEGO, Jilia € DaveAu, Suzanne — 0 Numeramento de 1527-1532, Tratamento Cartogréfico, Lisboa, 1986, Adaptando as ligées dos dados recolhidos no célebre numeramento que, afinal, se aproxima- ‘vam da estrutura dos espagos frequentados por D. Leonor. 26 PATRIMONIO SENHORIAL DE D. LEONOR NO CONJUNTO DOS GRANDES DOMINIOS TERRITORIAIS DE PORTUGAL CONTINENTAL Legenda: O terres do ret Tareas de 2. Leonor 7 Em termos gerais, 0 patriménio leonorino escorava-se em trés ver- tentes fundamentais: os senhorios, os impostos ¢ as rendas monetérias. primeiro veio apresentava genericamente as caracteristicas que procura- ‘mos detalhar, no sendo necessério investigar mais densamente a sua mor- fologia e funcionamentos. Para além das rendas fundidrias fixas e anuais que orbitavam em tomo essencialmente das jugadas de Obidos, Aldeia Galega e Alenquer, mas que tinham uma dimensio nitidamente senhorial € fundiéria, os principais impostos directos apropriados pela rainha eram formados pelos direitos da sisa judenga e genesim dos judeus, a sisa da Casa do Aver do Peso de Lisboa™, a dizima das jéias do reino®, a dizima da Alfandega de Salir do Porto e a dizima dos pescados de Silves ¢ Faro. Os principais impostos indirectos que a monarca detinha incidiam sobre as drogas da Casa da fndia e a meia corretagem de Goa, mas des- conhecemos, devido ao seu cardcter irregular, as suas expressdes € for- matos especificos *. As duas vertentes referidas, comegando a edificar uma forma par- ticular de dominago patrimonial, devem-se ainda acrescentar as rendas monetérias fixas. Primeiramente, as arras que, fazendo formalmente parte do contrato matrimonial leonorino, D. Jodo Il haveria de aumentar signi- ficativamente, no seu sltimo ano de vida, em treze de Janeiro de 1495, de 20.000 para 28 000 escudos de ouro, justificando entio a medida com © «mujto amor que Ihe teemos e como sempre folguamos de the fazer graaga e mercee das cousas que nos peede por serem bas e justas e como jsto que assy peede he por descareguo da sua alma» 5, Nao obstante, as arras, bem como a legitima pela morte de D. Afonso, ficariam largamente por pagar. Desta forma, afigura-se terem sido os assentamentos que contri- buiram para o tesouro leonorino de forma mais estavel e continuada com ® ANTT — Chancelaria de D, Manuel, Livro 10, f1. 39v ® ANTT — Chancelaria de D, Manuel, Livro 10, {1.58 ® Neste caso, D. Jodo II, em 1495, havia jf wansformado a renda numa tenga anual fixa de 400 cruzados, discriminando ainda as jias entradas no reino, a cujo dizimo dos direi- tos alfandegitios D. Leonor tinha dircito: aljofre, cendaes, owro flado e prata fiada, ancis, ‘arcas, escaninhos, espethos, pentes folka de ouro e de prata, alfreces, tornes, toda a seda é retros, roam, aguilhoz, ambres, contas, botdes, azeviches, camicares, veos, ftas de ouro e de seda, canudos de ouro € de prata, coraes redondos, outras contas, ¢ veos e enxaravias de seda ¢ de linko, chapins, cabeleiras, chapitheres, alvaiade, tecidos, manilhas de ouro e de rata, e azeviches, cordées e forcaduras, almiscar, crespins de ouro e de seda, esmoleiras de ouro e de seda, bolsas, candeias de Aragdo para rezar, acafates, rocas, buetas grandes, sedeiras de seda ¢ de linho, condas de cardar algoddo, luvas, matalotes, ¢ assim muitas ‘ouiras cousas desta qualidade» (ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Liveo 43, 11, 60v,) » ANTT — Corpo Cronolégico, Parte 1, M. 6, doc. 26; M. 9, doc. 4; M. 18, doc. 6 Livro 22 de Misticos, 1, 87 % ANTT — Livro 1 de Reis, fl. 14 28 Tendimentos monetérios anuais relevantes, verificando-se até que eram sempre os mais elevados em todas as instituigdes que foram mobilizados para os suportar e pagar. Recorde-se que o assentamento da soberana tinha comegado por ser estabelecido em pouco mais de um conto, mas, mais tarde, em 1490, numa carta régia datada de catorze de Julho, D. Joio II aumenté-lo-ia com generosidade, fixando-o em dois contos e vinte € cinco mil reais, Representava, entio, uma verba extremamente expressiva, sendo mesmo necessério congracar varios rendimentos e instituigdes para assegurar 0 seu pagamento anual & rainha, Assim, por exemplo, a Casa de Aver do Peso de Lisboa pagava anualmente a soberana pelo seu assenta- mento quantias que oscilavam entre os 1.755:000 reais para 1499” e os 1.351:000 reais para 1510, o que, naturalmente, no era suficiente para saldar a renda da soberana. Era, assim, preciso recorrer também ao recebimento da sisa do trigo de Lisboa, instituigdo em que conseguimos encontrar séries mais completas beneficiando anualmente a monarca, pelo seu assentamento, com quantias importantes deste teor: 3.182:000 reais para 1507 ®; 1.441:000 reais para 1510™, 1.226:530 reais para 1511 *; 1.236:000 reais em 1512 *; 1.676:000 reais para 1514 * e 1.596:000 reais para 1515™. Para além destes rendimentos em que, repita-se, a rainha Ccomparece nestas casas a receber sempre os quantitativos mais impressi- vos, acrescente-se ter D. Manuel ainda legado & sua irm& varias tengas anuais que permitiam a D. Leonor perceber outras rendas fixas em dinheiro escoradas em virios direitos e imposigdes, como era 0 caso dos direitos da mouraria e judiaria de Silves e de Faro — transformados res- pectivamente num valor que orbitava em torno dos 132:333 reais e dos 83:892 reais —, a que se acrescentavam ainda as tengas pela imposig&io geral dos vinhos e das jéias que entravam pelas alfindegas do reino, ren- dimentos, com certeza, também interessantes, mas acerca dos quais ndo ossuimos séries documentais passfveis de esclarecerem a sua dimensio quantitativa. monetéria, provavelmente elevada*, Adicione-se ainda a estes varios assentamentos, tengas e rendas monetdrias a doagio manuelina a sua irma de cem arrobas de agticar da Madeira, rendimento anual que a % ANTT — Chancelaria de D. Jodo I, Livro 16, 1. 85. ® ANTT — Corpo Cronolégico, Pane Il, M. 31, doc. 82 * ANTT — Corpo Cronolépico, Pane I, M.9, doc. 4 » ANTT — Corpo Cronolégico, Pane I, M. 6, doc. 26 ® ANT — Corpo Cronoldgico, Parte I, M. 9, doc. 8 % ANTT — Corpo Cronoldgico, Parte I, M. 10, doc. 4. ® ANTT — Corpo Cronoldgico, Parte Il, M. 31, doc. 82. » ANTT — Corpo Cronoldgico, Pane Il, M. 46, oc. 47, * ANTT — Corpo Cronoldgico, Pane I, M. 18, do. 6. » LIVRO das tencas de-Rei, in «AHP», Il (1904), n> 1, p. 18 29 rainha utilizaria com elevada frequéncia para apoiar as enfermarias ¢ farmécias de casas religiosas da sua protecgao, incluindo mesmo comuni- dades estrangeiras, como ocorria com as religiosas muradas de S. Maria Annunziata de Florenga *. Algumas vezes, infelizmente raras, apesar de no dirigir directa mente a gesto do seu patriménio e dos seus bens, D. Leonor mandava fazer alguns balangos da situagdo econdmico-financeira da sua casa e do seu tesouro, como ocorre exemplarmente em 1521. Desta forma, ficamos a saber que neste ano a rainha conseguira arrecadar precisamente 38 contos e 954:982 reais, a partir das seguintes apropriagdes de renda impostos e direitos: 661:665 reais na Alfandega de Lisboa; 15 contos ¢ '589:308 reais na Casa da Mina; 4 contos 724:000 reais na Casa da {ndia; 80:000 reais da Tesouraria das Especiarias da Casa da {ndia; 743:331 reais no almoxarifado de Silves; 5 contos e 622:174 reais no almoxarifado de Faro, incluindo as dizimas dos pescados; 1 conto e 172:000 reais no almoxarifado de Alenquer; 1 conto e 421:000 reais do almoxarifado de Sintra; 40:000 reais dos esmoleres; 2 contos e 563:000 reais da dizima dos atuns de Faro; 453:674 reais de diversas vendas de produtos e objectos do patriménio e bens préprios da rainha”. ‘Veremos, em seguida, que estes rendimentos se afiguram representa- tivos dos movimentos econémicos e financeiros do tesouro da rainha, ndo se julgando sequer complicado identificar que so precisamente os assen- tamentos € rendas arrecadados em Lisboa que mais contribuem para os resultados finais, seguindo-se-Ihes, oferecendo ainda verbas relevantes, as rendas do almoxarifado de Faro, principalmente as dizimas do pescado dos atuns. Faltam-nos, porém, neste apuramento anual, os rendimentos que a soberana percebia em alguns dos seus senhorios fundidrios e prédios urbanos de Lisboa e Beja, os quais, a serem contabilizados, deveriam certamente aproximar balango econémico do impressionante valor de quarenta contos, fortuna pessoal verdadeiramente incompardvel no Portu- gal desta época. E possivel, de resto, em termos médios, aproximar estes niimeros dos rendimentos globais para o perfodo que se estende de 1510 a 1525, quinze anos em que as rendas da soberana se conseguem reconstruir com rigor documental nas chancelarias centrais ¢ nos oficios econdmicos e financeiros da sua casa. A partir de 1502, D. Manuel comega a procurar também pagar as arras ¢ a legitima que eram devidas a D. Leonor pelas mortes de D. Joao Te do principe D. Afonso. Em 1504, a rainha receberia 8 contos € 45:948 reais pela legitima do seu filho, mas continuando 0 monarca a dever-Ihe % ANTT — Corpo Cronolégico, Pane 1, M. 28, doc. 11B. °” ANTT — Chancelaria de D. Jodo Ill, Livro 4, 11. 81 30 das arras e do dote cerca de vinte um contos *. Esta situago haveria de reforcar a presenga de D. Leonor em muitas rendas e impostos orientais, com os quais D. Manuel foi procurando pagar as dividas da coroa para com a rainha, Mais importante para a nossa investigagio € 0 facto de se ter aberto, a partir de finais de 1509, um longo e recorrente processo de negociagdes anuais com a monarca — que no terminaria sequer com a sua morte —, permitindo identificar com mediana regularidade os rendi- mentos leonorinos entre 1510 e 1525. Numa apreciacdo necessariamente geral, a distribuicdo das rendas de D. Leonor apresenta os seguintes inter- valos (V. Fig. 2): em Lisboa, a monarca recebe entre 21 ¢ 23 contos; no almoxarifado de Silves entre 600:000 reais e um conto; no almoxarifado de Faro, entre 4 e 5,5 contos; em Alenquer, entre 2 e 2,8 contos; em Sintra entre 1 € 1,5 contos; em Salir do Porto, entre 150:000 e 300:000 reais; nas Caldas, entre 300:000 e 550:000; em Obidos, entre 1 ¢ 1,7 contos ®. Configurando valores médios anuais que se procuraram traduzir em termos cartogrificos na identificagdo dos seus principais componentes, nota-se neste conjunto de intervalos as principais tendéncias estruturantes que se ofereciam no balango econémico-financeiro anterior — no tradu- Zindo talvez um ano de particular optimismo—, concluindo-se mesmo que os rendimentos leonorinos se elevavam geralmente acima dos 40 contos anuais, situagdo que, até ao aparecimento de outros estudos e de outras provas, faz de D. Leonor, depois do monarca reinante, a personagem mais Tica da sociedade portuguesa anterior a 1525. Atente-se ainda sumaria- mente na morfologia jé atrés sugerida destes rendimentos: claramente mais, urbanos do que rurais e, principalmente, vinculados de forma mais expres- siva a produtos maritimos e comerciais e ndo a produgées agricolas. © patriménio de D. Leonor enformava uma das grandes casas senho- riais da sociedade portuguesa epocal, mas que nio pode ser entendida — como talvez se pudesse imediatamente pensar — exclusivamente a partir da posigo institucional da rainha, Deve-se mesmo recordar que, depois da morte de D. Jodo Il, a soberana continuaria a manter estavelmente a maior parte dos seus senhorios, alargando mesmo os seus dominios através, pelo menos, de trés veios documentados: primeiramente, o mais importante, era constituido por generosas doagdes manuelinas; secundariamente, destaca- -se ainda a apropriago da maior parte dos senhorios dos condes de Atou- guia ¢ a integragio de parte significativa do patriménio de sua mie, a infante D. Brites, depois da sua morte, em 1506. Apesar da sua vida % ANTI —Chancelaria de D, Manuel, Livro 19,11 30v. % ANTT — Chancelaria de D. Manuel, Livro 4, fs. 29-30; Chancelaria de D. Jodo It, Livro 50, f. 187, “© BPADL — Livro de Registos de Sesmarias, Livro I (1490-1543), fs. 59-60w. 31

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