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Christopher Hill | Biblia oo Tatar A Biblia inglesa e BEER Metre as revolucédes do século XVII Traducio de Cynthia Marques / eC aL (CIVILIZAGKO BRASILEIRA Rio de Janeiro 72003 Copyright© Chistopher Fil, 1993, TiruLoorieiwaL ‘The Englh Bible and tho Seventooth-Century Revolution wa Evelyn Gramach PRoseTO.GRAFICO Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite (CPERAST.CATALOGAGKONAFONTE SINDICATO NACIONALDOS EDITORESDELIVROS,RJ Hill, Christopher, 1912-2003 HS45b A Biblia inglesa e as revolugées do século XVI Christopher Hill radugio de Cynthia Marques. ~ Rio de Jaueizo: Civilizagdo Brasileira, 2003. Apéndice . ISBN 85-200-0580-2 1. Biblia. Inglés ~ Verses ~ Histria. 2. Gok Bretanha ~ Histéria ~ Stuart, 160341712. 3. Ged Bretanha ~ Histria eclesidstica ~ Séeulo XVII 1: Titulo. cpp - 220.094 os-1356 eDu- 220.014 Todos os direitos reservados. Proibida 4 reprodusio, armazenamento ou transmissio de partes deste livro, através de quaisquer mis, sem prévia autorizagao por cs Direitos desta tradugio adquitidos pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA Um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA 5.8. Rua Argentina 171 - 2921-380 Rio de Janeiro, RJ = Tel: 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL (Caixa Postal 23.052 ~ Rio de Janeiro, RJ - 20922970 Impresso no Brasil 2008 Sumario rerkao 9 Aonevarunas. 13 ALUMS DATAS 15 vase Introdugio 19 caviuio 1 Uma cultura biblica 21 aor A Biblia revolucionéria 75 cariruto 2 © perfodo anterior a 1640. 77 cariruo 3 Os sermées do jejum e a politica, 1640-1660 119 cariruio 4 Metéforas e programas 159 carta s O deserto, o jardime acerca 183 caviravo 6 Pobreza, usura e divida 221 cariruio7 Divisdes politicas e a Guerra Civil; liberdade ou libertinagem 245 capiruwo 8 ‘A Biblia e a politica radical 277 re O catolicismo internacional e a politica nacional 345 caviruio9 O decdlogo a idolatria 347 ccariruto 10 Annagio eleita, 0 povo eleito 363 cariruio 14 Os povos prometidos: Escécia € Inglaterra 375 caviruto 12 Deus est4 abandonando a Inglaterra 393 caeiruio 13 O reino dos clérigos 413, cariruto 14 (© Anticristo e seus exércitos 435 avira 15 “O homem sanguindrio” #49 asrev A Biblia ea literatura inglesa 461 capiruLo 16 Algumas influéncias bfblicas 463, casuto 17 Milton, Bunyan e Marvell 509 A UIDLIA INGLESA E AS KEVOLUGOES DO SECULO XVII PARTE fim da Biblia revolucionaria 539 cavity 18 A Biblia e uma sociedade desigual 541 caviruto 19 A Biblia destronada 563 cairn 20 Um negécio inacabado 595 APENDICE A Deus, 0 salteador 605 potnoicee Uma nota sobre a teologia da libertagio 613 InbIce DE PEssOAS E LUGARES BIBLCOS 621 INDICE GERAL DE PESSOAS ELUGARES 625 Prefacio Meu objetivo neste livro é tentar entender o papel desempenhado pela Bi- blia na vida dos homens e das mulheres da Inglaterra revolucionéria do sé- culo XVIL. A introdugdo a edi¢do da Biblia de Tomson de 1603, escrita por T. Grashop, nos convida a lembrar que as Escrituras contém assuntos concernentes &s nag6es € 20s governos, a0 bem e ao mal, & prosperidade e as, pragas, & paz e a guerra, & ordem e A desordem. Elas abrangem a vida co- mum de todos os homens, ricos e pobres, esforcados e ociosos. Todas as idéias que dividiram os dois partidos na Guerra Civil e que, depois, entre os parla- mentaristas vitoriosos, separaram os conservadores dos radicais, podem ser encontradas na Biblia. Todavia, nao devo me restringir as finalidades religio- sas e politicas para as quais a Biblia foi usada. Devo também levar em con- sideragio seus efeitos sobre a economia, a literatura e a vida social em geral. Tentarei sugerir algumas das razdes que levaram ao declinio da Biblia em relagio 2o papel central que teve na vida cultural no inicio do século. Quan- do me refiro 4 “Biblia”, estou falando de seu texto tal como foi aceito nos séculos XVI XVIL A critica & Biblia, que comegou a partir desta época, colocou em questao algumas atribuigdes de autoria de Livros nela contidos, além da autenticidade de certas passagens, incluindo algumas que eu cito, Entretanto, para meus propésitos, esta questo nfo € relevante. Uns poucos radicais pioneiros anteciparam a maior critica, mas, até onde sabemos, eles foram estatisticamente insignificantes, Para este livro fiz, muitas lefturas, porém nao de forma sistemética. Ainda que tivesse cingiienta anos para fazer um estudo sério sobre os serm6es, 08, comentarios biblicos ¢ os tratados teolégicos, eu obteria — apenas — um co- nhecimento superficial. Todavia, como no disponho deste tempo, fiz 0 me- Ihor que pude com base em leituras genéricas sobre o tema ¢ seus correlatos. Tive a sorte de ter participado de um grupo que coordenou a reedi¢ao de varios folhetos do século XVII. Nao conseguimos ir muito longe em nos- sa tarefa, mas os chamados “Fast Sermons” pregados nos anos 40 do século XVI foram admiravelmente editados, em 34 volumes, por Robin Jeffs ¢ Publicados em 1970-71, Foram-me muito titeis no Capitulo 3 e em outras passagens deste livro. As outras leituras que fiz tenderam a se voltar para os textos puritanos e radicais ¢, ainda, a comentétios anglicanos sobre o movi= mento puritano, Para os fins a que me propus, as visbes catdlica e anglicana ‘mais tradicionais me pareceram menos pertinentes, Experimentei algumas de minhas idéias na Conferéncia Tanner, a que tive ahonra de ser convidado, na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, em Outubro de 1991, Muito me beneficiaram as discusses que ali aconteceraim, especialmente com Cynthia Herrup. Desfrutei, ainda, a ajuda que me foi oferecida por muitos outros colegas. © professor Peter Hinchliff da Tgreja Crista orfentou a minha leitura da hist6ria biblica. Marcus Rediker da Uni versidade de Pittsburgh mostrou-me a relevancia, para este tema, da atual Teologia da Libertacdo e introduziu-me a literatura pertinente. O professor Onoftio Nicastro da Universidade de Pisa generosamente deixou-me ler os originais do artigo “Usi Radicali della Bibbia nella Rivoluzione Inglese” (A. utilizagéo radical da Biblia na Revolugao Inglesa), utilizado em uma confe- réncia feita em Modena, em setembro de 1988, Frank Bremer mandou-me gentilmente os artigos discutidos durante a Conferéncia da Universidade de Millersville de 1991, sobre o puritanismo na Velha € na Nova Inglaterra, conferéncia a qual, infelizmente, ndo pude comparecer. Bremer permitiu-me também a leitura dos originais de seu proximo livro, The Congregational Connection: Friendship and Religion among the 17¢h-Century Clergy in the Atlantic Community. Muito aprendi com todos estes estudiosos. David Daniell cedeu-me seu tempo para ler e cozrigir varias paginas relativas a um tema sobre o qual é especialista, a hist6ria da Biblia inglesa no século XVI Robin Clifton generosamente predispds-se a ler as provas do livro e assina. ou-me muitos erros, ‘Temtei reconhecer dividas mais especificas nas notas de rodapé. Todavia ‘cebi o auxilio de Simon Adams, Valentine Boss, Norman O. Brown, Norah 10 | ADIBLIA INGLESA EAS REVOLUGOES DO SécULO xvIL Carlin, Patricia Crawford, da falecida Margot Heinemann, Tim Hitchcock, Gerald MacLean, Steve Mason, David Norbrook, Tatiana Pavlova, Ivan Roots, Raphael Samuel, Valerie Taylor, Joan Thirsk e Elizabeth Tuttle. Fiz grande uso do trabalho de cléssicos como Perry Miller, W. K. Jordan, Arnold Williams € G. H, Williams. Como sempre me acontece quando comeso a analisar um tema que para mim é novo, encontro-me continuamente trilhando os cami- hos percorridos pelo grande historiador L. B. Wright. Dentre os historia- dores ingleses contemporaneos cujo trabalho me foi particularmente til encontra-se Bernard Capp, um escritor tio versétil quanto Louis Wright. Infelizmente o espléndido livro de David Underdown, Fire from Heaven: Life inom English Town inthe Seventeenth Century, surgin muito tarde para que eu pudesse me beneficiar da perspicécia com a qual ele analisa a complexa relagio entre a religito’biblica e a sociedade. Jo Whitfield provou ser uma rapida e correta datilégrafa, mesmo quan- do diante de meus ilegfveis hier6glifos: foi inteiramente gracas.a ela que con- segui terminar 0 ivro em tempo. Julia Hore ¢ os funcionérios do Balliol College foram sempre generosos ao me ajudarem em todas as ocasides, além de qualquer obrigacdo. E também 0 momento de render meu tributo aos funcionérios da Biblioteca Bodleian por seus atenciosos servigos ao longo de muitos anos. Peter Carson, da Penguin Books, deu-me um apoio generoso ¢ encora- jador. Judith Flanders foi uma perfeita editora de texto — bem informada, criteriosa e paciente. Devo muito a sua tolerdncia. Minha maior divida é, como sempre, para com Bridget que, além de tudo, foi educada em uma familia habituada a leitura da Biblia. Deu-me constante- mente conselhos, ajuda e encorajamento, Ela leu o livro em seus varios esté- gios de evolucdo, corrigiu a ortografia, mostrou-me as redundancias, refreou meu entusiasmo ¢ verbosidade ¢ ajudou-me no fatigante trabalho de indexagio. Bla, assim como as outras pessoas a quem agradeci, ndo deve ser responsabilizada pelo resultado final. Entretanto, sem Bridget 0 resultado teria sido muito mais demorado e muito pior. Observei as convengdes habituais. A ortografia e a pontuacéo do século XVII foram modernizadas, exceto nos titulos dos livros. Os livros foram publicados em Londres, a nao ser que haja indicacdo em contrério. Em geral "4 : utilizei a Biblia de Genebra, que acredito ter sido muito mais amplamente usada entre 0s radicais do que a versio autorizada da Biblia.* Todavia, em passagens sem polémica, raramente existem diferencas entre as duas vers6es. A versio autorizada normalmente se aproveita do vocabulério da de Gene- bra, exatamente como os tradutores desta iltima seguiram a de Tyndale. No infcio pretendia dar referéncias biblicas completas ao que considerei como nomes ¢ palavras-chave — Caim e Abel, {dolos e bosques, desertos e jardins, promessas de Deus, idolatria e milénio. Tudo isto, porém, teria ocupado muito espaco: o leitor que estiver mais interessado poderé encontré-los, por si mesmo, com a ajuda de uma relagao de palavras e t6picos. 6 de setembro de 1992 CH. “Aeditora optou por utilizar como refertnca a Biblis Sagrada traduzida por Jofo Ferreira de ‘Almeida e publicada pela Sociedade Brblca do Brasil, por nfo haver uma traduso consagrada a Biblia de Genebra ex. portugués. Os trechosreferentes3e notas de margem a Biblia de GGenebra e aqueles com conteido mais polémico foram traduzidoslivemente. Abreviaturas ‘As seguintes abreviaturas foram utilizadas nas notast AN BMW cspD DNB EHR FS HMC Millersville McPw MER Offor OED Rand PL PP PR Sabine TRDM ‘TRHS UP Versio autorizada da Biblia John Bunyan, Miscellaneous Works (Oxford University Press, 13 vols., 1976 -) Calendar of State Papers, Domestic Dictionary of National Biography English Historical Review Fast Sermons to Parliament, novembro de 1640-abril de 1653 (org. Robin Jeffs, Cornmarket Press, 34 vols., 1970-71) Comissio de Manuscritos Hist6ricos Artigos entregues & Universidade de Millersville na Conferén- cia sobre o Puritanismo na Velha na Nova Inglaterra Complete Prose Works of Jobn Milton (Yale University Press, 1953-82) C. Hill, Milton and the English Revolutions (1977) ‘The Works of Jobn Bunyan (org. G. Offor, 3 vols. 1860) Oxford English Dictionary Past and Present Milton, Paradise Lost Bunyan, The Pilgrim’s Progress Milton, Paradise Regained Works of Gerrard Winstanley (org, G. H. Sabine, Cornell University Press, 1941) Keith Thomas, Religion and the Decline of Magic (1871) ‘Transactions of the Royal Historical Society University Press Algumas datas Este livro adota uma narrativa dos acontecimentos na Gra-Bretanha entre a reforma ocorrida durante o reinado de Henrique VII o final do século XVIL As seguintes datas podem ajudar o leitor a memorizar a narrativa caso, as vezes, eu dé alguns saltos que possam confundi-lo, Pela mesma razao relacionei as datas de publicagio de livros dos séculos XVI XVII. 1509-47 1526-34 1529-36 1547-53, 1553-58 1558-1603 1560 1563 1567-68, 1568 1575-83, 1583-1604 1587 Henrique VIL, rei da Inglaterra. Teadugio de William Tyndale do Novo “Testamento para o ingles. Reforma do Parlamento. Eduardo VI, rei da Inglaterra. Tentativa de conquista da Bscécia, ‘Mary I, rainha da Inglaterra, casa-se com Felipe Il da Espanha, Restauragio do catolicismo e queima dos heréticos. Elizabeth I, rainha da Inglaterra. Restau- racio protestante. A Biblia de Gencbra. Book of Martyrs (O livro dos méttires), de John Foxe. Mary Stuart, rainha da Esedcia, é destro- nada e foge para a Inglaterra. A Biblia dos Bispos. Edmund Grindal, arcebispo de Canterbury. John Whitgift, arcebispo de Canterbury. ‘Mary, rainha da Esc6cia, € executada na Inglaterra. 1588 1589-90 1603-25, 1604-10, 5 de novembro de 1605 1610-33 1611 1618-48, 1624 1628 1629-40 1633-45 1634-39 1638 1639-40 Abril-maio de 1640 Novembro de 1640-abril 1653 Maio de 1641 1641 Novembro de 1641 1642-45 Setembro de 1643 Janeiro de 1645 Junho de 1645 Junho de 1646 Outubro de 1646 1647 1648, ‘A Armada Espanola. 0 Tratado de Marprelate, Jaime VI da Escécia torna-se Jaime I, rei da Inglaterra: unio das duas coroas. Richard Bancroft, arcebispo de Canterbury, A Conspiracio da Pélvora. George Abbot, arcebispo de Canterbury. Versio autorizada da Biblia. ‘A Guerra dos Trinta Anos. ( principe Carlos casa-se com a princesa Henrietta Maria da Franca. A Peticéo de Direitos. Governo pessoal de Carlos I. Sem parla- mentos. William Laud, arcebispo de Canterbury. Coleta do imposto para a construgéo de navios sem a autorizacio do Parlamento. ‘Convengao Nacional Escocesa, Guerra entre Inglaterra e Eseécia. 0 Parlamento Curto. © Parlamento Longo. Execucio do conde de Stratfford. Abolicéo da Camara Estrelada e das Cor- tes da Camara Alta Revolta na Irlanda. Primeira Guerra Civil Liga Solene e Convencio entre Inglater- 1a Escécia. Execucdo do arcebispo Laud. Batalha de Naseby: Carlos I renuncia. Aboligao do episcopado. ‘ANova Armada intervém em assuntos politicos, ocupando Londres, Segunda Guerra Civil. A SIBLIA INGLESA EAS REVOLUGOES DO SECULO XVI Dezembro de 1648 Janeiro de 1649 1649-60 Maio de 1649 1649 1650-51 1650 Outubro de 1651 1652-54 1652 Abril de 1653 Julho-dezembro de 1653 Dezembro de 1653-setembro de 1658 1655 Setembro de 1658-maio de 1659 Maio de 1659 1660 1661 1672 1678-81 ‘A Armada reabilita 0 Parlamento; Os remanescentes do Parlamento Longo ordenam o julgamento de Carlos I como traidor. Julgamento ¢ execugio de Carlos I Commonwealth. Cromwell reprime a revolta em Burford. Conquista da Irlanda por Cromwell. A repressio de diggers e ranters. Aboligio da assisténcia compuls6ria nas igcejas paroquiais. © Ato de Navegacéo leva 4 guerra entre Inglaterra e Holanda, Unido entre Inglaterra e Escécia, Cromwell expulsa os remanescentes do Parlamento Longo. © Parlamento Barebones. Oliver Cromwell, lorde Protetor. Guerra contra a Espanha. Conquista da Jamaica e de Dunguerque. Richard Cromwell, lorde Protetor. Restauragio dos remanescentes do Parla- mento Longo. Restauragio de Carlos Il, dos bispos e da ccensura. A Camara Estrelada e a Camara Alta nao sio restautades. Os dissidentes sfo exclutdos da Igreja anglicana. A uuniao entre Inglaterra e Ese6cia € dissol- vida. © Ato de Navegacio € legitimado. Declaragio de indulgéncia para os diss dentes catslicos e protestants. Conspiracio papista: tentativa de excluit © duque de York, James, da linha de su- cesso, Abrandamento temporirio da 1685 Novembro de 1688-89 1689 1695 1707 CHRISTOPHER HILL Jaime I, rei da Inglaverra, Rebeliso de Monmouth. Jaime Il 6 substitafdo por Guilherme Il, rei da Inglaterra, 1689-1702. Ato de Tolerancia Permisso para os eventuais erros da lei. Unido entre Inglaterra e Escécia, rare! Introdugao cwirnor Uma cultura biblica "Nossos santos priores [diziam as palavras de Deus] causaram insurreigbes ce ensinaram a0 povo a desobedincia,(..)€ levaram-no a rebelar-se con- ‘tra 0s Principes, eo levaram & medioctidade e a desatar-se os bens uns aos outros. ‘William Tyndale, The Obedience of a Christian Man (1528), em Doctrinal ‘Teatises (org. H. Walter, Parker Soc., Cambridge U. R, 1848), p. 163. [A Biblia; Eis o Livro. O verdadeio Livro, 0 Livro dos Livros; ‘Onde a vérdade buscar ara onde o olhar se voltar E se com tal retiddo agires Jamais de melhor luz precisarés E mesmo na Escuridio caminharis (© Ministério santo de Deus em Assembléia Esta luz a0 homem revelow E a todos ordenou Para que na boa ou mé sorte Todos conhegam E Dele jamais se esquegam Porque 0 Livro de Deus (© qué sem Ble eu poderia? (0 gué eu saberia? i Christopher Harvey, Complete Poems (org. A. B. Grosart, 1874), pp. 19- i 21, Este poema foi publicado, pela primeira vez, em 1640. Ricardo, duque de Glocester — Eu suspiro, com um trecho da Escritura, igo que Deus nos pede o bem em troca do mal: ce assim eu visto a vilania Com farrapos que arranco & prépria Biblia, William Shakespeare, Ricardo Ill, 1° Ato, cena 3* Ahistéria € contada como um dislogo entre um lendétio historiador da eco- nomia, Jack Fisher, e 0 inoportuno aluno que o pressionava para que lhe desse uma lista de leituras sobre a historia econémica da Inglaterra nos sécu- los XVI XVIL Ele the respondeu: “Se vocé realmente deseja compreender este periodo, va para casa ¢ leia a Biblia.”* Tal conselho é, sem dtivida, espe- cialmente adequado para historiadores da economia, mas também tem sua relevancia para os historiadores da politica e da literatura. A Biblia teve um papel central em toda a vida da sociedade: nés nos arriscamos ao ignoré-la. A Biblia é um livro enorme, e entendi a maioria dos inumerdveis comen- tarios biblicos feitos naquele periodo, como pude constatar, parecem ser tio Jongos quanto a prépria Biblia. Nao posso afirmar que tenha lido cada pala- vra de todos eles. Este livro focaliza certas dreas nas quais a Biblia teve uma influéncia direta, jf que, entio, cla era determinante em assuntos que nfo se referiam — como acontece nos tempos modernos — ao Ambito estritamente religioso, Mais do que uma monografia, é na verdade uma coletanea de en- saios. Meu objetivo é analisar 0 impacto que a Biblia exerceu sobre a socie- dade do século XVII —a sua utilizagio com propésitos politicos ou de outra natureza e seus efeitos sobre a literatura, a teoria politica, as relagdes sociaisy~ a agricultura e a colonizacio, entre outras tantas éreas. O verndculo da Biblia tornou-se uma instituigao na Inglaterra dos Tudor —a base de uma autoridade monérquica da independéncia protestante na Inglaterra, o livro da moralidade e da submisséo social. Sua centralidade, tornou-a um campo de batalha entre varias ideologias — nacionalismo in- glés contra catolicismo romano, episcopado contra presbiterianismo e sec- A BIBLIA INGLESA E AS REVOLUGOES 00 SEcuLO xvi tarismo. A sociedade estava agitada e esperava-se que a Biblia oferecesse so- lugdes para os problemas que a assolavam. A traducéo da Biblia para o inglés tornou-a acessivel a grupos sociais novos e mais amplos, incluindo artesaos e mulheres, que liam sobre seus pr6prios problemas e possiveis solugées no texto sagrado. Consegtientemente, 20 analisar este livro, estou lidando nao jGes e crengas. Assim, nao hesitei apenas com “fatos”, mas também com opi em utilizar evidéncias literdrias para a narrativa destas opinides e crengas. Tais evidéncias variam muito, e devem ser avaliadas criticamente, 0 que no impede que sua existéncia seja um fato. ‘A Biblia esta longe de ser monolitica. Ao contrério, seus cénones foram etguidos ao longo de varios séculos ¢ incorporam idéias e atitudes diferentes ¢,8s vezes, conflitantes. Os primeiros dois capitulos do Genesis contam duas histérias diferentes da criagao e queda do homem, o que colocou & provaa engenhosidade erudita em conciliar ambas as teorias; 0s livros de Moisés nao foram esctitos por Moisés, como foi demonstrado por Thomas Hobbes no século XVII} nem os Salmos de Davi sio de fato de Davi. A profecia de Isafas € uma coletinea de trabalhos de pelo menos trés poetas. O texto € um pa- limpsesto que foi exaustivamente escrito e reescrito de tantas maneiras que 08 estudiosos modernos encontram grande dificuldade em ordené-las. A reedigio do que conhecemos como Antigo Testamento quase certamente reflete os conflitos politico-sociais que existiam entre os Filhios de Israel; tal canone foi estabelecido pelo clero judaico. O préprio texto mostra que os profetas e reis freqiientemente discordavam, e o tributo atribufdo pela Biblia 0s governantes individualmente espelha o valor que Ihes é dado pelos edi- tores ligados & Igreja ‘Annarrativa contida no Novo Testamento € 0 produto de uma convulsio social. O cénone, como jf sabemos, foi o produto final de acirradas contro- vérsias sobre o que era “heréticg” e, portanto, “apécrifo”, e o que era orto~ doxo, Este cdnone evoluiu ao longo dos séculos & medida que as doutrinas originais do cristianismo foram adaptadas, inicialmente no perfodo greco- romano do mundo gentio e, posteriormente, quando foi considerada reli- gio oficial do Império Romano. As decis6es tomadas quanto ao que deveria ser inclufdo ¢ exclufdo foram penosas ¢ algumas vezes sangrentas. As con- cessbes foram inevitéveis, Serd que a Epistola radical atribuida a Jaime deve-

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