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A DEUSA TRIPLICE - Em Busca do Feminino Arquetipico Adam McLean A Deusa é um arquétipo eterno da psique humana, Ela sempre esté mesmo quando desprezada, reprimida ou negada exterior: na a estrutura da Deusa Triplice ¢ mostra como, mediante o relacionamento com esse arquétipo, 0s homens e as mulheres podem vencer € compensar a tendéncia interior de dualismo. Adam McLean fez descobertas originais sobre a natureza da Deusa Triplice, esbogando algumas maneiras de trabalhar com a sua mitologia € como seu simbolismo. Apresentando uma visio geral inédita das vari deusas da Antigiidade, este livro é um valioso recurso para quem se interessa pela natureza do Feminino, Adam McLean é pesquisador de fama internacional, especializado no simbolismo espiritual das tradigdes do Ocidente, E editor de The Hermetic Journal ¢ editor da série projeto editorial de largo textos da tradigdo hermética, disponiveis dos mais important apenas em colegdes especiais. EDITORA CULTRIX ADAM MC DAWN eS Ae) TRC ON Comme Tren ee Cultrix ADAM McLEAN A DEUSA TRIPLICE Em Busca do Feminino Arquet{pico Tradupto ADAIL UBIRAJARA SOBRAL : “Titulo do origina: The Triple Goddess ‘An Exploration of the Archetypal Feminine Copyright © 1989 by Adam MeLean. ardquiidos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua De. Mirio Vicente, 374 - 04276. So Paulo, SP- Fone: 272-1399 ‘que se reserva propriedade litera desta traducio. Impresionasoficinasgréfieas da Edltora Pensamento SUMARIO Introducdo .. 7 ‘A Deusa Triplice nos Mitos Gregos da Capt 2 As Fithas da Noite . 29 As Erinias ou Férias 32 ‘As Moiras ou Destinos 36 As Hespérides ...... 38 ‘As Filhas das Divindades do Mar: As Forcidas 41 As Gérgonas Seetece 44 As Gréias 47 As Sereias ........ 49 As Harpias ........ 52 As Fithas do Deus-Céu . .. 55 As Horas... : 59 AAs Clrites ou Gragas 63 ‘As Musas. - 65 Deméter e Perséfone . 1 Hecate . 5 81 Hera 87 OJulgamento de Péris 91 Exemplos Adicionais de Deuses Triplices de Varias Tradigdes . 95 Suigestoes e Elementos para Pesquisss Adicionais ........ 123 Conclusio,. ore 129 INTRODUGAO ‘A deusa é um arquétipo eter- no da psique humana, embora a desprezemos e reprimamos ou ne- guemos exteriormente a sua exis- téncia. Desde 0s primérdios da nossa civilizagdo, ela se revela a nbs em desenhos rupestres ¢ em escul- turas primitivas, nas grandes mito- logias, manifestando-se na nossa cultura atual sob os mais diversos disfarces. Ela faz parte do tecido do nosso ser, com o qual toda a humanidade tem de se relacionar interiormente se desejarmos ter em nossas almas um equilfbrio de base. Ela € parte tio essencial da humanidade que, mesmo se, nos proximos séculos, nos tornarmos fi- Ihos do Cosmos, deixando a Terra para trés em sua viagem para as es trelas, sem ddvida a encontraremos nas escuras profundezas do espago. Nos tempos antigos, projeta- , mo-la no exterior a partir do nosso fntimo, vimo-la nos Reinos da Na- tureza, no corpo da Terra ou agindo por trés do destino humano. Viven- ciamo-la como um poder além ¢ acima de nos — poder que nos transformou e desafiou, ao mesmo tempo que nos alimentou, pro- tegeu e preservou. ‘Ao longo deste século, che- gamos a reconhecer uma estrutura ou estratificagao da consciéncia hu- mana, tendo agora condicdes de ver que a deusa. habita, como um arquétipo, em nosso espago interior, sendo tio essencial para rn6s quanto 0 € 0 coracio fisico. Nao obstante, é tal o seu exi- lio nos recessos profundos e ocultos da nossa alma que muitas ‘vezes ndo reconhecemos a sua ago sutil e somente quando ela se manifesta no exterior de maneira potente ¢ destrutiva nés nos damos conta da sua presenca. s dltimos 2.500 anos testemunharam a ascensio de po- derosas divindades masculinas que dominaram a alma e, nfo contentes com a metade do Cosmos e da alma humana, usurpa- ram o lugar da deusa no esquema das coisas ¢ tentaram des- truirlhe as manifestagdes exteriores. Daf por diante, ela se envolveu na substincia da nossa alma interior e agiu a partir de dentro. As religides patriarcais triunfaram exteriormente, impondo & humanidade a sua vontade. Esse perfodo patriarcal, que vemos hoje estar prestes a se encerrar, viu o desenvolvi mento de varias capacidades da alma humana: 0 dominio do mundo fisico por meio do imperialismo; a evolucdo de uma tradicdo cientifica materialista vinculada com uma cultura tecnologica; a exploracdo e desperdicio dos limitados recursos Dewse romana do Destino da Terra; e a organizagdo da agres- so na sociedade por intermédio das guerras nacionalistas. Todos podem identificar 0 legado desse perfodo de patriarcado polarizado. ‘Mas a deusa permaneceu co- nosco. Enquanto formos humanos, no podemos separar-nos de fato dela. Ela veio agindo de maneira sutil por todo o longo perfodo de sua repressfo, por vezes vindo a superficie na historia exterior nas €pocas em que vimos seus atribu- tos projetados em personalidades ou movimentos da sociedade. Seria fascinante e instrutivo uum estudo que revelasse os seus muitos aparecimentos e 0 impacto de suas energias na historia exterior dos ditimos mi- lénios. Sob muitos aspectos, nossa tradi¢Go patriarcal acen- tuou o desenvolvimento da consciéncia via sentido mascu- lino da apreensio e do dominio de forgas no mundo e na sociedade humana. Quando deparamos na historia com um desenvolvimento particular que ndo pode ser compreendido nesses termos, cumpre reconhecer que um novo fator surge no solo interior da alma humana, de que a deusa foi banida. Desse modo, ela ainda age no interior da humanidade, em- bora possamos néo ter consciéncia da fonte dessas energias transformadoras Nos tiltimos anos, especialmente a partir da metade do séeulo, a humanidade comecou a ligarse outra vez, de mo- do consciente, com o lado feminino da psique. As apalpa- delas, a deusa comega a surgir de novo. Podemos vé-la na Preocupacfo com o ser e com a integridade da Terra, sob a denominagdo de “Ecologia”; na rejeigdo da agressividade Patriarcal por um movimento pacifista emergente; no desen- Venus de Laussel volvimento de facetas “proteto- ras” da nossa sociedade, tais co- mo a assisténcia social © 0s ser- vigos educacionais e de satde; bem como na recente emergén- cia da comunidade gay das som- bras e das margens da sociedade, trazendo consigo um novo sen- tido do caréter integral da sexua- lidade individual e de sua orien- taco. mais feminina. O movi mento de mulheres, tanto em seus aspectos de desenvolvimento politico como de desenvolvimen- to pessoal, também evidencia uma emergente consciéncia do femi- 4 nino. Nesses e em tantos outros teeta fenémenos, podemos reconhecer oma © surgimento de um novo rela- cionamento da humanidade com © feminino, com a deusa que esté no émago do nosso ser. Num momento como esse, é importante entender as qua- lidades e energias da deusa. Para conhecer seus possiveis modos de manifestagéo em nosso intimo ¢ no corpo coletivo da huma- nidade, temos de lancar um olhar as tradigoes passadas da deusa e A sua representagZo nas mitologias antigas; talvez isso nos dé melhores condig6es de perceber o seu aparecimento na ‘nossa época. Com efeito, nfo podemos voltar aos velhos modos de proceder © recapturar © passado, mas podemos aprender alguma coisa acerca das nossas atuais realidades in- teriores com esses padres antigos. ‘As mitologias antigas, parcialmente derivadas das reli ides de mistério e das tradigdes de iniciagdo, projetaram fa estrutura interior da psique no mundo exterior; os deuses 10 deusas foram representados como forgas do reino exterior da Natureza. Um dos mais importantes desenvolvimentos deste século foi a revelagdo de uma “psicologia” que reco- mhece as energias formadoras dessas representacOes mitol6- gicas © percebe que, mediante a contemplagdo das mitologias antigas, podemos, com toda a certeza, ver 0 tecido da nossa propria alma. Podemos, por outro lado, assimilar a substin- cia desses mitos e ver com clareza os padrOes da nossa pro- pria natureza interior. Por conseguinte, a tarefa deste livro é esbocar algumas manifestagSes da deusa. na mitologia, com o propésito de oferecer uma maior compreensdo do seu atual impacto na nossa alma e da sua relevancia para ela. A mitologia nfo deve ser estudada de maneira demasiado abstrata para que nos afastemos nem nos apartemos da sua substincia; de- vemos, em vez disso, mergulhar na sua corrente, contemplar 08 seus sfmbolos, meditar sobre as suas profundezas e deixé-la irromper nos nossos sonhos e na nossa imaginagdo criadora. A deusa ¢ triplice, manifestando-se, pois, sob trés as- pectos, visto unir em si os complementos ¢ os opostos da psique. Assim sendo, ela é tanto delicada como rigorosa ¢ implacdvel. E plena de luz e de visoes famosas, mas, ao mesmo tempo, pode nos levar para as trevas e para terriveis horrores. Com efeito, essas polaridades sto parte essencial da ar- quitetura da alma humana. A coisa importante a perceber € a natureza complementar dessas polaridades, o fato de cada pOlo se confundir com o outro e voltar a se distinguir dele As polaridades dependem umas das outras; de suas relacdes e dos seus encontros vem a energia dindmica da psique, 0 mercério’ interior da substdncia animica que se move cons- tantemente de um para o outro plo — e que, em seu eterno movimento, descobre ¢ explora criativamente. Sem essa po- laridade, nossa vida interior murcharia, seria uma mera flor seca, num reino fossilizado. uM © impulso preponderante do patriarcado, que comecou sua as- cendéncia hé uns 2.000 ou 3.000 anos com a negago do feminino, no podia preservar uma mito- logia que unisse essas polaridades — preferindo, em vez disso, negar uum dos pélos. Foi essa a causa da terrivel doenga do dualismo, em que a tradigdo patriarcal iden- tificava um polo como “bom” © outro como “ruim”, Isso pro- duziu um sentido de “justiga” absoluta importante para civili- zagdes patriarcais fundadas no poder militar e no imperialism. Uma civilizacdo dessa espécie sem- inate Atart pre pode projetar a imagem do ‘em Tans “mal” na raga ou povo que de- seja conquistar, enquanto se van- sloria de sua propria retidio, certa de que o seu “Deus” est do seu lado. Esses impulsos de modo algum foram erra- dicados do nosso mundo atual; por exemplo, o dualismo Leste-Oeste, Capitalismo-Comunismo ainda fornece combus- tivel a um conflito e a uma competi¢do absurdos entre na- {0es e povos. Em termos mitologicos, a estrutura patriarcal s6 po- dia incorporar 0 seu oposto dual na forma de divindades ri- vais. Nesse dualismo ingénuo, havia uma hierarquia de deuses “bons”, plenos de luz e bemintencionados com relagio & humanidade, ¢ uma hierarquia invertida de deuses “maus” do mundo inferior, sempre conspirando contra a humani- dade © tentando destruir tudo 0 que a religifo ou a socie- dade patriarcal particular representavam. Logo, durante 0 12 conflito entre muculmanos e cris- tos, cada parte via a outra co- mo inerédulos infigis; do mes- mo modo, tanto o cristianismo como © islamismo perseguiram os judeus ao longo da histéria. E evidente que uma mitolo- gia masculina ndo pode integrar as Polaridades do dualismo; e se continudssemos 2 trabalhar, en- quanto sociedade, com esses ar- quétipos, estarfamos condenando a 1nés mesmos © aos nossos descen- dentes a dar prosseguimento a uta © a0 conflito interpessoal © internacional. No nivel pes- soal, também estariamos negando uma oportunidade de integrarmos © opostos na psique, impedindo a liberagdo correspondente dos enormes recursos de energia humana criativa aprisionada em nosso interior por causa desse dualismo. © feminino, contudo, é capaz de unir os opostos. Sua imagem cosmica ¢ a Lua, com sua fase sombria de Lua Nova, sua fase luminosa de Lua Cheia e seus crescentes e minguan- tes intermedidrios. Ela ndo € constante; em vez disso, mo- vese num ciclo, penetrando nas trevas e, mais tarde, trazen- do a luz. Os deuses masculinos, identificados com a luz do Sol, no poderiam passar por um tal ciclo; suas mitologias eram forgadas a ser dualistas — os “bons” deuses celestes € 0s “maus” deuses do sombrio “mundo inferior”. A deusa triplice, por outro lado, traz em:si todas as polaridades, En- contramo-la numa variedade de disfarces, e, como € muté- vel, ela desafia 0 nosso pensamento unidimensional com con- 13 tradigbes e aparentes inconsisténcias. Ela muda de forma a cada volta do seu ciclo ¢ 0 nosso pensamento, para compreen- dé, tem de se ajustar 4 mudanga. ‘Quando nos relacionamos com a nossa faceta deusa triplice, teremos uma perturbacdo inicial causada pela sua mutabilidade. Séculos de pensamento abstrato, unidimen- sional, rfgido e patriarcal lutam contra cla, rejeitando o seu impulso por considerd-lo “cabtico” e causador de anarquia interior. Mas, 20 mudarmos interiormente e ao adaptarmos (08 padres da nossa alma as suas energias formadoras, véla-emos ‘com maior clareza. Poderemos entdo valorizar uma conscién- cia da mudanga ciclica do nosso interior. Tendo chegado a uma relagio interior com o Feminino, podemos iniciar o proceso de unir as facetas masculina ¢ feminina da nossa alma. Essa unio, o verdadeiro Casamento Mistico, a real Conjungio dos Opostos, ¢ a mais estimulante ¢ valiosa aven- tura que qualquer ser humano pode empreender. A partir dessa Conjungéo, dessa integragdo e encontro {ntimos, po- deré surgir uma poderosa corrente de energia criativa que poucos experimentaram. Se a humanidade pudesse dedicar-se coletivamente a essa viagem, uma grande energia criativa se- ria liberada — e poderfamos tomar-nos verdadeiros recipien- tes das energias espirituais do futuro. Para encontrar a deusa triplice na mitologia, temos de voltar 20 substrato do mito, Bem antes da ascendéncia do mito de Cristo, os mitos primais da deusa foram esma- gados sob 0 peso de geragdes de deuses masculinos que usur- param seu lugar no esquema das coisas, conquistando os seus centros sagrados e tomando para si mesmos algumas facetas dos seus atributos. Se remontarmos aos mitos pri- mevos da humanidade, encontraremos a deusa na sua for- ma mais pura, normalmente triplice. No Antigo Egito, é ‘Neith/Nut ¢, mais tarde, Isis, que a representam para nés. Observamos que 0 culto ¢ o reconhecimento de Isis se man- 14 ‘tém fortes, embora comece, em di- nastias egfpcias posteriores, uma masculinizago da hierarquia dos deuses com Amon-Ré. Na Grécia Antiga, 0s primeiros mitos esbo- savam muitas manifestagdes da deuse. Quem estudou mitologia grega pode ver que, provavel- mente no inicio do primeiro milénio aC, 0 deus celeste Zeus-Dyeus foi levado para a Grécia por uma nova onda mi- gratoria. A partir de entio, o cardter dos mitos gregos se trans. formou de alguma maneira quan- do Zeus, por meio da violaggo e da astiicia, destronou a deusa de muitos dos seus centros de Deas meroe culto. Ele teve filhos com, deusas exo individuais — mas esses _filhos eventualmente reuniram em si alguns atributos da mie. Por- tanto, podemos ver que os povos gregos desse ponto de tran- sigdo precisaram identificarse antes com deuses masculinos do, que com as deusas mais antigas, razo por que reformu- laram sua mitologia a fim de se adaptarem. Mas esse processo bem transparente, pois os estudiosos podem identificar essas_mudangas nos mitos e, eliminando as influéncias mais Tecentes, recuperar a esséncia das deusas primai Na realidade, a mitologia grega nos fornece a maior fon- te de materiais sobre a deusa. Para exemplificar 0 processo, ‘consideremos Apolo. Apolo ¢ gerado por Zeus em Leto, uma deusa tité pertencente ao antigo substrato de deuses e deusas que existia na Grécia antes de Zeus e de sua consorte Hera. Hera tem ciimes do relacionamento de Zeus com a deusa 15 mais antiga e tenta impedir Leto de dar a luz, mas esta foge para uma ilha distante. L4, pare Apolo e sua irma gémea, Artemis. Apo- lo € um deus solar e Artemis torna-se a deusa virgem cacadora da luz lunar. Apolo recede o dom da mfsica e muitos mitos falam dele como a fonte da ins- piragfo, tocando a sua lira. Con- tudo, embora fosse um deus po- pular entre 0 povo gtego, Apolo de certo modo nunca pode usur- par o lugar das Musas que 0 pre- cederam, representantes da for- ma trinitéria da deusa. As Musas permaneceram cdmo a inspiraggo Selo espiritual feminina presente na adionico mifisica, na poesia e nas artes. Podemos ver que 0 culto de Apolo tentou substituir as Musas por um deus masculino, mas a psique coletiva dos povos gregos ndo poderia desistir de suas deusas da inspiragdo com muita facilidade. Assim sendo, ‘Apolo, em vez de ser o rival das Musas, teve de se tornar 0 seu protetor. Podemos identificar muitos exemplos dessas tentativas de substituiggo de deusas das mitologias prece- dentes por divindades masculinas. A mitologia grega mostra especial transparéncia quanto a isso, provavelmente por ter sido registrada enquanto esses processos se desenvolviam. Outras mitologias, dos povos teutdnicos ou escandinavos, por exemplo, so foram registradas séculos ou até milénios depois do término desses processos, sendo mais dificil de deslindar as suas linhas e de identificar os primeiros estra- tos das deusas nessas culturas. 16 © cariter triplice da deusa € muito importante. Nao se trata de uma mera multiplicagéo por trés, mas de uma manifestagao sob trés aspectos; a deusa se revela em trés niveis, nos trés dominios do mundo e da hu- manidade. Assim & que o ser humano ¢ triplice, tendo corpo, alma e espfrito; as trés ‘facetas da deusa costumam ser vistas ‘como correspondentes a esses pla- nos do microcosmo do ser hu- mano. O macrocosmo também € triplice: consiste no céu (0 reino uraniano), na superficie da Terra (e, por vezes, no Mar) e nas profundezas da Terra (0 Mun- do Inferior ctdnico). Algumas deu- sas triplices exibem facetas que as ligam com esses trés reinos. Do mesmo modo, o reino do tempo tem trés dimensdes — Passado, Presente e Futuro — e algumas deusas correspondem, de maneira triplice, a divisto do tempo. Como jé indiquei, a deusa triplice une dualidades, ra- zo por que, em algumas de suas manifestagdes, uma de suas facetas é positivamente inclinada para os seres humanos que a encontram, outra tem disposicfo negativa e uma terceira serve de mediagfo as duas e decide o seu curso de acto. © mais importante aspecto trfplice da deusa a sua manifestagéo como Virgem/Mfe/Ancid. Tratase talvez da representago com a qual as pessoas tém mais facilidade de se identificarem, visto corresponder as trés fases da vida da mulher. Ela também nos remete ao ciclo das fases lunares 17 e a0 ciclo menstrual, a ovulagfo ea possfvel gravidez. Sdo processos que correspondem as facetas de Jo- 7/74, vemn/Mae/Velha. 4 Outra maneira de considerar a q deusa triplice pode advir do exame de suas varias relagdes poss{veis com o masculino. Desse modo, podemos véla como Virgem, sem vinculo com o masculino (como Atena), como a figura da esposa madura e fiel (Hera) ow como a Prostituta que escolheu os seus S94 muitos amantes (Afrodite). A deu- \\NY sa também pode ser vista por meio de relagSes com o masculino que no envolvem esse aspecto sexual. Assim, pode ser a Filha (ou, por vezes, a Irma), a Esposa ¢ a Vitiva. A concepgao hermética dos Trés Princfpios — Sal, Enxofre © Merctrio — também pode fornecer uma imagem das trés facetas da deusa. O Sal é o princfpio contratil, sombrio ¢ terreno; o Enxofre é 0 princfpio radioso, expansivo, lumi- noso e celeste em ago; e o Mercirio & 0 elemento que serve de mediagdo ¢ de ligagdo para 0 Sal e 0 Enxofre do nosso ser. O Merctrio sobe até o elemento Enxofre e traz uma es- séncia para a esfera do Sal que esta no interior da nossa alma, fem eterna circulagdo entre essas polaridades. Assim, o Mer- chirio pode ser considerado uma imagem da nossa conscién- cia, podendo esse triplice aspecto ser reduzido, embora isso seja uma grosseira simplificagdo a trindade Corpo, Alma e Espfrito da nossa natureza. Algumas deusas triplices tém facetas paralelas as trindades Sal-Mercirio-Enxofre ou Cor- 18 po-Alma-Espfrito, em particular nos ‘casos em que duas facetas suas sio polarizadas e quase antagOnicas entre si, enquanto 0 terceiro membro lhes serve de mediagdo. HA muitas outras maneiras de abordar esse cardter triplice, pois ela apresenta um arquétipo que ressoa com a estrutura inte- ior da nossa alma, e, se meditar- mos ¢ trabalharmos interiormen- te com esses aspectos, muitas outras descobertas sobre a natu- reza da deusa serdo reveladas. Esse carter triplice pode ser percebido em muitas facetas da vida e torna a deusa triplice uma figura com quem podemos nos identificar facilmente. Ela se relaciona com a propria substdncia da nossa humanidade e, se Ihe dermos espaco para agir como figura m{tica, pode inspirar a nossa alma, nutrir e sustentar os nossos recursos interiores e transformar o proprio cerne do nosso ser. Neste livro, preferi enfocar o arquétipo da deusa tri- plice e nZo a deusa em si. O arquétipo mais geral costuma ser visto na mitologia como triplice; assim, por exemplo, Afrodite foi vista como Virgem, como Esposa e como Pros- tituta. Uma trindade semelhante esté na figura de Isis como lnm, Esposa ¢ Vitiva de Osiris. Seria impossivel, dadas as limitagoes deste livro, empreender a tarefa de catalogar to- das as facetas trfplices da deusa; assim, restringi minha pes- quisa a uma consideragdo da deusa que revela ser a sua forma ‘trfplice um aspecto essencial da sua natureza. Também con- 19 centrei 0 livro na tradigdo ocidental — nos mitos gregos em par- ticular — que forneceu o terreno mais recompensador para o meu ‘estudo desse elemento da mitologia. Nao espero que este livro se~ J considerado um estudo exaustivo da deusa triplice, visto ndo contar com os elementos da mitologia africana, sul-americana, ‘da Oceania e do Oriente para propor essa visio geral. Mas acredi- to que ao menos consegui fazer um esboco desse arquétipo, dar algumas indicagBes sobre 0 modo como podemos nos relacionar ‘com esse cariter triplice e assinalar sua relevincia para a real compreensio dos mistérios do nosso ser interior. Espero ter sido capaz de mostrar que esse arquétipo perma- nece sendo a chave para a descoberta do reservatorio de energias, antigas e de sabedoria espiritual acumulado e reprimido em nos mesmos. Por termos crescido no Ocidente, herdamos os proble- mas de uma raca cuja alma coletiva teve abertas em sua substan- cia, ao ldngo de milénios de luta exterior e interior, profundas feridas resultantes da evolugdo de estruturas patriarcais dualistas € unilaterais. Se nés, homens e mulheres, conseguirmos nos reli- gar com 0 arquétipo da deusa no solo do nosso ser, ela poderd nos ajudar a curar essas feridas do dualismo ¢ a sermos agentes da transcendéncia, abrindo a porta da nossa alma para o encon- tro e para o casamento interiores entre nossos componentes masculino e feminino. Tudo estd dentro de nés, se tivermos a coragem de empreender a jornada. Dew Triplice minoana com Machado Duplo ¢ 0 Sole « Lua 20 A DEUSA TRIPLICE NOS MITOS GREGOS DA CRIACAO ‘A mitologia grega & inerente- mente complexa, visto terse origi- nado, em termos orginicos, ema- nando da alma do povo grego a0 longo de dois milénios. Nao & por- tanto nenhuma surpresa descobrir que 0s mitos gregos se desenvol- vem camada ap6s camada e que essas diferentes camadas sejam com freqdéncia confundidas devido a sua interpenetragdo. Iss0 se aplica em especial aos mitos da criacdo, porque, neles, muitos comentadores e narradores ulteriores desejaram in- tegrar outros mitos antigos e impor ‘suas prOprias concepebes da criagdo. Durante o perfodo patriarcal ¢ da ascensfo dos deuses do Olimpo sob a égide de Zeus, fizeram-se Prodigiosas tentativas de reformu- lagdo da mitologia da Criaggo para 2 dar a Zeus uma participagfo for- 6 madora. Contudo, havia na alma grega uma meméria to forte € um sentimento t4o profundo pe- Jos deuses e deusas primitivos, @ até pelas forcas espirituais ante- iores a0 ciclo dos Titas, que essa tentativa de reescrever as historias da criagio fracassou. Embora a intrusfo dessas interpretagSes ¢ in- terpolagdes ulteriores tenha_mui- tas vezes confundido e distorcido a estrutura bem-formada ¢ equili- brada dos primeiros mitos da criagdo, nfo & muito diffcil juntar pontas soltas, particularmente quando percebemos a importéncia primal que tinha para os gregos 0 arquétipo da deusa triplice. De fato, encontramo-la em sua forma ‘mais pura nos antigos mitos da criagao. ‘So muitos e variados os ciclos de mitos gregos da criaggo: por exemplo, os mitos pelasgianos vinculam-se estreitamente com ‘© quadro homérico da criagéo em que Tétis e Oceano tornam 0 mundo manifesto a partir do mar. Outro ciclo, 0 mito orfico da criagdo, conta como Nix (Noite) poe 0 Ovo Césmico. O mito ‘olfmpico apresenta um tema cfctico em que Gaia (Terra)e Urano (Céu) sf vistos como os pais primordiais. Esses diferentes ciclos sfo aparentemente contradit6rios e somos tentados a despre~ 2é-los, tomando-os por mitos independentes, com poucos vincu- los entre si. Entretanto, creio que, se 08 examinarmos tendo em mente 0 arquétipo da deusa triplice, surgira um quadro coerente: A versio homérica apresenta Tétis como a Grande Mae Deusa, os 6rficos apresentam Nix, enquanto o mito olfmpico 22 concentra-se em Gaia como a Criadora. Esses trés mitos se unem quando reconhecemos essas trés deusas como facetas individuais de uma s6 deusa triplice primal. Em sua Teo- gonia, Hesfodo até fornece um mito em que essas trés fa- ccetas se originam do Caos ou das Trevas primais: Tétis_vinculada com o elemento Agua Nix _ vinculada com as trevas do Espaco e com o elemento Ar Gaia vinculada com o elemento Terra Cada uma delas tem um consorte: Tétis — Oceano Nix —Erebo Gaia — Urano Esses trés aspectos comespondem 4 triplice divisio na consciéncia na humanidade. Assim, a faceta Nix € 0 reino inconsciente sombrio, enquanto os deuses que vém de Gaia trabalham mais na esfera plena de luz da nossa consciéncia. © mar € um stmbolo da interacdo entre esses dois dominios, pois exibe sombrias profundezas que se unem ao reino in- consciente, bem como ondas de superficie, que arebentam formando a espuma sobre a qual a luz pode brincar. Portanto, 08 seres que emergem dessa faceta tém muitas vezes um duplo carter, um lado luminoso e um lado trevoso. E instrutivo observar 0 nome de alguns dos filhos dessas trés correntes da criagfo: MAR cEU TERRA TETIS —_ NOITE GAIA Estige -Moiras Titas Afrodite Sorte, Destino e Morte Olimpicos Sono e Sonhos Zeus Eurfnome Remorso Réia Dione Miséria e Disc6rdia Hera Europa _Némesis Deméter Doris Velhice Forcidas Hécate Erfnias Hespérides Creio que esse quadro pode nos trazer novas revelagdes sobre as inter-relagSes desses virios elementos da mitologia grega. Muitos escritores que mergulharam nos mitos gregos trabalharam com os impulsos e arquétipos patriarcais pre- valecentes que caracterizaram o perfodo cléssico. Apenas uns poucos desses estudiosos — merecendo especial mengfo Robert Graves ¢ Karl Kerenyi — penetraram até a tradigg0 subjacente da deusa sobre a qual os mitos patriarcais foram alojados. Nessa camada mais profunda, em que as deusas esto em posicdo de equilfbrio com relagdo aos seus consortes mas- culinos, est4 um quadro espiritual das forcas em acfo na alma humana — e é ela que hoje tem relevincia para nés. A outra rota, a da mitologia patriarcal clissica da Grécia, leva ao impulso ‘imperial romano, masculino e herbico — e, portanto, ao cristia- ‘jhismo, dominado pelo patriarcado e pela negagdo do feminino, rem titima andlise, a terrivel ferida do dualismo que herdamos na alma ocidental. Com a ascensfo e preponderdncia do ele- mento masculino no primeiro milénio antes de Cristo, a hu- manidade seguiu um rumo que envolve riscos para a sade da ‘nossa alma. Comecamos agora a perceber que, nas profundezas da nossa Alma, nfo somos exclusivamente nem masculinos nem femininos, mas temos uma natureza para a qual concorrem ambas as facetas. Negar, exaltar ou inflar uma delas leva tanto a distorgdo como ao erro, bem como a perda da oportunidade de vivenciar a totalidade do nosso ser. 24 De cada uma dessas correntes da criagdo surgiram trés conjuntos de deusas triplices, que refletem 0 quadro dos trés dominios da alma humana: NIX TETIS GAIA Moiras Gorgonas Horas Erinias Gréias Cirites Hespérides Sereias Musas © impulso que gerou este livro surgiu da contemplagzo da natureza desses conjuntos triplices de deusas e de suas inter-relagdes. Fico surpreso com 0 fato de o quadro que sur- giu no meu trabalho parecer ndo ter sido articulado por ou- tros autores ou comentadores dos mitos gregos, visto haver um sistema evidente ¢ integral na base desses grupos. A chave da deusa triplice abre muitas portas, dando acesso as cama- das mais profundas do nosso ser. As Fithas da Noite da deusa triplice — as Moiras, as Erinias e as Hespérides-— vinculam-se com a protegio das energias primais da vida. Elas trabalham no interior do nosso inconsciente mais profundo, como impulsos que envolvem a questdo do destino, da nossa descendéncia e da nossa imor- talidade. As Moiras, por exemplo, agem no mais profundo do inconsciente como impulsos vinculados com a questfo do destino. As Erinias protegem a linhagem e defendem com firia a esséncia sutil que transmitimos as futuras geragdes de descendentes nossos. As Hespérides sfo as guardigs da nossa necessidade interior de imortalidade. Por outro lado, o grupo de deusas triplices que vém do reino do mar por meio das Fércidas tem um outro ca- réter © age como guardifo do limiar. Suas deusas aparecem arquetipicamente no ponto de ligacgo entre o inconsciente © a mente consciente. Num certo sentido, elas nos alertam Para que esperemos até estarmos prontos para fazer com se- guranga a nossa viagem interior. Assim, tém de infcio uma aparéncia aterrorizadora. Quando penetramos nas profun- dezas interiores do inconsciente, temos a impressfo de nos dedicarmos a uma tarefa arriscada e perigosa, mas por trés dessas guardias hé outras figuras, que nos ajudam e nos guiam. Os registros delas sO conservam 0 quadro exterior. Quando passamos por elas ¢ as enfrentamos, seu terror petrificante se modifica; a mAscara da sacerdotisa € removida ¢ ela se apre- senta a n6s anites como um guia do que como um tormento. A partir de dentro, a experiéncia das Trés Gréias, das Trés Gorgonas e das Trés Sereias & bem diferente, um fato indi- cado nos mitos em que esté registrado que, sem excecdo, todas essas figuras terrfveis um dia foram belas. Da corrente de Gaia, a Mae Terra, surgiram, gragas ao intercurso entre Zeus e trés mulheres titds, as Horas, as Cfrites ¢ as Musas. Esses trés conjuntos de deusas tri plices esto cheios de luz, de graca e de inspiragfo para a nossa mente consciente. Suspeita-se que poucos se senti- riam desagradados na sua presenga. Elas sfo patronas das Artes (as Musas), do equilfbrio e da harmonia da Alma (as Horas) e da gentileza e da graca (as Cérites). Vivem como arquétipos da beleza nas alturas do nosso ser. Estfo bem acima de nds, em nossos Olimpos interiores, como aspira- ‘gBes que jamais podemos alcangar por inteiro, que jamais conseguimos realizar; mas a partir dessas figuras, nesse ele- yado reino da nossa alma, pode vir uma torrente constan- te de inspiragdo e de energia criativa que vem da alegria de viver. Creio que devemos reconhecer todas esas facetas do nosso ser como fontes de inspiracdo; elas refletem aspectos distintos da deusa triplice. A adesio exclusiva a uma delas leva a um desenvolvimento desequilibrado. De fato, essa é ‘uma critica que 0 patriarcado sempre esgrime contra os mis- térios femininos. 26 Se seguirmos apenas a faceta das Filhas da Noite, sere- mos levados as profundezas da inconsciéncia sombria ¢ no teremos harmonia com outros planos da nossa existéncia Reconhecemo-lo nos excessos das Ménades, seguidoras do culto dionisiaco que mergulhavam de cabeca no inconsciente. Seguir somente o reino de beleza, de luz e de suavida- de das Musas e das Gracas é outro erro da alma, embora mui- tos ndo o reconhegam. Quando perdemos 0 contato com a nossa natureza terrena, corremos 0 risco de nos tornarmos “suscetiveis", “melosos”, “bonzinhos”, “bonitinhos”. Essa atitude pode ser delicada e bela, mas continua a ser um pro- blema de grande magnitude para o componente feminino da nossa alma. Muitas mulheres dotadas de energia criativa — bem como homens sensiveis, abertos ao lado feminino de si mesmos — sucumbem a esse modo ilus6rio de trabalharem consigo mesmos € provocam o desdém e a ridicularizagao por parte da maioria, voltada para uma atitude masculina ‘mais concreta. Quem mergulha no grupo de arquétipos relativos as For cidas, as Gérgonas guardias, fica obsedado com a fronteira, © ponto de contato, o limiar entre o consciente e incons- ciente, E tanto atrafdo como repelido por esses arquétipos € fica, num certo sentido, petrificado e congelado em suas agdes, incapaz de se mover numa ou na outra direcdo, Essas Pessoas sO se sentem seguras quando se mantém nesse ter- reno intermediério da alma, ao mesmo tempo céticas e fasci- nadas pelo espiritual. S4o incapazes de alcangar as Musas nas alturas de sua alma e carecem da coragem para penetrarem nos mistérios do seu proprio inconsciente. Essa rigidez, essa incapacidade de progredir, essa resisténcia 4 mudanca ou esse medo do novo costumam ser alvo da critica ao lado fe- minino da nossa natureza feita pelo macho patriarcal. Por conseguinte, podemos ver que surgirdo certos pro- blemas no nosso caminho se tentarmos trabalhar com apenas ‘uma “faceta da deusa triplice. Essas dificuldades interiores que surgem na alma podem enrijecer-se ¢ se cristalizar em diferentes habitos de personalidade que tém sido apresen- tados como imagens estereotipadas das imperfeigOes © in- capacidades da mulher, no curso dos séculos, pela corrente patriarcal dominante. Devemos chegar a trabalhar simulta- neamente com todos 0s aspectos do arquétipo da deusa. Se (© fizermos, serdo estabelecidas certas ressondncias entre os trés dominios da nossa alma, ressonancias que permitirio a comunicaco ¢ 0 intercimbio de energias entre esses do- minios. Entdo, o inconsciente vai comegar a falar com a nossa mente consciente, seguindo-se a isso um didlogo entre eles. ‘Advém desse didlogo a possibilidade de uma verdadeira cura para as feridas da alma por meio do casamento interior dos ‘opostos. AS FILHAS DA NOITE As Filhas da Noite, as Erinias, as Moiras ¢ as Hespérides, refletem aspectos do lado sombrio da deusa. Na alma, clas representam elementos primais da parte sombria inconscien- te do nosso ser. Embora ndo tenhamos consciéncia perma- nente delas, elas de fato habitam 0 nosso inconsciente co- mo fatores fundamentais. Se alcangarmos suas esferas de in- fluéncia, elas se manifestarfo, irrompendo repentinamente do nada, surgindo diante da nossa visio consciente, por ve~ zes projetando-se em pessoas ¢ eventos que nos cercam. Elas personificam trés facetas distintas do lado sombrio. As Erinias ou Fiirias representam a raiva primal que 4 no nosso intimo, a raiva sedenta de vinganga diante da ameaga A nossa forya vital. Elas defendem seus dominios mediante uma fixagZo na vinganga endo se interessam por retribui¢do, sendo bastante insensiveis a quaisquer argu- mentos. Se esse nosso aspecto primal for ativado, pode- mos s6 ter olhos para a vinganga, e nés mesmos ficaremos chocados com os extremos a que podemos chegar. Quan- do um arquétipo dessa espécie se manifesta coletivamen- te na sociedade, podem ser perpetradas faganhas deveras monstruosas. ‘1A faceta das Moiras é bem mais passiva, embora igual- mente inexorivel. As Moiras que temos em n6s tecem 0 nosso destino, de que sio uma personificago. O contato com esse aspecto pode tanto inspirar como deprimir a nossa forga vi tal. Se tivermos uma sensago de que ha correntes positivas fem ago na nossa alma, gracas a boa disposigo das nossas Moiras para conosco, é possivel liberar grandes forgas de po- sitividade © tomar disponiveis para nés recursos de energia vital. Mas se sentirmos que as nossis Moiras teceram para rnés um futuro trigico ou vazio, ficaremos deprimidos ¢ nos sentiremos drenados da energia vita. ‘As Hespérides sfo figuras guardids da nossa psique ¢ mantém longe de nds as Magis Douradas da Imortalidade, azo por que é raro encontrarmos esses setes no nosso in- terior. As Magas da Imortalidade representam a esséncia das, nnossas encarnagSes precedentes, bem como a esséncia co- letiva da parte eterna da humanidade. As Hespérides nos afas- tam desses frutos para nos proteger do seu poder assus- tador, pois a nossa conscigncia se afogaria facilmente se re- cebesse de repente 0 conhecimento do nosso pasado, da nossa parte imortal mantida em seguranca no inconsciente. Contudo, por vezes uma parte desse conhecimento conse- gue penetrar na nossa mente consciente, causando com fre- Qiiéncia, no inicio, certa perplexidade e certa confusio; as vezes, oferece uma fonte de inspiracdo, chegando a mudar toda a diregao da nossa vida. O fruto das Hespérides tem um tremendo poder e a sibia protegdo que dio a esse poder é essencial para nés. Dante e Virgo dante das Brinias do Hades Iustragdo de Gustave Doré para A Divina Comédia AS ERINIAS OU FURIAS ‘As trés Erinias ou Forias esto entre as mais antigas deusas gregas. Em todos os diferentes mitos da criagdo, elas tém um lugar no esquema primordial das coisas, precedendo em muito as divindades masculinas do ciclo de Zeus. Assim, sfo consideradas con- temporineas dos Titds, nascidas da unio entre o Ar ea Mie Terra, ou filhas da Terra surgidas, se- gundo Hesfodo, do sangue do Urano mitilado. Esquilo descre- ve-as como Filhas da Noite (Nix), enquanto, para Séfocles, eram fi- thas da Treva com a Terra. Essas trés ancids sfo Aleto (“a de ira incessante”), Tisifone (“vingadora do assassinio” ou “re- taliago”) e Megera (“‘a ciumenta”). Vivem no mundo inferior. Esquilo descreve-as como pavorosas mulheres semelhantes a Gérgonas, que envergam longos vestidos negros, com trancas formadas por cobras, olhos injetados e unhas semelhantes a garras, sen- do mais tarde representadas como donzelas aladas de aspecto sério, vestidas de cagadoras, com serpentes ou tochas nos cabelos, portando agoites, tochas ou foices. Elas vingavam o derramamento de sangue, de modo par- ticular 0 de um genitor, e, mais especialmente, 0 assassinato da mie pelo filho. Quando isso acontecia, salam da sua mo- rada nos portdes do Hades e perseguiam 0 autor do derra- mamento de sangue até a vinganca. Ninguém podia escapar da sua fitria, Podemos vé-las como guardias da linhagem, das forcas que atuam por meio da hereditariedade. Foram mais tarde consideradas como tendo trés facetas, cada uma das quais Costumava receber um nome diferente. Como Séminas (e como Euménides), eram as “venerdveis ou gentis”; como Diras, proferiam “maldigdes” contra quem trans gredia as leis da linhagem; e como Manias ou Farias, vociferavam em seu furioso aspecto vingativo. Eram adoradas no seu santuério no sopé do Monte Areépago em Atenas. Como protetoras dos direitos da linhagem matriarcal, as Erinias nfo se harmonizavam com a mu danca para uma sociedade mais Patriarcal que se desenvolvia na Grécia no primeiro milénio antes de Cristo. Eram demasiado antigas, por demais arraigadas no coragao do povo para serem facilmente substituidas por um grupo de deuses e deusas vingativos mais simpiticos a0 novo clima do pa- triarcado. Contudo, foram transfor- madas nas delicadas Euménides — 0 que podemos ver expresso de ma- neira mais clara na lenda de Orestes e as Farias no drama de Esquilo “As Euménides”. Orestes, filho de Clitemnestra, matou a mae num acesso de faria vingativa por ter esta assassinado 0 seu pai, As Erinias, naturalmente, 6 perseguiram, incansaveis, por mais, de um ano, enquanto ele usava todos os recursos para purificar-se do matricidio. Elas no se pacifi- caram e Orestes foi forgado a pro- curar refiigio no templo de Apolo. Os deuses concordaram em julgar Orestes e 0 primeiro julgamento com jtiri foi presidido por Atena. Houve um empate ¢ a de- cisio coube a Atena, que votou contra a punigdo do matri- cidio. As Erinias ficaram possessas e exclamaram que os deuses da nova geragio tinham desrespeitado as leis antigas ¢ as desau- torizado. Ameacaram arrasar a Terra, deixando cair uma gota do sangue do seu coragdo sobre ela, e, como ainda tinham po- der sobre a descendéncia, podiam fazer cair sobre a humani- dade a esterilidade. Terminaram por ser aplacadas ¢ reconci- liadas com a nova ordem quando se concordou que fossem adoradas com sacrificios num santudrio em sua honra em Atenas. Receberam o nome de Euménides ou “gentis”, to- mado de empréstimo de uma triade anterior de deusas do mundo inferior que fizeram surgir do solo plantas comesti- veis como uma dédiva a humanidade. Elas controlavam as forgas do crescimento que operavam no reino vegetal a par- tir de baixo. Séo, portanto, forcas da Terra claramente fe- mininas, opostas as forgas masculinas que operam a partir de cima, a luz do Sol. Elas também governavam forcas que agiam por meio do feminino na reproducdo humana. As Eri- nias cram, por conseguinte, deusas triplices guardigs e pro- tetoras da integridade da linhagem matriarcal, enquanto as Euménides eram deusas triplices que nutriam 0 fluxo da vida e dele cuidavam por meio do feminino. Logo, podemos ver que essas duas facetas terminaram por se fundir nesse periodo ulterior da sociedade grega, que foi entregue quase inteiramente a uma estrutura social patriarcal. Pirtoo no Hades Em alguns contos, diz-se que elas vivem no Céu, numa caverna ao lado de uma fonte de onde jorra agua branca, pro- vavelmente uma referéncia ao seu carter lunar. AS MOIRAS OU DESTINOS As trés Moiras sfo a deuss do destino em seu triplice aspecto. © termo Moira significa “parte”; Por essa razdo, as trés Moiras esto associadas com as trés fases ou partes da Lua. Filhas da grande deusa triplice Nix, pertencem ao estrato primordial das divindades. Nem o proprio Zeus podia opor-se aos seus decretos. Eram conheci das como as Fiandeiras do Des- tino, que teciam os dias da vida humana como um fio. O compri- mento desse fio era decidido inte ramente por elas. Cloto ¢ a “fian- deira”, que porta a roca e tece a trama da vida; Laquesis é a “distri- buidora”, para quem o fio passa a sair da roca para ser medido; e Atropos é a “inevitavel”, que corta © fio com a sua tesoura. 36 AS HESPERIDES No casamento de Zeus e Hera, Gaia (Mae Terra) deu a Hera a fovore das Magis Douradas, mais rde colocada sob a prot das trés Hespérides no pee de Hera, no Monte Atlas. As trés Hespérides, denomi- nadas Hesperaretusa (“a vesper- tina”), Egle (“a luminosa”) e Eritia (“a carmesim”), eram, nu- ma versio, as Fithas da Noite; f zem parte das geracSes primevas de deuses ¢ deusas, tendo prece- dido em muito o sumimento de Zeus; cm outras histdrias, sido consideradas filhas de Atlas ou de Forcis e Ceto. Seus nomes as identificam de modo claro com o Pordo-Sol © 0 seu reino esté nos limites extremos do Ocidente. Elas guardam a Arvore das Macs Dou- 38 radas da Imortalidade, acompanhadas pela serpente Lado, filha de Forcis e Ceto, por vezes descrita como tricéfala. Em algumas histérias, Lado e as Hespérides sio mostrados como guardiges métuos; em outras, como rivais jogados uns con- tra os outros. As Hespérides cantam docemente com suas vores cristalinas, © que levou alguns registradores de mitos a se confundirem, relacionando-as com as Sereias. Recebe- ram ainda outro conjunto de nomes: Liparo (“a de suave radiincia”), Crisotemis (‘lei e ordem perfeitas”) © Astéro- pe (“brilho das estrelas”). Um outro trio, composto por Hi- géia, Medusa (que também & 0 nome de uma das Gorgonas) fe Mapsaura, soma, com os outros, nove, o triplo trés, que ‘observamos ser uma triplicagdo da deusa triplice. © Décimo Primeiro Trabalho de Hércules foi colher al- gumas magds do Jardim das Hespérides. O grande herdi mas: culino o conseguiu antes pela astticia do que pela forga: pe~ diu a Atlas, nessa lenda pai das donzelas, para pegar alguns frutos para ele enquanto carregava para ele 0 peso dos céus. ‘Atlas logo concordou e voltou com as magds, mas relutow em receber de novo a sua carga. Hércules enganou 0 pobre Atlas pedindo-lhe que segurasse 0s céus apenas por um mo- mento mais enquanto fazia uma almofada para proteger a cabea, recusando-se depois a recebé-los de volta. Tendo Hér- cules retornado com as magds, que foram entregues a Atena, esta as devolveu as Hespérides, pois era ilegal a retirada da propriedade de Hera das mdos delas. AS FILHAS DAS DIVINDADES DO MAR: AS FORCIDAS ‘Ha trés grupos de figuras de deusas triplices nascidas das antigas divindades do mar, Fércis e Ceto, conhecidas co- letivamente como Fércidas. Elas estZo na interligacao entre a mente consciente e o inconsciente, da mesma maneira co- mo a superficie do mar serve de mediagdo entre 0 reino som- brio em suas profundezas e 0 mundo superior, pleno de luz, sob a abdbada celeste. Esses trés grupos de deusas sfo guar- didies desse limiar. ‘As Gérgonas, com suas terriveis mascaras, parecem aler- tar-nos contra a imersio prematura nas sombrias profunde- zas do nosso mundo inferior psiquico, 0 nosso dominio in- consciente. Se penetrarmos nesse reino sem a preparagdo adequada, podemos ficar petrificados, ter a vontade parali- sada e perder a capacidade de compreender as forgas ¢ os tenebrosos poderes do nosso inconsciente. Serfamos redu- zidos a uma completa inatividade da alma. ‘As Sereias trabalham no sentido oposto, tentando ati- vamente atrair-nos para a sua esfera com o seu canto sedu- ‘tor e suas belas formas. ‘As Gréias ficam na fronteira, marcando a sua existén- cia, mas no tém o poder de nos repelir nem desejam nos atrair para a sua influéncia. Essas duas facetas das Gréias so lethbradas no mito n&o apenas como repulsivas Velhas Gri- salhas mas como seres dotados de uma bela forma de cisne. O cisne, na qualidade de ave que passa a maior parte da vida sobre a superficie da agua, é 0 simbolo universal da conscién- ia, que se apéia nas profundas éguas do inconsciente e se mantém acima delas. Vemos que esses trés grupos, trabalhando na fronteira entre a consciéncia eo inconsciente, podem ser distinguidos uns dos outros. As. Gérgonas desejam nos repelir, nos assus- tar; as Gréias apenas indicam a fronteira, enquanto as Sereias desejam nos atrair e nos levar a penetrar no nosso reino in- consciente, estejamos ou ndo preparados para isso. As Har- pias se relacionam com as Sereias e so freqiientemente con- fundidas com elas em Iendas ¢ historias posteriores, razo Por que as incluf na categoria ora considerada, AS GORGONAS As trés Gorgonas viviam na extremidade ocidental do mundo © seu santudrio formava fronteira com. o reino da Noite. Essas irmas, filhas imortais de Forcis e Ceto, chamavam-se Medusa (“a ladina”), que era mortal, Esteno (“forte”) € Eurfale (“a que corre 0 mundo”). Originalmente, as _Gérgonas tinham rostos muito belos e cor pos bem formosos, além de gra- ciosas asas douradas arqueadas por sobre os ombros. Medusa provocou a ira de Atena ao fazer amor com Posidon (0 deus som- brio do Mar) num dos santuérios desta. Atena tornoua mortal e a transformou, e as suas irmas, em feias megeras, as Repugnantes. Tinham a pele escamosa de um lagarto e cobras silvantes por ca- belos; sua lingua era protuberante, cercada por presas de javali. Medusa era a mais feia e petrificadora das trés. O terrivel othar das Gérgonas era to intenso que transformava os mortais em pedra e por toda a volta da caverna em que viviam podiam-se ver figuras de homens ¢ animais que tinham olhado ca- sualmente para elas e foram petri ficados por essa visio. Podemos vélas, messe sentido, como figuras guardids, protetoras das fronteiras dos antigos mistérios primais, guar- digs do limiar. Robert Graves, entre: outros, sugere que as sacerdotisas usavam, na celebragdo dos Misté- ios, méscaras de Gérgonas para afastarem os ndo-iniciados. Cabecas de Gérgonas, na forma de grotescos entalhes, eram colocadas com freqiténcia nos muros das cidades gregas para aterrorizarem os inimigos, um exemplo de protegdo de fronteiras incorporado pelo arquétipo das Gérgonas. ‘A mitologia masculina posterior fala do herbi Perseu, que, enviado numa miss4o suicida para trazer a cabeca de Medusa, atraiu a simpatia e a ajuda de Atena. Com sua aju- da e com o empréstimo de sandilias aladas, um elmo de invi- sibilidade e um escudo brilhante, Perseu penetrou no reino das Gérgonas. Fneontrando-as adormecidas, ele delas se apro- ximou, protegido pelo elmo da invisibilidade e, caminhan- do de costas, olhando apenas para o reflexo da cabeca de Medusa em seu escudo, pode decapité-la com a espada guiada por Atena, e escapar. Ele levou a cabega guardada em segu- A Medusa "Stross" o-aspecto belo da Gérgona 45

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