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LUCIO COSTA: MONUMENTALIDADE E INTIMISMO Sophia S. Telles A obra construida de Liicio Costa € relativamente pequena, mas sua cobra escrita — composta de varios artigos publicados em revistas, a maio- ria deles recolhidos em 1962 e 1970! — ajuda a compreender melhor 0 sentido de sua reflexdo sobre a arquitetura. Sobre Lticio Costa pouco ou nada foi escrito. Reconhecidamente a referéncia mais importante para uma parte da moderna arquitetura brasileira, ele se manteve numa posicdo dis- creta e algo isolada, especialmente apés 1938, ano do Concurso para 0 Pavilhao do Brasil em Nova York, feito posteriormente em conjunto com Oscer Niemeyer’. E provivel que ums avaliagio de seu trabalho somen- te seja possivel depois que a arquitetura brasileira tenha constitufdo uma cobra suficiente para que nela se entreveja o partido que Liicio delineou ‘hd muitos anos, e que & menos um repert6rio de formas ou uma determi- nagdo construtiva do que uma certa atitude’ diante da modernidade, que nele sempre esteve demarcada por um olhar retrospectivo sobre nosso pasado colonial. A inevitdvel abordagem literéria do pensamento de Liicio Costa deve-se & descricdo sempre poética dos seus memoriais e de seus depoi- ‘mentos sobre a arte, a arquitetura e o Brasil. Uma primeira indicagao da ‘maneira particular pela qual Licio considera a civilizago industrial apare- ce de forma reservada em alguns poucos textos, onde deixa entrever uma eve desaprovago ao modernismo importado, referindo-se provavelmente aos modernistas paulistas. Em 1948, respondendo a Geraldo Ferraz sobre a primazia do projeto modero no Brasil, Licio afirma que a obra de Nie- ‘meyer ndo proviria de fonte secundéria (Warchavchick), mas de um vin- culo direto com Corbusier, além de manter a afinidade com a tradigao co- Tonial. Nesse depoimento, confirma a sua prépria contribuigao para tralizar 0 complexo modernista". Em 1951, Liicio observa que as atitudes a priori do modemismo oficial jamais seduziram o grupo de arquitetos cariocas que estudava a arquitetura moderna, especialmente Corbusier, 6 (Fs ange eto ra ‘poten Lad Cail So Bre Aigatenura, Parco. See {5 pea above SA) 6 Bree eee ee ae Looe Sepa ‘Retuta 670 = “Gc na ns Soa 23st este se parares ore saree See ee megs aM Bio’ dr Foueagin¢ ‘ies a S Nemes ei foe forages, “eRe Png fa T9h6, ene on. iro Specie GCC Kany, io o- ee Ta FACTSET, ros 1972. pp. 3835, LUCIO COSTA: MONUMENTALIDADE E INTIMISMO entre 1931 € 1935, e que eles "tornaram-se madernos sem querer”. & ansiedade que, em Sio Paulo, havia configurado o mundo modemo co- ‘mo a tensio sempre iminente da passagem da condig2o provinciana A cosmopolita, parece nao afetar Licio. Ao contrério, a era industrial de- veria permitir 0 "estilo diferente de vida, serena e equilibrada — 0 opos- to (,.) da agitagao febril erroneamente associada a idéia de ‘vida moder- na", Se as novas técnicas preconizam 0 "progressivo e fatal abandono das solugées técnicas regionais", os valores da tradigao construtiva da colénia — a simplicidade, a harmonia e a austeridade — deveriam reger 6 sentido ¢ a intengo do projeto moderno. Somente se a arquitetura pu- der constituir um fio de ligago com o passado colonial, ela seré efetiva- ‘mente significativa e escapard aos modismos estilfsticos, inclusive dos fal- sos modernismos. Lucio afirma que a honestidade construtiva da arquite- tura modema, especialmente daquela ligada & tradigao latina e mediterra- nea, deve representar a possibilidade de resgate dos valores que haviam sido afastados pelo ecletismo do século XIX e mesmo pelo neocolonial’. ‘A vinda de Corbusier para a América do Sul, em 1929, represen- tou, como é claro, um impulso para a arquitetura no Brasil, € em 1936 hhavia j4 uma escolha pelo arquiteto, por seus fundamentos doutrindrios, {que integravam, segundo Liicio Costa, "os trés problemas distintos que interessam e constituem 0 problema tinico: © problema récnico da cons- ‘rugdo funcional e seu equipamento; o problema social da organizagao ur- bana ¢ rural na sua complexidade utilitria e lirica; © problema pldstico dda expressio arquitet6nica na sua acepgo mais ampla e nas suas relagdes com a pintura e a escultura”. A questio de base ressaltada pelo arquiteto brasileiro 6 que, a0 con- trdrio das contradigbes oriundas das limitagdes da producZo artesanal, a técnica moderna possibilitaria resolver materialmente o dilema, o confli- to do interesse individual em face dos interesses coletivos. Tal seria "o traco definidor da verdadeira Idade Industrial". Nas suas palavras, justica social por imposiedo da técnica e ndo por "solidariedade humana e cari- dade". Liicio aponta o descompasso entre uma ordem social ultrapassada © as possibilidades reais da modernizagao técnica, que se encontraria, por isso, tolhida no "ritmo normal de sua expansio"’. Desloca assim 0 en- frentamento dos problemas da modernidade social e politica no pafs para as solugées da racionalidade técnica, no que segue, als, a postura de Cor- busier. De outro lado, Licio procura um vinculo entre 0 procedimento construtivo do passado e as novas téenicas do conereto armado, e defen- de a necessidade de estudos sobre os sistemas de construgio que resulta- riam na demonstragao de como mesmo a arquitetura moderna — ainda na referéncia a Corbusier e a sua crenga positiva no progresso — também se enquadraria na "evolucio que se estava normalmente processando” Na linhagem francesa que parte de Viollet Le Duc, toma como base a casa, e nfo igrejas ou palicios, para mostrar que as construgdes rurais portu- uesas, rudes e acolhedoras, demonstrariam melhor a qualidade da "ra- 2", com seu aspecto "viril", e, "na justeza das proporgées, auséncia de 16 @ SA m 12527 € ‘spas (SA.p.230095, (6)SA,p.222(1952, ee ed ()SA.p.227 095, (©)SA.p.250(1982, NOVOS ESTUDOS N° 25 - OUTUBRO DE 1989 ‘make-up, uma sate pléstica perfeita". No Brasil, leva em conta, especial- mente, @ casa do colono, "a nica que ainda continua ‘viva’ em todo 0 pais". Na deserigho de Licio: “f sair da cidade © logo surgem 2 beira da estrada (.) fetes de pau-a-pigue, pau do mato préximo e da terra do chio, como cases de bicho (.) e ninguém liga, tho habituado que est, pois 'agui- lo faz. mesmo parte da terra como formigueiro, figueira brava e pé de mi- Iho — 6 0 cho que continua...". E assinala em outro momento que "o engenhoso processo de que sao feitas — barro armado com madeira — tem qualquer coisa do nosso concreto armado (...) Por ser coisa legttima da terra, tem para nés, arquitetos, uma significagio respeitével e digna en- quanto 'pseudomissées, normando ou colonial’, ao lado, nfo passam de um arremedo sem compostura™'” Lucio ter4 desejado constituir um Iéxico construtivo que na sua uti- lizaglo funcional pudesse retomar a tradigio, que ele identifica com a se- veridade eo ascetismo da arquitetura moderna. De certo modo, busca uma unidade assentada na integracao entre © verniculo perdido do passado © 0s noves procedimentos, mais do que na sintese formal que é propria de Corbusier. A diferenga de atitude entre os dois arquitetos & significativa. A ques- tio & que Corbusier nio identifica imediatamente as construgdes da era industrial com a obra de arquitetura. Reconhece que o “estilo” da época 4j6 € aparente, ¢ provém das transformagdes operadas pela "civilizagio ma- quinista". Se, de um lado, bate-se pela aceitacdo do standard, da indus- trializagio, das casas em série ¢ da to conhecida organizagio das fung6es, por outro lado, distingue a arquitetura como um fato plistico, busca uma nova estética sob as regras mais abstratas da modernidade. Dai sua adesio & arte moderna ¢ especialmente ao cubismo. De fa- to, a confianga nos novos procedimentos e sua exaltagio no se confun- dem com 0 que Corbusier chama algumas vezes de "emogio plistica” e, doutras, de "sensagio arguitetral”. A técnica diz respeito, portanto, mais a0 “estilo” da época do que & arte que, se deve participar do "Esprit Now- veau', mantém-se, entretanto, quanto 8 forma prerrogativa do arquiteto essa liberdade de pensar a arquitetura ‘au deli des choses utilitaires, que faz Lucio se inclinar também para Corbusier, descartando os demais arquitetos, que considera mecinicos na adequaso mais imediata da for- 1a 8 fangéo, embora ressalve Gropivs e, especialmente, Mies Van der Rohe 0 projeto de Corbusier reafirma em Liécio a disposigao de conci- liar arte téenica numa diregdo paralela mas nio tio proximas que esea- pem a0 significado singular que Licio vai deixando entrever na sua defe 48 do projeto moderno no Brasil, Nele, arte e técnica ganham um outro sentido, uma distancia, mais do que uma proximidade Na referéncia clissica © meditetrinea de Corbusier, que « Licio tanto ineressa, a arte deveria voltar aos cinones de perfeigio, da qual a civiliza 40 teniea, como segunds natureza, é agora o modelo: “wn état de cho- 505 nouveau est Ii, implacable” ¢ este século nos dé os meios de realizar 7 (a0), p89 093, LUCIO COSTA: MONUMENTALIDADE E INTIMISMO_ jans ta pureté des concepts purs'"'. Se a técnica é, nas palavras do ar- quiteto, o suporte de um novo lirismo, Corbusier reafirma a emogio plis- tica como uma atitude eminentemente intelectual: "Dans V'atmosphére pure du calcul nous retrouvons un certain esprit de clarté qui anima le passé immortel”, A nova perfeigdo abre caminho a "cette aspiration de lesprit vers le défini et la pureté””*, no sentido preciso da clareza cartesiana, As figuras geométricas, destitufdas dos excessos ornamentais do ecletismo, permitem afinal o tio decantado jogo dos volumes sob a luz. Em Corbu- sier, portanto, a unidade entre a arte e a técnica é regida essencialmente pela visualidade, e a eventual presenga de elementos vernaculares, ou da planta palladiana, dobra-se & fungao modema através de uma sintese for- ‘mal poderosa que destr6i a literalidade das referéncias, ao subjugé-las & operagdo abstrata de seu partido (figura 8). Em Licio, ao contrério, a tentativa de recuperar os valores do pas- sado acaba por configurar nos préprios procedimentos construtivos 0 lu- gar de uma outra unidade, mais problemética. Ao longo de seus textos, ele faz uma sutil diferenga quanto ao carter da fruigo estética, ao trans- formar a emogio plistica nas palavras "sentimento” ou “intuigdo poéti- ca", quanto & escolha deste ou daquele elemento, escolha essa que € a “esséncia mesmo da Arquitetura", Para Lucio, "se a arquitetura é funda- mentalmente Arte, nfo 0 6 menos fundamentalmente construgto, E pois, a rigor, construgao concebida com intengao plistica’. Tal intengao nao atua "de uma forma abstrata, mas condicionada sempre... (pela) consciéncia do sentido verdadeiro dessa preciosa experiencia acumulada..."". Talvez. por isso, por ter buscado constituir uma tradigio, 0 arquiteto brasileiro nao poderd distanciar-se totalmente da prética académica da arquitetura, onde é a qualidade dos virios agenciamentos — os técnico-funcionais & 0s histéricos — que deve fazer aflorar, ao fim, a sensibilidade do artista, na intengdo do projeto. Se a emogiio estética, em Corbusier, provém do julgamento da bela proporgdo, o sentimento é antes uma disposigao ime- diata, um contato direto com 0 mundo sensivel. Em Liicio, a "complexi- dade utilitéria e lirica” parece ordenada pela presenga perene da natureza pela meméria da paisagem colonial. Retira assim da arte o papel ativo de configuradora do espago modemo — que reserva mais & racionalidade técnica — para deposité-lo numa sensibilidade contemplativa. A arte ca- beria o sentimento e a intuigao de integrar a cultura do passado & nova civilizagao. A grande diferenca entre os dois arquitetos refere-se & posigao de onde partem. Para Corbusier, a defesa do mundo técnico é uma estratégia ‘que faz de sua obra uma titica ofensiva. Em Ltcio, hd uma ambigiidade, nna medida em que a arte e 0 artista, embora devam se identificar com um projeto civilizat6rio, ocupam uma posi¢ao defensiva ante as relagdes so- ciais engendradas pela era moderna. E importante ressaltar, entretanto, ain- da a referencia a Corbusier e sua visdo virgiliana da casa de campo, a remi- niscéneia, em seus projetos, dos urbanistas ut6picos do século XIX e a defesa insistente da vida simples e frugal, mesmo em suas monumentais 8 42 Gs Chases rf inne he Serie Mnanach fa Ls Eire 0. Cat Ge 1978, fase Botega eras, Tan 1, 1838, pp 79880. (12) Mem, pp. 19.24 (3)SA p 113094, NOVOS ESTUDOS N* 25 - OUTUBRO DE 1989 “Unités d'Habitation". De certa maneira, a identidade forte entre ambos dia respeito & atengio com o lugar do indivéduo numa sociedade de massa. Mais de uma vez, Lucio define a solugdo da arquitetura moderna para a moradia, em termos “igualmente individuais” para as grandes mas- sas de populacdo, ao descrever as vantagens da concentragio em altura, com areas ménimas por morador, desde que se preservem os servigos co- muns ¢ se obtenham grandes extensdes de Grea arborizada, "a fim de as- segurar a todos os moradores perspectiva desafogada © a benéfica sensa- do de isolamento...". Os edificios, grandes blocos isolados, capazes de liberar grandes reas de terreno, garantiriam "maior desafogo visual e, co mo consequéncia, maior sensagao de intimidade"™. Nao defende assim a existéncia do espaco privado, idéia excessivamente burguesa para as in- clinagdes socializantes da arquitetura moderna, mas a garantia da vista de- simpedida que isola o individuo do apertado contato com a multidio, Em Liicio, as objetividades técnicas ¢ funcionais parecem deslizar ao encon- tro dos valores do passado: 0 isolamento da casa rural ¢ a intimidade com a natureza, Para Lécio, a técnica € um pano de fundo que devers suprir as ca réncias mais imediatas — 0 que, no caso do Brasil, é quase tudo. Mas Lit cio defende que a arquitetura deva reparar a maior caréncia de um pats novo: a necessidade de cultura. Um esteta muito mais do que um politi- c0, © que defende € a possibilidade de uma manifestagio de cunho brasi leiro. Poderfamos substituir a palavra "brasileiro" por “nacional”, mas seré mais prudente manter a primeira, porque nagio implica cidadania, ¢ 0 que Licio reivindica € um sentimento de brasilidade constituido pela histéria, mais do que pela polftiea. Ele reconhece que a educagio de um povo re- quer varias geragées. Daf um certo desconforto frente problemética po- breza, em todos os sentidos, do pafs. A modernizagio iminente deveria suprir assim uma dupla falta, como se fora possivel justapor o pasado a0 presente na linha do futuro, refazendo de certa maneira o fio da histéria por uma consciéncia perspectiva. Mas nao seré possivel. Nenhum estudo sistemético, nenhuma cultura erudita seriam capazes de provocar uma transformagao sem o engajamento da situagao presente Lilcio, mais ainda do que Corbusier, parece recuar ante os efeitos da civilizagdo industrial, em sentido amplo, ante o cardter propriamente urbano da sociedade de massa. Se a voracidade antropofigica dos moder- nistas de So Paulo se debatia em razo dessa modernidade proxima, Li- cio se ressente na verdade de outea proximidade: a de um passado que no sedimentou uma tradi¢io, uma meméria que se vé esgargada ¢ cujo sentido escapa. Embora otimista quanto as possibilidades da era industrial, nfo consegue esconder uma certa desconfianga em relagke a0 proprio pais. Seu olhar sobre a coldnia parece tombar sob 0 peso de um presente fe- chado sobre si mesmo. Parece haver um lapso nao identificado na pré- pria imagem da tradiclo. A meméria é assim um esforgo algo intelectual para reconhecer aqui ¢ ali tragos permanentes de uma continuidade. Em alguns de seus textos iniciais, Licio demonstra uma certa melancolia, quase ” LgUSA vp. 233 £231 LUCIO COSTA: MONUMENTALIDADE E INTIMI lum conformismo diante da pobreza do pats, do povo inculto. Em algum ‘momento chega a falar da precariedade da "raga" e que, no fundo, cultu- ra uma coisa de raga'®, Nao fora a esperanga de que mais tarde o adven- to da produg2o industrial e a educagio impulsionada pela autoridade do Estado" pudessem agir nesse sentido transformador. Nio se pode saber das razdes que fizeram 0 arquiteto recolher-se ‘muito cedo a um reservado segundo plano, mas deve-se reconhecer a ad~ mirdvel independéncia de pensamento, que the permitiu romper com os tradicionalistas do neocolonial para advogar o projeto de Corbusier, o que também lhe permite a defesa de Niemeyer e sua préxis voluntariosa Liicio distingue no artista a absoluta liberdade de criagao, embora ela muitas vezes se distancie dos pressupostos que defende como a inten- 20 correta para a arquitetura moderna no Brasil. Sobre a criagao artistica 4 uma definigdo: "O conjunto da obra de um determinado artista consti- tui um fodo auto-suficiente e ele — o proprio artista —é legitimo criador ¢ tinico senhor desse mundo a parte ¢ pessoal". O que admite em Nie- ‘meyer, na referéncia a Corbusier, abre uma distfincia entre sua prépria vie sfo da arquitetura, assentada em uma base vernacular, severa e simples- ‘mente ordenada pelos pressupostos modernos, e a liberdade de manifes- tacZo individual. Em outros textos, Liicio expord as razdes dessa defesa. artista deve condensar as aspiragdes do povo, deve catalisar as emo- oes populares, e "comover" com sua obra "o coragdo das massas"™. Como se o artista devesse sintetizar sentimento do pafs. E € o sentimen- to, e no o julgamento da arte, que esta em questao. Surpreendentemente para um arquiteto moderno, Liicio mantém de sua formagao académica, junto com a nocao de génio, a disposigd0 pas- siva da arte — suavizar 0 mundo do trabalho como uma fonte de recrea- fo e lazer. Permite-se assim conciliar as posigdes que defendem a arte pela arte com aquelas da arte social”, Mas nao era essa sua questo, O afastamento em relagio a sociabilidade moderna, desdobrado na visdo con- templativa da arte, identifica-se com o isolamento ¢ a intimidade que de- senhara sob a imagem de um passado austero e simples. A defesa da liber- dade do artista responde & mesma atitude com respeito & aco desenca- deadora da técnica e, especialmente no Brasil, ao embate que deve travar com um presente sem tradicao e, por isso mesmo, carregado da irrespiré- vel grosseria de um pafs novo. Coloca-se assim distante das implicagdes politicas da arte realista™. Como arquiteto, Liicio procurou um estilo que nio se resumisse as transformages da civilizagio técnica. Eo "modo de ser" brasileiro, depositado nas reminiseéncias do vernéculo mais popu- Jar, nos elementos andnimos da coldnia, que desejou ver resguardado pe- lo projeto moderno. Mas entre o passado colonial e o futuro trazido por Corbusier, Liicio nao tera se conformado, talvez, & dissolvéncia do pre- sente moderno que reconhece como uma transico necesséria, 6 0 que se pode deduzir, aqui e ali, nos comentarios sobre a banalidade da vida cotidiana no Brasil, na graca e na fina ironia diante da incultura do pais € na irritagao incontida frente d insensibilidade da burguesia. ‘0 ranihcete Bo o See's. 411829) ace aniinstaie dacearind aed ise God sec fre GAG te Tinos do fot imine ens eo Nacooay deja dae tsa fa pare dee on (inci ants a spss fe ig Ne Ba ee est ee ees pean fe mingte santo OB) cap sig OE es Ssirentigat Coe tise tiecunentngs Embee Sa )SA,p.288 1952) {el mals Bee paca soncatan avn 9) Sap 2 oven, A So Stabe See ‘dernade sf orn ds faistde pve ae Frat ing de ‘epi dagple se. at ae bt Smee pmo dere ‘Sep ars nd ‘Siler Soave deme pci, opm pol ‘dees ¢ mona do ‘lo pecmiat Ea! Se produpao.” NOVOS ESTUDOS N° 25 - OUTUBRO DE 1989 © afastamento de Licio aponta para o impasse entre a imagem de uma individuagio marcada pelo sentimento e pelo afeto, que se configura nas marcas culturais do passado, ¢ a rarefeita subjetividade moderne. Mas essa é a questio mesma do modernismo no Brasil. A arquitetura, em mui tos de seus projetos posteriores, nao escapari a essa distancia, ao vazio entze a cultura e a civilizagio, se pudermos dizer assim. Os projetos que se constituem sob a influéncia de Liicio, exatamente porque se debrugam sobre 0 pafs, deverdo atingir a modernidade, mas em um ou outro senti- do: de um lado, pela imaginagdo, que termina por depositar a cultura no desenho da natureza (Niemeyer), e de outro, pela politica, que se desenha nas formas da racionalidade técnica (Artigas). Mas a referéncia aos proje- tos de Lucio se fard identificar em muitos dos arquitetos seus contempo- aneos. Serd preciso, entio, demarcar antes algumas questées. Entre os poucos projetos edificados de Lécio Costa, dois sao re. presentativos do modo como o arquiteto resolve, de um lado, um parti~ do moderno e, de outro, um projeto de raiz vernacular, integrando am. bos os procedimentos. Os edificios do Parque Guinle no Rio de Janeiro (1948-1954) (figura 1) e o hotel de Friburgo (1944) (figura 6) sto exempla- res de seu raciocinio, Os primeiros tem uma estrutura bisica corbusieria- na: pilotis, plantas variadas, duplex, brise-soleil. A locagao dos prédios vi- sa deixar 0 parque 0 mais intocado possivel ¢ libera a vista, mesmo sob orientagio térmica desfavordvel. A solugio da fachada a ser protegida é curiosa. A malha cartesiana da estrutura constr6i um plano estével que de- verd ser contraposto quando preenchido pela disposigao alternada dos pa- ros rendilhados dos cobogés"' que variam em densidade, ¢ das varandas semiprotegidas por brises verticais. Embora no haja uma simetria sim- ples na composigao das unidades, o ritmo das aberturas enfatiza novamente a malha onde estio contidas, A extensa superficie do edificio no deixa assim de ser resolvida numa operagao compositiva de janelas e varandas que tende a dissolver a ambigiidade entre o interior ¢ 0 exterior, sugeri- dda pela sucessio dos panos vazados. A solugio de Licio é evidentemente de grande qualidade plistica: 1 decisto de abrir "janelas" numa superficie j4 perfurada adquire © valor poético de acentuar a disposigao de abertura, ao mesmo tempo que recu- pera o sentido de vedagio da parede construfda, Da mesma maneira, a textura minuciosa que o olhar aos poucos vai apreendendo na extensa m: Iha do edificio acaba por construir uma superficie que dissolve 0 seu pr prio valor translicide. O projeto indica uma das questdes mais interes- santes para a arquitetura dese perfodo, a possibilidade de conciliar a ex- lerioridade da planta moderna com a referéncia colonial, exatamente opos- ta, de fechar e defender a intimidade da construgio, © fato € que 0 uso do cobogé é radicalmente diferente do signifi- ado do brise-soleil, embora ambos estejam aparentemente cumprindo uma mesma fungio. O cobogs tem o cardter de elemento de justaposigio, sua escala é arlesanal © € uma variante das treligas, que protegem o interior das casas coloniais. Do lado externo, 0 efeito do rendilhado adquire 0 va- 85 fleas? sea ee oe eto ai isa, coms Esporte! tec’ Sos rota ts sa, So etter ‘a, eno S Sn moder ‘ents, “semioo” popt 3). Shas cota fe so prbspdineste ns Peis hae LUCIO COSTA: MONUMENTALIDADE E INTIMISMO_ lor de uma superficie e, portanto, de vedagio. Como é claro, 0 seu encan- to maior se produz pela vista interior, ao difundir uma luminosidade re- baixada e intima. De qualquer maneira, a treliga ou cobog6 cumprem a fungio de fechamento do edificio, permitindo ao mesmo tempo ventila- ‘40 e luminosidade onde nio se deseja uma relago com o exterior (figura a brise-soleil, invengo de Corbusier, 6, 20 contrério, um recurso para manter a nogdo de exterioridade, de abertura para fora, sem prejuizo dda protegdo contra o sol. Como uma solugao integrada ao projeto, constréi- se 2 escala do edificio e se identifica por isso a sua estrutura. A relagio que estabelece entre interior ¢ exterior se equivale formalmente, ¢ a esca- Ia do desenho produz um efeito gréfico na fachada, que se movimenta continuamente para dentro e para fora, destruindo a percepeao de uma superficie estével, em favor de um plano ativo (figura 3) A presenca de treligas e cobog6s ser muito comum em projetos dos anos 40 e 50. A arquitetura moderna brasileira parecia se instaurar pe- Ja integragio da referéncia corbusieriana com esses elementos tradicionais, logo acrescidos do uso dos azulejos, recurso aventado primeiramente no cdificio do Ministério da Educago e Cultura (1936-45)". Em muitos pro- Jjetos entretanto, o elemento vazado pouco a pouco se utiliza de uma rett- cula mais aberta, que adquire valor grafico pelo jogo de luz ¢ sombra. Pa- rece assim conquistar a relagao com o exterior que o brise sugere, per- dendo de certa maneira a referéncia colonial, para se transformar em um equipamento moderno. Subjacente & idéia dessa integragio, observa-se na verdade a ten- déncia aos espagos abertos, tanto pelo uso de baledes e terragos, quanto pela amplido dos espacos internos protegidos por essa membrana tran Iicida. A mais forte imagem da casa brasileira, entretanto, parece vir da descrigdo que Liicio faz da evolugao das construgdes depois de 1900, a0 ‘comentar a presenga crescente da varanda. Segundo 0 arquiteto, depen- endo da orientag&o, seriam elas o melhor lugar da casa para se ficar, "ver-

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