Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 47
CAPITULO I Fundamentos Teéricos 1. 1 Intertextualidade; Dialogismo; Polifonia; Carnavalizagao. Nessa primeira parte do trabalho, abordar-se-do teoricos que fundamentarao a pesquisa, 0 que possibilitaré a execugio da andlise do corpus escolhido, por meio dos conceitos de intertextualidade, dialogismo e polifonia Uma questo pertinente € a de como definir, identificar a intertextualidade. Estabelecer as fronteiras do que é reminiscéncia, citago ow plagio é de vital importancia, afinal, quando é que se pode realmente definir a intertextualidade em um texto e no uma influéneia ao acaso e, no outro extremo, quando € que se pode definir que o texto predecessor esta plagiado? Para que se esclarecam as fronteiras, recorreu-se a Laurent Jenny: (..) a intertextualidade designa ndo uma soma confusa misteriosa de influéncias, mas trabalho de transformagao e assimilagdo de varios textos, operado por lum texto centralizador, que detém 0 comando do sentido. (1979, p.14) Percebe-se claramente essa relagdo intertextual em textos 14 Parddicos, possibilitando uma leitura miltipla, uma correspondéncia entre 0 texto parddia © 0 texto parodiado. Isso é facilmente notado nas parédias de Millér Fernandes que tomam as fibulas de Monteiro Lobato como texto fonte, conforme se demonstrara nas andlises dos textos. A parédia ¢ lembrada como recurso intertextual, devido a retomada de um ou mais textos, que acabam sofrendo algum tipo de inversio ou desvio, seja em relagao ao sent jo original ou em relagdo sua forma, transpondo-a para um novo contexto, para uma nova realidade Um texto pode ter um mesmo discurso presente em vérios outros textos, no entanto, a estruturagio, os meios ¢ os efeitos de sentido produzidos por esse discurso so diferentes, pois deve-se levar em consideragdo que a forma de enxergar 0 mundo, 0 contexto histérico, social ¢ as intengdes se diferenciam do momento da produgo do discurso. Por isso, & evidente que 0 processo de Produgio e recepcdo dos textos nao se configura como uma simples (re)escritura ou (re)leitura, Bakhtin, considerando que os textos mantém um diilogo entre si apresentou a nogio de intertextualidade, Segundo ele, nao é possivel admitir 0 discurso sem o dialogismo, o ser humano ¢ inconcebivel fora das relagdes que 0 ligam a0 outro, Logo, nao se pode conceber a leitura de um texto sem a intertextualidade, Essa intertextualidade depende da percepgao do leitor, que tera que mostrar sua cultura ¢ armazenamento na memoria de cada época. Conforme Jenny: “os modos de leitura de cada época esto igualmente inscritos nos Tespectivos modos de escrita” (1979, p.7). 15 Além de colocar 0 texto lido em relago com a escrita, ainda considera que a obra literaria s6 pode ser compreendida dentro de um sistema de relagdes entre textos, Nesse sentido, também a intertextualidade se oferece como 0 processo pelo qual um texto assimila e transforma varios outros textos. Isto é, a intertextualidade provoca transformagdes sempre que o leitor assimilar, em um texto, 0 discurso de outras leituras, ou de varios textos Para Bakhtin (in Barros & Fiorin, 1994, p.4), a intertextualidade se faz como uma intertextualidade interna das vozes que fazem do texto um texto polémico, produzindo diélogo com outros textos. Pode-se, ainda, afirmar que essa intertextualidade busca eco nos trabalhos de parédia, pois, ao inserir outra voz no discurso, esse se altera provocando uma situagao polémica Bakhtin afirma que o nosso discurso esta repleto de palavras de outros, com as quais, algumas vezes fundimos nossa propria voz, outras vezes, servimo-nos delas para enfatizar nosso raciocinio. E o fendmeno da polifonia, Um exemplo de texto polifénico ¢ a parddia, que denuncia o Proprio jogo, procurando colocar as coisas no seu devido lugar. Para Bakhtin, na Parédia, 0 autor emprega a fala de um outro, mas ocorre a introdugdo nessa outra fala de uma imtengao que se opde diretamente a original, isto é a segunda voz, depois de se ter alojado na outra fala, entra em antagonismo com a voz original que a recebeu, forgando-a a servir a fins diretamente opostos (Sant’Anna, 1985, p.14), Assim, percebe-se que a fusio de vozes ¢ impossivel entre os textos, pois eles provém de mundos diferentes, so ouvidos numa leitura 16 polifnica. Normalmente, é uma escrita transgressora que transforma o texto original, reestrutura-o ¢, a0 mesmo tempo, nega-o. O que torna possivel esta transgressdo é 0 didlogo entre os textos e a ambivaléncia que possibilitam a dupla leitura e geram a intertextualidade, a qual se caracteriza por introduzir a um novo modo de leitura a linearidade do texto, que esta explicitamente presente no nivel do contetido formal da obra. Isso acontece com todos os textos que se relacionam com outros, assim como a imitagio, a parddia, ete.. Porém, 0 texto que deu origem a esses intertextos esta sempre presente em seu sentido sem que haja necessidade de cité-lo. Ble estar 14, como uma mensagem pré-transmitida para se juntar a novos conjuntos Devido 4 sua caracteristica questionadora, a parddia concentra sua forga na capacidade de reflexao sobre a constituigao dosproprio texto e de outras Produgdes. “A parodia € uma das formas mais importantes da moderna auto- reflexividade; é uma forma de discurso interartistico”(Hutcheon, 1985, p. 13). Isso € consideravel, pois a parddia abre-se para receber influéncias ¢ vozes de outros textos, e quando se fala em outro tipo de produgio artistica da parédia, é grande a influéneia social e politica na intervengio desses trabalhos. Hutcheon (1985, p.31) completa, ainda, que os estudos sobre a parédia multiplicaram-se, motivados pela tendéncia da auto-reflexividade na arte moderna, ¢ a énfase dos estudos acerca da intertextualidade A determinagao intertextual ¢ dupla. Uma parddia, por exemplo, relaciona-se simultaneamente com uma ou com outras obras parédicas constitutivas do seu proprio género. A nogio da intertextualidade coloca 7 imedi famente © problema da identificagdo, como ja foi visto, no inicio desse capitulo, Por isso, é interessante tratar da intertextualidade, procurando, em outros textos, a marca dos elementos anteriormente estruturados. Laurent Jenny (1979, p.21) explica: que caracteriza a intertextualidade ¢ introduzir 2 um novo modo de leitura que faz estalar a linearidade do texto. Cada referéncia intertextual ¢ 0 lugar duma altemativa: ou prosseguir a leitura, vendo apenas no texto um fragmento como qualquer outro, que faz parte integrante da sintagmética do texto — ou entio voltar a0 texto-origem, procedendo a uma espécie de anamnese intelectual em que a referéncia intertextual aparece como um elemento paradigmético “deslocado” e originario de uma sintagmatica esquecida. + Koch (1991, p.529-541) propde uma reflexo sobre os conceitos de intertextualidade e polifonia questionando até onde eles se constituem em um mesmo fendmeno. A autora define a intertextualidade em dois sentidos: no sentido amplo, onde questiona as condigdes de existéncia do proprio discurso; € no sentido estrito, considerando a relagdo de um texto com outros textos. A polifonia, para Koch, pode ter, muitas vezes, 0 mesmo conceito da intertextualidade, pois a polifonia & definida como um todo do qual a intertextualidade faz parte. Porém, sabendo que um texto inspira o nascimento de outros, tem-se que levar em conta o aparecimento de outras vozes e, conseqiientemente, outros pontos de vista vao surgindo. 18 Ducrot (1987, p.161-164) retoma essa teoria e a traz para uma anilise linguistica dos enunciados. Para ele, o fenémeno da polifonia pode ocorrer tanto no nivel do locutor quanto do enunciador, E afirma que um texto pode contar com mais de um locutor ou com varios enunciadores, porém considera a Polifonia fraca, quando se trata de discurso direto, pois ha diversos locutores. J, ‘no discurso indireto, onde variam os enunciadores, a polifonia ¢ plena, pois as vozes que dialogam ¢ polemizam olham de posigées sociais e ideologicas diferentes. Para Bakhtin (1988), no entanto, o conceito de polifonia envolve a interagao do sujeito e do mundo. A linguagem é encarada como fruto da atividade humana e, portanto, como um processo ideolégico. Apresenta uma teoria polifSnica voltada para os textos, observando a multipligidade de vozes que se deixam ouvir e se intercalam dentro do discurso. Qualquer conversa 6 repleta de transmissdes e interpretages das palavras dos outros. A todo instante se encontra nas conversas “uma citagdo” ou “uma teferéncia” aquilo que disse uma determinada pessoa, a0 que “se diz” ou aquilo que “todos dizem”, as palavras de um interlocutor, as nossas__préprias _palavras anteriormente ditas, a um jomal, a um decreto, a um documento, a um livro, ete. A maioria das informagées ¢ opinides nfo sio transmitidas geralmente em forma direta, originaria do préprio falante, mas referem-se a uma fonte geral_indeterminada: “‘ouvi dizer”, “consideram”, “pensam”, etc. (1988, p. 139-140) 19 © que se percebe, na fala de Bakhtin, é que, na maior parte dos discursos formais ou informais, orais ou escritos, uma grande parte das palavras provém de outrem, ¢ nao do proprio falante. Isso ocorre nas diversas formas de transmissao, pois 0 discurso de outrem, inserido no contexto, esti sempre submetido a notaveis transformagdes de significado, avolumando-se de uma forma que se origina um fundo dialégico, Tudo o que se diz. é marcado pelo lugar de onde se diz, ou seja, 0 modo como um texto é percebido vai depender de fatores sociais e historicos representados no discurso. Bakhtin (1981, p.160) conceitua o dialogismo como o principio fundamental da linguagem, responsivel pelo efeito de sentido produzido pelo discurso, pois, em sua concepcdo, um discurso nao se constroi com base nele mesmo, mas a partir de outro ja elaborado. Segundo’ o autor, o discurso é extremamente dindmico, até mesmo uma unica palavra pode revelar varios sentidos e assim estabelecer um didlogo entre os discursos, pois a palavra esta sempre inserida em um contexto social, cultural ou histérico. A palavra, sendo produto da interac social, € produto ideolégico, pois assume varios valores, segundo Bakhtin. Para ele, a palavra, dialégica por natureza, manifesta ideologias, retrata diferentes formas de significar a realidade; ela € 0 lugar de luta de vozes, que ocupam diferentes posigdes e querem ser ouvidas por outras vozes Assim, sd se pode entender o dialogismo interacional pelo deslocamento de sentido do sujeito, isto é, sujeito perde o papel central e dé lugar a diferentes vozes, que fazem dele um sujeito histérico e ideolégico. Da 20 mesma forma, 0 processo de elaboragtio de um texto implica em absorver 0 discurso de um outro, nasce do encontro entre vozes, de diferentes perspectivas Constata-se, com as informagdes sobre dialogismo, que, para Bakhtin, os individuos constituem-se pelo reconhecimento do outro, diferente do eu O dialogismo é caracteristica essencial da linguagem e principio constitutive desta. Contudo, acredita-se que 0 monologismo, opondo-se ao Gialogismo, rege a cultura ideolégica do mundo modemo, Ao se elaborar uma frase, por exemplo, essa deve ter indicios que levem o receptor a sua interpretacdo €, conseqiientemente, a idéia do locutor. Todos os valores da vida ¢ cultura reais esto dispostos em torno dos pontos basicos do mundo real. Esses pontos basicos sio: eu-para-mim, o outro-para-mim e eu-para-o outro. Vé-se claramente isso em Barros (in Barros & Fior | 1994, p.3), quando define o dielogismo como “o espaco interacional entre © ew € 0 Mu ou entre 0 ex € 0 outro, no texto”. Com isso, ela confirma a posi¢ao de Bakhtin quando diz que nenhuma palavra ¢ totalmente nossa, pois traz em si a perspectiva de outra voz, Porém, para Bakhtin, a consciéneia do ew s6 se d4 através do ouiro, pois é desse outro que se recebem as palavras, as formas que caracterizam a primeira imagem que o ew tem dele. A. intertextualidade, assim como a polifonia, so marcas fundamentais nas parddias, Nas parddias de Millér Fernandes, percebe-se a facilidade com que 0 autor absorve um texto, depois o repele para criar um modelo préprio, sem a preocupagao de repeti-lo, mas tendo com ele uma relagdo polifonica E importante ressaltar que ha uma transformacdio, ou seja, um discurso esta sempre dentro de um outro. Assim, no momento em que dois textos se entre-relacionam, essa transformagaio pode também ser total, assim como acontece em muitas parédias. As nogdes vistas sobre dialogismo e polifonia sio conceitos proprios de Bakhtin e foi sob © prisma e ponto de vista, prioritariamente, deste tebrico russo, que as reflexdes foram feitas Bakhtin define a parddia como elemento inseparavel da sétira menipéia ¢ dos géneros carnavalizados. A questio da camnavalizagaio remonta ao comportamento e poder da lereja na Idade Média e ao Renascimento. Naquele periodo, a Igreja jé havia percebido 0 quanto o espirito humano é \quieto, entdo, reservou um tempo para que 0 povo pudesse festejar Temente, manifestando seus sentimentos ¢ ideais, Assim, em data determinada pelos homens da época, as manifestagdes foleldricas e atores ambulantes Provocaram uma dualidade de mundo; 0 riso popular dividiu 0 mundo oficial da igreja ¢ 0 da vida cotidiana do outro, fazendo surgir 0 carnaval. © carnaval € uma forma de espetéculo de caréter ritual, sua linguagem simbdlica exprime a percepco de um mundo mais complexo, uma espécie de vida ao inverso, como disse Bakhtin, Identificando ai um elemento de polifonia, o autor analisou o discurso e definiu-o como camavalizacao. (..) 0 camaval era 0 triunfo de uma espécie de liberacao temporaria da verdade dominante e do regime vigente de aboligdo proviséria de todas as relagdes hierérquicas, 22 Privilégios, regras e tabus. Era a auténtica festa do tempo, a do futuro, das altemancias e renovagées. Opunha-se a toda perturbagdo, a todo aperfeigoamento@ Tegulamentagio, apontava. para um futuro ainda incompleto. (Bakhtin, 1987, pp. 08-09) No sentido de um conjunto de festividades carnavalescas, 0 camaval no é um fendmeno literario, mas uma forma de espeticulo, que se desenvolve sobre uma base comum. O que é considerado carnavalizagio é a transposi¢ao do carnaval para a literatura, Essa transposig&o influi na organizagio das situagdes tematicas, Esse processo de camnavalizagdo toma 0 jogo da produgo textual mais dindmico e com um certo grau de ambiguidade, pois é uma outra voz mostrando uma nova forma de entender as coisas, por intermédio da parédia. Ou, seguindo a visio camnavalesca, é a voz profana buscando escandalizar o discurso. Dessa forma, pode-se entender que a carnavalizagao, no sentido dado por Bakhtin, ndo revela apenas o lado cémico, mas um sentido de liberdade por intermédio do Tiso, © que facilita 0 processo de produgao textual pela maneira informal da comunicagio, A instauragdo das fersas vozes, nos discursos, possibilita os conceitos fundamentais de dialogismo, polifonia e carnavalizagio sob as concepgdes de Bakhtin © alguns aspectos de outros teéricos, levando, conseqiientemente, a intertextualidade. © proximo capitulo se ocupara mais especificamente da forma de intertexto ~ a parédia, 1,2 Parédia Affonso Romano de Sant’Anna (1985, p.12), rastreou os varios conceitos de parddia e concluiu que, a principio, a parédia era ‘a como um contracanto, isto é um poema que era pervertido por outro, muitas vezes, por meio do canto, da musica, pois, etimologicamente, a origem € musical e implicava na idéia de uma cangio, proferida ao lado de outra. Assim, a propria etimologia da palavra marca 0 carater polifonico da parodia. J4 em uma visio mais moderna, a parédia se define por um jogo intertextual. Ja por volta do século V ou VI a. C., a parddia passou a ser vista como representante da arte, uma arte contemporanea com um papel de suma importncia nesse jogo de refletit a modernidade. O sentido desse termo pouco se diferencia entre os dicionarios consultados, que apresentam uma definigo mais, conservadora, ou seja, a parddia é vista apenas como uma imitagzo ridicularizadora do seu modelo, uma imitagao burlesca, irdnica, Na verdade, 0 papel da parddia no ¢ ridicularizar e sim assumir um papel social, contextual Também conceitua-se parédia como a quebra de normas, exagero de detalhes, de modo que pode converter uma parte do elemento dominante, invertendo a parte pelo todo. Logo, o autor atinge a parddia quando se liberta do cédigo, estabelecendo novos padrdes de uma unidade Na realidade, a parédia surge a partir de uma nova interpretacio, da fecriagdo de uma obra ja existente, conhecida. Seu objetivo é adaptar a obra original a um novo contexto, passando mensagens que podem explorar ou 24 Provocar o humor, 0 riso. Assim, para o leitor entender a parddia, & necessirio que conhega a obra original, podendo fazer a relagio entre as obras e perceber 0 motivo das modificagdes, das alteragdes. E claro que, quanto mais conhecido e mais tradigdo tem 0 texto, mais eficaz é 0 efeito parddico. O que a paré faz, na realidade, € apresentar em um texto novo, uma nova maneira de ler o convencional. E buscar uma consciéncia critica no leitor Quando se ouve falar em parddias, imediatamente se associa termo ao efeito do riso, do cémico do engragado. Entretanto, a parédia pode ser uma grande representante da consciéneia, da visio da realidade que cada um Possui, tanto se falando de produtor quanto de receptor, ou seja, mesmo que alguns textos parédicos sejam provocadores do riso zombeteiro e debochado, cles também apresentam um humor sério e critico. > Hutcheon (1985, p.16-56) apresenta varias propostas para explicar 8 parédia, A primeira delas se refere a parddia como uma repeti¢ao e como uma diferenca, Em seguida, afirma que a parodia nada mais é que um ir e vir intertextual, um misto de homenagem e ironia, uma superposi¢do que incorpora texto antigo a0 novo e, portanto, hé também um contextualismo. Hutcheon se utiliza da citago de Schleusener (apud Hutcheon, 1985, p.36) para melhor explicitar esse contextualismo das produgses parddicas: Os textos s6 podem ser entendidos quando situados contra 0 cendrio das convengées de onde emergem; e [...] 05 mesmos textos contribuem, paradoxalmente, para os cenérios que determinam os seus sentidos. 25 Ja na Tdade Média, as recreagées escolares e universitérias contribuiam para a formagio da parédia medieval e da literatura em geral Segundo Bakhtin, a parédia estava direta ou indiretamente ligada ao riso e liberdade. Principalmente a liberdade, porque se tratava da parddia mais ligada religio (as parédias sacras), Toda literatura parddica da Idade Média ¢ uma literatura recreativa, criada durante os lazeres que proporcionavam as festas, ¢ destinada a ser lida numa ocasido, na qual reinava uma atmosfera de liberdade, Essa maneira alegre de parodiar o sagrado era permitida em honra das festas(..). (1987, p.71-73) Segundo ele, uma das grandes propulsoras da parddia e de toda a literatura medieval foram as recreagdes escolares, pois era exatamente nesse periodo de relaxamento escolar que os alunos tornavam cémicos todos os regulamentos € leis oficiais existentes. Por meio de brincadeiras jocosas, eles faziam prevalecer 0 modo alegre ¢ livre do mundo, mas de um mundo onde tudo & inacabado, visto como eterno, imutivel e absoluo A parédia, modernamente falando, € um jogo de intertextualidade, mas nem sempre foi vista dessa maneira. Antes de Tynianov, em 1919, ¢ de Bakhtin, em 1928 (apud Sant’Anna, 1985, p.13), a parédia era vista apenas como um mero sinénimo de pastiche, como uma jungio de fragmentos de diversas obras, Entretanto, sabe-se que entre o pastiche e a parddia ha caracteristicas que Ihes sao peculiares ¢ importantes para sua distingao. O pastiche mantém uma 26 relagdo de afirmagdo com as caracteristicas do género; a parddia se mostra, muitas vezes, numa relacio de negatividade com o primeiro texto (0 parodiado). Logo, a parédia nega a organizagdo ideologica vigente, pois é preciso absorver para rejeitar. Com esse jogo, a parédia nao intenciona responder a nada, mas provocar a reflexio no leitor. Para Bakhtin, 0 procedimento parddico é uma das formas de carnavalizagio, pois é uma oposigo ao sério, ao oficial. Bakhtin, a0 valorizar a sitira, a parédia e a camavalizagao, levou seu piblico a uma leitura diferente polémica dos romances, e também a inversio do pensamento marxista da época Isto &, 0 que no seu tempo era considerado marginal, como romances parédicos ou folhe s, era valorizado por ele como uma nova forma de romance, fazendo tudo que era marginalizado invadir 0 centro, como diz. Emir Rodrigues Monegal (1980, p.11). No texto 4 parddia em a forga do destino, Maria Licia P. de Aragio (1980, p.18) afirma que a ideologia é tida como um modelo por consistir nna representagio de uma estrutura de relacdes histéricas, num periodo social; logo, se acha a unica verdade e, por isso, essa consciéncia da histéria é falsa. A obra literdria vem exatamente questionar a verdade dessa ideologia. Ela mostra o que a ideologia nfo da conta de mostrar, opera uma outra visio da realidade e, conseqtientemente, a obra parédica questiona 0 modelo literério, recusando-o e mostrando os problemas soviais e politicos. E, ainda, utiliza-se de textos Parédicos, para mostrar seu inconformismo com as verdades de um mundo em constante transformagao, procurando manifestar a davida sobre a imposigdo de valores tradicionais. Também, pela parddia, o escritor quebra as convengdes com os Padroes estabelecidos, forgando o leitor a conhecer uma outra forma de ficgao, de forma simples. Normalmente, a parédia se di no momento em que o artista se distancia do objeto que sera parodiado, para ter a visto de fora, e, nesse momento, ele tem consciéncia do ultrapassado, Sente a necessidade de transformar, de trazer ara o presente, de uma forma critica, 0 objeto ou o texto que ficou em outro tempo. Como ja foi visto, a parddia passou por algumas transformagdes com relagdo ao seu conceito e Tynianov foi um dos que contribuiram para que acepeao etimolégica do termo se tornasse mais elaborada, Tanto ele como Bakhtin estudaram 0 conceito de parddia juntamente com 0 concgito de estlizago. Para esses autores, 08 dois conceitos estéo muito proximos. Em resumo, para Tynianov, quando a estilizago possui aspectos cémicos, essa se converte em Parodia. A iinica diferenga que ha entre uma e outra, 6 que a parddia é marcada Pela discordéncia do efeito de sentido de um texto para com outro, jé a estilizagio Promove a concordancia entre os dois planos: (Ja estilizagdo esta proxima da parddia. Uma e outra vivem de uma vida dupla: além da obra ha um segundo Plano estilizado ou parodiado. Mas, na parédia, os dois Planos devem ser necessariamente _discordantes, deslocados: a parédia de uma tragédia é uma comédia (.) a parédia de uma comédia pode ser uma tragédia. Mas, quando ha a estilizagdo, no ha mais discordncia dos dois planos: 0 do estilizando e do estilizado, que 28 aparece através deste. Finalmente, da estilizagio a parddia nao ha mais que um passo; quando a estilizagio ‘tem uma motivagio cémica ou é fortemente marcada, se converte em parédia. (Apud, Sant"Anna, 1985, p.13) Bakhtin explica que tanto na estilizago, quanto na parédia, 0 autor emprega a fala de um outro, mas, na parddia, essa fala insere uma intengdo ¢ objetivos diferentes da original, conseqiientemente, opostos. Ele afirma, ainda, que nao ha fusio de vozes, na parddia, assim como existe na estilizagiio. Nessa segunda, o desvio feito no texto estilizamte reforga ainda mais 0 sentido do texto estilizado: (.Jeom a parédia é diferente. Aqui também como na estilizagao, o autor emprega a Yala de um outro; mas, em oposigao a estilizagio, se introduz naquela outra fala uma intengo que se opée diretamente A original. A segunda voz, depois de ter alojado na outra fala, entra em antagonismo com a voz original que a recebeu, forgando- .a servir a fins diretamente opostos. fala transforma-se num campo de batalha para interagdes contrarias. Assim, a fusio de vozes, que possivel na estilizagio (..) nio é possivel na parédia; as vozes na parédia, no so apenas distintas e emitidas de uma para outra, mas se colocam, de igual modo, antagonisticamente, E por este motivo que a fala do outro na parédia dever ser marcada com tanta clareza e agudeza. (Apud. Sant’ Anna, 1985, p.14) Bakhtin, assim como Tynianov, faz. uma aproximagdo entre esses fendémenos. Assemelham-se porque, em ambas, 0 autor utiliza a fala do outro e 29 divergem, porque a fusto de vozes s6 ¢ possivel na estilizagao, Logo, nota-se que, segundo os dois estudiosos, nfo ha fisto de vozes participantes no proceso discursivo da parédia, pois implica em deslocamentos e discordancias. Por isso Sant’Anna (1985) classifica a parédia como um caso de intertextualidade das diferengas, como estilizagio negativa, isto 6, contra-estilo, como se vera no final deste capitulo. A parédia € uma forma de apropriagio, mas ao contrario da estilizagao, procura o desvio rompendo com o modelo, de maneira perceptivel & 40 mesmo tempo sutil. Ela é, como jé foi definida por diversos autores, um texto com duplicidade, onde uma esorita é relacionada a outra, mas sem enfatizar as, semelhangas, pois trata-se de um jogo de desmistificagdo, em que um texto (a Parédia) torna-se a nega¢ao do outro (0 parodiado). Bakhtin (1981, p.168) faz uma importante observagio a respeito dessa duplicidade do discurso parddico. Pode-se parodiar o estilo de um outro enquanto estilo; pode-se parodiar a maneira tipico-social ou caracterologico-individual de outro ver, pensar e falar. (..) podem-se parodiar apenas as formas superficiais do discurso como se podem parodiar até mesmo os Prineipios profundos do discurso do outro. Propp (1992, p.85) afirma que € possivel parodiar tudo, no sé as formas escritas, mas agdes, movimentos, fala de uma pessoa, qualquer forma de manifestagdo, Nesse caso, a fungao da parédia € provocar riso, pois ela revela um desvendamento da inconsciéncia interior do que é parodiado, mostra movimentos 30 graciosos ¢ movimentos deselegantes, isto é, “a parddia é cOmica somente quando revela a fragilidade interior do que é parodiado” (1992, p.87), E importante ressaltar que a parédia é, na modernidade, como ja foi antigamente, uma produgio textual de grande importincia no trabalho de Produgio que envolve criatividade, visio de mundo, poder de persuasio; como também na propria recepeaio de texto, atingindo a compreensio e a percepeio desta visio de mundo do leitor. Nesse caso, a parddia ¢ tomada como uma segunda escrita, no como uma imitagao do texto original, mas como uma forma de preservacao da leitura critica do contexto e conta, ainda, com a ironia, para mostrar 0 lado zombeteiro da sociedade, da politica ou de qualquer outro segmento. E importante lembrar que, segundo essa concepgiio, a parédia nao & copia de seu modelo, é um texto diferente que néo invaliga o texto parodiado e no busca a perverso do texto original, mas, com base nesse modelo, pode ctiticar ou zombar de alguma situagio. Para isso é necessario que o leitor esteja consciente do didlogo entre os textos Esse jogo de comunicacao ¢ inter-relagdo entre os textos & possivel dentro de uma caracteristica de argumentatividade da linguagem, e, ao formular um discurso bem elaborado ¢ bem estruturado, ele apresenta algumas intengdes e aumenta o poder de persuasdo que sera facilmente captado pelo leitor Segundo Koch (1987, p.24) O conceite de intencao é, assim fundamental para uma concepeaio da linguagem como atividade de interpretagio presente no cotidiano de linguagem fundamenta-se na suposigao de que quem fala tem certas intengdes ao comunicar-se. Com isso, percebe-se a forga e a amplitude de abrangéncia da Parddia ¢ quao importante é saber fazé-la. E também pode-se dizer que 0 leitor entendeu, alcangou 0 objetivo, quando conseguiu traduzir essas intengdes. Sabe-se que € impossivel fazer um estudo da linguagem separado do contexto em que texto foi produzido. Assim sio as parédias, pois sempre que se parodia um determinado texto, faz-se de maneira a abordar temas e questées que envolvem o Social, 0 politico, o religioso, temas da atualidade ou quaisquer temas que sejam do conhecimento de todos. Ainda, Brandao, ao analisar 0 componente argumentativo da linguagem, afirma que a argumentagao deve ser vista como um veiculo que tem em mente a interacao, Produzida por um sujeito e dirigida a sujeitos, ortanto, constitutivamente dialégica, a argumentacdo 6, sobretudo, uma atividade interacional. Nesse sentido, toma-se importante salientar 0 papel que assumem as imagens que 0 locutor faz de si mesmo e que constréi do interlocutor, as presungdes do locutor a respeito das conviegSes desse interlocutor para escolher e articular os argumentos e 05 contra-argumentos a serem utilizados no discurso. (Brandio, 1998, p.87) Entende-se como se o enunciador pudesse prever o entendimento e © conhecimento que seu interlocutor possui sobre o assunto ou sobre o fato assim se utiliza de argumentos para que o discurso seja captado. A parodia é um exemplo claro desse proceso, pois, naturalmente, o que se faz é construir a partir de outro texto, apresentando temas ligados a uma realidade do segundo texto, havendo, assim, um inter-relacionamento entre os discursos. Esta claro que 0 discurso possui uma estruturagao para que se efetive o entendimento. Lopes (1993, p.91), quando comenta a concepgdo da literatura, na vistio de Bakhtin, diz que 0 discurso deve ser entendido como um mecanismo dindmico, do qual o sentido sera captado se considerado todo o contexto. Logo, 0 texto sera produzido com um objetivo a ser atingido, isto é 0 que se pretende conseguir do entendimento do leitor. Com a parédia, a situago é a mesma; ela acaba por envolver toda a enunciagao do discurso, pois tem um emissor, um receptor, um tempo, um lugar, um texto como modelo, uma situagéio real, qual seja, hd toda uma context q ae historica. Hutcheon (1985, p34) diz: Quando falamos de parédia ndo nos referimos apenas a dois textos que se inter-relacionam de certa maneira. Implicamos também uma intengdo de parodiar outra obra (ou conjunto de convengdes) € tanto um reconhecimento dessa inten¢io como capacidade de encontrar e interpretar o texto de fundo na sua relagdo com parédia, Até aqui, viu-se a parédia como um intertexto, buscando, em outra produgdo textual ou qualquer outra obra literdria ou nfo, uma forma de dialogar, de descobrir em épocas diferentes, os mesmos anseios Porém, alguns autores direcionaram seus estudos, rigorosamente, condicionados ao conceito de parddia como um modelo negativo, como um texto que mata o parodiado, produzindo um efeito ridiculo. E uma forma de retomar a iguagem anterior, sim, mas, de maneira invertida, como uma ruptura, destruindo para construir, mas no deixando de buscar uma significagdo, pois a parédia se elaciona com todo tipo de texto. Assim, pode dar vida a literatura ou produgao textual, ao ler nas suas entrelinhas, ao trazé-lo para uma nova visio de mundo, estando sempre aberta a novas leituras. Busca também atualizar as mensagens a cada momento histérico: A parédia compreendida como significago ¢ come proceso & objeto privilegiado para esclarecer 0 funcionamento intertextual ¢ como subverséo de toda temitica. (Jozef, 1980, p.64-65) Conforme demonstra Hutcheon (1985, p.47-48), 0 prefixo para tem dois significados: 1. comma, oposigao que, quando usado para designar a parodia, significa contracamto, isto é, um contraste entre 03 textos, usado como negagio e; 2. para também pode significar ao longo de, usado na parddia, pode sugerir intimidade, acordo e até cumplicidade, No entanto, antagonicamente aos conceitos trabalhados por Bakhtin, sobre parédia, valorizando a riqueza do discurso, percebe-se, em alguns autores, maior preocupagio em fixar o primeiro significado e ai, entdo, a parédia vai aparecer conceituada como uma deformagio, subversio, je forma a denegrir o seu papel como intertexto, 34 0 texto parodistico apresentado como modelo negativo ¢ aquele que tem a intengao de negar totalmente o texto parodiado, evitando o miximo que © texto construido tenha qualquer ligagdo, quer pela aparéncia, quer pelo estilo, com a outra produgdo. Nao ha, nesse caso, nenhuma homenagem ao texto parodiado, pois a parddia passa a ser um ataque, um rebaixamento primeira obra. Isso fica claro com a afirmagao de Kothe: A parédia “vive” num estado de tensio, pois indicia 0 “seu” édio e 0 “seu” desprezo para com o texto parodiado (de fato, porém, ela indica 0 édio e o desprez0 de seu autor e da tendéncia artistica e ideolégica a que ele pertence) ¢, a0 mesmo tempo, ela denota o parentesco para com o texto parodiado. (1980, p.99) \dicar O texto parodiado, nesse caso, ¢ apenas um pretexto para uma critica a um segmento, a ideologia vigente, mas, é claro que, se 0 parodista busca um texto, ou uma arte qualquer para desenvolver suas intengdes, seus anseios, é porque esse trabalho tem um certo parentesco com suas idéias. Ai, 0 texto original procura destacar as diferengas para aumentar a distincia entre eles, pois jamais quer guardar qualquer relagio com o objeto negado. Até mesmo quando compara a parddia com a estilizagio, Kothe (1980, p.100) diz: “as parédias so muito mais freqtientes e faceis, do que as estilizagdes. A estilizagao uma parédia que deu certo como arte maior”. O objeto parodiado é visto como um desmascaramento da ideologia vigente, busca no tradicional um instrumento de rebeldia, deixando clara uma elagdo ambigua, um jogo entre a contemporaneidade e a tradigdo. Muitas vezes isso propicia uma escrita de repetigao pelo trabalho de assimilagio de varios textos. Logo, com esse conceito, a parddia passa a ser vista como uma escrita transgressora, subversiva; 0 seu valor se nota na escrita pela escrita. Na produgéo do novo texto, vé-se 0 mecanismo da reflexio critica do discurso, em seu tempo ¢ contexto. © discurso parddico pode ser elaborado com diversas intengdes, dentre elas, a intengo de ironizar criticamente uma determinada realidade, quer social, quer econémica presente no discurso, pois, nas parédias, a palavra esti voltada para o objeto do discurso que integra. Ao mesmo tempo esta direcionada para o discurso de um outro, levando, assim, a destacar um ponto importante, que €2 duplicidade de sentido das palavras. . Sant’Anna (1985) também aproximou parddia a decadéncia, quando define: Decadéncia bem pode ser 0 estagio normal de transformago © metamorfose, Com efeito, a arte do fim do século 19 foi conhecida como decadentista e foi dela ‘que surgiu a grande parddia que é a arte modema. (1985, ps0) Afirma também que a parédia ocupava pequeno espaco nos jornais que foram denominados sérios e ficava restrita as charges politicas. Somente os Jomais marginais, aqueles que s6 eram publicados semanalmente, exploravam melhor a parédia, quando parodiavam textos dos jomais sérios e até deles 36 mesmos, fazendo zombaria desses textos, numa atividade intertextualizada Diferentemente dessa visio de Sant’Anna (1985, p. 129), considerando que a parédia busca a fala recalcada do outro, encarada como voz Social ou individual recalcada, Aragio (1980, p.20) afirma que, enquanto género ambiguo, 0 texto parddico denuncia o fracasso do poder constituido na sociedade E, assim, a parédia possui um carater positive, pois pode até matar, mas “mata Para fazer brotar novamente a eriagio”, “esvazia © modelo original para preencher um modelo que Ihe é préprio”. Em se pensando no caso da parédia, que é um dos Produgao muito ligada aos acontecimentos de um determinado momento, 0 conhecimento do contexto deve ser compartilhado para que assim se possa chegar a interpretar, de fato, uma colocagio irdnica; ¢ essa leve acompreensio da critica. Nesse ponto, Maingueneau (1996, p.101) acrescenta uma observagao bastante clara, a respeito desse conhecimento compartilhado entre produtor ¢ receptor, quando afirma que esse tipo de comunicacao “sé é, portanto, efetivamente bem sucedido se 0 co-enunciador esté suficientemente familiarizado com o discurso parodiado”. Nao se pode esquecer de que a parddia desenvolve fungdes e uma delas nao deixa de ser a comicidade, A parddia cémica normalmente apresenta {¥agos negativos, pois, muitas vezes, est muito ligada ao efeito de ridicularizagdo com 0 objetivo de diminuir © modelo tradicional A parodia ¢, as vezes, uma forma de imitagio caracterizada por luma inversio ir6nica, porém, nem sempre ironiza o objeto parodiado, na maior 37 Parte do tempo, como ja foi dito, ela ironiza o social, o politico, a moral, Percebe- Se, entio, que essa imitago nem sempre ridiculariza; a parddia no precisa tomar a forma de riso ridicularizador para criticar o sistema, pode sim, ter um humor Sério, pois, segundo Linda Hutcheon (1985, p.12), esté implicita uma distanciagio critica entre o texto parodiado ¢ @ nova obra. Essa distancia, normalmente, 6 ‘marcada por uma ironia que pode ser bem humorada ou depreciativa, Porém, o Prazer da ironia, na parddia, esté na intertextualidade, no empenho do leitor no vai-vem intertextual ¢ ndo no humor, em particular Pode-se dizer que ela é séria, a partir do momento em que contribui Para o real entendimento ¢ percepgo dos fatos que ocorrem na historia, Convém ressaltar que parédia, no sentido tradicional, classificava-se de acordo com as suas fungOes apresentadas, por isso, dizia-se que determinadas parédia era séria ou cémica, Na realidade, a parédia esti sempre & procura da verdade. Busca, ‘nos textos prontos, uma seqiiéncia de idéias e de valores, mostrando que, em todos © tempos, ha uma preocupagdo em conseientizar o leitor de que a situagio é a ‘mesma em toda sociedade ¢ em toda cultura e que ainda ndo se acordou para essa realidade. A parddia é uma das linguagens da modernidade que traz a tona a Tinguagem convencional, cortando-a, realizando um deslocamento de tempo, espaco, cultura, etc... Inverte o significado dos seus elementos, denuncia ¢ a introduz em uma significagdo contraditoria aquilo que a sociedade diz, pois € uma critica ao préprio sistema, 38 O texto parddico deixou de ser visto apenas como um género, como uma obra de sentido menor e passou a assumir uma posigdo central nos trabalhos de produgao textual dos alunos. A questo do riso passou a ser vista com outros olhos, ou seja, 0 fato de a parédia levar 2o riso, no significa que ela no seja séria. O riso na paré« Pode ser entendido, também, como uma forma de setiedade, pois, muitas vezes, o riso surge de uma critica feita a determinado fato ou situagdo, Dessa forma, deve-se entender que tanto a critica, quanto 0 riso sko mecanismos que levam a reflexao. A produgdo parddica continua apresentando tragos hidicos nos seus enunciados, mas agora sem o esterestipo de ser uma obra menos séria e de pouco valor em seu contetido, Pelo contritio, a parédia é, evidentemente, uma produgao ‘extual de grande importncia e também hi uma boa receplividade deste tipo de texto, E interessante lembrar que, ao se referir a parddia como segunda escrita, ‘mio ha nenhuma inten¢ao em afirmar que ela seja apenas uma imitagao do texto original, mas uma forma complexa de escrita e tem a ironia como presenga marcante em seus textos. Seu objetivo nao € apenas buscar a perversdo em seu ‘modelo, mas também criticar alguma situagio, sem a intengao de invalidélo Ha uma preferéncia da nossa parte, em consideri-la como um discurso intertextual que valoriza ambos os tempos, realmente homenageando 0 fexto parodiado, Acredita-se, assim, como a tendéncia de Bakhtin, que a parddia é tum jogo de intertextualidade, que intenta provocar a reflexo do leitor Em suma, hoje a nogio de parddia jé ndo se restringe a essa perspectiva tradi jonal que a vé como uma critica negativa, mas implica, dentro 39 dos parimetros pés-modernos, uma fungo mais positiva, ou seja, a critica passou a enfatizar a reconstrugao @ 0 progresso de conceitos da mente humana j ultrapassados. E isso ja pode ser percebido através do aumento da quantidade de produgées parédicas que vém sendo realizadas atualmente. O que esta se observando & que, cada vez mais, as parddias permitem fazer criticas fortes a ersonagens ¢ a fatos politicos ¢ sociais, sem a preocupagdo da censura e da ética, mas com a preocupacio de mostrar a real situagio, apresentando sempre uma dupla leitura, com 0 intuito, na maioria das vezes, de chamar a atencio para 0 querer mudar, e, demonstrando, assim, através do tom irénico, a insatisfagao perante 0 objeto do discurso 1.3 Ironia Ao se falar de parédia, fala-se também de ironia, que é um forte elemento nesse tipo de produgio. A ironia é uma figura de pensamento que tem como propésito dizer o contrario do que se pensa, e, conseqiientemente, se diz. O objetivo principal do emissor ao utilizar a ironia, principalmente nas parddias, é fazer uma critica, que por sua vez, pode ter a finalidade de corrigir, de demonstrar a insatisfacao diante de determinado fato ou apenas para zombar. 40 A ironia € um fendmeno que também pode ser tratado sob a perspectiva da polifonia, isto é pode ser vista como uma das principais caracteristicas do discurso polifonico, pois, onde esta se fizer presente, 0 enunciado devera ser entendido com um sentido diferente do literal, propici uma outra opiniéo, que € a opinifo do enunciador. Dai o dizer-se que hi cidade de vozes na par6dia, A ironia, no entanto, ndo é 0 tinico aspecto observado nesse tipo de produgdo. Ha também a questo do humor, do riso consciente, nas produgdes parddicas, E, nesse ponto, poder-s ia afirmar, entao, que a parédia € muito mais séria do que cémica, pois mostra a verdadeira Tealidade do objeto ou situagio em questo e, ao mesmo tempo, possui um certo tom de humor, muitas vezes um humor negro, desconfiado, irdnico, de acordo com 0 fato em questio. Para alguns autores, o humor consiste numa ironia em que o objeto € 0 proprio ew que anuncia, valoriza mais o significante que o significado, O humor envolve um certo sentimento de cumplicidade, esta ligado a um riso solitario. E claro que o parodista, que busca o humor no sério, utiliza-se também da tragédia, pois do tragico chega-se ao cémico. E quando no cémico entra o trégico, tem-se 0 humor. Assim deve-se levar em conta 0 que diz Umberto Eco (1984, p.351): © humorismo, portanto, age como o trigico, quem sabe com esta tinica diferenga: no tragico a regra confirmada pertence a0 universo narrativo, ou quando é confirmada a nivel das estruturas discursivas (0 coro tragico) aparece sempre, porém, como enunciada pelas 41 Personagens; ao contrario, no humorismo a descrigéo da regra deveria aparecer como insidincia, mesmo que cculta, da enunciagdio, a vor do autor que reflete sobre as situagSes sociais nas quais a personagem deveria acreditar. O humorismo excederia, portanto, em termos de distanciamento metalingitistico. Sendo uma figura de pensamento que tem como objetivo dizer 0 contrario do que se pensa, a ironia tem presenga marcante nos textos parédicos, Porque a parédia nada mais € do que dizer, de outra forma, uma verdade critica, que pode ter a finalidade de corti iante do fato. E , de demonstrar insatisfagao claro que a ironia presente nas parddias ndo é a ironia como figura de linguagem, conforme coneeito citado acima, mas vista como forma especial de interagdo, Configurando-a como um discurso polifonico e que vai desempenhar, na narrativa, ‘um papel persuasivo dentro da estrutura argumentativa Um enunciado irdnico caracteriza-se por dizer determinada coisa de forma humorist a, depreciativa ou mesmo séria, mas sempre com a intengio de se dizer outra, Pensando dessa maneira, a ironia é uma antifrase interpretavel, exigindo que 0 receptor consiga captar o sentido desejado, pois ela nfo se coloca totalmente explicita no texto, e chega, entio, a uma outra fumgao importante exercida pela ironia, que ¢ a comunicacao, Mesmo n&o intentando um aprofundamento nos conceitos de ironia, € necessirio lembrar a concep¢ao aristotélica citada por Brait: A postura desenvolvida por Aristételes em relagao a ironia, e que inaugura e marca profundamente 0 42 que se entende por “nogdo tradicional”, poderia ser traduzida como “espécie determinada de disposicao atitudes intelectuais préprias de um tipo de homem” (1996, p21) Nesse caso, a ironia pode ser tratada como atitude, principalmente nno que se refere a ironia do tipo romantica, Percebe-se, ainda, que a ironia possui outros fatos que possibilitam ainda mais a sua identificagdo, assim como a oposigao ou contradigio de idéias e a diferenga exis fente entre o que se disse com aquilo que se quer dizer. Na verdade, a ironia nao deixa de ser um jogo; é muito importante a compreensio do seu fendmeno, pois fatores como a ambigitidade ea intencionalidade estao presentes sempre Ao definir a ironia, Aurélio (1986, p. 969) o faz reforgando uma intengao depreciadora Ironia ~ Do grego: eironeia, “interrogaca0”, pelo latim: ironia. 1. Modo de exprimir-se que consiste em dizer 0 contririo daquilo que se esté pensando ou sentindo, ou por pudor em relagdo a si préprio ou com a intengio depreciativa e sarcistica em relagGo a outrem: Voltaire foi um mestre da ironia. 2. Contraste fortuito que Parece um escdmio: ironia do destino, 3. Sarcasmo, zombaria. Ironia Socratica (fil.) modo de interrogar pelo ‘qual Socrates levava o interlocutor ao reconhecimento da sua prépria ignorancia Porém, apesar dos varios conceitos técnicos, etimolégicos, etc, formulados acerea de ironi: . ela deve ser entendida no apenas pelos conceitos € definigSes, mas principalmente por meio de seus efeitos, ou seja, trata-se de um fenémeno empregado de forma consciente e principalmente intencional e que tem como meta, além de deserever comicamente uma realidade, estabelecer diflogo. Porém, 2 maioria dos significados dados a ironia esta relacionada a idéia do humor, zombaria, sarcasmo, os quais so apenas mecanismos, que combinados, ajudam no processo irdnico Pode-se observar isso nas parédias que, na maioria das vezes, faz~ Se um comentirio irénico com o intuito de satirizar uma determinada realidade, Principalmente no que se refere politica e a0 social, Sabe-se, porém, que os fextos parddicos nao so de todo cdmico e também o humor nfo leva obrigatoriamente a0 riso, pois 0 cémico, na parddia, pode acabar se revelando numa situagio tragica. . Mueck (1995, p.30-48) apresenta um histérico das primeiras formulagdes do conceito sobre ironia que ja existia antes mesmo da consciéncia do seu uso e de uma conceituagto propria, pois, s6 a partir do século XVIII, 0 fermo aparece em algumas tradugdes da Postica, como uma versio peripeteia arisioreica, isto & com a significagto de peripécia, que talvez abrangesse parte do significado da ironia dramética. O primeiro registro de eironeia surge na Repiblica de Platdo, Essa denominagio foi atirada para Sécrates, que a recebeu de tuma de suas vitimas com uma significado parecida com “uma forma lisonjeira, abjeta, de tapear as pessoas”. Para Deméstenes, um eirom era aquele que alegando incapacidade, fugia de suas responsabilidades de cidado. Para Teofrasto, um @rrotr era evasivo @ reservado, escondia suas inimizades, dava a impressio falsa de 44 seus atos. Aristételes, talvez mentalizando Sécrates, considerou a eironeia no sentido de dissimulagdo autodepreciativa Millér Fernandes, em sua obra Fabulas Fabulosas (1991, p.17-19), apresenta 0 texto O homem feio e 0 homem mais feio que exemplifica a autodepreciagio, nao do texto, mas da personagem apresentada por ele, que foi preso pelo crime da feitira e, a0 perceber que era o homem mais feio do mundo, preferiu morrer. Esta claro que o mesmo fim no precisa acontecer com os nossos textos irénicos, pois devem viver para servirem de intertextos e enriquecerem outras produgdes textuais. O termo eironeia passou, algum tempo depois, a ser conhecido como uma figura de retérica, ou como a preiensiio amdvel totalmente admiravel de um Socrates, a ironia como um habito evasive do disdurso. A esses conceitos, © retérico Quintiliano acrescentou um outro: a ironia como elaboragio de uma figura de linguagem No final do Século XVIII ¢ i cio do Século XIX, a palavra ironia assumiu varias outras significagdes, ndo desconsiderando os significados e nem a postura irénica dos antigos. A mudanga que ocorreu entre os antigos ¢ 0s novos conceitos ¢ que a ironia era vista como algo essencialmente intencional, de forma geral, isto é, toda a humanidade era alvo da ironia No Século XX, 0 conceito de ironia nfo parece bem precisado. De acordo com determinados grupos teéricos, o conceito de ironia caminha por um relativismo que dé margem a ambigilidade, deixando aberta a questo do que pode representar o significado literal. Assim, chega-se a um conceito de ironia muito 45 conhecido: dizer uma coisa e dar a entender 0 contrario. Porém, a ironia passou a reinar, efetivamente, a partir do Romantismo, mas isso nfio quer dizer que, antes desse periodo, era rejeitada. Sistematicamente, a ironia era usada com o objetivo de satirizar, isto 6, 0 autor criticava, satirizando. Tudo isso ocorreu, no Romantismo, porque nessa época, 0 partido do individuo se colocava contra o partido da sociedade. Com isso, havia a revolta do individuo contra um aparelho ideolégico que o ignorava na sua subjetividade ¢ na sua individualidade, condenando-o a reprimir seus desejos ¢ suas emogdes, Os valores individuais levaram 0 homem a tomar consciéncia de sua transitoriedade e seu papel na sociedade. Ai, a ironia foi um artificio explorado pela obra literéria, por meio da qual revelou a consciéncia de ser uma construgdo comunicacional que depende de um leitor para se tornar realidade Paiva (1961, p.09-29) apresenta uma classificago para ironia, estabelece ¢ nomeia cinco formas de ironia: a ironia pura, a sétira, a ironia baseada na amenizacao de idéias, a ironia restritiva ¢ a ironia contornante. Para melhor entendimento, far-se-d, a seguir, comentarios sobre cada uma delas. 1) A chamada ironia pura se refere ao tipo mais comum de ironia, isto é, diz uma coisa com a intengdo de dizer outra, fazendo com que o receptor se desdobre para entender 0 verdadeiro sentido. Nesse tipo de ironia, 0 receptor pode se apegar a algumas pistas como: a entoagio ou mudanga da entoagio na linguagem oral, mudanga de estilo na escrita, como a utilizagao do itdlico, ou aspas para destacar a expressio irénica, com a finalidade de tentar compreender a verdadeira intengio da ironia; 2) a scitira como outra forma de ironia proveniente de uma deformagao, 46 buscando a alteragio, assim como acontece com a parddia. Porém, é bom lembrar que apesar de citar a parddia, parédia e satira no se podem confuundi 1 nio é a mesma coisa. A parddia se utiliza de alguns tragos satiricos para criticar o objeto parodiado. 3) O terceiro tipo de ironia, apresentado por Paiva, baseia-se na amenizagdo de idéias. O ironista coloca-se numa posigio de superioridade e, como agente da degradagdo, busca o riso, Paiva explica também que a necessidade de banalizar, desprezar, com a intengdo do riso, pode revelar a inseguranga do ironista. Todos observamos que, em determinadas circunstincias, a primeira reagio a uma reprimenda, mesmo que esta nada tenha de cémodo, é 0 riso, forma espontinea de vencer um séntimento de inseguranga. (1961, p.17) 4) outro tipo de ironia € a ironia restritiva, sem exageros, sua tendéncia é reduzir ou estreitar mais uma realidade apresentada; 5) 0 iltimo tipo é 2 ironia contornante, a qual no se apresenta de forma simples, clara; ¢ sempre interpretvel, Segundo Hutcheon (1985, p.28), “a sitira, diferentemente da parédia, é simultaneamente moral e social no seu alcance e aperfeigoadora na sua intengao.” Ainda, afirma Hutcheon (1985), que a parodia pode se utilizar da sétira, principalmente, quando seu objeto for a critica 47 A parddia historia, colocando a arte dentro da historia da arte; a sua incluso de todo o acto enunciativo, ea sua paradoxal transgressio autorizada de normas, permite certas consideragGes ideologicas. A sua interagio com a satira da abertamente espago para dimensdes sociais acrescidas. (1985, p.139) Também Bakhtin faz referéncias a essa ligagio de sitira com parédia, quando diz que a sitira menipéia (pertencente a um género sério-comico, supostamente inventada por um grego chamado Menipo ou Ménippe, cujo objetivo € a sitira social e politica) € dialégica, cheia de parédias, e se utiliza de muita ousadia ao comentar certos aspectos, podendo, até mesmo, ser grosseira: Aqui, 0 papel familiarizante do riso é muito mais forte, incisivo e grosseiro. Por vezes, a liberdade nos denegrimentos grosseiros e aquela maneira de “virar do avesso” 0s aspectos nobres do mundo e as concepgdes humanas pode estarrecer. (1988, p.416) Bakhtin (1988, p. 416) ainda comenta que a ironia, de certa forma, provocou uma revolugio nas formas textuais, deixando-as com sentido menos enfaticoy. A ironia, de um modo geral, acompanha todo o percurso da parédia. Nem a ironia e nem a parddia se apresentam com comicidade, necessariamente, porém, ambas so consideradas fenémenos _dialdgicos, propiciando em seus discursos situagdes de muita polémica, critica, desafio ¢ até mesmo uma simples zombaria. 48 Quando a ironia ¢ tomada por mecanismos do discurso, procurando enfocar os cruzamentos de vozes, ela € tida como um procedimento intertextual, isto 6 a ironia sera considerada como estratégia de linguagem que constituindo parte do discurso como fato hist6rico e social, mobiliza diferentes vozes e instaura, a polifonia, Beth Brait j4 discutiu isso ao falar da idéia tradicional de ironia socratica, isto é, 0 modo classico de conceber a ironia, remetendo a questdes precisas sobre a dimenso enunciativa e discursiva deste fendmeno da linguagem: Essas diferentes vozes, Sécrates, Plato, Aristoteles e seus diversos _interlocutores foram representados por estratégias de linguagem, por Mecanismos discursivos de produgio, recepgio interpretagao dos didlogos. (1996, p.26) Normalmente, a ironia s6 ocorre nas partes polifonicas do texto ¢ ganha mais autenti idade, quando o seu autor tenta deixar implicita sua ironia, pois, assim, 0 discurso valoriza o leitor, seu poder de percep¢o e a sua participagio no processo, Sabe-se que a ironia tem presenga constante nos diversos discursos literarios, dos mais tradicionais aos mais modernos, mas somente em pequenos trechos ou em esquemas frasais, Raramente se detecta a ironia como elemento estruturador de um texto literdrio longo. Nada impede, ¢ claro, que outros tipos de textos tenham a ironia como base estrutural, uma vez que o riso aparega para tirar mascaras, revelar atitudes culturais, sociais ou até mesmo estética. Resumidamente, sabe-se que a ironia, levando-se em consideragio 49 a polifonia, consiste num desdobramento de falantes com pontos de vista totalmente opostos, pois durante o proceso de entendimento, © locutor no toma ‘como apenas seu 0 enunciado formulado e tenta dar uma outra significagao, que, apesar de nio construida, fica subentendida no enunciado. Nas fibulas, objeto de nosso estudo, verifice-se que 0 papel do leitor ndo se limita a dar conta do que esta implicito, mas deve perceber, por meio da leitura, onde se da essa relagdo dialégica, Isso porque se considera que o leitor possa buscar no subentendido todo um conhecimento armazenado e uma visio de mundo principalmente social e politico. A ironia, nas fabulas, condensa os pontos de vista, pois normalmente séo textos curtos, bem estruturados, com um poder argumentativo (principalmente pela estratégia de usar personagens-animais), nfo havendo necessidade de 0 autor fazer afirmagdes categéricas, que possam comprometé-lo, A responsabilidade dessas afirmagdes passa para o leitor que vai perceber 0 valor critico © relacionar 0 texto apresentado com outro jé conhecido, ou com a realidade social, politica, econémica, a fim de entender a ironia, persuasivamente, construida pelo autor De qualquer forma, a ironia se dé a partir do momento em que o autor usa de estratégias que lhe permitem colocar, no discurso, cenas construidas a partir do lugar historico-social do leitor, valorizando-o e também a sua participagdo no processo da enunciagio, 50 1. 4 Ideologia ‘A concepedo materialista da histéria parte do principio de que a produgio constitui a base de toda ordem social, Logo, as transformagdes sociais estdo ligadas as variagdes de produgdo, que se encontram na economia de cada época. E isso traz uma questo fundamental, a ideologia O termo ideolog’ jé passou por inimeras nuances significativas e segundo Marilena Chaui (1981, p.23): termo foi criado pelo filésofo Destutt de Tracy em 1810 na obra Elements de idéologie e era sinénimo da atividade cientifica que procurava analisar a faculdade de pensar, tratando as idéias como fenémenos naturais que exprimem a telagio do corpo humano, enquanto organismo vivo, com o meio ambiente. Mais tarde, 0 termo assume significado pejorative com Napoleio; Passa a ser visto como uma doutrina irrealista, sem um fundamento e perigosa para a ordem estabelecida, Marx e Engels também vio atribuir 4 ideologia uma carga semantica negativa. Eles identificam ideologia com a separago que se faz entre produgao das idéias e as condicdes sociais e historicas em que so produzidas. A. produgdo de idéias, de concepgées e da consciéncia liga-se a principio, diretamente_ intimamente a atividade material ¢ a0 comércio material SI dos homens, como uma linguagem da vida real. Assim, a observa¢do empirica tem de mostrar empiricamente ¢ sem qualquer especula¢io ou mistificagio a ligagio entre estrutura social e politica © a produgio. (Chaui, 1981, p14) Da separagdo entre os homens em classes sociais, nasce a idéia de uum interesse geral que culmina numa instituigao, que é o Estado, Da mesma forma, da divisdo entre o trabalho intelectual ¢ © material surge a suposigao de uma autonomia das idéias, como se tivessem uma realidade propria independente dos homens. Assim, a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser os pensamentos de todos. Neves afirma que a ideologia da seriedade associa seriedade com saber. Logo, 0 que ndo € sério é ignorante e infantil. Ser cémico & no ser sério. Afinal, o riso seria, em certas situagdes de tensio, o desmonte mais eficaz de uma ordem discursiva corrente. A eficdcia da destrutividade cémica talvez se ancore na relativa incontrolabilidade da observagiio cémica. Esta ¢ relativamente incontrolavel na medida em que é uma ruptura, uma descontinuidade com o pensamento “razoavel”, com um saber logico ou cientifico estritamente comprometido. (Neves, 1974, p37) Assim, as sociedades contemporaneas que experimentam diversos momentos de tensio politica, econémica © muitas outras formas de conflitos, produziram também, pelo riso, uma forma de tensio ¢ de enfrentamento a esses 52 problemas, pois sabe-se que quanto maior a tenso, maior a produgao cémica, Isso 6 facilmente percebido nas produgées de textos parédicos, que, apesar das criticas politicas, sociais, etc, levam ao riso ¢ principalmente a um riso sério. E bom lembrar que a ideologia atravessa a propria linguagem, como se percebe nos ensinamentos de Bakhtin, ao dizer que o signo ideolégico necesita de uma encamagao no sentido de materializagao. Desse modo, a linguagem cumpre essa tarefa, pois é uma forma de materializacio. Ao analisar a parédia, nos textos de Millér Fernandes, serio mostradas as contradigSes ideolégicas que aparecem ou desaparecem, o jogo dessas contradigdes ideol6gicas e como essas contradigdes estio expressas. 1.5 Fabula As fabulas so consideradas um tipo especial de narrativa em que as personagens, na maioria dos casos, sio animais que falam e agem como seres humanos. Por mais que se busquem conceitos sobre fabulas, o que se nota é que todos mantém a esséncia no que se refere a forma da narrativa: alegérica, simbélica, mitolégica, inverossimil e, sobre as personagens, que sio animais ou seres imaginarios, constituindo uma seqiiéncia de agdes humanas. Em geral, as REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ARAGAO, M. Lucia. P. A Parédia em A Forga do Destino. In: Sobre a Parédia, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. pp.18-28. AREAS, Vilma. Iniciagdio & Comédia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. ARISTOTELES. Trad. Carvalho A. P, Arte Retorica e Arte Poética. 14 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 8.4. AZEVEDO, C. Lucia et. Al, Monteiro Lobato: Furacéio na Botoctindia. Sio Paulo: Editora Senac, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dosigiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitaria, 1981. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento : 0 contexto de Francois Rabelais. Trad. de Yara F. Vieira, Si0 Paulo: Hucitec, 1987. Questoes de literatura e de estética, Trad. de Aurora F. Bernardine e outros, S40 Paulo: UNESP/Hucitec, 1988. Marsismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira, Sao Paulo: Hucitec, 1995. BARROS, Diana Luz Pessoa ¢ José Luiz Fiorin (orgs.) Dialogia, polifonia, imertextualidade: em torno de Mikhail Bakhtin. Sio Paulo: Editora do Universidade de Sao Paulo, 1994. 125 BARSA, Enciclopédia Briténica, Vol.7, Sao Paulo: 1993. BERGSON, Henri. O Riso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983 BOSI, A. O ser e 0 tempo da poesia. Sio Paulo: Cultrix, 1988, BRAIT, Beth. /ronia em Perspectiva polifonica, Campinas: Editora da Unicamp, 1996, BRANDAO, Helena H. Nagamine. Introducéio 4 andlise do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. Subjetividade, argumentagao, polifonia. A propaganda da Petrobras. So Paulo: UNESP, 1998. CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. Sao Paulo: Brasiliense, 198] COELHO, Nelly Novaes. A Literatura Infamil. Sio Paulo: Quiron, 1984. . Literatura Infantil. Sio Paulo: Atica, 1991 CORDOVANI, Gloria Maria. Uma fabula de Millér. Sio Paulo: Revista Leitura, Maio de 1999. DEZOTTI, Maria C. Consolin. A tradigdo da fibula, Araraquara: UNESP, 1991 D'ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto 1. Sao Paulo: Atica, 1995. DUCROT, Oswald. O dizer ¢ 0 dito. Trad, Eduardo Guimaraes. Campinas: Pontes, 1987. 126 ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. pp. 343 - 353 Leitura do Texto Literério Lector in fabula, Si0 Paulo: Perspectiva, 1986. FARACO, C. A., Tezza, C., Castro, G. (Orgs.) Didlogos com Bakhtin, Curitiba: Editora da UFPR, 1996 FARACO, C.A, TEZZA, C., BRAIT, B. RONCARL, L., BERNARDI, R. M. Uma Introdugdo a Bakhtin, Curitiba: Hatier, 1988. FERNANDES, Millér. Livro Vermelho dos pensamentos de Millér. Rio de Janeiro: Nordica, 1974. . FERNANDES, Millér. Novas Fabulas Fabulosas. Rio de Janeiro: Nordica, 1978. Fabulas Fabulosas, Rio de Janeiro: Nordica, 1991 FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Diciondrio Aurélio da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986 FIORIN, J. L. Linguagem e Ideologia. Sao Paulo: Atica, 1998. HAYMAN, David. Um Passo além de Bakhtine. In; Sobre a Parédia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980, pp.29-52. HEGEL, Estética. Trad. Alvaro Ribeiro ¢ Orlando Vitorino. Lisboa: Guimaraes Editores, 1993. 127 HELENA, Lucia. A Contra-ideologia da Seriedade. In. Sobre a Parédia Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. pp.71-88 HUTCHEON, Linda, Uma teoria da parddia. Rio de Janeiro: Edig&es 70, 1985 JENNY, Laurent, A estratégia da forma. In: Poétique n° 27, Trad. Clara Crabbé Rocha Coimbra: Almedina, 1979. JOSEF, Bella. O Espago da Parddia In: Sobre a Parddia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. pp.53-71 KOCH, Ingedore G. Villaga. Argumentagdo e Linguagem. S80 Paulo: Cortez, 1987. Intertextualidade e polifonia um sé fenémeno? Sao Paulo: Delta 2, 1991 KOTHE, Flavio. R. Parédia & Cia. In: Sobre a Parddia, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. pp. 97-111 LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. Sao Paulo: Moderna, 2000. LAROUSSE, Kogan. Pequeno Diciondrio Enciclopédico. Rio de Janeiro Larousse do Br., 1982 LEITE, Sylvia H. T. de Almeida. Chapéus de palha, panamés, plumas, cartolas: caricatura na literatura paulista (1900 — 1920), So Paulo: Ed. UNESP, 1996. 128 LIMA, Alceu Dias. A forma da fabula. In: Revista Brasileira de Semiotica Significagao, 1984 LOBATO, Monteiro. A barca de Gleyre, Obras Completas de Monteiro Lobato. Sao Paulo: Brasiliense, 1972. Fabulas e Historias diversas, S80 Paulo: Brasiliense, 1972, Literatura Comentada, Sio Paulo: Abril Educagio, 1980. Literatura Comentada. Biografia por Ruth Rocha. Sao Paulo: Nova Cultural, 1988. LOPES, Edward. A palavra e os dias: ensaios sobre a Teoria e a Prética da Literatura, So Paulo: Editora da Unicamp, 1993, MACHADO, Irene A. Literatura e Redagdo. Sao Paulo: Scipione, 1994. MANGUENEAU, Dominique. Elemenios de Linguistica para o texto literdrio Trad. Maria Augusta B, de Matos, Sao Paulo: Martins Fontes, 1996. MONEGAL, E. Rodriguez. Carnaval / Antropofagia / Parédia, In: Sobre a Parddia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. Pp.18-28 MUECKE, D.C. /ronia ¢ 0 irdnico. Sao Paulo: Perspectiva, 1995 NESTROVSKI, Arthur. /ronias da Modernidade. Sao Paulo: Atica, 1996. 129 NEVES, Luiz F. Baéta. 4 ideologia da seriedade e 0 paradoxo do coringa. Revista de Cultura Vozes, Petropolis, 1974 ORLANDI, Eni P. Discurso ¢ leitura, Sto Paulo: Cortez, 1993, A Linguagem e seu funcionamento, Campinas: Pontes. PAIVA, Maria Helena N. Contribuigéio para uma estilistica da Ironia. Lisboa: Publicagdes do Centro de Estudos Filolégicos, 1961 PENTEADO, José de Aruda. As mais belas fabulas de La Fontaine. Sio Paulo: Editora Pedagégica Brasileira, s.d. POSSENTI, Sirio. Os humores da lingua: andlises lingnisticas de piadas So Paulo: Mercado das Letras, 1998 PROPP, Vladimir. Comicidade e riso, Sao Paulo: Atica, 1992. SANT’ANNA, Afonso Romano. Parddia, Pardfrase & CIA. Sio Paulo: Atica, 1985. SANTOS, Yolanda L., SANTOS Nadia. Fabulas de La Fontaine. Sao Paulo’ Logos, s.4. SOARES, Angélica. Géneros Literdrios, Sao Paulo: Atica, 1989. SOCHNAIDERMAN, Boris. Parddia e 0 Mundo do Riso. In: Sobre a Parédia Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1980. pp. 89-96. VASCONCELOS. Zinda M. Carvalho de. O universo infantil de Monteiro Lobato, S20 Paulo: Trago Editora, 1982.

You might also like