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"Les philosophes, prescheurs et docteurs de vostre monde vaus paissent de belles

parolles par les aureilles; icy, naus realement'incorporons nos preceptions par la
bouche. Pourtant je ne vaus dy: Lisez ce chapitre, voyez ceste glose; je vaus dy:
Tastez ce chapitre, avallez ceste belle glose. Jadis un antique Prophete de la nation
Judaoque mangea UI) livre, et fut clerc jusques aux dens; presentement vaus en
boirez un et serez clerc jusques au foye. Tenez, ouvrez les mandibules."

Extrait de François Rabelais, Pantagruel: Roy des Dipsodes, Paris: Garnier-Flammarion,


1969, p.411, apud Maggie Kilgour, From communion to cannibalism, an anatomy of
metaphors ofincorporation, Princeton: Princeton University Press, 1990, P.99.

"The philosophers, preachers, and doctors ofyour world feed you with fine words
thraugh the ears. Here, we literally take in our teachings orally, thraugh the
mouth. Therefore I do not say to you: Read this chapter, understand this gloss.
What I say is: Taste this chapter, swallow this gloss. Once upon a time an ancient
praphet ofthe Jewish nation swallowed a book, and became a learned man to the
teeth. Now you must immediately drink this, and you'll be learned to the liver.
Here, open your jaws."

Extracted fram François Rabelais, Gargantua and Pantagruel, trans. J. M. Cohen,


Harmondsworth: Penguin books, 1955, P.704, cited in Maggie Kilgour,' From
communíon to canníbalísm, an anatom!:! of metaphors of íncorporatíon, Princeton:
Princeton University Press, 1990, P.99.
Théodore Géricault Le radeau de la Méduse A jangada do Medusa [The raft of the Medusa] óleo sobre tela
[oil on canvas] coleção Musée du Louvre, Paris cortesia Reunion des Musées Nacionales
. Dados (CIP)
~~~ ___\, ~~.u~ra Brasileira

Fundação Bienal de São Paulo


XXIV Bienal de São Paulo :
antropofagia e hist6rias de cani baJrí smos ,"'-V. I /
[c~radores Paulo Herkenhoff, Adriano Pedrosa].
-- São Paulo : A Fundação, 1998.

/'
CDD-709·8161

~ndices para catálogo sistemático:


".

' 1 . Bienais de arte: São Paul o: Cidade

/
/ 709·8161 ,/
2. São Paulo : Cidade : Bienais de arte
" 709·8161
Fundação Bienal de São Paulo

Conselheiros Membros

- Francisco Matarazzo Sobrinho Adolpho Leirner


(1898-1977) Alex Periscinoto
Presidente perpétuo Álvaro Augusto Vidigal
Angelo Andr~a Matarazzo
Antonio Henrique Cunha Bueno
Conselho de honra
Áureo Bonilha
Beatriz Pimenta Camargo
Oscar P. Landmann
Presidente
Beno Suchodolski
Caio de Alcântara Machado
Carlos Bratke
Cesar Giobbi
David Feffer
David lylbersztjan,

Ecilemar Cid Ferreira


Edgardo Pires Felíreira
Ernst Guenther Lipkau
Fernando Roberto Moreira Salles
Fernão Carlos Botelho Bracher
Gilberto Chateaubriand
Horácio Lafer Piva
Jens Olesen
Presidente Jorge da Cunha Lima
Jorge Wilheim
Mencilel Aronis iosé Ermírio de l140liaes Filho
Vice-presidente
Julio Landmann
Lucio Gomes Machado
Luiz A. Seraphico de Assis Carvalho
Membros vitalícios
Manoel Ferraz Whitaker Salles
Armando Costa de Abreu Sodré Marcos Moraes
Benedito José S. de Mello Pati Maria Rodrigues Alves
Celso Neves Mendel Aronis
Giannandrea Matarazzo Miguel Alv~s Pereira
Hélene Matarazzo MilúVillela
João de Scantimburgo Pedro Aranha Corrêa do Lago
Oscar P. Landmann Pedro Franco Piva
Oswaldo Corrêa Gonçalves Pedro Paulo de Sena Madureira
Otto Heller René Parrini
Roberto Maluf Roberto Civita
Roberto Pinto de Souza Roberto Duailibi
Rubens José Mattos Cunha Lima Rubens Ricúpero
Sá bato Antonio Magaldi Saio Davi Sei bel
Sebastião de Almeida Prado Sampaio Stella Teixeira de Barros
Wladimir Murtinho Thomaz Farkas
Wolfgang Sauer
Parcerias Apoio

Guia Digital Estadão Cimentos e Argamassas Votoran


Monitori a di gital
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McCann-Erickson Brasil tB.B.C.
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Projeto Bienal & SESC São Paulo Relacionamento
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Ação Educativa: monitori a DM9DDB

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do Estado de São Paulo

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Telefônicas

Racional Engenharia

R$itoria da Universidade ae
São Pà"lIo

Telesp-Telecomunicaçóes de
São paulo S. A.

Varig
Panamco SPALlCoc.a-Cola

Petrobras .
Francis Bacon
Apoio Institucional

Ministério da Cultura

Ministério das Relações Exteriores

Governo do Estado de São Paulo

Secretaria de Estado da Cultura

Prefeitura Municipal de São Paulo

Secretaria Municipal de Cultura

A Fundação Bienal de São Paulo agradece a essas empresas de comunicação, que souberam
avaliar a importância cultural da XXIV Bienal de São Paulo, abrindo espaço para que se exteriorize
também a imagem institucional de seus patrocinadores, num promissor exemplo de parcerias.

• Carta Editorial
Editora Abril
Editora Globo
Editora Três
Folha de S. Paulo
Gazeta Mercantil
Jornal do Brasil
O Estado de São Paulo
O Globo
Revista Bravo

Canal Futura
Rede Bandeirantes
Rede Globo de Televisão
Sistema Brasileiro de Televisão
TV Cultura
TV Manchete
TVA Sistema de TV

Central de Outdoor
Busdoor
Curadores

Paulo Herkenhoff Representações Nacionais


Curador-geral Anda Rottenberg
Adriano Pedrosa Andrea Rose
Curador adjunto
Anita Tapias
Anna Mattirolo
Núcleo Histórico: Antropofagia e histórias de canibalismos Apinan Poshyananda
Adriano Pédrosa Awa Meite
Ana Maria Belluzzo Brigitte Huck
Aracy Amaral Carlos Aranda
Catherine David Catherine De Croês
Daniela Bousso Clairrie Rudrum
Dawn Ades Constantin Bokhorov
Didier Ottinger Edward Shaw
Jean François Chougnet Fiach Mac Conghail
Jean-Louis Prat Gaspar Galaz
Justo Pastor Mellado Gustavo Buntinx
Katia Canton Hervé Chandes
Luis Pérez Oramas Jack Persekian
Manuela Carneiro da Cunha João Fernandes
Mari Carmen Ramírez JonTupper
Mary Jane Jacob 'Justo Pastor Mellado
Paulo Herkenhoff Karin Stempel
Pedro Corrêa do Lago Kazuo Yamawaki
Per Hovdenakk KuuttiLavonen
Pieter Th. Tjabbes Lilijana Stepancici
Régis Michel Lorna Ferguson
Robert Storr Louise Neri
Sônia Salzstein Marianne Krogh Jensen
Valéria Piccoli Miguel L. Rojas Sotelo
Veit Gõrner Mikàel Adsenius
Yannick Bourguignon Miranda McClintic
Osvaldo Gonzalei Real
"Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros." Pedro Querejazu
Ami Steinitz Pierre-André Lienhard
Apinan Poshyananda Rita Eder
Awa Meite Sania Papa
Bart De Baere Santiago B. Olmo
Ivo Mesquita Saskia Bos
Lorna Ferguson Sergio Edelsztein
Louise Neri Silvia Pandolfi Elliman
Maaretta Jaukkuri Vasif Kortun
Rina Carvajal Velaug Bollingmo
Vasif Kortun Virginia Pérez-Ratton
Young-Ho Kim
Aftê Contemporânea'J;3ra,silelra Xu Jiang
Adriano Pedrosa
Paulo Hc:)rkenhoff Webarte
Mark van de Walle
Ricardo Anderáos
Ricardo Ribenboim
"Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e
devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a
coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer
individualmente. (Algum avanço cultural, talvez o domínio de uma nova arma,
proporcionou-lhes um senso de força superior.) Selvagens canibais como eram,
não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima.
O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um
do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele,
cada um deles adquirindo uma parte de sua força."

Extraído de Sigmund Freud, Totem e tabu e outros trabalhos, Volume XIII (1913-1914),
Rio de Janeiro: Imago, 1974, P.170. Traduzido do alemão e do inglês porOrizon
Carneiro Muniz.

"Qne day the brathers who had been driven out carne together, killed and devoured
their father and so made an end ofthe patriarchal horde. United, they had the
courage to do and succeed in doing what wouldhave been impossible for them
individually. (Some cultural advance, perhaps, command over some new weapon,
had given them a sense of superior strength). Cannibal savages as they were, it
goes without saying that they devoured their victim as well as killing him. The
violent primaI father had doubtless been the feared and envied model of each one
ofthe company ofbrathers: and in the act of devouring him they accomplished their
identification with him, and each one ofthem acquired a portion ofhis strength."

Extracted fram S. Freud, "Totem and taboo" (1913), Volume XIII, Standard Edition,
PP·14 1- 14 2 .

Sherrie Levine 1994 fotografia em preto-e-branco [black and white photograph] 20,32x25,4cm cortesia Margo Leavin Gallery, Los Angeles
After van Gogh: 3 D'aprês van Gogh: 3; After van Gogh: 1 D'aprês van Gogh: 1; After van Gogh: 4 D'aprês van Gogh: 4; After van Gogh: 7 D'aprês van Gogh: 7; After
van Gogh: 6 D'aprês van Gogh: 6; After van Gogh: 2 D'aprês van Gogh: 2
Núcleo Histórico:
Antropofagia e Histórias
de Canibalismos
,.
Indice
Fragmento François Rabelais
Fragmento 12 Sigmund Freud
16 Apresentação Ju lio Landmann
20 Apresentação Francisco Weffort
22 Introdução geral Pau lo Herkenhoff
50 Evitando museocanibalismo [Avoid ing museocannibalism ] Donald Preziosi
Fragmento 64 Mikhail Bakhtin
Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII 66 Trans-posições [Trans-positions] Ana Maria Bel luzzo
86 Tupi or not tupi, that is the question Jean-François Chougnet
102 Paisagem e fundação: Frans Post e a invenção da paisagem americana
[Landscape and foundat ion: Frans Post and the invention of the American landscape] Luis Pérez Orama~

111 O passado também nos devora [The past also devours us] María Concepción García Sáiz
Projeto 116 Adriana Varejão
Século XIX 120 A síndrome de Saturno ou a Lei do Pai: máquinas canibais da modernidade
[The Saturn syndrome or the Law of the Father: cannibal machines of modernity] Régis Michel
148 Gustave Moreau: Hércules e a Hidra de Lerna [Hercu les and the Hydra] Geneviêve Lacambre
154 Rodin e a fome [Rodin and hunger] Claudie Judrin
Vincent van Gogh 160 Van Gogh em São Paulo [in São Paulo] Pieter Th. Tjabbes
Armando Reverón 174 Antropofagia da luz e melancolia da paisagem
[Anthropophagy of light and melancholy of landscape] Luis Pérez Oramas
Fragmento 19à Tennessee Williams
Monocromos 192 A autonomia da cor eo mundo sem centro
[The autonomy of color and the centerless world] Pau lo Herkenhoff
209 Torres-García-neoplasticismo em movimento [neoplasticism in movement] Ángel Kalenberg
213 Lucio Fontana-trinta anos depois [thirty years later] Pier Luigi Tazzi
217 Vves Klein-a orgulhosa incandescência do branco
[the proud incadescence of white] Jean-Michel Ribettes
221 Piero Manzoni-Achrome Germano Celant
224 Hélio Oiticica-trajetória monocromática [monochromatic trajectory] Pau lo Venânc io Filho
227 Vayoi Kusama-Infinity nets [Redes de infinito] Margery King
230 Robert Ryman-redução e emoção [reduction and emotion] Lynn Zelevansky
Dadá e surrealismo 234 As dimensões antropofágicas do dadá e do surrealismo
[The anthropophagic dimensions of dada and surrealism ] Dawn Ades
246 Retrato da fêmea do louva-a-deus como heroína sadiana
[A portrait of the mantis as a Sadian heroine] Didier Ottinger
256 Canibalismo de outono [Autumnal cannibalism ] Jenn ifer Mundy
Fragmento 262 Georges Bataille
René Magritte 264 Do fio da faca ao fio da tesoura: da estética canibal às colagens de René Magritte [From the blade
to the scissors : from the cannibal esthetic to the collages of René Magritte] Didier Ottinger
Alberto Giacometti 276 A esperança de uma obra nova [The hope for a new work] Jean- Louis Prat
280 O objeto, o vazio e a morte do homem [The object, the void , and the death of man] Alain Cueff
Maria Martins 288 A mulher perdeu sua sombra [The woman has lost her shadow] Katia Canton
Roberto Matta 302 Mal-estar da origem; origem do mal-estar [Malaise of origin; origin of the malaise] Justo Pastor Melladc
David Alfaro Siqueiros 318 Utopias regressivas? (radicalismo vanguardista em Siqueiros e Oswald)
[Regressive utopias? (avant-garde radica lism in Siqueiros and Oswald)] Mari Carmen Ramírez
Modernismo brasileiro 336 A cor no modernismo brasileiro-a navegação com muitas bússolas
[Color in Brazilian modernism-navigating with many compasses] Paulo Herkenhoff
Tarsila do Amaral 356 A audácia de Tarsila [Tarsila's audacity] Sônia Salzstein
Alfredo Volpi 372 Construção e reducionismo sob a luz dos trópicos
[Construction and reductionism in the light of the tropics] Aracy Amaral
Hélio Oiticica 386 Corpo-cor em Hélio Oiticica [Bod y-color in Hélio Oiticica] Vi viane Matesco
Cildo Meireles 398 Desvio para a interpretação [Detour into interpretation] Lisette Lagnado
Fragmento 406 Jacques Lacan
Francis Bacon 408 As fronteiras do corpo [Boundariesof the body] Dawn Ades
CoBrA 422 Transgressão e voracidade [Transgression and voracity] Per Hovdenakk
Gerhard Richter e Sigmar Polke 434 Bom o bastante para se comer: sobre Richter, Polke e a exploração do artista por ele mesmo
[Good enough to eat: on Richter, Polke and the artist's self-pillage] Annelle Lütgens
Guillermo Kuitca 444 Kuitca e topologias canibais [Kuitca and cannibal topologies] Paulo Herkenhoff
Louise Bourgeois 448 Destruição do pai [Destruction of the father] Robert Storr
Lygia Clark 456 Por um estado de arte: a atualidade de Lygia Clark
[For a state of art: the actuality of Lygia Clark] Suely Rolnik
Fragmento 468 Pierre Fédida
Eva Hesse e Robert Smithson 470 Contenção e caos [Containment and chaos] Mary Jane Jacob
486 O artista verdadeiro [The true artist] Robert Storr
Bruce Nauman
)ennis Oppenheim e Tony Oursler 498 Conexões [Connections] Vitória Daniela Bousso
508 Pedaços de nós mesmos [Pieces of ourselves] Rosa Olivares
518 A religião, herética para a arte moderna [Religion , heretical for modern art] Jean-Hubert Martin
Fragmento 530 Jorge Luis Borges
532 Manifesto antropófago [Anthropophagite Manifesto] Oswald de Andrade
Fragmento 540 Sara Maitland
542 Notas Biográficas Tobias Ostrandere Valéria Piccoli
548 Nota do Editor Adriano Pedrosa
552 Agradecimentos
Fragmento 560 Roland Barthes

Jetf Wall Oead troops talk-a vision after an ambush of a Red Army Patrol, near Moqor, Afghanistan, winter 1986 Conversa das tropas mortas-uma
visão depois de uma emboscada de um a patrulha do Exé rc ito Vermelho, perto de Moqor, Afeganistão, inve rn o de 1986 1992 transparên cia c ibacromo,
luz fluorescente, caixa de alumínio [cibac hrome transparency, fluorescent light, aluminum di spl ay case ] 229x417cm Mari an Goodman Gallery, Nova York
Apresentação do Presidente da Fundação Bienal de São Paulo

A Bienal de São Paulo celebra em 1998 o centenário de seu fundador, Francisco Matarazzo Sobri-
nho, o Ciccillo. Poucos indivíduos como ele mudaram a face do país de maneira tão positiva~.
permanente. Ciccillo foi o responsável pela cria:ção, em 1948, do Museu de Arte Mod,erna de S,ão
Paulo (MAM) e também pela realização, em 1951, da primeira das Bienais de São Paulo. Desde
então, a Bienal ~em sido tanto aquilo que se expõe em seu âmbito físico quanto o diálogo que
possibilita entre a sociedade e a arte.
O abrangente legado de Ciccillo inclui dois museus. Além do MAM, que está celebrando
seus cinqüenta anos em meio a um processo de intensa renovação, também o Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC- USP) foi instituído em 1963 com um acer-
vo formado pela coleção pessoal de Yolanda Penteado e Ciccillo Matarazzo e do antigo MAM. Na
montagem do Núcleo Histórico desta Bienal, optou-se pela inclusão de peças da coleção do
MAC - USP não apenas para contextualizá-Ia, mas sobretudo para prestarmos uma homenagem
conj unta ao nosso fu ndador.
A XXIV Bienal também celebra o Museu de Arte de São Paulo "Assis Chateaubriand", que
completou seu cinqüentenário em 1997. Nossa sala van Gogh está centrada no acervo do Masp,
tendo, entre outros objetivos, a idéia de compreender os van Gogh de São Paulo no contexto
mais amplo da obra do artista. Essa parceria permitiu reunir novamente no país um conjunto de
obras de van Gogh, o que ocorreu pela última vez em 1955 por ocasião da III Bienal. Finalmente,
a Bienal de São Paulo se associa aos Musées Royaux des Beaux-Arts de Bruxelas na comemo-
ração dos 100 anos de René Magritte.
Devemos registrar o apoio das instituições públicas, iniciativa privada e meios de comuni-
cação à realização da Bienal como um projeto coletivo em favor da comunidade de São Paulo e
da sociedade brasileira. Esse fato se espelha na composição de seu conselho e na diretoria que
realizam esta Bienal. O Ministério da Cultura e a maneira como tem conduzido a aplicação das .
leis de incentivo à cultura propiciam condições institucionais e políticas decisivas para realizar-
mos a Bienal com a dimensão que ora lhe damos. A equipe profissional da Fundação Bienal de
São Paulo demonstra o alto nível da instituição.
Esta Bienal tem um projeto político claro ao partirde certa premissa: seu ponto de partida
é o Brasil. Para seu eixo conceituai foi primordial criar uma teia de interpretações articuladas.
Os conceitos de densidade, antropofagia e canibalismos determinaram importante guinada.
Também a Bienal deveria se pautar por eles. Por isso, desenvolveu-se a idéia de que a Bienal seja
um tripé formado pela exposição, o projeto educacional e as publicações.
Nossos catálogos são livros, com pauta adequada a volumes de referência para as questões
de antropofagia e canibalismos. Especialistas de alto valor desenvolveram contribuições novas
para a historiografia da arte em plano universal. A Bienal tem longa história educacional, dispon-
do-se a novas experiências. Ampliamos o trabalho com grande contingente de professores e
alunos, mediante múltiplos recursos e estratégias, que incluem inovar na preparação de material

16 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


didático para os professores, dialogar com outras instituições da cidade, integrar-se com a rede
pública, entre outras atividadeso
A curadoria da XXiV Bienal realiza um velho desígnio: centrar os debates a partir de uma
ótica brasileira e de nossa história cultural. Pela primeira vez, a Bienal propõe uma questão
brasileira como seu ponto de partidao Houve a cautela de não fazer uma simples substituição de
ótica, deslocando a idéia de centro para o Brasil. Foram admitidos precedentes e paraleloso A
América latina recebeu foco especial. Acentua-se a relação singulardo Brasil com suas origens
e a cultura ocidental no quadro do diálogo com a pluralidade do mundoo Essa Bienal não poderia
ser pensada como somatória de "salas especiais" esparsas, mas compreende a necessidade de
efetiva integração do conjunto de salas, núcleos, obras e artistaso Essa inovação gerou a con-
cepção do conjunto como Núcleo Históricoo O desafio foi imenso e complexo porque à Bienal não
caberia simplesmente receber exposições vindas prontas do exterior ou trazer blocos fechados
de coleções públicas ou privadaso Cada peça foi escolhida individualmente para vira São Pauloo
Pela primeira vez realiza-se no Brasil uma exposição deste porte para apresentar nossa arte em
contexto internacional com peças de grandes museus estrangeiroso
O discurso curatorial concreto demandou intrincada arquitetura intelectual. A curadoria-
geral da Bienal convidou especialistas internacionais e buscou resgatar uma ampla participação
de pesquisadores brasileiros para introduzir uma variedade de perspectivaso O surpreendente
resultado decorre da profundidade do trabalho dos curadoreso Essa Bienal abandona a posição
eurocêntrica da história da arte, que, como entendem os especialistas, decorreria basicamente
da interpretação dogmática das idéias de Hegel. O processo cultural para um mundo de maior
entendimento ainda tem longo percurso a cumpriro Os museus e colecionadores que participam
desta Bienal compreenderam generosamente que a antropofagia aponta para a importância da
compreensão da diversidade dos valores humanoso Julio Landmann

17 Apresentação Julio Landmann


Fundação Bienal de São Paulo President's Foreword

ln 1998 the Bienal de São Paulo celebrates the centenary of its founder, Francisco Matarazzo
Sobrinho, known as Ciccillo. Few individuaIs like him changed the profile ofthe country in such
a positive and permanent manner. Ciccillo was responsible for the creation, in 1948, ofthe Museu
de Arte Moderna of São Paulo (MAM) as well as for the realization of the first of the São Paulo
biennials in 1951. Since then, the Bienal has not only been that which is exhibited within its phys-
ical extent but also the dialogue it confers between society and art.
Ciccillo's vast legacy includes two museums. ln addition to MAM which is celebrating its
fifty years in the midst of a process of intense renovation, also the Museu de Arte Contem-
porânea ofthe Universidade de São Paulo (MAC-USP) was established in 1963 with a collection
belonging to Yolanda Penteado and Ciccillo Matarazzo and that of the old MAM. ln the arrange-
ment ofthe Núcleo Histórico segment ofthis Bienal, a choice agreed on was to include works
from the collection of the MAC-USP not only to contextualize it but mainly to pay a joint homage
to our founder.
The XXIV Bienal also celebrates the Museu de Arte de São Paulo "Assis Chateaubriand"
(Masp), which reached its fiftieth anniversary in 1997. Our van Gogh exhibition is centered on
the collection ofthe Masp, having, among other aims, the idea to comprehend the van Gogh's
ofSão Paulo in the widest context ofthe artist's oeuvre. This partnership allowed for the oppor-
tunity to gather once more in the country an ensemble of van Gogh paintings, something which
last took place in 1955 on occasion ofthe III Bienal. Finally, the Bienal de São Paulo associates
itselfto the Musées Royaux des Beaux-Arts ofBrussels in the commemoration ofRené Magritte's
roo years.
We must register the support of public and private institutions and the means of commu-
nication towards the realization of the Bienal as a collective project in favor of the São Paulo
community and ofBrazilian society. This is reflected in the composition ofits board oftrustees
and of directors that accomplish this Bienal. The Ministry ofCulture and the manner in which it
has conducted the application oflaws to encourage culture favor decisive politicaI and institu-
tional conditions towards realizing the Bienal with the dimension we are now giving it. The pro-
fessional team of the Fundação Bienal de São Paulo illustrates the high leveI of the institution.
This Bienal has a clear politicaI project as it sets out from a specific premise: its point of
departure is BraziL For its conceptual axis it was crucial to create a network of articulated inter-
pretations. The concepts of density, antropofagia and cannibalism determine an important change
of course. And the Bienal should adjust to them. ln this respect we developed the idea that the
Bienal be a tripod composed by the exhibition, the educational project and the publications.
Our cataIogs are books with relevant guidelines and reference volumes for the issues on
antropofagia and cannibalism. Distinguished specialists carried out new contributions towards the
historiography of art on a universal basis. The Bienal has a long educational history and prepares
itself for new experiences. We increased the work with a large quota of teachers and students

18 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


through the use of multiple resources and strategies that include innovation in the preparation
of didactic material for the teachers, dialogue and exchange with other institutions of the city,
integration with the public network, among other activities.
The curatoship of the XXIV Bienal carries forth an old aim: to center the debates from the
standpoint of a Brazilian view and from our cultural history. For the first time the Bienal pro-
poses a Brazilian issue as its starting point. We were careful not to carry out a mere substitution
ofthe viewpoint, displacing the idea of center to BraziL Precedents and parallels were included.
Latin America was granted special focus. Emphasis is given to Brazil's unique relationship with
its origins and western culture within the framework of dialogue with the plurality ofthe world.
This Bienal could not be conceived as a summation of dispersed "special exhibition rooms."
Rather, it comprises the necessity for an effective integration of the ensemble of exhibition
rooms, nuclei, works and artists. This innovation gave rise to the conception ofthe ensemble as
the Núcleo Histórico. The challenge was huge and complex since the Bienal could not simply
receive preconceived exhibitions from abroad or bring closed blocks from public or private col-
lections. Each work was chosen individually to come to São Paulo. For the first time in Brazil an
exhibition of this immeasurable degree is realized in order to introduce our art in an interna-
tional context along with works from great foreign museums.
The concrete curatorial discourse demanded an intricate intellectual architecture. The
Bienal's chief curatorship invited international specialists and sought to rescue a vast participa-
tion ofBrazilian specialists to introduce a variety of perspectives. The extraordinary result comes
about through the depth ofthe curators' worlc This Bienal abandons the eurocentric position of
art history, which, as understood by specialists, is basically a result of the dogmatic interpreta-
tion ofHegel's ideas. The cultural process for a world of greater understanding has as yet a long
course to fulfilL The museums and collectors participating in this Bienal generously realized
that antropofagia points to the importance ofthe understanding ofthe diversity ofhuman values.
Julio Landmann. Translatedfrom the Portuguese by Veronica Cordeiro.

19 Apresentação Julio Landmann


Apresentação do Ministro da Cultura

A XXIV Bienal de São Paulo é a última a ser realizada até o ano 2000, quando, junto com a pas-
sagem do milênio, estaremos comemorando o V Centenário do Descobrimento do Brasil. E já
antecipa esse momento histórico ao se organizar, pela primeira vez em seus 46 anos de existên-
cia, em torno de um tema brasileiro: a Antropofagia, categoria criada porOswald de Andrade para
explicar, de um ponto de vista nacional, o processo de formação de nossa identidade cultural.
Essa proposta é fruto de décadas de experiência acumulada, que consolidou a Bienal de São
Paulo como um dos três mais importantes eventos de artes plásticas no mundo de hoje.
A continuidade de um evento dessas proporções tem também efeitos na formação do
público. É possível supor que as cerca de 400 mil pessoas que visitaram a XXIII Bienal de São Paulo
não buscavam apenas o contato com as últimas novidades da vanguarda, ou com as obras dos
artistas já consagrados, mas estavam também atentas às leituras propostas pelos curadores.
O hábito de visitação dessa e de tantas outras grandes exposições de artes plásticas que têm
sido realizadas nos museus e espaços culturais das cidades brasileiras, com o apoio crescente
de patrocinadores e dos meios de comunicação, certamente contribuiu para mudanças quanti-
tativas e qualitativas.
Nas parcerias que são estabelecidas para viabilizara Bienal, o poder público participa com
apoio direto, mas, sobretudo, com o aprimoramento das leis de incentivo fiscal, que agora dis-
põem, inclusive, de mecanismos para estimulara circulação de exposições e acervos de museus
por todo o país. Os resultados alcançados por esse esforço conjunto entre Estado e sociedade
vêm provarque investirem cultura é um negócio que traz benefícios a todos os envolvidos, e que
é possível aliar o crescimento econômico de um setor da vida social à democratização de um
produto de alto nível de qualidade. Descobrimos, trilhando nossos próprios caminhos, e bus-
cando as soluções mais adequadas à nossa realidade, o que os países mais avançados já sabem
e vêm pondo em prática há algum tempo.
Ao reelaborar a noção de antropofagia, que, do ponto de vista europeu, era uma prática
primitiva, bárbara, e contrária aos mais elementares princípios de humanidade, Oswald de
Andrade propôs uma interpretação irônica e irreverente de como, no Brasil, as influências vindas
de fora são incorporadas a um "corpo" nativo, transformadas em alimento que o fortalece sem
descaracterizá-lo. Acredito que essa imagem se aplica também ao amadurecimento da vida
cultural do país, de que a Bienal de São Paulo, neste ano em sua vigésima quarta edição, é um
caso exemplar. Francisco Weffort

20 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Minister of Culture's Foreword

The XXIV Bienal de São Paulo is the last one to take place before the year 2000, when at the turn
ofthe millennium, we will be celebrating the V Centenary ofthe Discovery ofBraziL The Bienal
anticipates this historical moment by focusing, for the first time in its 46 years of existence, on
a Brazilian subject: Antropofagia, a category created by Oswald de Andrade to explain, from a
national point of view, the process of formation of our cultural identityo This proposition is the
result of decades of accumulated experience, which consolidated the Bienal de São Paulo as one
of the three most important visual arts events in the world todayo
The continuity of an event of this magnitude also has its effects in the education of the
publico It may be assumed that the approximately 400 thousand people who visited the XXIII
Bienal de São Paulo were not merely looking for contact with the last avant-garde novelties or
with works of art of celebrated artists, but were also alert to the different readings proposed by
the curators. The visiting habits ofthis and many other large art exhibitions which have been
organized in museums and cultural spaces of Brazilian cities, with the increasing support of
sponsors and communication media, have certainly contributed to the quantitative and qualita-
tive changes.
ln the partnerships that have been established to make the Bienal possibIe, the public
administration participates with direct support, but above all, the improvement oftax benefit
laws has provided mechanisms to stimulate the circulation of exhibitions and museum collec-
tions throughout the country. The results achieved through this joint effort between State and
society come to prove that investing in culture is a business that brings benefits to all those
involved, and that it is possible to associate the economic growth of a sector of sociallife to the
democratization of a product of a high quality standardo We have discovered, treading our own
paths, and searching for those solutions most adequate to our reality what the more advanced
countries already know and have been putting into practice for some time.
Reelaborating the notion of antropofagia which from the European point of view was a
primitive, barbarian practice contrary to the most elementary principIes ofhumanity, Oswald de
Andrade proposed an ironic and irreverent interpretation ofhow the foreign influences in Brazil
are incorporated into a native "body" transformed into nourishment that strengthens it without
changing its genuine character. I believe this image applies as well to the enrichment of the
culturallife in the country, ofwhich the Bienal de São Paulo, this year in its twenty fourth edi-
tion, is exemplaryo Translated from the Portuguese by Veroníca Cordeiro
o

21 Apresentação Frarlcisco Weffort


Paulo Herkenhoff

Introdução geral
Que ualor tem para ti meu desejo? Questão eterna que se põe no diálogo dos amantes 1 • Éramos
capazes de atrocidades muito piores 2 -Que fantasma é esse que emerge nos momentos de
maior plenitude do desejo? Que metáfora é essa que simboliza terrível medo da alteridade?
Este texto revela os parâmetros curatoriais adotados na constituição do Núcleo Histórico
da XXIV Bienal de São Paulo. Nunca pretendemos uma visão totalizadora ou triunfante da questão
da antropofagia. A curadoria da XXIV Bienal de São Paulo iniciou-se com a tomada da "espes-
sura do olhar", na linha de Jean-François Lyotard em Discours, figure, como conceito operacional
deslocado para a idéia de densidade. A espessura não deveria estar apenas na arte (muito menos
seria sua ilustração como "tema"), na ação dos curadores e, sobretudo, na instituição. A idéia
de Núcleo Histórico indica uma pauta, diferente da tradição das "salas especiais". Abdicamos
das idéias de status ("especial") ou territorialização ("salas"), porque carecia definir nosso
debate histórico concreto, integrado por critérios conceituais efetivamente desenvolvidos em
termos de forma de olharem exposição e texto.
A XXIV Bienal toma sua posição frente à disciplina da história da arte. Compreendemos
com Giulio Cario Argan que história e crítica contemporânea não prescindem uma da outra, de
modo que não deveria haver cisão no contexto da Bienal. Também reconhecemos a multiplici-
dade dos fios da história e que, no caso da arte, a postura eurocêntrica, com sua orientação
hegeliana, havia criado parâmetros excludentes no circuito da arte. Nossa opção, na negociação
dos empréstimos de obras, implicou um debate com di retores de museus que tradicionalmente
negam empréstimo para exposições temáticas, contrapostas a mostras históricas, que agregam
conhecimento novo. Os curadores da Tate, do Pompidou ou do MoMAjá conheciam a antropo-
fagia e puderam mais facilmente compreender seu sentido histórico dentro da perspectiva da
formação cultural do Brasil. A abertura conceituai, para aceitar uma história outra da arte, foi a
posição do Louvre, do Orsay, do Besançon e do Prado. Muitos compreenderam aquele "diferen-
ciai" da cultura brasileira 3 , alguns não.
O Núcleo Histórico deveria partir de uma visão não eurocêntrica. Qual o momento denso
da história da arte no Brasil? O conceito de "espessura" demarcava respostas: barroco, mo-
dernismo, neoconcretismo ou anos 60/70. O modernismo ofereceu uma resposta desafiadora: a
antropofagia. O movimento que toma corpo em São Paulo em 1928 com Tarsila do Amaral e
Oswald de Andrade se espalha no tempo pela cultura brasileira enquanto estratégia de emanci-
pação cultural 4 • Estranhamente, o Brasil nunca realizara uma grande mostra sobre a antropofa-
gia para discutir sua pluralidade cultural. Ademais, a antropofagia admite precedentes e paralelos
na história da arte. Permite uma abertura conceituai complexa para vários campos anunciados
no "Manifesto antropófago", como história, antropologia, política, filosofia, religião, lingüística,
psicanálise. Já sabíamos que o canibalismo propiciou a Montaigne dados pragmáticos e espaço
para a criação de argumentos em seus Ensaios para discutir a relatividade dos valores humanos.
Como imaginar que o primeiro debate filosófico ocorrido no Brasil, na França Antártica, envol-
vesse questões do canibalismo?

22 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Parafraseando Borges, a Bienal deixaria de ilustrar ou espelhar discussões surradas para
introduzir uma lente da cultura brasileira para visitara arte contemporânea e a história. A antro-
pofagia é um conceito suficientemente polêmico para não se sancionar como verdade. Nem para
se fixar em imagens ou estilos. Abre-se, pois, um debate com uma questão conceituai posta,
com obras de arte que permitem discussões concretas e com projetos curatoriais cristalinos e
diferenciados. A curadoria foi um intenso processo de reflexão dos conceitos, como se depreende
dos textos e da exposição.
A Bienal de São Paulo é um evento imenso produzido num período de ano e meio. O com-
plexo envolvimento de dezenas de curadores produz dificuldades crónicas de efetivação de seus
"temas" através de obras. Algo ocorria e não se enunciava nas bienais: a multiplicidade, a dispa-
ridade, a contradição das interpretações, ou até a afronta ou a negação do tema. A antropofagia,
enquanto conceito de estratégia cultural, e suas relações com o canibalismo, ofereceu um mo-
delo de diálogo-o banquete antropofágico-para a interpretação. O movimento de coletarou
estimular interpretações, chegando a centenas de conceitos, concepções, acepções, elementos,
aspectos, etc. demonstrou a riqueza da questão da antropofagia. Incentivamos a emergência de
sua vastidão conceituai centrífuga como montagem de um thesaurus. Depois dessa aparente dis-
persão, estimulou-se movimento centrípeto de cada curador. Estranhamente, a antropofagia-
ambivalente e polêmica-propiciou em cada interpretação uma relação transparente curadoria/
obra/público. Compreender a vastidão significou entender que o Núcleo Histórico não seria
uma enciclopédia do canibalismo nem que a Bienal esgotaria a questão. Daí a opção por cortes,
recortes, exemplos em deliberada exploração da ambivalência. Diferenciamos antropofagia, como
tradição cultural brasileiras, de canibalismo, prática simbólica, real ou metafórica da devoração
do outro.
Como ponto de partida, demandamos aos curadores o programa curatorial específico para
cada sala. Discutimos os ajustes eventualmente necessários. No espaço dos séculos XVI a XVIII
está em pauta o confronto da Europa com a descoberta de um canibalismo real na América e a
introdução dos gêneros artísticos neste continente no processo colonial, enquanto a sala do
século XIX trata da presença do canibalismo no fundo terrível do inconsciente ocidental. Articu-
lamos um diagrama das salas do Núcleo Histórico, mas, por dificuldades do espaço, ele não
corresponde ao plano de montagem.
Um conceito suficientemente amplo-e a amplitude já estaria em sua própria gênese-
depois da etapa de sua abertura para múltiplas possibilidades, deveria se precisarem cada uma
a intenção ou estratégia curatoriais. Cada sala deveria constituir parâmetros curatoriais especí-
ficos de modo que se diferenciasse das demais por distinto caráter. Assim, o que está em exposi-
ção são as curadorias como discurso de leitura inventiva e poética da arte. E, sobretudo, a própria
arte como o espelho da potência de invenção e da reflexão sobre mitos e práticas simbólicas,
diferenças e linguagem.
Foi fu ndamental neste processo demandar a adesão do texto e do projeto cu ratorial à obra.
As obras, ou alguns artistas e mesmo salas, estão aqui como argumentos diretos, indiretos ou
para a necessária passagem entre dois momentos históricos. Análises superficiais não percebem
que a antropofagia é um fenómeno de abertura da obra. Éda dinâmica da antropofagia redese-
nhar-se em resposta aos desafios e como solução política da linguagem. Toda vez que se torna
tema ou mera imagem está mais distante de sua origem. Opostamente haverá os "eurocêntricos
excêntricos": a reincidência do eurocentrismo, confundida com o projeto moderno e sua raciona-
lidade, é muitas vezes mais forte no Brasil que na Europa. Evitamos a necrofagia visual, a ilustra-
ção pedestre da devoração canibal. Evitamos o açougue e o canibalismo por desvio psicológico

23 Introdução geral Paulo Herkenhoff


individual ou por penúria frente a desastres e fome. O canibalismo não é uma dieta. É sempre
simbólico e é a partir daí que interessa a este debate. A via admitida é a questão do corpo frag-
mentado e suas relações com a linguagem.
Se a idéia de apropriação está no caráterda antropofagia, definimos trabalhar com um único
exemplo de imagem apropriada: Ajangada da Medusa de Géricault. Foi apropriada por artistas
como David Siqueiros, Asger Jorn, JeffWall, Thomas Struth. Essa esquadra de La Méduse inclui-
ria muitos outros nomes, como Kippenbergerou Steele e Goldie na Nova Zelândia. Optamos por
um tema clássico de canibalismo, Ugolino, e um exemplo pontual de apropriação transcultural:
van Gogh e a xilogravura japonesa. Escolhemos exemplos que demandassem uma construção
teórica sutil para além das questões temáticas e iconológicas, como tratar da autonomia cul-
tural, comparar entropia e antropofagia; reagir contra o autocanibalismo; definir um repertório
de questões psicanalíticas, históricas da arte, filosóficas, econômicas, ideológicas, lingüísticas.
A Antropofagia incide sobre os diversos campos da cultura, da literatura à música. Ademais, é
um conceito dinâmico capaz de estabelecer uma validade para nosso tempo. O canibalismo,
sendo prática simbólica, implica compreender relações de alteridade. É metáfora na filosofia e
na reflexão sobre a violência. Envolve a estruturação das sociedades, o nascimento da lingua-
gem ou o próprio desejo e a fusão amorosa dos indivíduos. Este Núcleo Histórico desta Bienal
significa que, pela primeira vez, uma exposição integra diretamente questões específicas da cul-
tura brasileira integrada numa discussão com a arte ocidental, reunindo Aleijadinho e Goya,
Volpi e van Gogh, Lygia Clark e Eva Hesse em diálogo. Na arte européia, encontramos um corpus
antropofágico que vai de Goya a Géricault. Evidentemente, a antropologia e a psicanálise de Freud
trouxeram contribuições consideráveis. A Europa viveu mitos-Saturno devora seus filhos-e a
perplexidade com o Outro canibal, espécie de monstrificação do diferente. A Bienal de São
Paulo, por sua complexidade e prazo, não é, como Kassel, a afirmação de um curador, mas um
processo para se articularem olhares de um pequeno exército de curadores. A dispensa do texto
analítico da curadoria geral justifica-se dado o fato de que todas as salas mereceram textos
importantes. Só me interessa o que não é meu, direi.
Um viés do Núcleo Histórico é refletir sobre core latitude enquanto lugar relativo à história
da arte e à percepção, confrontadas com questões subjacentes de antropofagia e canibalismo.
O artigo "Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira" (1980), de Haroldo
de Campos, foi fundamental para a compreensão do processo histórico da cultura brasileira, da
latência permanente de modos antropofágicos, desde o século XVII, com o poeta Gregório de
Mattos. A antropofagia é estratégia crucial no processo de constituição de uma linguagem autô-
noma num país de economia periférica. A sala "A cor no modernismo brasileiro" apresenta o teci-
do artístico do Brasil no período por meio de sintética visão do projeto de cor de Anita Malfatti,
Vicente do Rego Monteiro, Oswaldo Goeldi, Lasar Segall, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti e
Guignard. Os trópicos, lugarfora da história da arte, desenvolvem um discurso com grão "cromá-
tico" próprio. As fases pau-brasil e antropofágica de Tarsila do Amaral evidenciam o esforço dos
artistas dos trópicos para superara mera condição de natureza e exotismo, num processo de de-
senvolvimento da significação da core estabelecimento de uma tradição própria, isto é, de uma
história da arte. A cor local de Tarsila, conforme lição de Léger, está em pau-bras;l, seguida da
"cor selvagem", ora telúrica, melancólica, silenciosa ora estridente da Antropofagia. Alfredo
Volpi é a ponte entre o modernismo e as rupturas contemporâneas, entre Tarsila e Oiticica. Volpi
não foi um "antropofágico" avant la lettre 6 , mas a realização do projeto de autonomia cultural
almejado pela antropofagia modernista. Sua sabedoria pictórica é singular. A corvernaculardas
casas de fazenda, vilarejos e subúrbios é deslocada da idéia de "cor local", ainda restrita na cor

24 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


caipira de Tarsila, para adquirir autonomia poética, como definem Mário Pedrosa, Olívio Tavares
de Araújo, Rodrigo Naves e outros. Sua erudição intuitiva opera a autonomia da cor por meio de
pinceladas precisas na demarcação de seu campo, em pinturas ora "geométricas" ora "temáti-
cas". Nossa orientação curatorial privilegia a cor sobre os temas. Aracy Amaral e Sônia Salzstein
são respectivamente curadoras da obra de Volpi e Tarsila.
Hélio Oiticica é a torção do sentido formalista da cor na arte brasileira. Dos planos estáticos
do período do Grupo Frente à dinâmica dos Metaesquemas, a cor ganha autonomia nos Monocromos
e pi ntu ras neoconcretas, vi ra espaço real com os Releuos espaciais e Bilaterais, torna-se arq uitetu ra de
planos nos Núcleos e sua corporeidade se entrega aos sentidos nos Bólides, na busca neoconcreta
de recuperação do sujeito? Para Oiticica, Tropicália é "a obra mais antropofágica da arte brasi-
leira", propiciando a "definitiva derrubada da cultura universalista entre nós, da intelectuali-
dade que predomina sobre a criatividade".8 As obras de Oiticica e de Lygia Clark apresentam
desafios às curadorias, porque implicam a participação do público como condição de realização
da arte. Nesta Bienal, seus objetos criados para o manuseio estarão entregues à experiência
sensorial. O bólide Homenagem a Cara de Caualo (1966) compõe uma história de monocromos que
incluiria Fantasma, de Antonio Manuel e Desuio para o uermelho, de Cildo Meireles. Meireles rein-
troduz a noção de excesso na economia essencial do monocromo. A Impregnação, parte de Desuio
para o uermelho, poderia aparentemente aproximar Meireles da economia do IKB de Yves Klein.
Meireles está visceral mente interessado em expor os jogos do capital, no confronto entre valor
de troca e valorde uso, valor simbólico e valor real, daí o imenso monocromo tomar o caráterde
cor devorante e atuar como estratégia de neutralização do valor pelo excesso. Saturação, acú-
mulo, impregnação, desdobramento cromático, simbolização determinam a inserção desta obra
nesta Bienal. Além da referência a Ateliê uermelho, de Matisse, referimos a memórias de infância
do artista. Seu pai levou-o para vero corpo de um jornalista político assassinado, cujos amigos
haviam tomado seu sangue para escrever na parede frases lembrando o heroísmo de suas idéias.
Dois artistas jovens do segmento Brasil contemporâneo, Beatriz Milhazes e Delson Uchoa,
incorporam-se nesta trajetória. Milhazes funde em rapsódia os acordes e contrastes de tradições
brasileiras da cor (decoração de móveis, o chitão, a pintura de Guignard) e referências européias
e universais. No entanto, a cor caipira do sudeste não dá conta do Brasil. Uchoa extrai luminosi-
dade e estridência cultural da cor do Nordeste. Suas pinturas descrevem movimentos do "rói-rói",
brinquedo popular a elas incorporados. Inesperadamente, Uchoa nos recorda, como Oiticica,
que sua arte é música.
Vincent van Gogh é o artista europeu escolhido para discutir cor e latitude temperada,
coincidente com o centro da história da arte e seus códigos. O artista busca uma luz fora da his-
tória, em seu âmago emocional ou em outras latitudes, ao Sul ou no Extremo Oriente. Desviando-
se das questões anedóticas, a paisagem foi o mais radical testemunho desses seus movimentos.
Sua trajetória se testemunha com um conjunto de paisagens, desde aquelas da compaixão às
paisagens do desespero. Seu estado de ânimo é sua pintura. No início, a paisagem se arrima nos
claros/escuros, no caráter simbólico da luz, como solidário pessimismo social. Sua arte dialoga
com Millet. Paulatinamente descobre o plein air, a pintura impressionista e depois a xilogravura
japonesa. Enquanto outros artistas optam pelo esteticismo de linhas, figuras, costumes, van
Gogh toma o Japão pelo estranhamento mais extremo para o olhar europeu-o código de cores
e dos contrastes cromáticos violentos da xilogravura do Ukyio-e, oposto às regras da arte euro-
péia. Assim, van Gogh realiza uma radical operação transcultural, índice característico da an-
tropofagia. Sua angústia é autoconsumo. Seu suicídio realiza algo que poderíamos classificar
como pulsão autocanibal. Várias noções de sacrifício se desenrolam nesta Bienal: o banquete

25 Introdução geral Paulo Herkenhoff


antropofágico, a Eucaristia, o suicídio e o episódio da orelha de van Gogh (analisado por Bataille),
as mitologias de Masson, a pintura de Bacon e Kuitca, Tiradentes e The destruction ofthe father [A
destruição do pai], de Louise Bourgeois. Acomplexidade de realizar uma sala "van Gogh" numa
Bienal levou a curadoria-geral a demarcaro escopo da mostra, concentrado num eixo principal
que definiria seus modos antropofágicos. A curadoria é de PieterTjabbes.
Armando Reverón, artista venezuelano, retorna de Paris para viver na selva, espaço que
Hegel define como fora da história. Reverón passa a pintar numa região próxima da zona equa-
torial, criando paisagens brancas, de luz, e pinturas de sombras, paisagens cinzas. As sombras
nos dão o relevo do mundo e nos permitem conhecê-lo. As paisagens brancas são pintura seca,
em estado selvagem que nada tem a ver com a revelação do sublime na pintura de materialidade
dócil sobre fenômenos meteorológicos do gelo em Caspar David Friedrich, das brumas de Turner
ou da neve em Courbert e nos impressionistas. A zona equatorial é lugarde percepção e Reverón
pinta o céu azul, a floresta luxuriante como se olhasse para o Sol. A luz é aberta e explode, devora
as cores, reduz o espectro ao branco. a curador Luis Pérez aramas reflete sobre estes processos
de canibalização pela luz.
A região ártica, numa Bienal que busca articular seus segmentos e obras, está presente em
"Roteiros ... " com Fin-de-siecle, do Generalldea, uma instalação de paisagem com gelo de isopor
e focas estofadas, e nas Representações Nacionais com uma paisagem minimalista de alafur
Eliasson, composta por uma lâmina de gelo real que se esforça para existir sob a temperatura
tropical.
a Núcleo Histórico da Bienal apresentará um dos extremos absolutos da modernidade no
campo visual, que são os monocromos. A sala estará dividida em três espaços. No primeiro,
será apresentado um conjunto de obras referenciais para a história da arte na América Latina:
Mondrian, Van Doesburg e Torres-García, que se relacionou diretamente com os dois últimos.
Albers, Arp, Lohse, Vordemberg-Gildewart, Vantongerloo e Calder apontam para um "efeito
Bienal" sobre a arte brasileira. Uma pintura suprematista de Malevitch, em que o branco sobre
branco se revela como conhecimento do zero. Demonstra-se que neste século nossos artistas
passam a ter uma relação produtiva direta com a história da arte, que já não tratam como
história de estilos ou de imagens, mas têm a consciência do processo histórico de problemati-
zação das questões plásticas. Aqueles artistas europeus passam a ser referência e não simples
influência. No segundo espaço são apresentados monocromos brancos de vários artistas de
diversas partes do mundo, com obras produzidas num período de pouco mais de uma década,
mas cada um tratando de uma questão plástica específica: Robert Rauschenberg e Robert
Ryman (Estados Unidos), Hélio aiticica, Lygia Clark, Hércules Barsotti, Mira Schendel, Manabu
Mabe e Tomie ahtake (Brasil), Lucio Fontana (Argentina/ltália), Piero Manzoni (Itália), Kusama
Uapão), atero e Soto (Venezuela). A tese é de que a história da arte já não tem mais um centro
absoluto, mas se produz onde está o artista que atua com pertinência histórica. Finalmente, no
terceiro espaço, um conjunto de monocromos indica a intensa retomada de significados para
aquilo que parece ser pura cor: Yves Klein, Antonio Dias, Nigel Rolfe, Glenn ligon, Mona Hatoum
e Katie van Scherpenberg tratam do monocromo para discutir questões como diferença, desejo,
racismo, gênero.
Sempre se comeram almas no Brasil. No Século XVII, o padre Antonio Vieira raciocina por
paralelismos em seu "Sermão do Espírito Santo", às vésperas da partida de missionários para a
Amazônia, usando a visão de São Pedro, em oração em Joppe, ao ouvirtrês vezes "Surge, Petre,
occide e manduca" ("Eia, Pedro, matai e comei"). Pensou serem animais proibidos pela Lei, no
entanto, conclui Vieira: "Mas se aqueles animais significavam as nações dos gentios, e estas

26 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


nações queria Deus que São Pedro as ensinasse e convertesse, como lhe manda que as mate e as
coma? Por isso mesmo, porque o modo de converter feras em homens é matando-as e comendo-
as, e não há coisa mais parecida ao ensinare doutrinar, que o matare comer".9 Na perspectiva de
Vieira, os missionários são canibais. Buscavam resgatar os índios da "barbárie" extrema-o cani-
balismo-preparando-os para a empresa colonial, convertendo-os ao cristianismo, e em troca
ofereciam a eucaristia, como consumo do corpo de Cristo transubstanciado. O processo colonial
foi uma guerra de canibalismos, que Adriana Varejão apresenta em Proposta para uma catequese.
Ao descobrir um canibalismo real, a Europa viveu grande impacto. O ponto de partida his-
tórico destas salas são os relatos de Hans Staden, aprisionado por índios canibais, as obras de
Jean de Léry (que Lévi-Strauss chamou de breviário da etnografia) e Thevet na França Antártica,
a obra monumental de Theodore de Bry e os Ensaios de Michel de Montaigne. A partirda notícia
sobre os índios canibais brasileiros, Montaigne discute a relatividade dos valores entre os diversos
povos. Se o canibalismo horrorizava os franceses, Montaigne conclui que na Europa se praticavam
atrocidades ainda maiores. Reformula-se a perspectiva humanista renascentista.
O Brasil formula-se como uma sociedade plural formada por múltiplos encontros étnicos.
Albert Eckhout foi o primeiro anotadorda iconografia desse processo. Frans Post inventa a paisa-
gem primígena da América, analisada por Luis Pérez aramas. O Brasil é o matriarcado de Pin-
dorama, descreve Oswald de Andrade em seu "Manifesto antropófago". Exibem-se os quatro
retratos de mulheres pintados por Eckhout, que representam a complexidade étnica no Brasil:
índias tupi e tarairiu (Tupi), uma africana e uma mameluca. Esse processo de encontro entre
culturas está na base das formulações modernistas sobre a identidade do Brasil, enquanto socie-
dade formada pelos aportes, tramas e encontros entre europeus, nativos e africanos da diáspo-
ra da escravidão. Implica compreender que entre eles havia um grupo com a prática simbólica
do canibalismo de apropriação das forças do Outro. Numa paisagem inóspita, a índia tarai riu é
representada com pedaços de um corpo humano, índice de seu canibalismo. As pinturas de
Eckhout atuam em duplo contexto. Tratam da prática concreta do canibalismo e indicam a for-
mação étnica do país na base das formulações da identidade nacional complexa. Com curadoria
de Jean-François Chougnet e Ana Maria Belluzzo e consultoria de María Concepción García Sáiz,
esta sala propõe um percurso no projeto europeu de produzir imagens alegóricas dos continentes
como territorialização política da diferença, em que a América se distinguiria pelo canibalismo.
A Europa introduz técnicas e gêneros artísticos em suas colônias onde a apresentação dos
índios, mestiços e mulatos se tornam sujeitos da produção da arte. Esses pintores não represen-
tavam a América como lugardo canibalismo, atuando sob um interdito, como no caso deJoaquim
Teófilo deJesus na Bahia. Internalizavam uma noção de canibalismo como barbárie e buscavam
ocultar isso em sua origem. No México setecentista se cria um gênero, as pinturas de castas,
que demonstravam um sistema de classificação baseado numa escala idealizada de composição
étnica. São séries de quadros, em que cada um documenta um casal e um filho e se indica, por
exemplo, que de espanhol e índio se produz mestiço, de espanhol e mestiça se produz castiço, e
assim sucessivamente. A arte torna-se uma espécie de território de individualização, como para
o Aleijadinho, ou ainda as relações entre a devoção ao Cristo atado à coluna e o escravo atado
ao pelourinho. Entre as populações nativas de Potos; ou Cuzco nos Andes, os atributos dos san-
tos são "canibalizados". A Virgem é apresentada como a noiva do Solou na forma de uma mon-
tanha sagrada. Essa repaganização de uma entidade cristã significa, portanto, um gesto de
resistência cultural e de negociação simbólica.
O Século XIX vê se expandir o processo de independência das grandes colônias européias
na América. A curadoria dessa sala parte da reunião de canibalismos da mitologia (Gustave

27 Introdução geral Paulo Herkenhoff


Moreau), canibalismo eventual entre europeus (Géricault) e canibalismo pelo outro. Mesmo se
o canibalismo real na América já não causasse o mesmo impacto, Goya representa-o entre os
iroqueses. Régis Michel direciona a mostra para as questões de totem e tabu, a transgressão e
devoração de filhos pelos pais e vice-versa. Amplia o espectro para incluir Desprez, Füseli, Blake
ou Munch. Sua análise indica a geração das bases da teoria psicanalítica de Freud. A arte euro-
péia retoma a literatura de Dante com a figura de Ugolino, o pai que devora seus filhos. O tema,
inscrito por Rodin na Porta do Inferno, foi trabalhado por artistas como Carpeaux e Géricault. Daí
ressoam as teorias do "Manifesto antropófago". Na perspectiva totêmica, é a sociedade que
devorará seus filhos. Uma obra-chave é a pintura Ajangada da Medusa, em que Géricault apre-
senta náufragos que, à deriva, alimentam-se dos que morrem. A pintura surgiu como gesto pela
abolição da escravidão na França, pois o artista apresenta um negro como sujeito social, o indiví-
duo que salva o grupo, acenando para outro navio. Introduzimos na mostra a pintura Tiradentes,
de Pedro Américo. O pintor brasileiro recorreu à obra de Géricault (Estudos anatômicos e Cabeças cor-
tadas) para representar o corpo esquartejado de Tiradentes. A operação de Tiradentes é deslocar
a idéia política, conotar a escravidão ao canibalismo e transferir a metáfora para o colonialismo.
A independência e a abolição são lutas libertárias nas sociedades que devoram seus cidadãos.
O "Manifesto antropófago" anuncia a dúvida do Brasil: "Tupy, ar nottupy that is the question".
Vira um símbolo do Brasil. A ação múltipla de Oswald de Andrade contamina literatura, teatro
e artes plásticas. São conhecidos seus antecedentes dadaístas, sobretudo Picabia e sua revista
Cannibale, mas Benedito Nunes discutiu a amplitude de Oswald: "Abriu-se, de Nietzsche a Freud,
o caminho que fez do canibalismo o digno de uma síndrome ancestral, ou, para usarmos a lin-
guagem de Oswald, uma semáfora da condição humana, fincada no delicado intercruzamento
da Natureza com a Cultura" .10 Necessitamos introduzir, mesmo sucintamente, o inventor da
antropofagia, tarefa entregue a Pedro Corrêa do lago. Da obra de Oswald, José Celso Martinez
retira O rei da vela para fundarseu teatro antropofágico, com a participação de Hélio Eichbauer na
montagem da peça pelo Teatro Oficina. O teatro, dizia Antonin Artaud, deveria propiciar sonhos
ao espectador "no qual [... ] suas fantasias, seu senso utópico da vida e das coisas, até mesmo
seu canibalismo jorram a um nível que não é falso e ilusório, mas interno".11 O cinema antro-
pofágico de Glauber Rocha e outros teve curadoria de Catherine David.
Mario Carelli e Walnice Nogueira Gaivão propõem-se a buscar o diferencial da cultura do
Brasil, cuja literatura não mais seria o transplante de correntes estéticas 12 • O modernismo no
Brasil recupera o passado como possibilidade de projetar-se para o futuro. Diferentemente do
futurismo de Marinetti, porque para criar uma espécie de modernidade própria, a cultura brasi-
leira redimensionou, e não recusou, a relação com a tradição e o passado.
lacan admite buscar algo que é materializado com o campo elaborado por Claude lévi-
Strauss como Pensamento Selvagem. "Antes de qualquer experiência, [... ] antes mesmo que se
inscrevam as experiências coletivas que só são relacionáveis com as necessidades sociais, algo
organiza esse campo, nele inscrevendo as linhas de força iniciais", função que lévi-Strauss nos
mostra ser a verdade totêmica, com sua aparência--a função classificatória primária 13 . lévi-
Strauss viveu momento decisivo no Brasil, ensinou na Universidade de São Paulo. Sua antropo-
logia, já se disse, lida com estados de transição conectados por um fio contínuo de instâncias:
o sacrifício asteca, a tortura iroquesa, a caça à cabeçajivaro e o canibalismo tupinambá, cuja
história se deve a Florestan Fernandes.
A Antropofagia encontra no dadaísmo um precedente imediato e em Cannibale de Picabia
a aparente apropriação pela Revista de Antropofagia. A sala sobre dadaísmo e surrealismo, com
curadoria de Dawn Ades e Didier Ottinger, discute Picabia, DaH, Ernst, Masson, e idéias de

28 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Bataille sobre canibalismo. O repertório é basicamente documental, revistas e desenhos, além
de evidenciar a presença desses artistas nos museus brasileiros. O dadá e o surrealismo foram
movimentos que mobilizaram a noção de vanguarda e seu impacto sobre a sociedade. Essa
noção de vanguarda trepidante, próxima do futurismo, informa sobre as práticas sociais do
modernismo brasileiro como a Semana de Arte Moderna. Ades aponta dados de dadá sobre
agressividade, relações com a vida (e não a arte), e os precedentes literários em Jarry e Swift,
para os quais o canibalismo seria um fruto irônico da "civilização". Um mal-estar europeu que
a Antropofagia celebra como alegria e felicidade.
O primeiro interesse na personalidade de Picabia permite confrontarCannibale com a Reuista
de Antropofagia. Oswald conheceu Cannibale. Seu "plágio" estaria na mesma proporção daquele
de que são acusadas as pinturas mecânicas de Picabia, saídas a imagens de revistas de enge-
nharia. A relação Reuista de Antropofagia versus Cannibale confirma a capacidade do modernismo
brasileiro de incorporar e transformar idéias em pensamento próprio.
Ottinger explora ironicamente o canibalismo dietário, como gula alimentada por Sade,
Lautréamont, Bataille e Caillois e calcada numa voracidade entomológica. O episódio da orelha
de van Gogh foi visto por Bataille como "sacrifício", conectando os "massacres" Masson ao
artista holandês. O amor guloso da fêmea louva-a-deus de Masson ressurge na fome da aranha
de Maria Martins e Louise Bourgeois. Murilo Mendes diz que Max Ernst "descende de Rimbaud,
pela criação de uma atmosfera mágica, o confronto de elementos díspares, a violência do corte
do poema ou do quadro, a paixão do enigma".14
Dawn Ades explora o vasto repertório de imagens de canibalismos por Salvador Dalí, resu-
mido em suas ilustrações para os Cantos de Maldoror, de Lautréamont. Havia o desejo de devorar
Gala. Como os surrealistas, Dalí explorou o canibalismo enquanto metáfora de guerra. A figura
do pai autoritário se desloca para Guilherme Tell. Um dos fatos biográficos de Dalí era o grande
peso psicológico, na estrutura patriarcal, de ter recebido o mesmo nome de seu irmão que havia
morrido, tratado na pintura Man with an unhealthy complexion listening to the sound ofthe sea [Homem
com aspecto doentio ouvindo o barulho do mar] (1929). Jennifer Mundy complementa a dis-
cussão do itinerário canibal de Dai L
A carga psicológica do surrealismo e a exploração do inconsciente remetem ao Totem e tabu
de Freud. Oswald de Andrade, transgressor, proclamaria a necessidade de transformar o tabu
em totem. O canibalismo, na articulação de psicanálise, antropologia e filosofia, primitivismo
e vanguarda, é trabalhado por Bataille e Caillois, pelos artistas surrealistas, enquanto no Brasil
caracteriza a complexa estratégia vanguardista da Antropofagia. Freud é hoje uma imagem de
chocolate, constru ída pela fotografia de Vil< Muniz-oferecida à devoração antropofágica ou ao
vômito revisionista.
A Bienal recebe o apoio da Fondation Maeght de Saint Paul de Vence para apresentar
Alberto Giacometti com um conjunto de esculturas e gravuras. A esperança de uma obra nova,
na base da curadoria de Jean-Louis Prat, seria enfrentar a dificuldade do ser e do impossível
encontro com outro. Embora sejam exibidas peças do período surrealista, Giacometti será apre-
sentado com obras do período de maturidade, de confronto mais absoluto entre matéria e car-
nalidade. Já a Femme-cuiller [Mulher-colher] se erige corno um totem. Indica o interesse de
Giacometti, à época, pela pureza formal dos artefatos da cultura material dos povos africanos,
como nas colheres da sociedade Dan da Costa do Marfim. Escu Ipir seria então, para Giacometti,
reduziro homem à sua carnalidade essencial, ou àquela essência carnal que as coisas requerem
para sua presença, como analisa o filósofo Merleau-Ponty, que ainda fala de uma "textura imagi-
nária do real". Giacometti reduz o indivíduo a uma condição física essencial: a verticalidade, ou

29 Introdução geral Paulo Herkenhoff


o prumo como consciência da gravidade, e a massa como corporeidade. Esse corpo mínimo não
é uma descarnação, mas a busca extrema onde signo de presença e economia absoluta se con-
fundem. Giacometti opera uma espécie de economia fenomenológica. Alain Cuefffala de seu
endocanibalismo, porque é eqüidistante da experiência literal e da especulação metafórica.
Michelleiris celebrou sua escultura com "iguarias de pedra, comidas de bronze maravilhosa-
mente vivas". Uma obra de José Resende promove o diálogo da escultura contemporânea
brasileira com Giacometti.
René Magritte é singularem sua capacidade de dialogarcom o espectador justamente por
aquilo que poderia afastá-lo do público: o estranhamento. Sua pintura fascina ao desafiare cani-
balizar a lógica do olhar e operar sobre as fantasias mentais, superando os limites da racionali-
dade. Algumas obras tratam das metáforas políticas e psicológicas de devoração. Em Magritte, as
palavras negam seu significado e se chocam com as figuras a que erroneamente pareciam cor-
responder. Didier Ottinger com a obra de Magritte propõe questões epistemológicas e a cola-
gem tem parte com o canibalismo, tendendo a fundir os registros formais e semânticos mais
heterogêneos. Nossa mostra conta com o apoio dos Musées Royaux des Beaux-Arts da Bélgica
no ano de centenário do artista.
Matta aparta vitalidade ao surrealismo, que se esgotava pela banalização de seus jogos
visuais. Justo Pastor Mellado, cu radar de Matta, trata da morfologia da oralidade e sua relações
com a geografia e a sociedade do Chile. "Quando pinto uma tela, pinto à minha volta; tentei
agir como se estivesse situado no centro do cubo e do quadro, em lugarde ser umajanela diante
de mim, eram os seis lados de um cubo", diz Matta no catálogo Lam, Matta, Penalba-Totems et
tabous (Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, 1968). Em sua pintura, o cubo, poderíamos
dizer, é o estômago do mundo. Pintar é digerir. A obra de Matta se marca pela gestualidade
aparentemente brutal e selvagem, testemunho da capacidade do indivíduo em lidarcom os fan-
tasmas do inconsciente. Seu discurso visual é jorro de imagens, gozo, em que a paisagem mo-
numental do Chile tomaria caráterde escritura da fantasmática. Paisagens bizarras, máquinas
interplanetárias e indivíduos que parecem aterrissar de outras regiões galáxicas-tudo está
mais próximo do universo contemporâneo das devorações do homem pela tecnologia e dos indi-
víduos por meio do desejo.
Para a curadora Mari Carmen Ramírez, David Siqueiros é um dos três grandes formulado-
res de um projeto de vanguarda para a América Latina, ao lado de Torres-García e Oswald de
Andrade. Sua teoria da arte envolvia a valorização da cultura nacional, das civilizações nativas e
das conquistas tecnológicas. Em sua obra já não há uma vítima da apropriação. Siqueiros se
apropriou do cinema de Eisenstein, que se marca pela arte mexicana. Sua obra realizada na
prisão transgride os cânones da pintura. Filiado à ideologia marxista, Siqueiros oferece exemplos
da idéia de canibalismo como metáfora da exploração econômica da mais-valia, a diferença que
o capital obtém sobre o trabalho, uma espécie de expropriação voraz da energia do outro. A tela
A barca do fascismo, impregnada de política, remete à Ajangada da Medusa, de Géricault, uma
arte não desvinculada das lutas sociais de seu tempo.
Francis Bacon é pintor da condição humana. É daqueles pintores que, como diria Valéry,
"trazem seu corpo" à pintura. A figura humana emerge como conversão da materialidade da
pintura em fenomenologia da carnalidade e hipótese extrema do figurai, conforme analisa
Deleuze. Seríamos também pintura. Bacon captura os limites físicos do corpo humano, a reali-
dade finita da carne, a violência dos sentidos e da fusão dos corpos. A curadora Dawn Ades dis-
cute os modos antropofágicos de Bacon (as apropriações de Eisenstein, Muybridge, Velázquez,
Manet e van Gogh, e de imagens banais), sua relação com o canibalismo via Elliot.

30 XXIV Bienal Núcleo Histórico Antropofagia e Histórias de Canibalismos


A pauta CoBrA, sob curadoria de Per Hovdenakk, conflui para o canibalismo. O universo é
de mito, máscaras, totemismo. A transgressão surgiu na ruptura com o surrealismo e a voraci-
dade em imagens de oralidade agressiva. Fragmentos do corpo juntam-se ao vocabulário de
devoração. Para Alechinsky, um apetite pela cor vibrante é próprio do olhar nórdico. A superfície
de sua pintura Bombardement [Bombardeio] é carne viva, como fenomenologia da matéria
enquanto corporeidade dolorida. Já a mulheré idealizada no desejo. Moment érotique [Momento
erótico], de Constant, é delícia canibal. As apropriações deJorn atingem o corpo de outra obra de
autor anônimo, violando-a com sua pintura. Sua versão de Ajangada da Medusa enfoca o pessi-
mismo político de seu tempo e a ameaça atômica. Appel afirma que "nós, homens de hoje,
somos bárbaros aperfeiçoados". 1 5
A obra de Gerhard Richter e Sigmar Polke propiciaria discutir o processo com que se cons-
trói a dissolução do autore o estatuto e os limites da pintura. Nosso curadoré Veit GÔrner. Tudo
como se a pintura pudesse ser salva pela proclamação de um anti-heroísmo alimentado por
processos de apropriação, devoração de imagens ou sua migração entre pintura e fotografia. A
pintura se confronta com seu próprio esgotamento, a iconoclastia, a devoração, a saturação dos
símbolos. Richter atua sobre a ausência de estilos. Como Oswald de Andrade, Richter se preo-
cupa com o consumo diluidorde idéias. Seus 48 Portréits [48 retratos] tratam da busca pelo pai.
A iconoclastia de Polke recorre a um largo espectro de imagens, como no caso de Die Alten
[As velhas] baseada em Goya. Suas obras sobre a Revolução Francesa, seu heroísmo e tragédia
permitem a remissão ao espírito de Ajangada da Medusa , de Géricault, e à guerra vista como
canibalismo porGoya. Na pintura NegatiuwertelNegatiue ualues [Valores negativos] (1982), em que
Sigmar Polke emprega verme lho Saturno, pigmento venenoso. Um processo de autoconsumo,
como emergência das pulsões canibais.
A obra de Guillermo I<uitca pertence à ordem de arquiteturas canibais, de Bormazo e Pira-
nesi. Estádios, teatros, hospitais são plantas inabitadas. Os seres humanos aí parecem con-
sumidos pela lógica de regulação do lugar do corpo no espaço social e por uma indicação do
panóptico. O curadoréJorge Helft. O nome da cidade traz o índice do forno crematório, porque
a arquitetura é monumento da barbárie. Camas, lugaronde o que fere e flui como fantasmática
é aquilo que o desejo instaura como um canibalismo.
"O amor é im potente, ai nda q ue seja recíproco, porq ue ele ignora q ue é apenas o desejo de
ser Um, o que nos conduz ao impossível de estabelecer a relação dos . .. A relação dos quem?-dois
sexos", escreve Lacan 16 • Nosso projeto foi reunir algumas artistas que contribuem de forma sin-
gular para a relação entre arte e desejo: Maria Martins, Lygia Clark e Louise Bourgeois. São artistas
cujas obras são operações fantasmáticas. A fusão amorosa expõe, por exemplo, sua força voraz
e precariedade em O impossíuel, de Maria Martins, ou em Couples [Casais], de Bourgeois, enquanto
Clark freqüentemente proporá esta experiência. Um pequeno objeto Aranha, de Maria (1946), a
grande escultura-instalação Aranha, de Louise Bourgeois, e o enredamento existencial proposto
em obras como Estrutura uiua (1969), Baba antropofágica (1973) e Rede de elástico (1974), de Lygia
Clark propiciam perspectivas singulares do feminino contra o que poderia ser um mero tema.
Maria Martins dedicou-se a temas como fertilidade e oralidade. Nos anos 40, lendas ama-
zônicas e conotações surrealistas marcam sua produção. Cipós da selva enredam como as ser-
pentes, como Laocoonte. Indicam também suas afinidades com a obra de Lipchitz. Clement
Greenberg comentou a exposição de Maria Martins em Nova York em 1944, dizendo que suas
esculturas "talvez fossem as últimas manifestações completamente vivas de escultura acadêmi-
ca" e apontando seu impulso barroco, e não moderno, dado pelo décor colon ial latino e pela
luxúriance tropical 17 .

31 Introdução geral Paulo Herkenhoff


"Acho que virei até antropófaga", escreveu Lygia Clark a Hélio Oiticica, "tenho vontade de
comer todo mundo que amo" .18 Clark põe a Antropofagia na perspectiva psicanalítica do cani-
balismo. Como o "Manifesto antropófago" ("Contra a realidade social, vestida e opressora,
cadastrada por Freud"), ela também rejeita Freud: "Recusamos a idéia freudiana do homem
condicionado pelo passado inconsciente".19 Totem e tabu, de Freud é o marco na discussão psi-
canalítica do canibalismo, mas foi recusado também pela antropologia 20 .
No início dos anos 70, Lygia Clark leciona na Sorbonne, onde desenvolve suas propostas
poéticas de vivências, trabalhando com jovens, "que são preparados desde a nostalgia do corpo
[... ] até a reconstrução do mesmo para acabar no que chamo de corpo coletivo, baba antropo-
fágica ou canibalismo". 21 No período, Clark fazia psicanálise com Pierre Fédida, que no outono
de 1972 publica "Le cannibalisme mélancholique" no número "Destins du cannibalisme" da
Nouuelle Reuue de Psychanalyse 22. Em 1973 Clark criou duas obras vinculadas ao pensamento de
Fédida. Canibalismo, em que "o grupo come de olhos vendados do ventre de um jovem deitado".23
O uso do termo "canibalismo" é raro na cultura brasileira, que utiliza amplamente "antropofa-
gia" (tida como devoração do ser humano-corpo e entidade moral). Clark diz que seu "trabalho
é a minha própria fantasmática que dou ao outro, propondo que eles a limpem e a enriqueçam
com as suas próprias fantasmáticas: então é uma baba antropofágica que vomito, que é engoli-
da por eles e somadas às fantasmáticas deles vomitadas outras vez [... ]. Eis aí o que chamo de
cultura viva".24 Fédida não usou o termo antropofagia em seu artigo. "O canibalismo é a cons-
ciência da segunda boca, expressão antropofágica do ser que me transforma no grande ventre
perdido invertendo a posição e a mãe é comida para preenchê-lo",25 afirma Clark, conjugando
dois exercícios antropofágicos: a apropriação de idéias do Outro (no caso, seu psicanalista) con-
forme a tradição da Antropofagia brasileira, além de tratar diretamente da fantasmática canibal.
A boca mama, suga, engole, morde, devora, vomita, baba. A oralidade está para além do
desenvolvimento da libido pelos prazeres de mamar e morder. No corpus da obra de Clark, a
Baba antropofágica vincula-se a traumas de infância que emergem em sonho. "A gosma que
saía da boca perdendo substância vital, sonho que há pouco tempo reintegrei reengolindo a
mesma, o túnel me emparedando, me separando morta-viva."26 A voracidade canibal rea-
parece quando à Morte do plano Clark contrapôs sua devoração: "Esse retângulo em pedaços,
nós o engolimos, o absorvemos em nós mesmos".27 Observando ainda que "a tranqüila fase
oral-erótica de mamardesemboca sobre uma fase canibálica. Eu penso que o canibalismo não
está somente a serviço do instinto de conservação, mas que os dentes são ao mesmo tempo as
armas que servem às tendências libidinosas, instrumentos dos quais ajude a criança a penetrar
o corpo da mãe. [. .. ] No primeiro cantata com o seio, a criança procura penetrar à procura do
ventre, abrigo poético perdido; não podendo penetrar, introjeta-o, começando a fase canibálica.
Ser devorada ou devorar é o processo de incorporação mútua", diz em "Sobre o canibalismo",
adicionando que "o ventre é o abrigo poético de toda a matéria, envolve o feto e a forma"-o
que nos remete à obra A casa é o corpo (1968), com suas áreas de penetração, ovulação, germi-
nação e expulsão,
Louise Bourgeois apresenta diversas possibilidades de explorara tema do canibalismo. As
aranhas são, elas próprias, animais canibais, porque depois da cópula as fêmeas devoram os
machos. The destruction ofthe father apresenta uma ameaçadora boca; que evoca uma vinculação
mais antiga com a psicanálise de Freud. Estamos diante de um ato transgressivo frente à autori-
dade e à figura do pai, tendo como base teórica a obra Totem e tabu de Freud, como analisa Robert
Storr. Outra dimensão do canibalismo na obra de Louise Bourgeois são as relações com o obje-
to do desejo, com as fantasias canibais suscitadas na fusão amorosa. Surgem aí os fantasmas

32 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


de devoração do ser desejado como também estratégia para não perdê-lo na perspectiva do
canibalismo melancólico de Fédida. Essa questão permeia a obra de Louise Bourgeois, inclusive
na recente série de esculturas em tecido, de grande força expressiva e presença, como Couple "
[Casal II], um casal que se abraça. A fusão é intensa, mesmo não havendo a cabeça dos amantes.
O abraço selado por uma prótese denota os angustiantes limites do encontro do Um com o Outro.
Caos e contenção é a abordagem da obra de Eva Hesse e Robert Smithson por Mary Jane
Jacob, que os confronta com a produção de Lygia Clark e Hélio Oiticica. São quatro artistas que
compreenderam a arte como campo experimental de idéias. Não havia fórmulas e formas que se
sobrepusessem à experiência. Os materiais excluídos da história da arte, os mais banais foram
incorporados à constituição da obra por suas possibilidades de materializar idéias, situações e
processos. O gesto, simples ou grandioso, não vale por sua expressividade, mas pelo caráter de
constituição de um pensamento plástico. Lugare nãolugar, na obra de Smithson, criam a dialé-
tica entre centro e periferia. O conjunto propicia discutir relações entre entropia e antropofagia,
dispersão e reconversão de energia. Raramente visto no Brasil 28 , Hesse, no entanto, tem grande
peso sobre a escultura brasileira das últimas décadas. A cultura brasileira do século XX marca-
se pelo discurso e subjetividade da mulher. A calculada relação dos artistas brasileiros recentes
com a obra dos norte-americanos não oculta outros, como Mira Schendel ou Clark, que pro-
puseram obras e experiências que poderiam ser um diálogo de grandezas na convivência com
Hesse e Smithson .
A voracidade com que transita em todos os meios faz de Bruce Nauman um dos primeiros
grandes artistas multimídia. O curador Robert Storr observa como Nauman rastreia as novas
tecnologias sob um tecido filosófico, de Skinner a Wittgenstein. Sua obra desenvolve-se por meio
de vídeos, performances, instalações, desenhos e esculturas que tratam de questões ligadas ao
corpo e a situações enfrentadas pelo indivíduo no mundo contemporâneo e enfrentar a "natureza
humana". Sua obra marca-se pelo fato de incorporar conteúdos muito densos e, no entanto,
constituir-se em discurso direto. Nauman recoloca em novas bases algumas questões da arte de
nossa época ou rediscute certas questões clássicas, como a imagem, o espaço e o tempo, ou o
sublime e o banal, a violência e o desejo. Em suma, Nauman explora a condição humana real,
desde o sexo até a premente necessidade que temos de nos enunciarmos. Ao aliar rigor con-
ceituai ao impacto visual, a sutileza de seu humor e poesia seduz o público, criando uma sen-
sação simultânea de estranhamento e identificação. A obra The South American triangle [Triângulo
sul-americano] levanta a irracionalidade da tortura. Sua instalação Anthro fSocio indica que esta
Bienal traz cinco "etnografias" : Jean de Léry, cujo livro Lévi-Strauss denominou "breviário da
etnografia", o "Manifesto antropófago", "Etnografia", de Siqueiros, e a figura de Lévi-Strauss,
entre outros . "Ajude-me/Machuque-me, Sociologia. Alimente-me/Coma-me, Antropologia",
clama uma vez no vazio.
Ao discutir canibalismo, tomou-se a cautela de delimitar o campo, evitando deliberada-
mente possibilidades que acentuassem excessivamente o corpo fragmentado, amputações e
outras aflições físicas presente na body art e em alguns acionistas austríacos. Uma pulsão auto-
canibal estaria subjacente a uma produção masoquista. Nas últimas décadas, a arte sofreu trans-
formações que também mudaram o papel do artista, o estatuto do corpo e do discurso verbal.
Oppenheim, que desenvolve sua obra a partir dos anos 60, compreende que nesse processo as
performances ou a body art, ao empregarem o corpo como campo da própria linguagem artística,
conduziam a situações de amputação e outras formas de aflição física auto-imputadas pelos
próprios artistas. Para evitar posições masoquistas, Oppenheim desenvolve atuações po r meio
de seu corpo recorrendo ao cinema, à fotografia ou à escultura, como auto-retratos vivos, cria-

33 Introdução geral Pau lo Herkenhoff


dos como simulacro para intensa atuação. Éo caso da instalação An attempt to raise hell [Tentativa
de criar o inferno] (1974). Outro artista dos Estados Unidos, Tony Ourslerdesenvolveu uma pro-
dução em que também cria a presença ativa e atuante de indivíduos a partirde objetos "humani-
zados". Alguns são espécies de "bonecas" e outros "trouxas" sobre as quais se projetam
imagens animadas de pessoas que falam, que dizem algo. A curadora Daniela Bousso trabalha
pontos de contato entre esses dois artistas de diferentes gerações; metáfora e nonsense, ati-
tudes místicas, corpo, repetição, projeção, para buscar um nexo por meio da teatralidade que
remete ao teatro de Beckett.
Em' 1580, Michel de Montaigne introduz uma radical posição de relatividade cultural no in-
teriordo pensamento eurocêntrico, ao publicaros primeiros volumes de seus Ensaios. Aí escreveu
que "não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos: e, na verdade, cada
qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos jul-
gar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do
país em que vivemos. A essa gente chamamos selvagens, como denominamos selvagens os fru-
tos que a natureza produz sem intervenção do homem".29 O período histórico que vivemos
indaga sobre o papel da diferença das culturas, identidades e subjetividades. Esperemos que a
antropofagia e histórias de canibalismos, com sua ambivalência, seu não maniqueísmo, seus
aspectos construtivos e desconstrutivos, possam se constituir num momento de reflexão epis-
temológica sobre essa perplexidade. Paulo Herkenhoff

1. Lacan, Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 17. "Review of a group exhibition at the Art ofThis Century
M. D. Magno (versão brasileira), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Gallery, and ofMaria Martins and Luis Quintanilha" (1944),
1990, 4a. ed., p.182. Perceptions andjudgements 1939-1940, Chicago: The University
2. Montaigne, Ensaios, São Paulo: Abril Cultural, 1980, tradu- ofChicago Press, 1986, vaI. I, p.210.
ção brasileira de Sérgio Milliet, Livro I, capítulo XXXI. 18. Carta a Hélio Oiticica em 6.2.1964, Rio de Janeiro: UFRJ,
3. Mario Carelli e Walnice Nogueira Gaivão, Le roman brésilien. 1996, P.29, obra doravante citada como "Cartas".
Une littérature anthropophage au XXe siec/e, Paris: Preses Univer- 19. "NÓS RECUSAMOS" (1966), Lygia Clark, Rio de Janeiro:
sitáires de France, 1995, P.5. Fu narte, 1980, P.30; obra doravante citada como Fu narte.
4. Do autor, "Europa para almoço" (condensado), Poliester, 20. André Green, "Cannibalisme: réalité ou fantasme agi?"
n.8 (primavera de 1994). (p.38) e Jean Prouillon, "Manieres de table, manieres de lit,
5. Quando aplicado em função do seu sentido de conceito manieres de langage" (P.9-25), Nouuelle Reuue de Psychanalyse,
histórico da cu Itu ra brasilei ra, o su bstantivo Antropofagia será Paris: Gallimard, n.6, 1972. Se mesa, cama e linguagem se im-
iniciado por u ma letra maiúscula, ai nda que a Reuista de antro- bricam, a relação do pensamento freudiano com a antropolo-
pofagia de Oswald tivesse grafado diferentemente. gia recebeu a crítica por seus falaciosos raciocínios resu m idos
6. Stella Teixeira de Barros incluiu Volpi na mostra Apropriações às sociedades que vinculam as interdições de canibalismo e
antropofágicas, São Paulo, 1997. incesto.
7. Oiticica escreveu "Cor, tempo e estrutu ra", Jornal do Brasil, 21. Carta a Hélio Oiticica em 6.7.1974, Cartas, p.221-222.
Suplemento Dominical, 26.11.1960. 22. Paris: Gallimard, 1976, n. 6, P.123-127. Colaboram nesse
8. Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, p.106-109. número, que também publica o "Manifesto antropófago" de
9. Sermões; Padre Gonçalo Alves (compilação); Lisboa: Lello & Oswald de Andrade:Jean Pouillon, André Green, Marcel Deti-
Irmão-Ed., 1950, vaI. 5, P.430· enne, entre outros.
10. Benedito Nunes, Oswald canibal, São Paulo: Perspectiva, 23. Carta em 6.7.1974, Cartas, p.223. Meret Oppenheim e
1979, P·13· Daniel Spoerri organizaram "banquetes canibais".
11. Susan Sontag ed., and Helen Weaver (trad.), Selected writings 24· Carta em 6.11.1974, Cartas, P.249.
of Antonin Artaud, Nova York: Farrar, Strauss and Giroux, 1976, 25. "Sobre o canibalismo" (texto datilografado), 1 folha. Ar-
P·244- 245· quivo Lygia Clark, Centro de Documentação do Museu de Arte
12. Op. cito nota 3 supra, P.5. Moderna do Rio de Janeiro.
13. Op. cito nota 1 supra, P.25. 26. Carta de Lygia Clark a Oiticica em 17.5.1971, Cartas, p.210.
14- "Max Ernst", Transístor, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 27. Lygia Clark, Morte do plano (1960), Funarte, P.13.
P·17 8- 179· 28. A obra gráfica de Hesse foi exposta na IX Mostra da Gra-
15. I<arel Appel40 ans de peinture, scultpture & dessin, Paris: Galilée, vura em Curitiba em 1992.
1987, P.150-151. Mutatis mutandis, devemos também notar 29. Op. cito nota 2 supra, livro I, capítulo XXXI, p.l0l.
uma relação com o programa ideológico do futurismo.
16. Livro 20, Seminário, mais ainda, M. D. Magno (versão brasilei-
ra), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, 2a. edição, P.14.

34 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Paulo Herkenhoff

General introduction

What is my desire worth to you? An eternal question posed in the lovers' dialogue.1 We were capable
of far worse atracities 2 -What ghost is this that appears in those moments of desire's greatest
plenitude? What metaphor is this that symbolizes a terrible fear of otherness?
This text reveals the curatorial parameters adopted in the constitution of the Núcleo Histó-
rico [Historical Nucleus] ofthe XXIV Bienal de São Paulo. We did not endeavor to develop a total-
izing ar triumphantvision ofthe issue of antropofagia. The curatorship ofthe XXIV Bienal de São
Paulo took on as a starting point the "thickness 3 ofthe gaze," following Jean-François Lyotard's
Discours,figure, as an operational concept displaced towards the idea of density. Thickness should
not merely be present in art (its portrayal as "theme" would not be as significant), in the work of
the curators, and above all, in the institution. The idea of a Núcleo Histórico indicates a corner-
stone that differs fram the tradition of"special exhibition raoms ." We have abandoned the ideas
of status ("special") ar territorialization ("exhibition raoms"), as we felt it necessary to define
our concrete historical debate, integrated by conceptual criteria effectively developed in terms of
ways of seeing in exhibition and texto
The XXIV Bienal positions itself vis-à-vis the discipline of art history. We understand fol-
lowing Giulio Carla Argan that contemporary history and criticism are not irretrievably linked
to one another, in which case there should not occur a split in the context ofthe Bienal. We also
recognize the multiplicity ofhistory's threads and that, in the case of art, the Euracentric stance
with its hegelian orientation, had created excluding parameters in the art enviranment. ln the
negotiation ofloans of works, our choice led to a debate with directors fram museums that
traditionally deny loans for thematic exhibitions, set against historical displays that add towards
new understanding. The curators fram the Tate, the Pompidou ar fram MaMA were already
familiar with the notion of antropofagia and were thus able to understand its historical sense
within the perspective of the cultural formation ofBrazil more easily. A conceptual breadth, to
accept an other history of art, was the stance of the Louvre, the Orsay, the Besançon and the
Prado. Many understood that "differential" ofBrazilian culture, 4 others did noto

35 Introdução geral Pau lo Herkenh off


The Núcleo Histórico should depart from a non-Eurocentric visiono Which is the dense
moment of art history in Brazil? The concept of"thickness" determined answers: baroque, mod-
ernism, neoconcretism or the '60s/'70S. Modernism offered a challenging answer: antropofagia.
The movement that takes shape in São Paulo in 1928 with Tarsila do Amaral and Oswald de
Andrade spreads in time throughout Brazilian culture as a strategy of cultural emancipation. 5
Strangely, Brazil had never accomplished a large exhibition on antropofagia to discuss its cultural
plurality. Furthermore, antropofagia acknowledges precedents and parallels in the history of art. It
allows for a complex conceptual breadth for several fields ofknowledge declared in the "Mani-
festo antropófago" [Anthropophagite manifesto], such as history, anthropology, politics, phi-
losophy, religion, linguistics, psychoanalysi~. We were already aware that cannibalism granted
Montaigne pragmatic data and space for the development of arguments in his Essays so as to dis-
cuss the relativity ofhuman values. How could we conceive that the first philosophical debate
that took place in Brazil, in Antarctic France, dealt with is sues of cannibalism?
Paraphrasing Borges, the Bienal would cease to illustrate or mirrar dated discussions in order
to introduce a lens ofBrazilian culture as a guide to contemporary art and history. Antropofagia
is a relatively polemic concept for it not to be sanctioned as true. Nor to be fixed in images or
styles. A debate therefore arises with a conceptual issue already posited, with works of art that
allow for concrete discussions and with crystalline and differentiated curatorial projects. The
curatorship consisted in an intense process of reflection of the concepts as evidenced in the texts
and the exhibition.
The Bienal de São Paulo is an immense event executed throughout a year and a hal[ The
intense involvement of dozens of curators creates chronic difficulties in regard to the realization
oftheir "themes" through the works. Something tended to occur which was not manifested in
the biennials: multiplicity, disparity, the contradiction ofinterpretations, or even the opposition
or denial of the theme. Antropofagia as a concept of cultural strategy and its relations to canni-
balism, offered a dialogue model-the anthropophagic banquet-for interpretation. The move-
ment of gathering or stimulating interpretations, arriving at hundreds of concepts, conceptions,
acceptations, elements, aspects, etc. demonstrated the richness of the issue of antropofagia. We
encourage the emergence of its centrifugaI conceptual vastness as the arrangement of a thesaurus.
After this apparent dispersion, a centripetal movement of each curator was stimulated. Ironically,
the ambivalent and polemic antropofagia provided a transparent relationship of curatorshipl
workl public in each interpretation. To understand the vastness meant understanding that the
Núcleo Histórico would not constitute an encyclopedia of cannibalism nor that the Bienal would
exhaust the issue. Thus the option for trims, cutouts and examples upon a deliberate analysis of
ambivalence. We differentiate antropofagia-as a Brazilian cultural tradition 6-from cannibalism,
the symbolic practice, whether real or metaphoric, of devourment the other.
As a starting point, we demand of the curators the precise curatorial program of each exhi-
bition room, and we discuss the eventually necessary adjustments. The space dedicated to the XVI
to XVIII centuries is centered on Europe's confrontation with the discovery of a real cannibalism
in America and the introduction ofthe artistic genres in the colonial process ofthis continent. The
XIX century exhibition, on the other hand, deals with the presence of cannibalism in the terrible
ground ofthe western unconscious. Despite articulating a diagram ofthe Núcleo Histórico
exhibitions, due to spatial difficulties it does not correspond to the installation plano
A sufficiently wide concept-a breadth already to be found in its own genesis-after the
phase of its openness to multiple possibilities, the curatorial intention or strategy should be
defined in each. Each exhibition should constitute specific curatorial parameters so that each

36 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


may be distinguished from the others by a distinct character. As such, what is actually being is
exhibited are the curatorial approaches as a discourse of the inventive and poetic reading of art.
And above all, art itself as the mirror of the invention capability and of the reflection about myths
and symbolic practices, differences and language.
It was fundamental in this process to demand a cohesion of the text and the curatorial pro-
ject to the work. The works, or even some ofthe artists and the actual exhibitions, are present here
as direct or indirect arguments, or for the necessary crossing between two historical moments.
Superficial analysis fail to realize that antropofagia is a phenomenon of the breadth of the work
of art. Intrinsic to the dynamics of antropofagia is to redesign itself in response to challenges
and as a politicaI solution oflanguage. Every time it becomes theme or mere image it falls further
from its origino At the opposite pole may be found the "eccentric Eurocentrics": the reemergence
of eurocentrism, mistaken for the modern project and its rationality, is often stronger in Brazil
than in Europe. We avoid visual necrophagy, the pedestrian illustration of cannibal devourment.
We avoid the slaughter house and cannibalism of individual psychological deviation or of the
destitution resultant of disasters or hunger. Cannibalism is not a diet. It is always symbolic and
it is in this sense that it draws interest in this debate. The course taken relates to the issue of the
fragmented body and its relation to language.
If the idea of appropriation lies in the character of antropofagia , we planned to work with a
sole example of the appropriated image: Géricault's The raft of the Medusa . This painting was
appropriated byartists such as David Siqueiros, Asger Jorn, JeffWall, Thomas Struth. This squad
ofThe Medusa included many others, like Kippenberger or Steele and Goldie in New Zealand.
We chose a classical theme of cannibalism, Ugolino, and a pertinent example oftranscultural
appropriation: van Gogh and the Japanese woodcut. We chose examples that demanded a subtle
theoretical construction that went beyond thematic and iconological issues, such as dealing with
cultural autonomy, comparing entropy and antropofagia; reacting against autocannibalism;
defining a repertoire of psychoanalytic, art historic, philosophic, economic, ideological and lin-
guistic issues. Antropofagia occurs on diverse areas of culture, from literature to musico Further,
it is a dynamic concept capable of establishing a validity for our times. As a symbolic practice,
cannibalism implies understanding relations of otherness. It is a metaphor in philosophy and in
the reflection on violence. It encompasses the structuralization of societies, the birth oflanguage
or desire itself and the amorous fusion ofindividuals. This Núcleo Histórico ofthe Bienal means
that, for the first time, an exhibition directly integrates specific issues ofBrazilian culture orches-
trated in a discussion with western art that joins Aleijadinho and Goya, Volpi and van Gogh,
Lygia Clark and Eva Hesse in dialogue. ln European art we find an anthropopagic corpus that
extends from Goya to Géricault. Evidently, Freud's anthropology and psychoanalysis brought
considerable contributions. Europe lived myths-Saturn devouring his sons-and the perplexity
with the Other cannibal, a type of monstrification of the difference. Due to its complexity and
deadline, the Bienal de São Paulo, unlike Kassel is not the statement of one curato r, but a process
to articulate the views of a small army of curators. The decision not to include an analytical text
of the chief curatorship is justified in view of the fact that all exhibitions deserved important
texts. The only things that interest me are those which are not mine, I would say.
A bias ofthe Núcleo Histórico is to reflect on color and latitude in terms of a place relative
to art history and to perception, faced with subjacent issues of antropofagia and cannibalism. The
article "Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira" [On anthropophagic
reason: dialogue and difference in Brazilian culture] (1980) , by Haroldo de Campos , was funda-
mental for the understanding of the historical process of Brazilian culture, of the permanent

37 Introdução geral Paulo Herkenhoff


latency of anthropophagic conducts, since the XVII century with the poet Gregório de Mattos.
Antropofagia is a crucial strategy in the process of the constitution of an autonomous language
in a countrywith a peripheral economy. The exhibition "A cor no modernismo brasileiro" [Color
in Brazilian modernism] introduces the artistic fabric ofBrazil in that period through a synthetic
view of the color project of Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Oswaldo Goeldi, Lasar
SegaU, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti and Guignard. The tropics, excluded from the history
of art, develop a discourse with an individual "color" grain. Tarsila do Amaral's pau-brasil and
anthropophagic phases draw evidence in the effort exerted by the artists from the tropics to over-
come the mere condition of nature and exoticism, in a process of the development of color sig-
nification and the establishment of an individual tradition, that is, of a history of art. According
to Léger's lesson, Tarsila's local colo r is found in pau-brasil, followed by the "wild color," some-
times telluric, melancholic, silent, at others strident of Antropofagia. Alfredo Volpi constitutes
the bridge between modernism and contemporary ruptures, between Tarsila and Oiticica. Volpi
was not an "anthropophagic" avant la lettre 7 , but the realization ofthe project of cultural auton-
omy aspired to by modernist antropofagia. His pictorial wisdom is unique. The native color of the
farm houses, villages and suburbs is dissociated from the idea of"local color," as yet restricted
in Tarsila's "peasant"8 color, to acquire poetic autonomy as defined by Mário Pedrosa, Olívio
Tavares de Araújo, Rodrigo Naves and others. Through an intuitive erudition he employs color by
means ofprecise paintbrushes in the demarcation ofhis field, in paintings at times "geometric"
and at others "thematic." Our curatorial approach privileges color over themes. Aracy Amaral
and Sônia Salzstein are respectively the curators ofVolpi's and Tarsila's worl<:.
Hélio Oiticica is the twisting point ofthe formalist sense of color in Brazilian art. From the
static planes belonging to the period of the Grupo Frente to the dynamics of the Metaesquemas
[Metaschemes], color gains autonomy in the Monocromos [Monochromes] and neoconcrete paint-
ings, turning into real space with the Relevos espaciais [Spatial reliefs] and Bilateraís [BilateraIs],
becoming architecture ofplanes in the Núcleos [Nuclei] and its corporeality submits itselfto the
senses in the Bólídes, in a neoconcrete search to recover the subject. 9 For Oiticica, Tropícálía is "the
most anthropophagic work ofBrazilian art," enabling a "definitive overthrow of the universalist
culture among us, ofthe intellectuality that prevails over creativity."10 Oiticica's and Lygia Clark's
works introduce curatorial challenges since they summon the public's participation as a condi-
tion of the realization of art. ln this Bienal, their objects conceived for direct handling will be
subjected to sensorial experience. The bolid work Homenagem a Cara de Cavalo [Homage to Horse
Face] (I966) comprises a history of monochromes that would include Antonio Manuel's Fantas-
ma [Ghost], and Cildo Meireles' Desvío para o vermelho [Detour into red]. Meireles reintroduces
the notion of excess in the essential economy ofthe monochrome. Impregnação [Impregantion],
part ofDesvío para o vermelho, could apparently draw Meireles dose to Yves Klein's economy in
IKB. Meireles is viscerally interested in exposing monetary games in a juxtaposition between
exchange value and usage value, symbolic value and real value. ln this way the immense mono-
chrome takes on the character of devouring color functioning as a neutralizing strategy ofvalue
through excesso Saturation, accumulus, impregnation, chromatic unfolding, symbolization deter-
mine the indusion ofthis work in the Bienal. Despite the reference to Matisse's Red ateliê, we refer
to the artist's childhood memories. His father took him to see the body of a murdered politicaI
journalist, whose friends had taken his blood to write phrases on the wall recalling the heroism
ofhis ideas.
Two young artists ofthe contemporary Brazil segment, Beatriz Milhazes and Delson Uchoa,
fit in this trajectory. Milhazes fuses in rhapsody the chords and contrasts ofBrazilian color tra-

38 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


ditions (furniture decoratioil, chintz, Guignard's painting) as well as European and universal
references. However, the "peasant" color of the southeast does not suffice for Brazil. Uchoa
extracts luminosity and cultural stridency from the colo r ofthe Northeast. His paintings describe
movements of the "rói-rói,"11 a popular toy incorporated into his paintings. Unexpectedly,
Uchoa reminds us, as Oiticica, that his art is musico
Vincent van Gogh was the European artist chosen to discuss color and seasoned latitude
coincidently with the center of art history and its codes. The artist searches for a light outside
history, in his emotional pith or in other latitudes, to the South or in the Far East. Moving away
from anecdotal issues, the landscape was the most radical testimony ofhis such movements. His
trajectory is witnessed as a group oflandscapes, from those of compassion to those of despair.
His state of soul is his painting. ln the beginning, the landscape leans on the chiaro-scuros, on
the symbolic property oflight, as g sympathetic social pessimismo His art establishes a dialogue
with Millet. He gradually discovers the pIein air, impressionist painting and later the Japanese
woodcut. Whilst other artists take on the aestheticism of lines, figures , costumes, van Gogh
takes Japan for its more extreme estrangement towards the European view-the code of colors
and of the violent chromatic contrasts ofUkyio-e woodcut, in opposition to European art rules.
Thus, van Gogh carries forth a radical transcultural operation which is a characteristic index of
antropofa.gia. His anguish is self-consumption. His suicide realizes something we could classifY
as an autocannibal drive. Several notions of sacrifice unfold in this Bienal: the anthropophagic
banquet, the eucharist, suicide and the episode ofvan Gogh's ear (analyzed by Bataille), Masson's
mythologies, Bacon and Kuitca's painting, Tiradentes and Louise Bourgeois' The destruction ofthe
father. The complexity of creating a "van Gogh exhibition" at a Bienalled the chief curatorship to
outline the aim of the display, concentrated upon a main axis that would define its anthro-
pophagic aspects. The curatorship is carried out by Pieter Tjabbes.
The Venezuelan artist Armando Reverón returned from Paris to live in the forest, a space
defined by Hegel as outside history. Reverón went on to paint in a region in the vicinity of the
equatorial zone, creating white landscapes, oflight, and paintings of shadows, grey landscapes.
The shadows provide the relief of the world and allow us to encounter it. The white landscapes
are dry painting in a wild state, yet totally unrelated to the revelation of the sublime in the docile
materiality on the climatic phenomenon ofice in Caspar David Friedrich's painting, ofTurner's
mists or the snow in Courbet and the impressionists. The equatorial zone is a place of percep-
tion and Reverón paints the sky blue, the forest luxuriant as ifhe were gazing at the Sun. Light is
open and explodes, devouring colors and reducing the spectrum to white. The curator Luis Pérez
Oramas reflects upon these processes of cannibalization through light.
The Arctic region, at a Bienal which seeks to articulate its segments and works, is present
in "Roteiros ... " with General ldea's Fin-de-siecle, a landscape installation with polystyrene ice and
stuffed sea lions, and in Representações Nacionais [National Representations] with a minimalist
landscape by Olafur Eliasson, comprised of a blade of real ice that strives to exist under tropical
temperature.
The Bienal's Núcleo Histórico presents one of the absolute extremes of modernity in the
visual field-the monochromes. This exhibition is divided into three spaces. ln the first, a group
of works is displayed that are referential to art history in Latin America: Mondrian, Van Doesburg
and Torres-García, who related closely to the former twO . Albers, Arp, Lohse, Vordemberg-
Gildewart, Vantongerloo and Calder point to a "Bienal effect" on Brazilian art. A suprematist
painting by Malevitch, in which white on white reveals itself as knowledge of zero. ln this century
our artists carne to have a direct productive relationship with art history, one they no longer

39 Introdução geral Paulo Herkenhoff


handle as a history of styles or of images, but which has the consciousness of the historical
process of questioning plastic issues. Those European artists thus become points of reference as
opposed to mere influence. ln the second space white monochromes are exhibited, by several
artists from various parts of the world. They participate with works created throughout a period
oflittle over a decade although each deals with a specific plastic issue: Robert Rauschenberg
and Robert Ryman (United States), Hélio Oiticica, Lygia Clark, Hercules Barsotti, Mira Schendel,
Manabu Mabe and Tomie Ohtake (Brazil), Lucio Fontana (Argentina/Italy), Piero Manzoni (Italy),
Kusama (Japan), Otero and Soto (Venezuela). The hypothesis follows that art history no longer
has an absolute center, but creates itself wherever the artist with historical relevance is to be
found. Finally, in the third space, a group of monochromes portrays how artists readopted
meanings for what seems to be pure color: Yves Klein, Antonio Dias, Nigel Rolfe, Glenn Ligon,
Mona Hatoum and Katie van Scherpenberg incorporate the monochrome to discuss issues like
difference, desire, racism and gender.
Souls have always been eaten in Brazil. ln the XVII century, the priest Antonio Vieira thought
in terms of parallelisms in his "Sermão do Espírito Santo" [Holy Ghost Sermon] just before the
missionaries left for the Amazon. He used Saint Peter's vision in a prayer in Joppe when he heard
repeated three times: "Surge, Petre, occide e manduca" ("Get up, Peter, kill and eat"). He thought
it referred to animaIs forbidden by the Law. Nonetheless, Vieira conduded: "But ifthose animaIs
referred to the nations of the heathens, and God wanted Saint Peter to teach and convert them,
how is it that he instructs him to kill and eat them? For that very reason, because the best way to
convert beasts into men is by killing and eating them, and there is nothing doser to teaching and
indoctrinating as killing and eating."12 From Vieira's point ofview, the missionaries are canni-
bals. They sought to rescue the lndians from extreme "barbarity"-cannibalism-preparing them
for the colonial enterprise, converting them to christianity, and in return offered the eucharist as
the consumption ofChrist's body transubstantiated. The colonial process was a war of canni-
balism, which Adriana Varejão portrays in Proposta para uma catequese [Proposal for a catechism].
Europe underwent a great impact upon its discovery of a real cannibalism. The historic point
of departure ofthese exhibitions are Hans Staden's reports, who was imprisoned by cannibal
lndians, Jean de Léry's works (which Lévi-Strauss termed a breviary of ethnography) and Thevet
in Antarctic France, Theodore de Bry's monumental work and Michel de Montaigne's Essays.
Montaigne discusses, based on the news on Brazilian cannibal lndians, the relativity ofthe values
among the numerous peoples. lf cannibalism horrified the French, Montaigne condudes that
greater atrocities were practiced in Europe. The Renaissance humanist perspective is reformulated.
Brazil is formulated as a plural society comprised of multiple ethnic encounters. Albert
Eckhout was the first to register the iconography of this processo Frans Post invents the primeval
landscape of America, analyzed by Luis Pérez Oramas. As Oswald de Andrade describes in his
"Manifesto antropófago," Brazil is the matriarchy ofPindorama. Eckhout's four female portraits
which represent Brazil's ethnic complexity are exhibited: tupí and taraíríu (Tupi) lndian women,
an African and a Mameluke. This process of cultural encounters lies at the source of the mod-
ernist formuIations about Brazil's identity, in terms of a society formed by the attributes, plots
and encounters among Europeans, natives and Africans of the slavery diaspora. lt is important
to understand that among them existed a group with the symbolic practice of cannibalism relating
to the appropriation ofthe Other's forces. ln a barren landscape, the taraíriu lndian woman is
portrayed with remains of a human body, evidence ofher cannibalism. Eckhout's paintings work
on a double contexto They deal with the concrete practice of cannibalism and suggest the ethnic
formation ofthe country on the basis ofthe complex nationaI identity formulations. Curated by

40 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Jean-François Chougnet and Ana Maria Belluzzo, and with consulting by María Concepción
García Sáiz, this exhibition posits a trajectory through the European project of creating allegoric
images of the continents as politicaI territorialization of the difference, in which America would
be distinguished for cannibalismo
Europe introduces artistic techniques and genres in its colonieso The portrayal ofIndians,
Mestizos and Mulattos turns them into subjects of the production of art These painters did not
represent America as the pIa ce of cannibalism, dealing with a prohibition, as in the case of
Joaquim Teófilo de Jesus in Bahiao They internalized a notion of cannibalism as barbarity and
sought to hide that in its originso ln seventeenth-century Mexico the genre of castes is created,
demonstrating a system of classification based on an idealized scale of ethnic compositiono They
are series of paintings in which each documents a couple and son and indicate, for example, that
from a Spaniard and an Indian a mestizo is born, from a Spaniard and a Mestiza the outcome is
apure race, and thus successivelyo Art becomes a type of territory ofindividualization, as was the
case for Aleijadinho, or further in the relationships between the devotion to Christ tied to the col-
umn and the slave tied to the whipping posto Among the native populations ofPotosi or Cuzco
in the Andes, the attributes ofthe saints are "cannibalizedo" The Virgin is portrayed as the Sun's
bride or in the shape of a sacred mountaino This return to the paganism of a christian entity thus
signifies a gesture of cultural resistance and of symbolic negotiationo
The XIX century sees the expansion of the independence process of the large European
colonies in Americao The curatorship ofthis exhibition is focused around the gathering of mytho-
logical cannibalism (Gustave Moreau), eventual cannibalism among Europeans (GéricauIt) and
cannibalism by the othero If real cannibalism in America no longer caused the sarne impact,
nonetheless Goya represents it among the lroquoiso Régis Michel guides the display towards the
issues oftotem and taboo, the transgression and devourment ofthe sons by the fathers and vice-
versaoHe expands the spectrum to include Desprez, Füssli, Blake or Muncho His analysis indi-
cates the origining of the sources of Freud's psychoanalytic theoryo European art readopts
Dante's literature with the figure ofUgolino, the father who devours his childreno Inscribed by
Rodin on the Door ofHell, the theme was explored by artists such as Carpeaux and Géricauk Here
echo theories ofthe "Manifesto antropófagoo" ln the totemic perspective, societywill devour its
childreno A key work is the The raji: ofthe Medusa, in which Géricault portrays shipwrecked people
feeding off those who are dyingo The painting arose as a gesture for the dissolution of slavery in
France, since the artist includes a black man as a social subject, the individual who saves the
group by sending signaIs to another shipo Pedro Américo's painting ofTíradentes is also included
in the exhibitiono This Brazilian painter based his studies on Géricault's Anatomícal studíes and
Severed heads to representTiradentes' lacerated bodyo Tiradentes' taskwas to remove,the politicaI
idea, to connote slavery with cannibalism and to transfer the metaphor to colonialismo Inde-
pendence and abolishment are freedom fights in the societies that devour their citizenso
The "Manifesto antropófago" proclaims Brazil's dilemma: "Tupy, or not tUPlJ that is the ques-
tiono" This was to become a symbol ofBraziL Oswald de Andrade's multiple action contaminates
literature, theater and the fine artso 'Bis dadaist forerunners are known, namely Picabia and his
Canníbale magazine, butitwas Benedito Nunes who discussed Oswald's breadth: "From Nietzsche
to Freud, the path was opened that turned cannibalism into a dignified result of an ancestral syn-
drome, or, in Oswald's terms, a sign ofthe human condition, found in the deli cate intercrossing
between Nature and Culture:'I3 We must introduce, albeit succintly, the creator of antropofagia,
a task handed onto Pedro Corrêa do Lago. From Oswald's oeuvre, José Celso Martinez takes
out O rei da vela [The king of the sailJ in order to found his anthropophagic theater, with Hélio

41 Introdução geral Paulo Herkenhoff


Eichbauer' s participation in the montage of the play by the Teatro Oficina. Theater, Antonin
Artaud used to say, should instigate the spectator to dream "where [. .. ] his fantasies, his utopian
sense oflife and of things, even his own cannibalism pour out on a leveI neither false not illusory,
but rather internal." 14 Glauber Rocha's anthropophagic cinema, among others, was curated by
Catherine David.
Mario Carelli and Walnice Nogueira GaIvão search for the dijferentíal ofBrazilian culture,
whose literature would no longer be the transplant of aesthetic currents. 15 Modernism in Brazil
reconstitutes the past as a possibility of projecting itself into the future. This is carried out in a
manner different from Marinetti's futurism, since to create a type of individual modernity,
Brazilian culture reformulated rather than refused the relationship with tradition and the pasto
Lacan acknowledges the search for something that is materialized with the field elaborated
by Lévi-Strauss as Savage Thought. "Before any experience, [... ] before the establishment of col-
lective experiences that only relate to social needs, something organizes this field, establishing
in it the course of primary forces," a function that Lévi-Strauss shows us to be the totemic truth,
with its appearance-the primary dassificatory function. 16 Lévi-Strauss spent a decisive moment
in Brazil, teaching at the Universidade de São Paulo. As already noted, his anthropology deals
with states oftransition connected bya continuous thread ofinstances: the sacrifice ofthe Aztecs,
the lroquoi tortures, the hunt ofJívaro heads and the Tupinambá cannibalism, whose history we
owe to Florestan Fernandes.
Antropofagia finds in dadaism an immediate precedent and in Picabia's Canníbale the
apparent appropriation through the Revista de Antropofagia [Journal of Anthropophagy]. The exhi-
bition devoted to dadaism and surrealism curated by Dawn Ades and Didier Ottinger discusses
Picabia, Dalí, Ernst, Masson and BataiUe's ideas on cannibalism. The repertoire is basicaUy
documental-magazines and drawings, as well as evidencing the presence of these artists in
Brazilian museums. Dada and surrealism were movements that shook the vanguard notion and
its impact on society. That notion of a tremulous vanguard, dose to futurism, aids the under-
standing ofthe social practices ofBrazilian modernism such as the Semana de Arte Moderna [The
Week ofModern Art]. Ades highlights facts about dada concerning aggression, relationships with
life (and not art) , and the literary precedents in Jarry and Swift, for whom cannibalism was an
ironic result of"civilization." It is a European indisposition that Antropofagia celebrates as joy
and happiness.
The primary interest in Picabia's personality allows a comparison between Cannibale and
the Revista de Antropofagía. Oswald knew Canníbale. His "plagiarism" would be found in the sarne
proportion of that which Picabia' s mechanical paintings are accused, portrayed as images of
engineering magazines. The relationship Revista de Antropofagia versus Cannibale confirms
Brazilian modernism's ability to incorporate and transform ideas into individual thought.
Ottinger explores dietary cannibalism ironically, as gluttony fed by Sade, Lautréamont,
Bataille and Caillois, and traced onto an entomological voracity. The episode of van Gogh's ear
was interpreted by Bataille as "sacrifice," linking Masson's "massacres" to the Dutch artist. The
greedy love of Masson's female mantis resurges in the hunger of Maria Martins' and Louise
Bourgeois' spider. Murilo Mendes says that Max Ernst "descends from Rimbaud, for the creation
of a magical atmosphere, the confrontation of disparate elements, the violence of the cut of a
poem or painting, the passion ofthe enigma."17
Dawn Ades explores the vast repertoire of images of cannibalism by Salvador Dalí, synthe-
sized ln his illustrations for Les Chants de Maldoror, by Lautréamont. There was a desire to devour
Gala. Like the surrealists, DalÍ explored cannibalism as a metaphor of war. The authoritarian

42 XXiV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


father figure becomes that ofWilliam TelI. One ofDalí's biographical facts refers to the great
psychological weight in the patriarchal structure of having been given the sarne name as his
brother who had died, portrayed in Man with an unhealthy ,complexion listening to the sound ofthe sea
(1929). Jennifer Mundy complements the discussion on Dalí's cannibal itinerary.
The psychologicalload of surrealism and the study of the unconscious refer to Freud's
Totem and taboo. The transgressor Oswald de Andrade proclaimed the need to transform the taboo
into totem. Cannibalism, in the articulation of psychoanalysis, anthropology and philosophy,
primitivism and the vanguard, is studied by Bataille and Caillois, by the surrealist artists, whilst
in Brazil it characterizes the complex vanguard strategy ofAntropofagia. Freud today is a choco-
late image composed in Vik Muniz's photography-offered to anthropophagic devourment or
to revisionist vomito
Thanks to the support of the Fondation Maeght de Saint Paul de Vence, the Bienal exhibits
Alberto Giacometti with an ensemble of sculptures and engravings. The hope for a new work,
based on Jean-Louis Prat's curatorship, would be to face the difficulty of the self and of the
impossible encounter with the other. Despite surrealist works being exhibited, Giacometti is
introduced with works from his later period involving a more absolute juxtaposition of matter
and carri~ality. The Femme-cuiller [Spoon-woman], on the other hand, arises as a totem. lt indicates
Giacometti's interest during that period for the formal purity ofthe artifacts from the material
culture of the African peoples, as in the spoons of the Dan society of the lvory Coast. To sculpt
for Giacometti was therefore to reduce man to his essential carnality, or to that carnal essence
required by things for their presence, as analyzed by the philosopher Merleau-Ponty, who further
speaks of an "imaginary texture ofthe real." Giacometti reduces the individual to an essential
physical condition: verticality, or the plumb as consciousness of gravity, and mass as corporeality.
This minor body is not a decarnation, but an extreme search where the sign of presence and
absolute economy become mixed up. Giacometti works upon a sort of phenomenological econ-
omy. Alain Cueff speaks of his endocannibalism, as it is equidistant to literal experience and
metaphoric speculation. Michel Leiris celebrated his sculpture with "stone delicacies, bronze
foods marvelously alive." A work by José Resende promotes the dialogue of contemporary
Brazilian sculpture with Giacometti.
René Magritte is unique in his ability to dialogue with the spectator precisely for that which
could draw him away from the public: estrangement. His painting is fascinating in challenging
and cannibalizing the logic of the gaze and in operating upon mental fantasies, overriding the
limits of rationality. Some works deal with politicaI and psychological metaphors of devour-
ment. ln Magritte, words deny their meaning and clash with the figures to which they wrongly
seemed to correspondo Didier Ottinger proposes in regard to Magritte's painting epistemological
issues. ColIage adopts a role in cannibalism as it tends to fuse the most heterogeneous formal
and semantic records. Our exhibition counts with the support of the Musées Royaux des Beaux-
Arts ofBelgium on the year ofthe artist's centenary.
Matta bestows vitality to surrealism as it became exhausted by the banality of its visual
games. Matta's curator Justo Pastor Mellado explores the morphology of oralness and its relation
to geography and Chile's society. "When painting a canvas, l paint all around me; l have tried to
act as ifI were situated at the center of the cube and the painting, instead of finding a window in
front of me, there were the six sides ofthe cube," said Matta in the catalog Lam, Matta, Penalba-
Totems et tabous (Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, 1968). ln his painting, we could say that
the cube is the stomach of the world. To paint is to digest. Matta's work is distinguished by an
apparently brutal and wild gesturality, the testimony ofthe individual's ability to deal with the

43 Introdução geral Pau lo Herkenhoff


ghosts ofthe unconscious. His visual discourse is a spurt ofimages, delight, in which the monu-
mentallandscape of Chile took on the quality of phantasmagoric writing. Bizarre Iandscapes,
interplanetary machines and individuaIs that seem to Iand from other regions in the galaxy-
they are all closer to the contemporary universe ofhuman devourment through technology and
to individuaIs through desire.
For the curator Mari Carmen Ramírez, David Siqueiros is one of the three great formulators
of a vanguard project for Latin America, next to Torres-GarcÍa and Oswald de Andrade. His art the-
ory involved vaIorizing national culture, native civilizations and technological conquests. There
no longer remained a victim of appropriation in his work. Siqueiros appropriated Eisenstein's
cinema, registered in Mexican art. The work he executed in prison transgresses the canons of
painting. Affiliated to Marxist ideology, Siqueiros offers examples ofthe idea of cannibalism as
a metaphor of economic exploitation of the increase in market value, the difference that capital
obtains on work, a type of voracious expropriation of the energy of the other. The work The boat
offascísm, permeated with politics, relates to Géricault's The raft of the Medusa, an art linked to
social fights ofhis time.
Francis Bacon is a painter ofthe human condition. He is one ofthose painters who, as Valéry
would say, "bring their body" to painting. The human figure emerges as the conversion of the
materiality of painting on a phenomenology of carnality and extreme hypothesis of the figural,
as analyzed by Deleuze. We would also be painting. Bacon captures the physicallimits of the
human body, the finite reality of flesh, the violence of the senses and of the fusion ofbodies. The
curator Dawn Ades discusses Bacon's anthropophagic means (the appropriations ofEisenstein,
Muybridge, Velázquez, Manet and van Gogh, and ofbanal images), his relationship with canni-
balism via Elliot.
The approach chosen for CoBrA, curated by Per Hovdenakk, flows towards cannibalism.
The universe is composed of myths, masks, totemism. The transgression arose in the rupture
with surrealism and the voracity in images of aggressive oralness. Body fragments join with
the vocabulary of devourment. For Alechinsky, an appetite for vibrant color is characteristic of the
Northern gaze. The surface ofhis painting Bombardement [Bombardment] is live flesh, as a phe-
nomenology of matter in terms of painfuI corporeality. On the other hand, woman is idealized
in desire. Constant's Moment érotíque [Erotic moment] is cannibal delicacy. Jorn's appropriations
reach the body of another work by an unknown author, violating it with his painting. His version
ofThe raft ofthe Medusa focuses the politicaI pessimism ofhis time as well as the atomic threat.
Appel states that "us, today's men, are perfected barbarians."18
The work by Gerhard Richter and Sigmar Polke opens the doors for a discussion on the
process with which author dissolution and the ruIes and limits of painting are created. Our cura-
tor is Veit GÔrner. All is approached as if painting could be saved by proclaiming an anti-heroism
fed by processes of appropriation, image devourment or its migration through painting and
photography. Painting is faced with its own exhaustion, iconoclasm, devourment, the saturation
of symbols. Richter works from the absence of styles. Like Oswald de Andrade, Richter is con-
cerned with the diluting consumption ofideas. His 48 Portriits [48 Portraits] deal with the search
for the father. Polke's iconoclasm makes use of a large spectrum ofimages, as is the case in Die
Alten [The old women] based on Goya. His works on the French Revolution, its heroism and
tragedy infer a certain forgiveness to the spirit ofGéricault's The raft ofthe Medusa, and to the war
seen as cannibalism by Goya. ln the painting NegativwertelNegatíve values (1982) in which Polke
employs Saturn red, a venomous pigment, a process of self-consumption is conveyed as the
emergence of cannlbaI drives.

44 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Guillermo Kuitca's work belongs to the order of cannibal architectures from Bormazo to
Piranesi. Stadiums, theaters, hospitaIs are uninhabited architectural designs. The human beings
present seem consumed by the logic ofthe regulation ofthe body's place in social space and by
an indication ofthe panopticon. The curator is Jorge Helft. The name ofthe city brings an index
of the crematorium furnaces, since architecture is a monument of barbarity. Beds, the place
where what hurts and flows like phantasmagoria is that which desire establishes as cannibalism.
"Love is impotent, even if reciprocaI, because it ignores that it is merely the desire to be
One, which leads us to the impossible of establishing the relationship of the .. . The relationship
of the who?-two sexes," writes Lacan. 19 Our project consisted in gathering some of the female
artists who contribute in a unique way to the relationship of art and desire. Maria Martins, Lygia
Clark and Louise Bourgeois. They are artists whose works are phantasmagoric operations.
Amorous fusion exposes, for example, its voracious strength in Martins' O ímpossível [The impos-
sible], or in Bourgeois' Couples, whilst Clark often poses this experience. A small object by Maria,
Aranha [Spider] (I946), Bourgeois' great sculpture-installation Spíder, and the existential entan-
glement of works such as Estrutura víva [Live structure] (I969), Baba antropofágíca [Anthro-
pophagic drool] (I973) and Rede de elástíco [Elastic net] (I974), by Lygia Clark set singular
perspectives of the feminine against what could be a mere theme.
Maria Martins dedicated herselfto themes like fertility and oralness. ln the '4os, Amazon-
ian legends and surrealist connotations highlight her production. Forest cípó 20 entangle like
serpents, like the Laocoon. They also convey the artist's affinity with Lipchitz's work. Clement
Greenberg commented on Maria Martins' exhibition in New York in I944, saying that her sculp-
tures "were possibly the last, completely live manifestations of academic sculpture" and noting her
baroque and not modern impulse, reminiscent of colonial Latin decor and of tropicalluxuríance.21
"I think I might even become anthropophagite," wrote Lygia Clark to Hélio Oiticica, "I want
to eat everyone I love."22 Clark places Antropofagia on the psychoanalytic perspective of canni-
balism. Alike the "Manifesto antropófago," ("Against social reality, dressed and oppressive,
registered by Freud"), she also rejects Freud: "We reject the Freudian idea of man conditioned
by his unconscious past."23 Freud's Totem and taboo is the starting point in the psychoanalytic
discussion of cannibalism, but it was also rejected by anthropology.24
ln the '70S, Lygia Clark lectured at the Sorbonne, where she developed her poetic proposals
oflived experiences, working with young people, "who are prepared in everything from the nos-
talgia of the body [. .. ] to its reconstruction to end in what I call collective body, anthropophag-
ic drool or cannibalism."25 During that period, Clark did psychoanalysis with Pierre Fédida, who
in the fall of I972 published "Le cannibalisme mélancholique" [Melancholic cannibalism] in the
issue of "Destins du cannibalisme" [Destinies of cannibalism] of the Nouvelle Revue de Psych-
analyse. 26 ln I973 Clark created two works linked to Fédida's thought. Caníbalísmo, in which "the
group eats with blindfolded eyes from the stOmach of a young man lying down."27 The use ofthe
term "cannibalism" is rare in Brazilian culture since it uses widely "antropofagia" instead (held
as the devourment ofthe human being-body and moral entity). Clark says that her "work is
my own phantasmagoria which I give to the other, suggesting that they clean it and enrich it
with their own phantasmagoria: thus it is an anthropophagic drool that I vomit, that is swal-
lowed by them and added to their phantasmagoria vomited again [... ] . This is what I call 1ive
culture."28 Fédida did not use the term antropofagía in his article. "Cannibalism is the conscious-
ness of the second mouth, an anthropophagic expression of the being that transforms me into
the great lost womb inverting the position and the mother is eaten to fulfillit,"29 affirmed Clark,
bonding two anthropophagic exercises: the appropriation ofthe Other's ideas (in this case, her

45 Introdução geral Paulo Herkenhoff


psychoanalyst) according to the tradition of Brazilian Antropofagia, in addition to dealing
directly with the cannibal phantasmagoria.
The mouth suckles, slurps, swallows, bites,devour, vomits, drools. Oralness lies beyond the
development of the libido through the pleasures of suckling and biting. ln the body of Clark' s
work, the Baba antropofágíca is linked to childhood traumas which emerge in sleep. "The goo that
gushed from her mouth losing vital substance, a dream l recently reintegrated reswallowing the
sarne, the tunnel immuring me, separating me dead-alive."30 Cannibal voracity reappears when
Clark contrasts her devourment to Morte do plano [Death ofthe plane]: "This rectangle in pieces,
we swallow it, we absorb it ln ourselves."31 Observing further that "the undisturbed erotic-oral
phase of suckling is sues on a cannibalistic phase. l think that cannibalism is not only at the service
ofthe conservation instinct, but that teeth are also the weapons useful to the libidinal tendencies,
instruments which may help the child to penetrate the mother's body. L .. ] On first contact
with the breast, the child seeks to penetrate in search of the womb, the lost poetic shelter;
unable to penetrate, it introjects it, beginning the cannibalistic phase. To be a devourer or to
devour is the process of mutual incorporation," she says in "On cannibalism," adding that "the
womb is the poetic shelter of all matter, involving the fetus and form"-which takes us to the
work A casa é o corpo [The house is the body] (1968), with its are as of penetration, ovulation,
germination and expulsion.
Louise Bourgeois introduces diverse possibilities of exploring the theme of cannibalism.
Spiders are themselves cannibal animaIs because after copulation the female devours the male.
The destructíon ofthefather exhibits a threatening mouth that conveys an older link to Freud's psy-
choanalysis. We are before a transgressive actvis-à-vis authority and the father figure, having as
a theoretical basis Freud's Totem and taboo, as analyzed by Robert StorL Another dimension of
cannibalism in Bourgeois' work are the relationships with the object of desire, with cannibal
fantasies aroused during amorous fusion. Here emerge the ghosts of devourment ofthe desired
being also as a strategy for not losing it in the perspective ofFédida's melancholic cannibalism.
This issue permeates Louise Bourgeois' work, induding in the recent series offabric sculptures
of great expressive force and presence, such as Couple II, a hugging couple. The fusion is intense,
despite the head of the lovers being absent The hug sealed bya prosthesis denotes the anguishing
limits of the encounter of the One with the Other.
Chaos and contention constitute the approach ofEva Hesse and Robert Smithson by Mary
Jane Jacob, who juxtaposes them with the work ofLygia Clark and Hélio Oiticica. Four artists
who approached art as an experimental field ofideas. There were no formulas and ways superim-
posed to experience. The materiaIs exduded from art history, the most banal, were incorporated
into the work's constitution for its pqssibilities of materializing ideas, sItuations and processes.
The sim pIe or grandiose gesture is noteworthy not for Its expressivity but for the constitutive
quality of a plastic thought. PIace and nonplace in Smithson's work create a dialectic between
center and periphery. The ensemble allows for the discussion of relationships between entropy
and antropofagia, energy dispersion and reconversion. Despite rarely seen in Brazil,32 Hesse has
greatly influenced the Brazilian sculpture ofthe last decades. Brazilian 2oth-century culture is
stamped by the discourse and subjectivity of the woman. The calculated association of recent
Brazilian artists with American art does not obscure others, like Mira Schendel or Lygia Clark,
who proposed works and experiences that could be a dialogue of greatness in dose contact with
Hesse and Smithson.
The voracious approach undertaken in all means of artistic expression make Bruce Nauman
one ofthe great multimedia artists. The curator Robert Storr observes the manner in which

46 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Nauman traces new technologies under a philosophical matrix, from Skinnner to Wittgenstein.
His work unfolds through videos, performances, installations, drawings and sculptures that
deal with issues linked to the body and to situations faced by the individual in the contemporary
world and confronting "human nature." His work distinguishes itself for incorporating highly
dense contents and, at the sarne time, for constituting itselfin direct discourse. Nauman displaces
and questions certain is sues related to the art of our time or rediscusses certain classical issues,
like image, space and time, or the sublime and the banal, violence and desire. ln short, Nauman
explores the real human condition, from sex to our permanent need to manifest ourselves. Allying
conceptual rigor to visual impact, the subtlety ofhis humor and poetry seduce the public, creating
a simultaneous sensation of estrangement and identification. The South American triangle uncovers
the irrationality oftorture. His installation Anthro/Socío indicates that this Bienal introduces five
"ethnographies": Jean de Léry, whose book Lévi-Strauss denominated "ethnography breviary,"
the "Manifesto antropófago," Siqueiros' "Ethnography," and the figure ofLévi-Strauss, among
others. "Help-me/Hurt-me, Sociology. Feed-me/Eat-me, Anthropology," cries out once in the void.
ln discussing cannibalism, care was taken to outline the field, deliberately avoiding possi-
bilities that could excessively emphasize the fragmented body, amputations and other physical
afflictions present in body art and in some Austrian performers. An autocannibal drive would be
subjacent to a masochist production. During the last decades, art underwent transformations that
also changed the role of the artist, the statute of the body and of verbal discourse. Oppenheim,
developing his work as from the '60S, perceives that in this process performances or body art, in
employing the body as the ground for artistic language itself, led to situations of amputation and
other forms of physical affliction self-imputed by the artists themselves . ln order to avoid
masochist stances, Oppenheim develops enactments using his body, resorting to cinema, pho-
tography or sculpture, as live self-portraits conceived as simulacra for intense enactment. Such
is the case of the installation An attempt to raise hell (1974). Another American artist, Tony Oursler
developed an oeuvre in which he also creates the active and enacting presence of individuaIs
through "humanized" objects. Some are types of "dolls" and other "bundles" on which are
projected animated images of people talking, saying something. The curato r Daniela Bousso
explores meeting points between these two artists from different generations; metaphor and
nonsense, mythic attitudes, body, repetition, projection, to search for a nexus through theatri-
cality reminiscent ofBeckett's theater.
ln 1580, Michel de Montaigne introduced a radical position of cultural relativity in Euro-
centric thought, when he published the first volumes ofhis Essays. He wrote "1 do not think it is
barbarous or savage what they say about those peoples: and, in truth, each one considers barbaric
that which is not practiced in one' s land. And it is only natural, since we can only judge from truth
and from the raison d'être ofthings by the example and idea ofthe uses and customs ofthe coun-
try in which we live. We call those people savages, as we denominate as savage the fruits produced
by nature without human interference."33 The historic period in which we live questions the role
of difference of cultures, identities and subjectivities. Let us hope that antropofagia and histories
of cannibalism, with its ambivalence, its non-Manichaeism, its constructive and deconstructive
aspects, may be constituted at a moment of epistemological reflection on that perplexity.
Paulo Herkenho1f. Translated from the Portuguese by Veronica Cordeiro.

47 Introdução geral Pau lo Herkenhoff


I. Lacan, Book II, OS quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 18. Karel Appel40 ans de peinture, scultpture & dessin, Paris: Galilée,
M.D. Magno (Brazilian version), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, pp.ls0-lsI. Mutatis mutandis, we should also note a rela-
1990, 4th ed., p.182. tionship with the ideological program offuturism.
2. Montaigne, Essays, Stanford: Stanford University Press,' 19. Book 20, Seminário, mais ainda, M. D. Magno (Brazilian ver-
1943, trans. Donald M. Frame, Volume I, chapter XXXI. sion), Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, 2nd edition, P.14.
3. The term used here "thickness" relates primarily to the 20. The term cipó refers to the Brazilian common designation
French éppaisseur, adopted as the key concept by the curator- of sarmentose and crawling plants that hung from trees and
ship of the XXIV Bienal de São Paulo to underline the chief on them intertwine.
periods of"density" in Antropofagia and thickness/density in 21. "Review of a group exhibition at the Art ofThis Century
terms of cultural and social approaches. "Thickness" corre- Gallery, and of Maria Martins and Luis Quintanilha" (1944),
sponds to the Portuguese espessura, whilst the Portuguese den- Perceptions andjudgements 1939- 194°, Chicago: The University
sidade has been respectively translated as "density" [T.N.]. ofChicago Press, 1986, voI. I, p.210.
4. Mario Carelli and Walnice Nogueira GaIvão, Le roman 22. Letter to Hélio Oiticica on 6 Feb. 1964, Rio de Janeiro: UFRJ,
brésílien. Une littérature anthropophage au XXe siecle, Paris: Preses 1996, P.29, devouring work cited as "Letters."
Universitáires de France, 1995, p.s . 23. "NÓS RECUSAMOS" (1966), Lygia Clark, Rio de Janeiro:
5. By the author, "Europa para almoço," (condensed), Poliester, Funarte, 1980, P.30; devouringwork cited as Funarte.
n.8 (spring 1994). 24. André Green, "Cannibalisme: réalité ou fantasme agi?"
6. When applied in the sense of a historical concept ofBrazil- (p.38) e Jean Prouillon, "Manieres de table, manieres de lit,
ian culture, the noun Antropofagia will appear with the first manieres de langage" (PP.9-2S), Nouvelle Revue de Psychanalyse,
letter in upper case, despite Oswald's Revista de antropofagia Paris: Gallimard, n.6, 1972. Iftable, bed and language over-
having adopted a different spelling. lap, the relationship ofFreudian thought to anthropology was
7. Stella Teixeira de Barros included Volpi in the exhibition criticized for its fallacious reasoning delimited to the societies
Apropriações antropofágicas, São Paulo, 1997. who link the interdictions of cannibalism and incesto
8. Caipira is the term used in the original Portuguese text, 25. Letter to Hélio Oiticica on 6 July 1974, Cartas, pp.221-222.
which refers to poor, rural Brazil where inhabitants survive 26. Paris: Gallimard, 1976, n.6, pp.123-127. Jean Pouillon,
mainly through subsistence farming [T.N.]. André Green, Marcel Detienne, among others collaborate in
9. Oiticica wrote "Cor, tempo e estrutura," Jornal do Brasil, this issue, which is the one that publishes Oswald de Andrade's
Sunday supplement, 26 Nov. 1960. "Manifesto antropófago."
10. Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, pp.I06-I09. 27. Letter on 6 July 1974, Cartas, p.223. Meret Oppenheim and
II. Brazilian toy from the Northeast ofBrazil which lets out a Daniel Spoerri organized "cannibal banquets."
raucous sirenlike noise on whirling [T.N.]. 28. Letter on 6 Nov. 1974, Cartas, P.249.
12. Sermões; Padre Gonçalo Alves (compilation); Lisbon: Lello 29. "Sobre o canibalismo" (typed text), I page, Lygia Clark
& Irmão- Ed., 1950, voI. 5, P.430. archive, Documentation Center ofthe Museu de Arte Moderna
13. Benedito Nunes, Oswald canibal, São Paulo: Perspectiva, ofRio de Janeiro.
1979, P·13· 30. Letter by Lygia Clark on 17 May 1971, Cartas, p.2IO.
14. Susan Sontag ed., and Helen Weaver (trans.), Selected writ- 31. Lygia Clark, Morte do plano (1960), Funarte, P.13.
ings of Antonin Artaud, New York: Farrar, Strauss and Giroux, 32. Hesse's graphic work was exhibited at IX Mostra de Gra-
197 6, PP·244- 24S· vura in Curitiba, 1992.
IS· Op.cit. note 4 above, p·s· 33. Op. cit., note 2 above, volume I, chapter XXXI, p.I2I.
16. Op.cit. note I above, p.2s.
17. "Max Ernst", Transístor, Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
19 80 , PP·17 8 - 179·
Oswald de Andrade manuscrito s.d. coleção particular [private collection], Rio de Janeiro

48 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


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Donald Preziosi

Evitando museocanibalismo1
Não podemos escapar aos museus, já que o próprio mundo de nossa modernidade é, nos
aspectos mais profundos, um supremo "artefato" museológico. Não podemos simplesmente
sair e ir embora, porque todas as portas e janelas em museus são portas e janelas trompe-I'reil,
pintadas nas paredes ao nosso redor (uma destas se chama "pós-modernidade", outra marxis-
mo, outra semiologia, etc.). Evitar ser comido por um museu é reconhecidamente um proble-
ma universal, dado que vivemos num mundo em que virtualmente qualquer coisa pode ser
encenada ou exposta em um museu e em que virtualmente qualquer coisa pode servirou ser
classificada como museu. Já ficou evidente que compreender a história da arte e a museologia
exige nada menos que repensar radicalmente não poucos pressupostos teóricos e históricos e
modos de interpretação e explicação. A invenção do museu moderno (e da arte, e a estética)
pelo Iluminismo foi acontecimento de implicações tão profundas e tão radicais quanto o fora
vários séculos antes a formulação da perspectiva centralizada-e por motivos semelhantes.
É evidente que foi uma invenção social revolucionária. Foi uma realização repentina em
alguns lugares e mais gradual em outros, como aconteceu no caso das revoluções sociais
européias a que a nova instituição se destinava a servir (que, é claro, eram ao mesmo tempo
produtos de museologia). O museu cristalizou e transformou uma variedade de práticas antigas
de produção, formatação, armazenamento e exibição do conhecimento em uma nova síntese
que era comensurável à elaboração oitocentista de outras formas modernas de observação e
disciplina em hospitais, prisões e escolas. Era um locus central para a fabricação daquela
síntese mais ampla que constituía a própria modernidade e que se destaca simultaneamente
como uma de suas epítomes de maior força. Desde o século XVIII, o mundo tem ficado
contido no espaço museológico.
Então, uma vez mais, como podemos evitarsercomidos? Permitam-me oferecer algumas
observações que poderiam servirde sugestão quanto a como evitarmos o pior desses canibais-
que, afinal, somos também nós mesmos: objetos de arte, visitantes de museus, artistas, que cir-
culam poresse espaço em que estamos enredados-observações cujo intuito é tornar intragável
seu consumo. Admito que conhecero conteúdo exato do veneno que temos ingerido possa não
ajudar inteiramente a eliminá-lo, mas talvez possamos passar o conhecimento aos que ainda
não foram comidos, na esperança de que nossa tribo inteira não se consuma completamente.
Quando instituiu o museu, o Iluminismo estabeleceu um espaço-tempo funéico 2 ou histori-
camente inflectido. O museu, assim, serviu como técnica epistemológica: definindo, formatan-
do, modelando e "reapresentando" muitas formas de comportamento social por meio de seus
produtos ou vestígios. O mundo se recompunha e se transformava nas partes componentes
da maquinaria-palco de exibição e espetáculo, as quais funcionavam para estabelecer, pelo
exemplo, pela demonstração ou pela exortação explícita, critérios vários para relações aceitáveis

50 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


entre sujeitos e objetos, entre sujeitos, e entre sujeitos e suas respectivas histórias individuais-
critérios que fossem consoantes com as necessidades do estado-nação modern(ista)o.
Ao consumira tempo, os museus estabeleceriam padrões exemplares de consumo: para
uma "leitura" dos objetos enquanto traços, representações, reflexões ou substitutos dos
indivíduos, grupos, nações, raças, e de suas "histórias". Eram espaços públicos destinados ao
compromisso cerimonial da Europa com sua própria memória social e sua história (e assim à
evocação, à invenção e à preservação destas). Como tal, os museus tornavam legível tudo quanto
era visível, assim estabelecendo o que era digno de servisto, enquanto ensinava os usuários de
museu a ler o que deve servisto: como ativar as memórias sociais. A história da arte torna-se
uma das vozes-poderíamos mesmo dizer um romance histórico popular importante-no e
do espaço museológico. De modo complementar, a história da arte se estabeleceu como uma
janela que dava para vasto museu, enciclopédia ou arquivo universal imaginário de todos
os espécimes possíveis de todas as artes possíveis, em relação aos quais qualquer museu,
coleção ou exposição material possível seria um fragmento ou parte.
Thomas Struth Louvre IV, Paris 1989 c-print 184x217cm cortesia Marian Goodman Gallery, Nova York

51 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


Desde sua invenção na Europa do final do século XVIII-como uma das técnicas episte-
mológicas primeiras do Iluminismo e da educação ética, política e social das populações dos
estados-nações que se modernizavam-, tem sido extremamente comum edificaro museu
moderno como um "artefato" documentário e comprobatório. Ao mesmo tempo, tem sido
instrumento da prática historiográfica; um instrumento público para praticar a história. A esse
respeito, constitui uma modalidade específica de ficção: um dos gêneros mais notáveis da
ficção imaginosa e um gênero que se tornou um componente indispensável querda afirmação
do Estado quer da herança e da identidade étn ica e nacional em todos os cantos do mundo.
Em grande medida, a própria modernidade é "artefato" e produto coletivo do museu: a ficção
museográfica suprema.
Se a identidade pode ser "reapresentada", o que é ela? O que constitui tal "representação"?
O que, exatamente, até a torna crível? No mundo moderno, as possibilidades de representação
estão intimamente ligadas às disponibilidades do sistema de técnicas culturais que, a serviço
do estado-nação, o viabilizam simultaneamente. Algumas breves observações:
1. Não se trata de os museus, passiva ou simplesmente, revelarem o passado ou a ele se
"referirem"; em vez disso, cumprem o gesto histórico fundamental de separardo presente um
certo "passado" específico, a fim de lhe recolher e recompor (remembrar)3 as relíquias desmem-
bradas e deslocadas como elementos de uma genealogia do e para o presente. A função desse
passado museológico situado dentro do espaço do presente é indicar alteridade; distinguir do
presente um Outro que se possa ser reformatado para que fique legível de algum modo plausível
enquanto gera ou produz o presente. O que ao espaço do presente fica superposto justapõe-se
a ele na imaginação, funcionando-lhe como prólogo. Este "passado" museológico é, deste
modo, um instrumento para a produção e a sustentação imaginosa do presente; da modernidade
como tal. Esse feito ritual de celebração da memória se realiza pelo uso disciplinado, coletivo
e individual do museu, o que, no plano mais básico e genérico, constitui um análogo ou
complemento espaço-cinético ou coreográfico do trabalho de ler um romance ou jornal ou
de assistira uma peça teatral ou espetáculo.
2. Os elementos escritos da museografia, que abrangem a história da arte, a filosofia
estética e a crítica de arte, são tropos retóricos ou dispositivos lingüísticos que ativamente
compõem, "lêem" e alegorizam o passado. Com relação a isso, nosso fascínio com a institui-
ção do museu-a atração e a servidão a que ele nos submete-tem afinidade com nosso
fascínio pelos romances, em particular pelo romance ou pela história "policial". Tanto os
museus quanto as histórias policiais nos ensinam como resolver coisas; como pensar; e como
somar dois mais dois. Ambos nos ensinam que as coisas nem sempre são como parecem à
primeira vista. Demonstram que as peças do mundo precisam ser coerentemente reunidas (lite-
ralmente, remembradas); de um modo que possa ser considerado racional e ordenado: de uma
maneira que, ao lhe revermos os passos, pareça-nos natural ou inevitável, ainda que custemos
a perceber isso. A esse respeito, pode-se figurar o momento presente do museu (dentro de
cujos parâmetros também se posiciona nossa identidade) como o resultado lógico e inevitável
de um passado em particular (isto é, de nossa herança e de nossas origens), o que deste modo
faz o patrimônio cultural e a identidade recuar a um passado mítico ou histórico, que assim
fica recuperado e preservado sem parecer perdera mistério. Em essência, tanto o museu quanto
o romance evocam e interpretam nosso desejo de pontos de vista panorâmicos ou panópticos a
partir dos quais possamos ver que todas as coisas podem efetivamente ajustar-se em uma
ordem apropriada, real, natural ou verdadeira. Ambas as modalidades de realismo mágico
laboram para nos convencer de que cada um de nós poderia "realmente" ocupar posições

52 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


sinópticas privilegiadas, não obstante todas as evidências em contrário decorrentes do cotidiano
e apesarda dominação e do poder. A prática histórica da arte e das exposições (ambas as
quais são subespécies daquilo que aqui chamo de museograpa) são, assim, gêneros da ficção
imaginosa. Suas práticas de composição e narração constituem as "realidades" da história
sobretudo pelo uso de vocabulários e materiais pré·fabricados-tropos, fórmulas sintáticas,
metodologias de demonstração e comprovação e técnicas de encenação e dramaturgia4 • Tais
dispositivos ficcionais são compartilhados com outros gêneros de prática ideológica, como a
religião organizada e a indústria do entretenimento (do controle).
3. O museu é também o locus para a exploração imaginária das ligações entre sujeitos e
objetos: por sua suposição por meio dejustaposição. Pode-se imaginar que o objeto do museu de
arte funcione de modo semelhante a um ego: um objeto que não pode exatamente coincidir
com o sujeito, que não é interior nem exterior ao sujeito, mas antes um locus permanentemente
instável onde a distinção entre o dentro e o fora, entre o sujeito e o objeto, é negociada infin-
dável e seguidamente. Quanto a isso, o museu é um palco para a socialização; para representar
as semelhanças e diferenças entre um eu (ou olho) que confronta o mundo como objeto e um
eu (ou olho) que confronta a si mesmo como um objeto entre objetos daquele mundo, uma
adequação que, entretanto, nunca se completa.
4. Na modernidade, falarde coisas é falar de pessoas. A arte da história da arte e da filo-
sofia estética é seguramente uma das invenções modernas européias mais brilhantes e um
instrumento para reescrever retroativamente a história de todos os povos do mundo. Perma-
nece como um conceito organizador que tornou mais vivamente palpáveis certas noções oci-
dentais acerca do sujeito (sua unidade, singularidade, identidade própria, espírito, não repro-
dutibilidade, etc.); no tocante a isso, recapitula alguns dos efeitos da invenção mais precoce da
perspectiva centralizada. Ao mesmo tempo, a história da arte veio a sero paradigma de toda
a produção: seu horizonte ideal e um padrão contra o qual medirtodos os produtos. De modo
complementar, o produtor ou artista tornou·se o modelo de perfeição de todas as instâncias
do mundo moderno. Na qualidade de artistas da ética de nossas e próprias identidades subje·
tivas, somos exortados a compor nossas vidas como obras de arte e a viver vidas exemplares:
vidas cujas obras e feitos possam ser lidos como "artefatos" representativos de per si.
5. A arte tanto é objeto quanto instrumento. É, portanto, o nome dado àquilo que deve ser
visto, lido e estudado, e o nome (muitas vezes encoberto) da linguagem do próprio estudoi do
artifício de estudar. Como acontece com o termo "história", que com ambivalência denota uma
prática disciplinada de escrever assim como o campo de referência dessa prática de escrever, a
arte é a metalinguagem da história inventada pelo museu e suas museografias. Esta faceta
instrumental do termo fica amplamente submersa no discurso moderno em favor da "objetivi·
dade" da arte. Em que consistiria uma prática museológica ou histórica da arte que desse conta
dessa ambivalência? Como um conceito organizador, como um método de organizartodo um
campo de atividade e dotá·lo de um novo núcleo que torne palpáveis certas noções acerca do
sujeito, a arte redetermina o centro e refaz a narrativa da própria história também. Enquanto
componente do projeto de comensurabilidade do Iluminismo, a arte tornou·se a medida ou o
padrão universal contra o qual os produtos (e, por extensão, as pessoas) de todos os tempos e
lugares poderiam servisualizados em conjunto na mesma tabela ou escala hierárquica de pro-
gresso estético e avanço cognitivo e ético. A cada povo e lugar, a arte sua e verdadeira; e a cada
arte verdadeira, a sua posição apropriada em uma escala evolutiva conducente à modernidade
e à presentitude da Europa. Não só se torna a Europa moderna uma coleção de obras de arte,
mas também a própria modernidade européia tornou-se o princípio organizador do co/ecionar.

53 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


A arte, em suma, veio a alinhar intimamente com a própria maquinaria do historicismo
e do essencialismo: o próprio esperanto da hegemonia européia. Pode-se de pronto ver como
a cultura de espetáculo e exibição que abrange a museologia e a museografia tornou-se indis-
pensável à europeização do mundo: para cada povo e etnia, para cada classe e sexo, para cada
indivíduo não menos que para cada raça, pode-se projetar uma "arte" legítima com seus
próprios espírito e alma únicos; a sua história e pré-história; seu futuro potencial; sua respei-
tabilidade e seu estilo de suficiência representacionaL O brilhantismo dessa colonização é
mesmo de tirar o fôlego: não há "tradição artística" alguma em lugar nenhum do mundo que
hoje não seja forjada por meio dos historicismos e essencialismos da museografia e da museo-
logia européia e isso (é claro) nas próprias mãos dos colonizados em pessoa. O fato é que a
história da arte nos torna súditos coloniais de todos nós. Em outras palavras, a invenção da
"estética" pelo Iluminismo foi uma tentativa de vir a termos com, e de classificar sobre um
terreno comum ou na grade de uma taxonomia ou tabela comum, uma variedade de formas
de relacionamentos sujeito-objeto observáveis (ou imaginadas) através de muitas sociedades
diferentes. Enquanto objeto e instrumento, esta arte é uma espécie de coisa e, simultanea-
mente, um termo que indica certa relativização de coisas. Representa um extremo do espectro
hierarquizado que vai do estético ao fetíchico: uma escala evolutiva em cujo ápice fica a arte
estética da Europa e em cujo nadirfica o encantamento-fetiche dos povos primitivos.
6. Tomar posição de dentro do museu torna natural interpretá-lo como a própria Summa
de instrumentos da a proliferação de jogos ópticos, brinquedos e ferra-
mentas, e os experimentos urbanos e arquitetônicos dos séculos XVIII e XIX poderiam então
ser entendidos como servomecanismos secundários e símbolos narrativos. A instituição coloca
seus usuários em posições anamórficas das quais se pode ver que uma certa dramaturgia
histórica se desdobra com naturalismo intocado; em que uma determinada teleologia pode
ser pressentida ou lida de maneira geomântica como a aparência oculta da veracidade de uma
coleção de formas e onde todas as espécies de filiação genealógica podem vir a parecer razoá-
veis, inevitáveis e demonstráveis. A própria modernidade como a forma mais sobranceira da
de identidade. A mais extraordinária das "ilusões de óptica" é que nessa dramaturgia
anamórfica o espaço museológico pareça simplesmente euclidiano. O museu parece usar a
máscara (mas então não há máscara alguma pois tudo é máscara) de uma feira livre ou loja
de departamentos heterotópica de modelos alternativos de ação que poderiam sertomados e
consumidos, meditados, imaginados e projetados sobre alguém ou os outros. Do que isso nos
desvia a atenção, é claro, é do quadro mais abrangente e das determinações desses espaços
historiocênicos: dos efeitos sociais gerais desses feitos rituais, que: (a) representam exemplo
concreto de uma ideologia da nação senão como uma questão individual escrita em letras
garrafais; e (b) reduzem a meras variações todas as diferenças e disjunções entre indivíduos e
culturas; a versões diferentes, mas comensuráveis, da mesma substância e identidade.
7. Dentro do museu, cada objeto é uma armadilha para o olhar. Enquanto nosso poderde
apreensão permanece fixo, parado no plano do espécime individual, podemos achar confortável
ou agradável acreditar numa "intencionalidade" individual em ação na produção e aparência
de coisas, como sua causa significante e definida, e até mesmo final. A intencionalidade torna-
se o de fuga ou o horizonte explanatório da causalidade.
8. O museu também pode ser como um instrumento de produção de
sujeitos sexuados. As topologias de atitudes de gênero imaginárias estão entre os efeitos da
instituição: a atitude do operador ou usuário (o "observador") do museu é um análogo indis-
tinto de uma atitude ou postura heterosocial indistinta (geralmente masculina, embora não

54 XXiV Biena! Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


necessariamente). Mas, como objeto do desejo, o artefato encenado e historiocênico de museu
é simultaneamente um simulacro de um sujeito ou ser instrumental (geralmente feminino,
embora não necessariamente) com quem o sujeito que observa se vinculará (ou porquem será
repelido). Em suma, a superposição de sujeitos e objetos dentro do espaço historiocênico do
museu cria condições para obscurecer ou complicar as distinções de gênero masculino-
feminino: em outras palavras, o objeto de museu é sexualmente ambíguo. Tal ambigüidade
cria a necessidade do enquadramento mais distintivo dos gêneros. O que fica evidente nesse
processo é que toda arte é travestida da realidade, e que tanto as sexualidades hegemônicas
quanto as marginalizadas são elas próprias reiterações e imitações repetidas e sucessivas das
idealizações delas mesmas. Tal como a atitude do observador no espaço de exposição já está
sempre pré-fabricada e encomendada, assim também todo gênero é uma representação
"travestida" .
g. A museologia e a história da arte são meios instrumentais de distribuição do espaço
da memória. Ambas atuam em conjunto sobre as relações entre passado e presente, sujeitos e
objetos, história coletiva e memória individual. Essas operações amparam a transformação do
passado que é reconhecido no presente em um espaço historiocênico em que o passado e o
presente ficam imaginosamente justapostos, onde suas relações virtuais não podem deixar de
ser interpretadas como sucessão ou progressão; causa e efeito. Onde, em outras palavras, pode
sustentar-se a ilusão de que o passado existe em si mesmo e de si mesmo, imune às projeções
e aos desejos do presente.
O progresso na compreensão desse projeto museográfico bem como da museologia, que
é uma de suas facetas, exigiria que considerássemos com toda a seriedade a natureza paradoxal
desse objeto virtual (algo que, em Rethinking ali history [Repensando a história da arte], chamei
de objeto eucarístico) que constitui e preenche esse espaço. A arte da história da arte e sua
museologia tornaram-se instrumentos para pensar representacional e historicamente; para ima-
ginarcerto tipo de historicidade comensurável com as teleologias nacionalistas (agora univer-
salmente exportadas) da modernidade européia. A história da arte, a filosofia estética, a crítica
de arte, a museologia e o próprio fazer artístico eram práticas sociais historicamente co-estru-
turadas cuja missão fundamental e conjunta era a produção de sujeitos e objetos comensuráveis
uns aos outros e possuidores de uma concordância harmônica que conviesse ao funcionamento
previsível e ordenado dos estados-nações e impérios coloniais que surgiam na Europa.
10. Ao mesmo tempo, esse empreendimento propiciava a introdução de um domínio

intei ro de conceitos gradativos e bi nários que pod iam ser em pregados como instru mentos
subsidiários para escrever (e depois contar) a história de todos os povos por meio da investi-
gação disciplinada e sistemática de suas produções culturais. A museologia e a história da
arte-alicerçadas em associações metafóricas, metonímicas e anafóricas que podiam ser
rastreadas em meio a seus espécimes arquivados-demonstravam, a rigor, que todas as
coisas podiam ser entendidas como espécimes, que a diferenciação em espécimes podia ser um
pré-requisito eficaz para a produção de conhecimento útil sobre qualquer coisa.
Em outras palavras, esse arquivo não era em si mesmo um depósito ou banco de dados
passivo; em vez disso, era um instrumento de crítica per sei um dispositivo dinâmico para
calibrar, graduare dar conta das variações de continuidade e da continuidade das variações e
diferenças. A técnica epistemológica do arquivo museográfico era e permanece indispensável
à formação política e social da nação e aos vários paradigmas que lhe legitimam a autoctonia
étnica, a singularidade cultural e o progresso (ou declínio) ético, tecnológico ou social em
relação a Outros reais ou imaginários.

55 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


Os empreendimentos do nacionalismo mítico exigiam a crença de que os produtos de
um indivíduo, ateliê, nação, grupo étnico, classe, raça ou mesmo de sexo partilhariam, de
modo suscetível de demonstração, propriedades comuns, consistentes e únicas; propriedades
essas de forma, espírito ou ainda de concordância harmônica do estilo com o assunto. Corre~
lato a isso era o paradigma de isomorfismo temporal: a tese de que uma época ou um período
histórico da arte seria assi nalado por semel hanças com paráveis de foco, preocu pação temática
ou estilo, ou ainda de técnicas de execução.
11. Isso tudo só tem sentido se não se fizer o enquadramento do tempo de modo simples~

mente linearou cíclico, mas de preferência como desdobramento progressivo, como enqua~
dramento de uma aventura romanesca ou épica de algum indivíduo, povo, nação ou raça. Só
então a noção de período teria perti nência como representação de um platô ou estágio na
evolução gradativa de um povo ou de uma nação. O período assinalaria as mudanças graduais
das coisas-como a transformação ou a mudança gradual de alguma Coisa (ou Espírito) sub~
jacente às coisas. A museologia e a história da arte forjaram objetos~histórias que funcionavam
como substitutos ou simulacros das histórias evolucionárias das pessoas, mentalidades e
povos. Consistiam de encenações narrativas-romances históricos ou contos históricos-que
serviam para demonstrar e delinear aspectos significativos do caráter, do nível de civilização
ou de engenho, ou do grau de progresso ou declínio social, cognitivo ou ético de um indivíduo,
raça ou nação. Os objetos históricos da arte assim foram sempre objetos~aulas de valordocumen-
tário, à medida que podiam ser expostos ou encenados como "testemunho" cogente do rela-
cionamento causal do passado com o presente, assim nos habilitando a articular certos tipos
de relações desejáveis (ou indesejáveis) entre nós mesmos e os outros.
12. A história da arte e a museologia serviram de conciliação modern(ist)a muito poderosa

e eficaz de política, religião, ética e estética. No final do século XX, ainda continua virtual~
mente impossível não ver conexões diretas, causais e essenciais entre um "artefato" e o caráter
ético (subentendido) e a capacidade cognitiva de seu(s) produtor(es). Essas suposições idea~
listas, essencialistas, racistas e historicistas que foram tão explicitamente articuladas nas ori~
gens históricas da museologia e da história da arte ainda abrangem regularmente o subtexto
das práticas contemporâneas, e se acham subjacentes a muitas perspectivas metodológicas e
teóricas, reciprocamente distintas ou opostas quanto a outros aspectos. Sua substância é a
"arte", esse extraordinário artifício (ou fetiche antifetichista) que é a arte da história da arte;
a invenção do Iluminismo destinada/idealizada para tornar~se uma linguagem universal da
verdade (a revelar-se ao longo de uma escala móvel que vai do fetiche primitivo até a arte). O
enquadramento comum dentro do qual toda a produção artística humana poderia ser colocada,
classificada, fixada em seus lugares apropriados e posta em movimento no romance histórico
da nação.
É claro que saber disso tudo não dá garantia alguma de que você evitará sercomido vivo
por seu museu. Tome cuidado, sempre.
Donald Preziosi. Traduzido do inglês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. Este ensaio resume parte da discussão de Donald Preziosi em a ciência dos materiais, ver D. Preziosi, Rethinking art history:
"The art of art history", D. Preziosi, The art of art history, Oxford: meditations on a coy science, New Haven: Vale University Press,
Oxford University Press, 1998, P.507-25. 1989, p.188.
2. O termo deriva de "Funes o memorioso", conto de Jorge 3. No original: to re-member. Pelo contexto, o autor pretendeu
Luis Borges sobre um indivíduo que se lembrava de tudo o q ue o leitor anglófono associasse re-member (remem brar, reu ni r
que havia experienciado; um lugarou um objeto funéico incor- novamente as partes) com remember (lembrar) [N. doT.].
pora na própria estrutura traços de toda a sua ontogenia ou 4. Ver D. Preziosi, op. cit., capítulo 4, "The coy science", 1989,
história. Sobre a noção de "funeicidade", conforme a emprega p.80-121.

56 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Donald Preziosi

Avoiding museocannibalism 1
We cannot escape museums, since the world of our modernity is itself, in most profound ways,
a supreme museological artefacto We cannot simply walk out an exit, since all the doors and
windows in museums are trompe-l'oeil doors and windows, painted on the walls around us
(one ofthese is called "post-"modernity, another Marxism, another semiology, etc.). To avoid
being eaten bya museum is admittedly a universal problem, given that we live in a world in
which virtually anything can be staged or deployed in a museum, and in which virtually anything
can be designated ar serve as a museum. It has become clear that understanding museology
and art history demands nothing less than a radical rethinking of not a few historical and
theoretical assumptions, and modes ofinterpretation and explanation. The Enlightenment
invention ofthe modern museum (and of art, and the aesthetic) was an event as profound and
as radical in its implications as the articulation of central-point perspective several centuries
earlier, and for not dissimilar reasons.
That it was a revolutionary social invention is clear. It was achieved abruptly in some
places, and more gradually in others, as was the case with the European social revolutions that
the new institution was designed to serve (and which of course at the sarne time were products
ofmuseology). The museum crystallised and transformed a variety of oIder practices ofknowl-
edge-production, formatting, storage, and display into a new synthesis that was commensurate
with the XVIII century deveIopment of other modern forms of observation and discipline in
hospitaIs, prisons, and schools. It was a central site for the manufacture of that larger synthesis
constituting modernity itseIf; it simuItaneousIy stands as one ofits most powerfuI epitomes.
Since the XVIII century, the world has been contained in museologicaI space.
So, again, how can we avoid being eaten? Let me offer a few observations which might
serve as suggestions as to how to avoid the worst of these cannibals-who, after all, are also
ourselves: artworks, museum visitors, artists, circulating about this space we are caught up
in-observations which are intended to make our consumption unpalatable. I admit that
knowing the exact contents of the poison one has been eating may not fully help with its cure,
but perhaps we can pass on the knowledge to others yet to be eaten in the hopes that our
entire tribe may not fully consume itself.
The Enlightenment institution of the museum established an historically-inflected ar
funeous 2 space-time. It thereby served as an epistemological technology: defining, formatting,
modelling, and "re-presenting" many forms of social behaviour by means of their products
ar relics. The world was recomposed and transformed into component parts ofthe stage-
machinery of display and spectacle. These worked to establish by example, demonstration, ar
explicit exhortation, various criteria for acceptable relations between subjects and objects,
among subjects, and between subjects and their personal histories, that would be consonant
with the needs ofthe modern(ist) nation-state.

57 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


Museums, in consuming time, established exemplary models of consumption: for a
"reading" of objects as traces, representations, reflections, ar surrogates ofindividuals,
groups, nations, and races, and oftheir "histories." These were civic spaces designed for the
European ceremonial engagement with (and thus the evocation, fabrication, and preservation
of) its own history and social memory. As such, museums made everything visible legible,
thereby establishing what was worthy to be seen, whilst teaching museum users how to read
what is to be seen: how to activate social memories. Art history becomes one ofthe voices-
one might even say a major popular historical novel-in and of museological space. ln a com-
plementary fashion, art history established itself as a window anta a vast imaginary universal
museum, encyclopaedia, ar archive of all possible specimens of all possible arts, in relation to
which any possible physical exhibit, collection, ar museum would be itself a fragment ar parto
Since its invention in late XVIII century Europe as one of the premier epistemological
technologies ofthe Enlightenment, and ofthe social, politicaI, and ethical education ofthe
populations of modernising nation-states, the modern museum has most commonly been
constru(ct)ed as an evidentiary and documentary artefacto At the sarne time, it has been an
instrument ofhistoriographic practicei a civic instrument for practising history. lt constitutes
in this regard a specific mo de of fiction: one of the most remarkable genres of imaginative
fiction, and one which has beco me an indispensable component of statehood and of national
and ethnic identity and heritage in every corner of the world. ln no small measure, modernity
itselfis the museum's collective product and artefacti the supreme museographic fiction.
What is identity ifit can be "re-presented"? What constitutes such "representation"?
What exactly makes it even believable? The possibilities of representation in the modern world
are closely tied to the affordances ofthe system of cultural technologies in service to, and
simultaneouslyenabling, the nation-state. Some brief observations:
r. Museums do not simply or passively reveal ar "refer" to the pasti rather they perform
the basic historical gesture of separating out ofthe present a certain specific "past" so as to
collect and recompose (to re-member) its displaced and dismembered relics as elements in a
genealogy of and for the presento The function of this museological past sited within the space of
the present is to signal alterity or othernessi to distinguish from the present an Other which can
be reformatted so as to be legible in some plausible fashion as generating ar producing the
presento What is superimposed within the space ofthe present is imaginatively juxtaposed to it
as its prologue. This museological "past" is thus an instrument for the imaginative production
and sustenance of the present; of modernity as such. This ritual performance of commemora-
tion is realised through disciplined individual and collective use ofthe museum, which, at the
most basic and generic leveI, constitutes a choreographic ar spatiokinetic complement ar
analogue to the labour of reading a novel ar newspaper, ar attending a theatre ar shaw.
2. The elements of museographic writing, including art history, aesthetic philosophy, and

art criticism, are rhetorical tropes ar linguistic devices that actively compose, "read," and alle-
gorise the pasto ln this regard, our fascination with the institution ofthe museum-our being
drawn to it and being held in thrall to it-is akin to our fascination with the novel, and in par-
ticular the "mystery" novel ar story. Both museums and mysteries teach us how to solve things;
how to think; and how to put two and two together. Both teach us that things are not always as
they seem at first glance. They demonstrate that the world needs to be coherently pieced together
(literally, re-membered) in a fashion that may be perceived as rational and orderly: a manner
that, in reviewing its steps, seems by hindsight to be natural or inevitable. ln this respect, the
present of the museum (within the parameters of which is also positioned our identity) may be

58 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


staged as the inevitable and logical outcome of a particular past (i.e., our heritage and origins) ,
thereby extending identity and cultural patrimony back into an historical or mythical past,
which is thereby recuperated and preserved, without appearing to lose its mystery. ln essence,
both novel and museum evoke and enact a desire for panoptic or panoramic points of view
from which it may be seen that all things may indeed fit together in a true, natural, real, or
proper order. Both modes of magic realism labour at convincing us that each of us could "really"
occupy privileged synoptic positions, despite all the evidence to the contrary in daily life, and in
the face of domination and power. Exhibition and art-historical practice (both of which are
subspecies of what l am calling here museography) are thus genres of imaginative fiction.
Their practices of composition and narration constitute the "realities" ofhistory chiefly through
the use of prefabricated materiaIs and vocabularies-tropes, syntactic formulas, methodologies
of demonstration and proof, and techniques of stagecraft and dramaturgy.3 Such fictional
devices are shared with other genres of ideological practice such as organised religion and the
entertainment (containment) industries.
3. The museum is also the site for the imaginary exploration oflinkages between subjects
and objects; for their superimposition by means ofjuxtaposition. The art museum object may
be imagined as functioning in a manner similar to an ego: an object that cannot exactly coincide
with the subject, that is neither interior nor exterior to the subject, but is rather a permanently
unstable site where the distinction between inside and outside, subject and object, is continually
and unendingly negotiated. The museum in this regard is a stage for socialisation; for playing
Thomas Struth Galleria dell'Academia I, Venice 1992 c-print 185 x 228cm cortesia Marian Goodman Gallery, Nova York

59 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


out the similarities and differences between an I (or eye) confronting the world as object,
and an I (or eye) confronting itself as an object among objects in that world-an adequation,
however, that is never quite complete.
4. ln modernity, to speak of things is to speak of persons. The art of art history and of
aesthetic philosophy is surely one of the most brilliant of modern European inventions, and an
instrument for retroactively rewriting the history of all the world's peoples. lt remains an
organising concept which has made certain Western notions of the subject more vividly palpable
(its unity, uniqueness, self-sameness, spirit, non-reproducibility, etc); in this regard it recapitu-
lates some of the effects of the earlier invention of central-point perspective. At the sarne time,
the art of art history carne to be the paradigm of all production: its ideal horizon, and a standard
against which to measure all products. ln a complementary fashion, the producer or artist
became the paragon of all agency in the modern world. As ethical artists of our own subject
identities, we are exhorted to compose our lives as works of art, and to live exemplary lives:
lives whose works and deeds may be legible as representative artefacts in their own right.
5. Art is both an object and an instrumentolt is thus the name of what is to be seen, read,
and studied, and the (often occluded) name ofthe language ofstudy itself; ofthe artifice of
studying. As with the term "history," denoting ambivalently a disciplined practice of writing
and the referential field ofthat scriptural practice, art is the metalangliage ofthe history fabri-
cated by the museum and its museographies. This instrumental facet of the term is largely
Thomas Struth National Gallery I, London 1989 c-print 180x196cm cortesia Marian Goodman Gallery, Nova York

60 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


submerged in modern discourse in favour of the "objecthood" of art. What would an art
historical or museological practice consist of which was attentive to this ambivalence? As an
organising concept, as a method of organising a whole field of activity with a new centre that
makes palpable certain notions ofthe subject, art re-narrativises and re-centres history as welI.
As a component of the Enlightenment project of commensurability, art became the universal
standard or measure against which theproducts (and by extension the people) of all times and
places might be envisioned together on the sarne hierarchical scale or table of aesthetic
progress and ethical and cognitive advancement. To each people and place its own true art, and
to each true art its proper position on a ladder of evolution leading toward the modernity and
presentness ofEurope. Modern Europe becomes not only a collection of artworks, but European
modernity itselfbecame the organising principIe of collecting.
Art, in short, carne to be fielded as central to the very machinery ofhistoricism and essen-
tialism; the very Esperanto ofEuropean hegemony. It may be readily seen how the culture of
spectacle and display comprising museology and museography became indispensable to the
Europeanisation of the world: for every people and ethnicity, for every class and gender, for
every individual no less than for every race, there may be projected a legitimate "art" with its
own unique spirit and soul; its own history and prehistory; its own future potential; its own
respectability; and its own style of representational adequacy. The brilliance of this colonisation
is quite breathtaking: there is no "artistic tradition" anywhere in the world which today is not
fabricated through the historicisms and essentialisms ofEuropean museology and museogra-
phy, and (of course) in the very hands of the colonised themselves. ln point of fact, art history
makes colonial subjects of us alI. ln other words, the Enlightenment invention of the "aesthetic"
was an attempt to come to terms with, and classifY on a common ground or within the grid of
a common table or taxonomy, a variety of forms of subject-object relationships observable (or
imagined) across many different societies. As object and instrument, this art is simultaneously
a kind of thing, and a term indicating a certain relativisation of things. lt represents one end in
a hierarchised spectrum from the aesthetic to the fetishistic: an evolutionary ladder on whose
apex is the aesthetic art ofEurope, and on whose nadir is the fetish-charm of primitive peoples.
6. Taking up a position from within the museum makes it natural to construe it as the
very Summa of optical instruments, of which the great proliferation of tools, toys, and optical
games and architectural and urban experiments of the 18th and 19th centuries might then be
understood as secondary servomechanisms and anecdotal emblems. The institution places its
users in anamorphic positions from which it may be seen that a certain historical dramaturgy
unfolds with seamless naturalism; where a specific teleology may be divined or read in geoman-
tic fashion as the hidden figure ofthe truth of a collection offorms; and where all kinds of
genealogical filiations may come to seem reasonable, inevitable, and demonstrable. Modernity
itself as the most overarching form ofidentity politics.1t is the most extraordinary of"optical
illusions" that museological space appears simply Euclidean in this anamorphic dramaturgy.
The museum appears to masquerade (but then there's no masquerade, for it's all masquerade)
as a heterotopic lumber-yard or departnient store of alternative models of agency that niight
be taken up and consumed, meditated upon, imagined, and projected upon oneself or others.
What one is distracted from is of course the larger picture and the determinations of these
storied spaces: the overall social effects ofthese ritual performances, which (a) instantiate
an ideology of the nation as but an individual subject writ large, and (b) reduce all differences
and disjunctions between individuaIs and cultures to variations on the sarne; to different but
commensurate versions of the sarne substance and identity.

61 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


7. Within the museum, each object is a trap for the gaze. As long as our purview remains
fixed in place at the leveI of the individual specimen, we may find it comfortable ar pleasing to
believe in an individual "intentionality" at play in the production and appearance ofthings, as
its significant and determinate, and even final, cause. lntentionality becomes the vanishing
point, ar explanatory horizon, of causality.
8. The museum may also be understood as an instrument for the production of gendered
subjects. The topologies ofimaginary gender positions are among the institution's effects: the
position ofthe museum user ar operator (the "viewer") is an unmarked analogue to that of an
unmarked (usually, but not necessarily, male) heterosocial pose ar position. But as an object of
desire, the staged and storied museum artefact is simultaneouslya simulacrum of an agental
being ar subject (usually, but not necessarily female) with whom the viewing subject will bond
(ar be repelled by). ln short, the superimposition of subjects and objects within the storied
space ofthe museum creates the conditions for a blurring ar complexifYing ofmale-female
gender distinctions: the museum object, in other words, is gender-ambiguous. Such an ambi-
guity creates the need for more distinct gender-framing. What becomes clear in the process
is that all art is drag, and that both hegemonic and marginalised sexualities are themselves
continuaI and repeated imitations and reiterations oftheir own idealisations. Just as the
viewer's position in exhibitionary space is always already prefabricated and bespoken, so too
is all gender (a) drago
9. Museology and art history are instrumental ways of distributing the space of memory.
Both operate together on the relationships between the past and present, subjects and objects,
and collective history and individual memory. These operations are in aid of transforming the
recognised past in the present into a storied space wherein the past and present are imaginatively
juxtaposed, where their virtual relationships cannot be construed as succession and progres-
sion; cause and effect. Where, in other words, the illusion that the past exists in and of itself,
immune from the projections and desires ofthe present, may be sustained.
Progress in understanding this museographical project, as well as the museology which is
one of its facets, would entail taking very seriously indeed the paradoxical nature of that virtual
object (what l called in Rethinking art hístory the eucharistic object) that constitutes and fills that
space. The art of art history and its museology became instruments for thinking representa-
tionally and historically; for imagining a certain kind ofhistoricity commensurate with the
(now universally exported) nationalist teleologies ofEuropean modernity. Art history, aesthetic
philosophy, art criticism, museology, and art-making itselfwere historically co-constructed
social practices whose fundamental, joint mission was the production of subjects and objects
commensurate with each other, and possessive of a decorum suitable for the orderly and
predictable functioning ofthe emergent nation-states and colonial empires ofEurope.
Ia. At the sarne time, this enterprise afforded the naturalisation of an entire domain of
dyadic and graded concepts that could be employed as ancillary instruments for scripting
(and then speaking about) the histories of all peoples through the systematic and disciplined
investigation of their cultural productions. Museology and art history were grounded upon
the metaphoric, metonymic, and anaphoric associations that might be mapped amongst their
archived specimens. They demonstrated, in effect, that all things could be understood as
specimens, and that specimisation could be an effective prerequisite to the production of
useful knowledge about any thing.
This archive, in other words, was itself no passive storehouse ar data bank; it was rather
a criticaI instrument in its own right; a dynamic device for calibrating, grading, and accounting

62 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


for variations in continuity and continuities in variation and difference. The epistemological
technology of the museographical archive was and remains indispensable to the social and
politicaI formation of the nation and to its various legitimising paradigms of ethnic
autochthony, cultural uniqueness, and social, technological, or ethical progress (or decline)
relative to real or imagined Others.
The enterprises of mythic nationalism required a belief that the products of an individual,
studio, nation, ethnic group, class, race, or even gender would share demonstrably common,
consistent, and unique properties of form, decorum, or spirit. Correlative to this was a para-
digm oftemporal isomorphism: the thesis that an art-historical period or epoch would be
marked by comparable similarities of style, thematic preoccupation or focus, or techniques
of manufacture.
II. All ofthis only makes sense iftime is framed not simply as linear or cyclic but rather as
progressively unfolding, as framing some epic or novel-like adventure of an individual, people,
nation, or race. Only then would the notion of the period be pertinent, as standing for a plateau
or stage in the graded development of a people or nation. The period would mark gradual
changes in things-as the gradual change or transfarmation of some Thing (or Spirit) underly-
ing things. Museology and art history fabricated object-histories as surrogates for ar simulacra
ofthe developmental histories ofpersons, mentalities, and peoples. These consisted ofnarrative
stagings-historical novels or novellas-that served to demonstrate and delineate significant
aspects of the character, leveI of civilisation or of skill, or the degree of social, cognitive, or
ethical advancement or decline of an individual, race, or nation. Art-historical objects have
thus always been object-Iessons of documentary import insofar as they might be deployed or
staged as cogent "evidence" ofthe past's causal relationship to the present, enabling us thereby
to articulate certain kinds of desirable (and undesirable) relations between ourselves and others.
12. Art history and museology have served as a very powerful and effective modernCist)

concordance ofpolitics, religion, ethics, and aesthetics. It still remains virtually impossible, at
the end of the XX century, not to see direct, causal, and essential connections between an arte-
fact and the (co-implicative) ethical character and cognitive capacity ofits producer(s). Such
idealist, essentialist, racist, and historicist assumptions which were so explicitly articulated in
museology and art history in their historical origins still commonly comprise the subtext of
contemporary practices, underlying many otherwise distinct or opposed theoretical and method-
ological perspectives. Its substance is "art," that extraordinary artifice (or anti-fetishist fetish)
which is the art of art history; the Enlightenment invention designed/destined to become a
universallanguage oftruth (revelatory along a sliding scale from primitive fetish to art).
The common frame within which all human manufacture could be set, classified, fixed in its
proper places, and set into motion in the histarical novel ofthe nation.
Of course, knowing all this is no guarantee that you will avoid being eaten alive by your
museum. Be careful, always. Donald Preziosi

1. The present essay is a summary of part of the argument of its very structure. On the notion of"funicity" as employed in
Donald Preziosi, "The art of art history," D. Preziosi, The art of materiaIs science, see D. Preziosi, Rethinking art history: medi-
art history, Oxford: Oxford University Press, I998, PP.507-25. tations on a coy scíence, New Haven: Yale University Press, I989,
2. The term is derived from the ride of a Jorge Luis Borges p.I88.
story "Funes the memorious," about an individual who remem- 3. See D. Preziosi, op. cito chapter 4, "The coy science," I989,
bered everything he had ever experienced; a funeous object or pp.80-I21.
place incorporates traces of its entire history or ontogeny in

63 Evitando museocanibalismo Donald Preziosi


"[ ... ] o corpo ultrapassa aqui seus próprios limites: engole, devora, despedaça
o mundo, cresce e se enriquece à custa do mundo. O encontro do homem com o
mundo, que se dá dentro da boca aberta, que morde, rasga, mastiga, é um dos
mais antigos e mais importantes objetos do pensamento e imagética humanos.
Aqui o homem degusta o mundo, o introduz em seu próprio corpo, faz dele parte
de si próprio [... ]. O encontro do homem com o mundo no ato de comeré alegre,
triunfante; ele triunfa sobre o mundo, devora-o sem serele mesmo devorado. Os
limites entre o homem e o mundo são apagados, com vantagem para o homem."

Extraído de Mikhail Bakhtin, [Rabelais e seu mundo]. Traduzido do inglês por


Adriano Pedrosa.

64 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


"[... ] the body transgresses here its own limits: it swallows, devours, rends the
world apart, is enriched and grows at the world's expense. The encounter ofman
with the world,which takes place inside the open, biting, rending, chewing
mouth, is one ofthe most ancient, and most important objectsofhuman thought
and imagery. Here man tastes the world, introduces it into his own body, makes it
part ofhimself [... ]. Man' s encounter with the world in the act of eating is joyful,
triumphant; he triumphs over the world, devours it without being devoured him-
self. The limits between man and the world are erased, to man's advantage."

Extracted from Mikhail Bakhtin, Rabelaís and hís world, trans. Hélene Iswolosky,
Cambridge, Mass.: MIT Press, 1968, p.28r.

65 Fragmento
Albert Eckhout 1641 óleo sobre tela [oil on canvas] coleção The National Museum of Denmark, Copenhague
Mameluca [Mameluke] 267x160cm
índiaTupi [Tupi woman] 265x157cm
Mulher africana [African woman] 267x178cm
índia Tarairiu [Tarai riu indian woman] 264x159cm

66 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


67 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo e Jean François Chougnet
Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII
curadoria Ana Maria Belluzzo e Jean-François Chougnet

Trans-posições Ana Maria Belluzzo

o sujeito no lugar do outro


Não surpreende que a imagem do canibal tenha se tornado, no século XX, bandeira de movi-
mentos de renovação artística que pregavam o pensamento selvagem como técnica de criação e
estratégia de demolição de discursos gastos e hipócritas. A revista de Picabia, Cannibale, preconiza
em 1920 o grande trabalho de destruição dadaísta. A expressão pensamento selvagem usada por
André Breton irá, futuramente, intitularo clássico livro de Lévi-Strauss, que compreende que o
termo não diz respeito ao pensamento dos selvagens, nem de uma humanidade primitiva ou
arcaica, mas ao pensamento em estado selvagem, distinto do pensamento cultivado ou domes-
ticado, em vista de obter uma vantagem 1 •
Na história cultural brasileira e, por extensão, latino-americana, tal estratégia é patenteada
pela abordagem antropofágica, cujas peculiares significações surgem em experimento poético,
no ano de 28. A poética antropofágica, indissociável da consciência de Oswald de Andrade e das
interpretações figurativas de Tarsila do Amaral, indaga sobre as características do Mundo Novo
em relação à cultura do Velho Mundo. Nasce, assim, do encontro de culturas, ecoando sentidos
polivalentes derivados do entrechoque, da catequese e da assimilação do outro, em respostas
sincréticas resultantes da heterogeneidade cultural.
Oswald reinventa um inconsciente nacional, a partir da combinação de fragmentos de
relatos de viagem, recortados e colados. Encontra motivações na Wahrhaftige Historia, de Hans
Staden. Não faltam em seus textos evidências de leituras de Thevet, Léry, Abbeville, Evreux, Saint-
Hilaire, Koster, Martius e Taunay, entre outros europeus que estiveram no Brasil. Sua prática
literária nutre-se da literatura de viagem, que fornece matéria-prima culinária para a ritual devo~
ração espiritual do outro e para a conquista de poderes dos antepassados. Tudo feito como man-
dava o canibalismo, que Oswald chama de antropofagia e cultura culinária, por espírito de troça.
No campo das idéias, antropofagia e canibalismo são metáforas que aludem às origens, insti-
gam retorno, ida para dentro, tendo por motivo o encontro e confronto de diferentes perspectivas
culturais. Como técnica de formação, a antropofagia manipula valores interculturais inerentes
ao processo histórico brasileiro e faz da devoração do discurso estranho um meio de expressar o
próprio íntimo. Canibalizar suportes de outras culturas é para Oswald uma preparação ritual:
apropria para re-significar, passando ao paradigma oposto àquele que está na origem 2 •
A proposta de uma pontuação histórica por meio de obras do século XVI, XVII e XVIII, no
cerne desta XXIV Bienal de São Paulo, tem o intuito de aproximar significados de histórias de
canibalismo e procedimentos antropofágicos engendrados em relações interculturais. Pretende
comentar trans-posições feitas no curso da história da imagem e toma a liberdade de atuartrans-
posições no próprio espaço de exposição. Trans-pôr-pôr algo em lugar diverso daquele em
que estava ou deveria estar-torna-se um recurso para versar, em última instância, o sujeito no
lugar do outro .
... no princípio eram estórias do corpo do outro como alimento. Na origem de todos os
relatos sobre o Brasil está a memória do aventureiro alemão Hans Staden, presença que assume

68 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


contornos de lenda e funda nossa literatura de viagem. A sua importância não se deve ao fato de
ter sido o primeiro relato, mas à permanência das imagens e dos conteúdos primordiais que narra
por ocasião de sua estada entre índios tupinambás.
Hans Staden é o herói-viajante que ocupa lugar central na estrutura da narrativa mítica.
Rompe os liames com o mundo conhecido e dominado e passa a oscilarao sabordas incontro-
láveis forças do universo. O aventureiro alemão é tido pelos índios tupinambás por português e
inimigo, preso, ameaçado de morte e devoração canibal. De conquistador, passa a prisioneiro
no interiorde uma aldeia indígena e usa sua astúcia para sobreviver. Afinal, a salvação do herói
é comemorada como vitória da sabedoria cristã européia sobre as práticas mágicas dos índios.
As ilustrações feitas a partirdo texto fazem uer o ocorrido e tornam o relato uerossímel, acompa-
nhando a narrativa de Staden na primeira pessoa e o Pequeno relatório uerídico sobre a uida dos
índios tupinambás.
As operações que preparam a visualização das figuras indígenas são transcrições de texto
em imagem e manipulações de imagens, recriadas em repertório transformado. Podem serobser-
vadas se compararmos três relatos do século XVI3. Wahrhaftige Historia, de Hans Staden, aparece
na Alemanha, em '557, e inscreve observações de interesse etnográfico na narrativa popular.
Histoire d'un uoyage fait en la terre du Brésil, de Jean de Léry, aparece na França em '578, descrevendo
o que ele teria presenciado em expedição à malograda França Antártica. Situa exemplarmente o
relato erudito do renascimento francês, que se utiliza de modelos da Antigüidade clássica para
estabelecer uma valorização positiva dos homens do Novo Mundo. A edição gravada de Grands
uoyages, ambicioso projeto gráfico de Theodore de Bry, publicado na Antuérpia, divulga novas
versões das viagens de Staden e Léry e assinala o momento em que o argumento visual toma
proeminência e conquista autonomia com relação ao texto, do qual se desgarra.
Antropofagia alimentar ou canibalismo? Inúmeras gravuras difundiram pedaços de carne
humana cozidos sobre o moquém, transmitindo uma imagem culinária da cultura americana.
Tudo indica que o tratamento visual não é propício à argumentação do canibalismo ritual,
entendido como prática necessária para a sobrevivência da tribo, condizente com atos de emu-
lação e fortalecimento da nação guerreira, com a crença na aquisição dos poderes do inimigo.
Staden e Léry contam práticas de transformação do prisioneiro e apresentam cerimônias
de dança, que reforçam a hipótese de canibalismo ritual praticado pelos tupinambás. Afastam
a suposição de antropofagia alimentar, ao revelar que o prisioneiro não é sumariamente abatido,
retalhado e devorado, sendo sua morte precedida de brincadeiras, bebedeiras e festas .
De Bry confere teor dramático à narrativa visual sobre o canibalismo. Acentua o caráter
demoníaco da mutilação, carrega o tema de aspectos aterrorizantes. No desenrolarda seqüência
de imagens sobre as práticas canibais, as figuras ideais dos índios tupinambás sofrem transfor-
mações biológicas, registradas na degeneração dos corpos à medida que comem carne huma-
na. A vitória do feio sobre o belo introduz na imagem princípios de valorização. No lugar do nu
bem proporcionado, surge a velha índia de seios caídos, como indicou Bernadette Boucher 4 •
Como parte das reflexões sobre o alcance da descoberta das novas terras, Montaigne foi
responsável por uma nova apreciação dos selvagens. O autor do ensaio "Dos canibais" situa o
homem, e não o mundo, no centro de suas indagações e realiza uma "defesa do natural", imbuí-
do dos valores utópicos que marcaram a imaginação poética dos literatos franceses tocados
pelas evidências do Novo Mundo: poetas da Plêiade, Ronsard e La Boetie, para os quais a França
havia se tornado inabitável. Montaigne não vê nada de bárbaro ou selvagem no q ue é contado a
propósito dos povos da França Antártica, e adverte sobre a cegueira dos que julgam bárbaros os
costumes dos habitantes do Novo Mundo, sem atentar para suas próprias práticas. Aprecia o

69 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


fato de os canibais viverem sem partilha de bens e de não haver, entre eles, ricos e pobres. Reco-
nhece a afeição que dedicam às mulheres e a valentia com que enfrentam a guerra. Entende que
os canibais não comiam inimigos para se alimentar, mas porvingança, o que querdemonstrar
com o desafio cantado na ocasião do abate de um prisionei ro:

"[ ... ] que se aproximem todos com coragem e se juntem para comê-lo; [... ]
Não reconheceis a substância dos membros de vossos antepassados que, no entanto, ainda se
encontram em mim?
Saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne."s

Sacrifício do corpo
Há também interesse em identificar possíveis significados que, durante o século XVI, se somaram
à prática do sacrifício do corpo humano, ao seu desmembramento e parcelamento, à sua ingestão
e digestão. O forte impacto das imagens de canibalismo no inconsciente europeu-creio que
também na contemporaneidade-decorre do teor agressivo e deriva em grande medida da trans-
gressão do tabu de não se comer carne humana. A imagem de canibalismo é sobretudo pertur-
badora. Os livros dos viajantes dão eco à imaginação religiosa e as imagens de sacrifício estão
contaminadas porsugestães do martírio e da via-crúcis de Cristo. No âmbito do imaginário reli-
gioso, o sofrimento do corpo é associado ao pecado, e não só à ação demoníaca, como também
à visão do purgatório. Acrescente-se que, no cerimonial católico, o momento de renovação dos
fiéis pelo sacramento da Eucaristia compreende o recebimento do corpo e sangue de Cristo,
pela prática simbólica da Comunhão.
Albert Eckhout Dança tarairiu [Tarai riu dance] s.d. óleo sobre madeira [oil on wood] 168 x 294cm coleção The National Museum
of Denmark, Copenhague
Tunga TaCaPe [Club] 1986-97 103x20x30cm coleção do artista cortesia Galeria Luisa Strina, São Paulo

70 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Quanto às estruturas inconscientes nas quais poderiam repousar as imagens de caniba-
lismo, lembro que Lacan encontra na fantasia infantil do corpo desmembrado, da fase que ante-
cede a imagem do espelho, uma imagem de dispersão pânica. Faz referência à função do espelho, na
fase em que a criança integra a sua imagem corporal e "se integra na dialética que o constituirá
como sujeito". Remete à "experiência da identificação e à conquista da imagem do corpo e da
estrutura do eu, antes que o sujeito se comprometa com a dialética de identificação com o pró-
ximo por intermédio da linguagem". Lacan considera todas as imagens de castração, esquarte-
jamento ou destripamento-que figuram entre as imagos arcaicas-como pertencentes à mesma
estrutura: a da fantasia do corpo fragmentad0 6 •

Alegorias sobre o reino do céu e sob o reino da terra


Na fabulação desencadeada com o ciclo das descobertas, o homem sonha com míticos Eldorados
ao sul do Equador. O Éden encontra-se na América, onde vive o bom seluagem. Em contrapartida,
a quarta parte do universo recentemente descoberta corresponde aos mundos inferiores-inferus
em grego, raiz da palavra inferno-, com seus monstros marinhos, abismos povoados de cria-
turas insólitas e tribos de comedores de carne humana. O bom seluagem e o canibal, a visão para-
disíaca e a visão infernal são efetivamente as metáforas mais freqüentes reproduzidas pelos
europeus sobre o homem e a terra americana ao longo dos séculos XVI e XVII.
O inferno é título de uma pintura quinhentista portuguesa, na qual o índio aparece inscrito
no universo da religião cristã. A tela pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa é de
autoria desconhecida, datando, provavelmente, da primeira metade do século XVI. A imagem do
demônio personificada no índio brasileiro é uma operação simbólica condizente com o projeto
missionário colonizador.
No referido quadro da oficina infernal, as figuras do mal atormentam o ser humano, sob a
imagem ambígua de homens animais e seres hermafroditas, enquanto as figuras torturadas
mostram-se impassíveis. Atuam no quadro outras áreas de contaminação e transferência de
significados, promovendo um paralelo entre punição dos corpos no inferno e práticas canibais
dos índios brasileiros.
Nas configu rações da América elaboradas pelos europeus, a operação central foi sempre
alegórica, estando de acordo com a noção clássica de alegoria. Em grego, allós querdizeroutro
e agourein querdizerfalar. A alegoria greco-Iatina é um modo de formar uma modalidade de
elocução, pela qual se diz uma coisa para significar outra.
A compreensão moderna de alegoria compreende tanto o falar alegoricamente, quanto o .
interpretar alegoricamente? Para se apreender um mundo novo não conhecido, os autores dos
séculos XVI e XVII valem-se de comparações verbais, colocando dois termos em relação de seme-
lhança ou diferença. Para fazer uer um mundo ainda não conhecido, figuram idéias em imagens
visuais. A evidência da figura visual tem suas implicações na recepção da imagem e algo sucede
na passagem de um código a outro-entre a comparação literal por imagem figurada e a metá-
fora visual: a perda da comparação e assimilação de um termo no outro, a perda da negação
como meio d iscu rsivo B•
No entendimento dos séculos XVI e XVII, a representação da figura humana indígena
incorpora a terra americana, guardando-se uma correlação entre corpo e território. Tal corres-
pondência simbólica irá se fixar em um gênero de pintura por excelência, que foi a Alegoria dos
quatro continentes, que se refere ao mundo então conhecido. Ao lado das personificações femininas
da Europa, Ásia e África, a índia canibal torna-se convenção e conceito do continente americano.
As figuras femininas, dotadas de determinados atributos físicos, vestimentas e objetos alusivos,

71 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


são motivos literários que baseiam composições artísticas. Em fins do século XVI, a atitude do
pintoré tida como simétrica à dos poetas e oradores, que criam imagens aos olhos dos leitores.
A Iconologia de Cesare Ripa propõe a alegoria criativa e ficcional, a imagem atua de modo
que, ao ler, você veja e, ao ver, você leia. Não caberiam suas descrições da riquíssima mulherque
é a Europa; dos atributos sensoriais da Ásia, nem da moura África rodeada de leões ferozes,
víboras e serpentes. Mas vale a pena transcrever o que diz sobre a América: ... "mulher nua, de
carnação fosca, amarelada, de feições terríueis, e com um uéu listrado de uárias cores caindo de um ombro
atraués do corpo, que cobre as suas partes uergonhosas. As mechas são esparsas e em torno do corpo há um
uago e artificioso ornamento de penas de uárias cores. Leua na mão esquerda um arco e na direita uma fiecha,
nas costas uma fáretra cheia de fiechas, sob o pé uma cabeça humana transpassada por uma fiecha e na terra
está um lagarto ou um liguro"de medida desproporcional. São feras que deuoram homens e outros animais [...]
Sobre ela escreueram os modernos: Bárbara gente que come carne humana".9
Entre várias interpretações plásticas de alegorias dos quatro continentes, merecem espe-
cial atenção as versões européias de Peter Paul Rubens; de Jan van /(essel que utiliza desenhos
de Albert Eckhout; de seu filho Ferdinand van /(essel. Reveste-se de particular interesse para
nossas reflexões, o fato de o gênero ter sido assimilado no século XVIII por artistas brasileiros de
diferente preparo e talento, como demonstram as séries de Teófilo deJesus e de artista anônimo
atuante em Minas Gerais.
O conjunto de quatro casais pintados por Albert Eckhout é das mais instigantes obras dos
holandeses no Brasil, elaborada sob a nova abordagem da ciência da natureza, que se desenvolve
em oposição à crença religiosa e sem preocupações morais, sendo o conhecimento da natureza
reduzido aos sentidos. Mesmo assim, não se poderia negar que as figuras de Eckhout mostram-
se contaminadas por concepções alegóricas em uso na época. O conjunto completo compreende
duplas que parecem retratos posados: índio tupi e índia tupi; índio tarairiu e índia tarairiu (tapuias);
Mulher mameluca e Homem mestiço; Mulher africana e Homem africano. Além da observação etnográ-
fica, os quadros exibem riqueza e exuberância de pormenores botânicos e zoológicos, como
atributos das personagens.
Os quatro continentes parecem ter-se reconstituído no interiorda colônia, sob a ótica do
domínio holandês. A perspectiva holandesa contempla efetivamente a rota que liga a África ao
Brasil e às Antilhas. O estabelecimento de postos na costa atlântica africana, necessários à nave-
gação européia, faz com que a África se torne, na perspectiva holandesa, um complemento do
continente americano, tal como aparece em outras composições de Eckhout. Essa visão funda-
menta o ângulo holandês, que mescla motivos do Brasil de um ponto de vista autodefinidor10.

Mixagem cultural: apropriação artística e re-semantização


A expansão da doutrina cristã constrói um aparato artístico monumental, capaz de garantir
sua soberania espiritual, e mobiliza artistas e artífices nas colônias, colocando-os a serviço da
Igreja Católica. Entre eles, muito formados nas tradições pré-colombianas. Para a evangelização
das colônias americanas convergem modelos artísticos trazidos das metrópoles européias. No
entanto, a arte religiosa hispano-americana e luso-americana está longe de ser um simples
transplante de formas. Existem brechas entre a mentalidade européia e a vida americana, que
merecem ser aprofundadas.
Nossa indagação recai sobre a multiplicidade de expressões artísticas que dão fundamento
áo processo de miscigenação cultural americana. O foco central de interesse é a hibridização
artística: mistura de temas europeus e motivos pré-hispânicos; entrecruzamentos de alegorias
cristãs e temas da mitologia profana; gostos e desejos expressos em formas indígenas coexistindo

72 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


nas imagens cristãs. Tal entrelaçamento cultural
de europeus e índios é característico dos círculos
artísticos andinos em que emergem, em fins do
século XVII e no século XVIII, padrões próprios de
alta qualidade, por exemplo em Cuzco, a capital
dos incas do alto Peru".
A cu ltu ra material dos povos ind ígenas sofre
profunda desarticulação, na experiência colonial
portuguesa, assentada na mão-de-obra do escravo
negro. Nos núcleos artísticos religiosos da região do
ouro das Minas Gerais, os modelos europeus são
assimilados com a contribuição de artífices negros
e afro-americanos, que dão cunho próprio à talha
dos retábulos barrocos e rococós, atingindo proeminente expressão nas obras escultóricas.
Alguns exemplos vêm evidenciartanto mesclas e fusões, quanto fraturas entre os modelos
de interpretação religiosa propostos e aqueles recebidos. E, se possível, esclarecertrans-posições
e inversões simbólicas ocorridas nas condições históricas particulares dos países da América
espanhola e portuguesa, enquanto incorporam cultura religiosa.
As artes figurativas concorrem para a substituição de ídolos pagãos por imagens da mãe
de Deus, conforme a ênfase da contra-reforma. Se a orientação religiosa promove o culto à virgem ,
a digestão da cristandade imbrica tradições religiosas espanholas e lendas americanas. Na
opinião de Lafaye, a devoção de Guadalupe-virgem negra reverenciada na Europa-permite
compreender a formação de uma consciência crioula. A atuação de artistas e artífices no vice-
reinado peruano e mexicano revaloriza motivos e os assimila ao sentido de forma e corda herança
técnica local'2.
A ação pedagógica da pintura religiosa não se atém às evidências do reino celeste. Propaga
cerimônias e práticas cristãs entre índios, figurando-os em representações de batismo e matri-
mônio, em cortejos de Corpus Christi. Entre os temas religiosos privilegiados por artistas colo-
niais brasileiros, chamo a atenção para a plástica escultórica que qualifica episódios da Paixão
de Cristo.
A última ceia realizada por Antonio Francisco Lisboa, conhecido como Aleijadinho, para um
dos Passos do Santuário de Congonhas do Campo, datada de fins do século XVIII, apresenta
soluções mais próximas das uias-crúcis que foram desenvolvidas na Europa, a partirdo século XV,
para promover a meditação entre os fiéis por meio da peregrinação aos lugares santos, espe-
cialmente representados em estações. As estações santas, que eram anteriormente medidas em
passos, substituem os lugares sagrados e convidam o peregrino à vivência dos acontecimentos
da Paixão. No Santuário de Congonhas, o caminho da cruz vai desde o passo da Última ceia e
percorre seis passos em subida ao Calvário, aproveitando a encosta do monte, motivo explorado
pela cenografia rei igiosa barroca 13.
O partido geral adotado é, portanto, o envolvi mento teatral do fiel na peregri nação aos
lugares santos, condizente com a representação realista da figura de Cristo e dos Apóstolos ,
trazidos à terra em escala humana, esculpidos em formas tangíveis de madeira de cedro.
O quadro vivo da paixão executado por Aleijadinho é obra de um devoto, que quer iluminar
Vicente Albán Yndio yumbo de Maynas con su carga [ ... ] con la flora y frutos dei pais índio yumbo de Maynas com a sua carga
[ ... ] com a flora e frutos do país [Yumbo indian from maynas with his cargo .. . with the flora and fruits from the country] série
Mestizaje escola de Quito [Quito school] 1783 80 x109cm coleção particular [private collection], Nuevo León , México

73 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


uma verdade abstrata e impalpável, trazê-Ia à realidade sensível. E justamente aí reside seu
ponto de fratura: no extremo realismo do objeto, no quadro vivo configurado como na realidade,
na orientação da cena religiosa no sentido da pintura de gênero.
Ainda sobre a Paixão, tema que impõe a apresentação da natureza divina transcendente
e da humanidade sofredora, destaco três obras escultóricas de lavra baiana, que traduzem a
força sobre-humana da divindade: o dramático Cristo na coluna, atribuído a Francisco Manoel
Chagas, o Cabra; o Senhor da coluna (ou Cristo ~agelado) e o Cristo da pedra fria (ou Senhor da paciência),
ambos atribuídos por D. Clemente da Silva-Nigra ao artista brasileiro Manuel Inácio da Costa,
obras procedentes do Antigo Convento de São Raimundo, hoje no acervo do Museu de Arte
Sacra da Bahia.
Na obra de Chagas, o sofrimento físico alcança o ponto de desestruturaro corpo do Cristo,
que assume expressão patética. Nas obras ecléticas e mais tardias atribuídas a Manuel Inácio da
Costa, a expressão do sofrimento manifesta-se à florda pele, na saliência das veias e ferimentos
esculpidos na madeira, é contido na anatomia tensa do corpo e liberado na feição resignada.
Jan van Kessel Americque América da série Os quatro continentes [The four continents] 1691 óleo sobre cobre [oil on copper]
48,5x67,5cm painel central de um conjunto de 17 [central pane i of a set of 17] coleção Alte Pinakothek München, Munique

74 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibali smos


Chama a atenção do observador a importância dada às chagas das costas de Cristo, flageladas
em carne viva, que remetem ao açoite dos escravos 14 •
Porfim, não poderia deixarde apontaro surgimento das pinturas de castas, novo gênero
de costumes de origem mexicana, que busca sistematizar as diversas etnias produzidas pela
mestiçagem. É a primeira vez que o artista dirige o olhar a seu redor, para a sociedade em que
vive, desejando construir um quadro taxonômico das diferenças. As pinturas datadas do século
XVIII compreendem diferentes tradições pictóricas, versadas por artistas de diversas formações
e grau de experiência, abrangendo desde a qualidade de um Miguel Cabrera até expressões
anônimas desequipadas. Afirmam sobretudo a realidade da miscigenação e valem como registro
da sociedade de castas em vias de dissolução.
O modelo da sociedade organizada em quadros segue o afã classificatório do século das
luzes. Como uma árvore genealógica da sociedade da Província da Nova Espanha, tem por base
o cruzamento de b"rancos (espanhóis), índios e negros, compostos em ordem familiarde casais
e filhos, dando primazia ao costume do matrimônio. As séries pintadas somam freqüentemente
dezesseis quadros, número de combinações derivadas das três espécies humanas:
"De Espanhol e índia nasce Mestiça. Espanhol e Mestiça produzem Castiça. De Espanhol e
Castiça, volta a Espanhol. De Espanhol e Negra sai Mulato. De Espanhol e Mulata sai Mourisca.
De Mourisca e Espanhol, Albino. De Albino e Espanhola, o que nasce Torna Atrás [. . .]"
O intuito de definir a sociedade mestiça pela nomenclatura inscrita no interiordo quadro
é prática emprestada da história natural e, embora tal organização étnica da população ameri-
cana se aproxime da antropologia física, não faltam conotações sociais, políticas e econômicas,
na descrição dos trajes, costumes, ofícios e ambientes, simultaneamente inventariados. Como
se pode notar, a terminologia proposta não é homogênea, adotando categoria e expressões cor-
rentes na fala. Não cabe demasiada expectativa com relação ao rigor científico dessas classifi-
cações de grande interesse artístico. Também se desconhece em que medida a definição do
lugar de cada grupo no conjunto da sociedade fixada em quadro geral poderia cristalizar direitos
e deveres da sociedade de castas em vias de se dissolver 1s . Ana Maria Belluzzo

1. Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage, Paris: Librairie Plon, 8. Bernadette Boucher, "Da comparação à metáfora", La
1962, P· 28 9· sauvage au seins pendants, Paris: Herman, 1977, P-40-41.
2. Benedito Nunes, Oswald canibal, São Paulo: Editora Perspe- 9. Cesare Ripa, Iconologia, apud Pietro Buscaroli (org.) e Mario
ctiva, 1979. Praz (pref.), Milão: TEA, 1993.
3. Hans Staden, Wahrhaftige Historia und Beschreibung Eyner 10. André Corvisier, História moderna, trad. de Rolando Roque
Landtschefft der Wilden Nackten. Grimmingen Menschfresser Leuthen ... da Silva e Carmem Olivia de Castro Amaral, São PaulolRio de
Marburg: Andres Kolben, 1557. Jean de Léry, Histoire d'un voy- Janeiro: Difel, 1976, P.239.
age fait en la terre du Brésil, autrement dite Amérique, La Rochelle: 11 . Leopoldo Castedo, The Cuzco circ/e, Nova York: Center for
Antoine Chuppin, 1578. Theodore de Bry, America tertia pars Inter-American Relations/The American Federation for the
memorabile provinciae brasiliae, Frankfu rt, 1592. Há possíveis cor- Arts, 1976.
respondências entre as práticas sociais pelas quais se efetiva 12. Jacques Lafaye, Quetza/cóatl y Guadalupe, la formación de la
o canibalismo e o próprio corpo canibalizado. Seu estudo re- conciencia nacional en Mexico, México: Fondo de Cultura Econo-
mete à estrutura social dos índios e se presta à análise dos mica, 1985.
mitos. As ilustrações e os textos propõem algumas hipóteses. 13. Gertnain Bazin, O AleUadinho e a escultura barroca no Brasil,
4. Bernadette Boucher, La sauvage au seins pendants. Paris: trad. Mariza Murray, Rio de Janeiro: Record, sd ., p.228.
Herman, 1977, P.70-72. 14. Emanoel Araújo (org.), O universo mágico do barroco brasi-
5. Michel de Montaigne, "Dos canibais", Ensaios (trad. Sérgio leiro, São Paulo: Galeria de Arte do SESI, 1998.
Milliet, do original de 1580). São Paulo: Abril Cultural, 1980. 15. María Concepción Saíz, Las castas mexicanas. Un género pic-
6. Jean-Michel Palmier,Jacques Laca';, lo simbólico y lo imaginário, tórico americano, Milão: Olivetti, 1989.
Buenos Aires: Proteo, 1971, P.19, 20, 22 e 26.
7. João Adolfo Hansen, Alegoria. Construção e interpretação da
metáfora, São Paulo: Atual, 1986.

75 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII curadoria Ana Maria Belluzzo e Jean-François Chougnet

Trans-positions Ana Maria Belluzzo

The subject in the place of the other


lt is no surprise that in the XX century the image of the cannibal became the emblem of several
artistic renewal movements. These movements advocated savage thought as a creative technique and
a tool to demolish hypocritical and worn forms of discourse. Already in 1920, Picabia's journal
Cannibale heralded the great destruction praject of the dadaists. The term savage thought, first
used by André Breton, later became the title ofLévi-Strauss's classic study. ln his book, Lévi-
Strauss states that the term says nothing about the thought of so-called "savage" people or of
primitive or archaic societies, but rather it refers to thought in its primeval or savage state, as
opposed to thought which has undergone cultivation or domestication, for the purpose of gaining
an advantage. 1
ln Brazilian cultural history, and by extension in that ofLatin America, such a strategy is
evidenced by the anthropophagic appraach, whose peculiar significance is the result of a poetical
experiment carried out in 1928. The poetics of anthropophagy, closely linked to Oswald de
Andrade's personality and to the figurative art ofTarsila do Amaral, probes into the character of
the NewWorld as opposed to the culture ofthe Old World. Thus it is born, thraugh the encounter
of cultures, echoing multivalent senses derived fram shock encounter, fram catechism and fram
the assimilation ofthe other, in syncretic responses resultant of cultural heterogeneity.
Andrade reinvented the collective unconscious of the country by gathering cut and pasted
fragments oftravel stories. He was inspired by Hans Staden's Wahrhaftige Historia and his writings
evidence readings ofThevet, Léry, Abbeville, Evreux, Sain-Hilaire, Koster, Martius, and Taunay,

76 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


among other Europeans who traveled to Brazil. His literary practice feeds on travel-Iogs which
provide the raw material for the culinary ritual of spiritually devouring the other and harnessing
its ancestral powers. Everything was executed in the way that cannibalism dictated, and this
Andrade playfully called anthropophagy and culinary culture.
Intellectually speaking, anthropophagy and cannibalísm constitute metaphors which allude to
an original state and encourage a return inwards toward that primeval state. This return is moti-
vated by the encounter and confrontation ofdifferent cultural perspectives. As an educational
technique, anthropophagy manipulates inter-cultural values inherent to the Brazilian historical
proceSSj it transforms the act of devouring the discourse ofthe other into a means of expressing
one's own. To cannibalize the foundations of other cultures is for Andrade a ritual preparation:
he appropriates in order to re-signity, passing onto the opposite paradigm that which is in the
original source. 2
The project to present art from the XVI, XVII and XVIII centuries in a historical framework
at the heart ofthe XXIV Bienal de São Paulo, has the aim ofbringing together stories of canni-
balism and anthropophagic processes born out of intercultural relations. The purpose of the
project is to comment on different trans-positions effected throughout the course of the history of
images. At the sarne time it endeavors to freely perform trans-positions in the exhibition space itsel(
To trans-pose-to put something in a place different from where it was or should be, becomes
thus a way to ultimately place the subject in the place ofthe other.
José Joachín Magón da série Las castas mexicanas [The mexican castes] óleo sobre tela [oil on canvas] 102x126cm cada
[each] coleção particular [private collection], Nuevo León, México da esquerda para a direita [from left to right]:
En la America nacen gentes diverzas en color, en construmbes, genios y lenguas I-Dei espanol y la yndia nace el mestizo,
por lo común, humilde, quieto, y sencyllo Na América nascem gentes diversas na cor, nos costumes, gênios e línguas I -
Do espanhol e a índia nasce o mestiço, por ser comum, humilde, quieto e singelo [ln America different people are born , in color,
habits, and languages I-From the Spanish and the Indian is born the Mestizo, for being common, quiet and simple]
IV-EI orgullo y despejo de la mulata nace dei blanco, y negra que la dimanan IV-O orgulho e desembaraço da mulata nasce
do branco e negra que a originam [The pride and ease of the Mulata come from the White and the Black who originate her]
XII-EI yndio, y la cambuja, sambayga engendram [...] no ai maturranga que no la entíendan XII-O índio e a cambuja,
engendram sambayga [ ... ] [The Indian and the Cambuja, generate the Sambayga (... )]
XVI-Tente en el ayre, nace (ingerto maio) de tornaatras adusta y albarazado XVI- Tente en el ayre, nasce (enxerto mau) de
tornaatras adusta e albarazado [Tente en el ayre is born (bad graft) from a tanned Tornaatras and an Albarazado]

77 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


· . .in the beginning there were stories about making use of the body of the other as food. At
the base of all the Brazilian traveI accounts lies the legendary figure ofHans Staden, the German
adventurer who initiated the tradition oftravelliterature in Brazil. Staden's importance does not
spring as much fram the fact that he praduced the first travei account, as fram the indelible mark
ofthe images and details ofthe account ofhis stay among the Tupinambá Indians.
Hans Staden occupies the central place in the structure of mythical narratives: he is the
traveling hera that breaks his ties with the tame world he knows and oscillates between the
uncontrollable forces of the universe. The Tupinambá mistake the German adventurer for a
Portuguese enemy, capturing him and threatening to kill and cannibalistically devour him.
Staden is taken prisoner and uses his skills to survive in the Indian village where he is kept. ln
the end, Staden's survival is celebrated as the victory ofEurapean and Christian knowledge over
the magicaI practices ofthe Indians. Staden's account in the first person is made even more
credíble by the illustrations that accompany the text and by the Bríef true account of the life of the
Tupínambá índíans.
As can be observed in three accounts ofthe XVI century, the images ofthe Indians presented
are mere transcriptions of text into image and manipulations of images, created fram transfor-
mations of a known repertoire. Staden's Wahrhaftíge Hístoria, published in Germany in 1557,
inserts ethnographic observations into a popular narrative. Jean de Léry's Hístoíre d'un voyagefaít
en la terre du Brésíl, which appeared in France in 1578, describes his experiences ofhis expedition
to the ill-fated Antarctic France. This text is in the domain of the erudite accounts of the French
Renaissance, which made use of models fram Classical Antiquity in arder to give a positive value
to the inhabitants ofthe New World. The illustrated Grands voyages, Theodore de Bry's ambitious
graphic praject published in Antwerp, marks the moment when visual arguments gain prece-
dence ove r the text that originated them and become independent fram it.
Subsistence anthrapophagy ar cannibalism? Countless engravings depicted human flesh
cooking on a fire, transmitting a culinary image ofthe culture ofthe Americas. The depiction of
cannibalism in these images did not display the ritual aspect of cannibalism as a necessary
practice for the survival of the tribe, and as a pracedure for strengthening a warrior community
thraugh the acquisition of the enemy' s power.
Both Staden and Léry describe prisoner preparation practices which included dance cere-
monies. All this reinforces the hypothesis that the Tupinambá practiced cannibalism for ritual
and not subsistence purposes: the prisoner was never mercilessly sacrificed, cut up and eaten, as
is evidenced by the jokes and merry-making that preceded his death.
De Bry further dramatized the visual narra tive of cannibalism by highlighting the demoniac
character of mutilation and other terrifYing details. ln the image sequence depicting cannibal
practices, the idealized figures ofthe Tupinambá Indians suffer pragressive bodily degeneration
as they feed on human flesh. Value judgments are intraduced in the images as is implied by the
victory ofthe ugly over the beautiful. As Bernadette Boucher has pointed out, the image ofthe old
Indian woman with flaccid breasts takes the place of the shapely nude. 4
ln the manyaccounts regarding the impact ofthe discovery ofthe New World, Montaigne's
essay "On cannibals" was responsible for a new appreciation of the native people. Montaigne
placed man, rather than the world, at the center ofhis reflections. He launched a "defense ofthe
natural," inspired by utopian values of the French intellectuals who had been reached by the news
of the New World. To Ronsard and La Boetie, for instance, France had become uninhabitable.
Montaigne sees nothing savage ar barbaric in what was said of the people ofAntarctic France. He
also warns against the blindness ofthose that judge the practices ofthe inhabitants ofthe New

78 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


World as barbaric, without questioning their own practices. He praises the fact that the cannibals
live sharing common property and that among them there are no rich ar poor people. He admires
the affection they demonstrate toward women and the boldness they exhibit in the battlefield. He
acknowledges that cannibals did not eat their prisoner out of subsistence needs but as a venge-
ance, which is shown by the songs of defiance, sung on the occasion of a prisoner's sacrifice:

"[ ... ] let us all gather round with courage to eat him; [. .. ]
Do you not recognize the substance ofyour ancestor's limbs which, in turn, still dwell in me?
Savor them carefully, you will taste your own flesh ." 5

The sacrifice of the human body


There is also an interest in identifying the possible meanings that were attached to the sacrifice,
dismemberment, division, ingestion and digestion of the human body in the XVI century. The
decisive impact that images of cannibalism had on the European unconscious-and perhaps
also on contemparaneity-usually enhanced its aggressive character, especially the transgression
ofthe taboo on not eating human flesh. The image of cannibalism is, above all, disturbing. TraveI
accounts echo the religious imagination, and the images ofhuman sacrifice are contaminated
by references to the passion ofChrist. ln the religious imagination, bodily suffering is associated
to sin, and not only to demoniac action, as well as to visions of purgatory. It is important to add
that, in the catholic ceremony, the moment ofrenovation ofthe faithful through Eucharist sacra-
ment entails receiving the body and blood ofChrist through the symbolic practice ofCommunion.
lmages of cannibalism could also rest on certain structures of the unconscious . ln the
phase that precedes the mirror stage, Lacan finds in a child's fantasy of a dismembered body, an
Anôn imo (escola portuguesa) [Anonymous (Portuguese school)] O inferno [Hell] primeira metade do sécu lo XV I [first half of the
XV I century] óleo sobre madeira [oil on wood] 119x217,5cm coleção Museu Nacional de Arte Antiga, Li sboa

79 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


image of panic-provoking dispersion. ln reference to the mirror's function, in the mirror stage the
child integrates the image ofhis or her body and "integrates him or herselfinto the dialectic that
will constitute the child as a subject." He refers to the "experience ofidentification and the con-
quest of one's body image and the structure ofthe I before the subject is committed to a dialectic
of identification with the other through language." Lacan considers all images of castration,
dismemberment or disembowelment which figure in the imagos arcaicas, as belonging to the
sarne structure: the fantasy of the fragmented body.6

Allegories about the kingdoms 01 heaven above and earth below


ln the fables launched by the discovery of the New World, people dreamt of mythical Eldorado's
south ofthe Equator. Eden was to be found in the Americas, home to the noble savage. On the other
hand, this newly-discovered quarter of the earth corresponded to the infernal netherworlds,
inferior to earth-inferus in Greek gave the root ofthe Latin inferno. This world was inhabited by
marine monsters and its abysses were populated by unusual creatures and tribes that fed on
human flesh. The noble savage and the cannibal, the vision of paradise and the vision ofhell, were
the most widely-propagated images of the inhabitants and of the New World throughout the XVI
and XVII centuries.
Anônimo [Anonynous] Virgem cerro Virgem colin a [H ill Virg in] 1720 óleo sob re pano [oi l on cloth] 72x92cm coleção Museo
Nacional de Arte, La Paz

80 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofag ia e Histórias de Can ibali smos


Hell is the title ofaXVI century Portuguese painting where the Indian appears inserted in
the realm ofChristianity. The anonymous painting belongs to the Museu Nacional de Arte Antiga
in Lisbon and it dates back to the first half ofthe XVI century. The image ofthe devil personified
as a Brazilian native is a symbolical operation that is in accordance with the missionary project
ofthe colonizers.
ln the infernal scene depicted in the painting, figures of evil torture a human being. The
torturers appear as ambiguous human and animal hermaphrodite figures, whereas the tortured
remain unaffected. Through other examples of contamination and transference of meaning in
this painting, it is possible to establish a parallel between hell and the cannibal practices of the
Brazilian natives.
Europeans chiefly constructed their images ofthe New World through the use of allegory,
in its classical sense. From allós meaning other, and agourein meaning to speak, allegory carne to
signifY in Greek and Latin terms, a rhetorical figure that used one thing to designate another.
The modern interpretation of allegary includes both allegorical speech as well as allegorical
interpretation"7 ln arder to apprehend a new and unknown world, XVI and XVII century authors
made use of verbal comparisons, placing two terms in a relationship of similarity or difference.
ln order to communicate that unknown world visually, ideas where,shaped into visual figures .
This shaping into visual figures had implications on the reception of the image. Something
happened in the process of passing from one code to another ánd in the literal comparison bya
depicted image and a visual metaphor: comparisons are lost and the assimilation of one term
into another occurs; negation as a discursive tool disappears. 8
ln the understanding of the XVI and XVII centuries, the figure of the Indian was inco~po­
rated into the landscape ofthe New World; a correlation between body and territory was estab-
lished. This symbolic correspondence was set in a genre of painting called the Allegory of the
four continents and which depicted the world then known. Next to feminine figures that repre-
sented Europe, Asia and Africa, the cannibal Indian woman became the conventional personifi-
cation of the Americas. These feminine figures with certain physical attributes, garments and
allusive objects, were literary motifs on which art compositions were based. At the end ofthe XVI
century, the painter was in the sarne position as the poet or orator, who created images for the
eyes of the readers.
Cesare Ripa's lconoIogy, proposed something called creative and fictional allegory, where
the image functioned in such a way that, by reading, one would see and, by seeing, one would
read. There is no room here to cite the descriptions he makes of Europe, personified by an
extremely wealthy woman, of Asia, and her sensual attributes, and of the African Moorish
woman, surrounded bya ferocious lion, snakes and vipers. But it is worthwhile to quote what
he says about America ... "a nude woman, of dark yellowishjIesh, with terrlfyingfeatures, wearíng a
stríped veíl of varíous coIors, hanging from her shouIder and covering her shamefuI parts. Her hair is
disheveled , and she wears around her body a kind of omament madefrom coIoifuIfeathers. ln her Ieft hand
she is hoIding a bow and in her ríght hand an arrow; she carríes a quiver full of arrows on her back, and under
her foot is a human head pierced by an arrow. On the ground is an enormous lízard or reptiIe. These beasts
devour humans and other animaIs [.. .] The modem wríters have wrítten about her: they are barbaríc peopIe
that eat humanjIesh."9
Among the several visual interpretations ofthe allegories ofthe four continents, the Euro-
pean versions ofPeter Paul Rubens, lan van Kessel and his son, Ferdinand van Kessel deserve
special attention. lan van Kessel used the drawings ofAlbert Eckhout. What is particularly inter-
esting for our discussion is the assimilation of this genre in the XVIII century by Brazilian artists

81 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


of differing degrees oftechnical skill and talent, as is shown by the series ofTeófilo de Jesus and
of an anonymous artist active in Minas Gerais .
. The set of four couples painted by Albert Eckhout is one of the most revealing works of the
Dutch in Brazil, elaborated upon the new approach ofthe science ofnature which develops in
contrast to religious belief and devoid of moral preoccupations. It is in this way the knowledge
of nature reduced to the senses. Nonetheless, it cannot be denied that Eckhout's figures reveal
themselves contaminated by allegorical notions popular at that time. The complete cycle shows
pairs which appear to be portraits of poses: Tupí índían man and Tupí índían woman; Taraíriu índían
Man and Taraíríu índían woman (Tapuias); Mameluco woman and Mestízo man; African woman and
Afrícan mano Other than the ethnographic information, the paintings show a wealth ofbotanical
and zoological details, as attributes of the characters.
The four continents seemed to have come together in the colonies, under as seen by
the eyes of the Dutch colonizers. From the Dutch perspective, there was a route that linked Africa
to Brazil and to the West lndies. The establishment of trading posts along the West African coast
which were necessary for European navigation, made Africa seem a logical complement to the
American continent, in the eyes of the Dutch. This vision is evident in other compositions by
Eckout. ln this vision, the Dutch mixed Brazilian motifs with their self-defining point ofview. 10

Cultural mix: artistic appropriation and re-semantization


The expansion of Christianity built an enormous artistic apparatus which could guarantee its
spiritual sovereignty. This expansion mobilized artists and craftspeople that would serve the
needs of the Church in the colonies. Some of them were familiar with the pre-Columbian tradi-
tions. For evangelization purposes, however, models brought from the European metropolis
were used. Nevertheless, religious art in Spanish and Portuguese America is far from being a mere
transplant ofEuropean models. There were serious gaps between the European mentality and
life in the Americas, which deserve thus special consideration.
Our inquiry is concerned with the multiplicity of artistic expression on which the process of
cultural miscegenation in the Americas is based. What is particularly interesting is the process
of artistic hybridization where European and pre-Hispanic motifs were mixed, Christian allegory
and the native mythologies intersected, the indigenous taste and desires coexisted in Christian
images. This cultural intertwining ofEuropeans and lndians characterized Andean artistic circles
of the XVII and XVIII centuries, where superior artistic paradigms where created, as is the case
ofCuzco, the capital ofthe Incas ofhigh Peru. l l
The material culture of the indigenous people suffered a crisis in the territories colonized
by the Portuguese, who exploited African slave labor. ln the religious art circles of gold mining
regions, such as Minas Gerais, European mo deIs were assimilated with the help ofthe Black and
Afro-Brazilian craftspeople, who left their imprint on the baroque and rococo altars, excelling
particularly in sculpture.
ln some instances, artistic production evidenced mixture and fusion as much as disjunction
and fragmentation between the religious mo deIs proposed, and those that were accepted. Sym-
bolic trans-positions and inversions occurred in the specific historical conditions ofSpanish and
Portuguese America, through the incorporation process of religious culture.
ln the figurative arts there was a struggle to replace pagan idols with images of the Virgin
Mary, in the way the Counter-Reformation made similar efforts. While religious education
aimed at establishing the cult of Mary, the new converts mixed the Spanish religious traditions
with the native legends. According to Lafaye, the devotion to the Virgin ofGuadalupe, the image

82 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


of a dark Virgin, worshiped in Eurape, exhibits the formation of a creole consciousness. Artists
and craftspeople in the vice-rayalties of Peru and Mexico reevaluated artistic motifs, casting
them in the forms and colors pravided by their local heritage. 12
The pedagogic objective of religious painting did not only aim at explaining the truths of
the heavenly kingdom. It also aimed at prapagating Christian ceremonies and practices among
the population by representing them in christenings, weddings and Corpus Christi pracessions.
The Passion ofChrist is one ofthe themes particularly favored by Brazilian colonial artists.
A última ceia [The last supper], by Antonio Francisco Lisboa, better known as Aleijadinho,
for one ofthe Passos do Santuário de Congonhas do Campo [Steps ofthe Sancturary ofCon-
ganhas do Campo], dates back to the end ofthe XVII century. It presents a similar design to the
via crucís developed in Eurape fram the XV century on to pramote Christian meditation thraugh
pilgrimage to holy places, represented by the stations ofthe crasso The stations, which were for-
merly measured by means of steps, substitute the holy places and invite the pilgrim to experience
the events of the Passion of Christ. At the Santuário de Congonhas, the path to the crass goes
fram the Step of the Last Supper to the Calvary, passing six Steps on the way there, and making use
of the hill' s steep inclination. This motif was often exploited by baraque iconography.13
The main stance adopted was one of dramatic involvement of the pilgrim on the way to the
holy places. To this effect, a realistic, life-sized figure ofChrist and the Apostles was sculpted
in cedar wood.
Aleijad inho (Antônio Francisco Lisboa) A última ceia [The last supper] detalhe final do sécu lo XVI II [end of the XV III century]
madeira policromada [polychrome wood] Santuário Bom Jesus de Matosinho, Congonhas, Minas Gerais foto Welerson Fernandes

83 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


Aleijadinho's líving tableau ofthe Passion ofChrist is the work of a religious man who
wanted to illuminate one abstract and intangible truth by giving it a concrete and palpable formo
This is where its breaking point resides: in the extreme realism ofthe object, in the living tableau
executed as ifin reallife, in the orientation of the religious scene in the sense of genre painting.
Three other works fram Bahia also depict the theme of the Passion in its dramatic conjunc-
tion of transcendent and divine nature and human suffering: the dramatic image of Cristo na coluna
[Christ at the column], by Francisco Manoel Chagas, also known as Cabra; O Senhor da coluna
[Our Lord ofthe column] (ar Cristo flagelado [The flagellation ofChrist]), and the Cristo da pedra
fria [Christ of the cold stone] (ar Senhor da paciência [Our Lord of patience]), both attributed to the
Brazilian artist Manuel Inácio da Costa by Dom Clemente da Silva-Nigra. Both ofthese works
were originally in the Antigo Convento de São Raimundo [Old Convent ofSão Raimundo], and
are currently part of the collection of the Museu de Arte Sacra in Bahia.
ln Chagas's piece, physical suffering deforms the body ofChrist, whose expression is one of
deep pathos. ln other eclectic and later works by Manuel Inácio da Costa, suffering is expressed
by the pratrusion of veins and by the wounds carved in the wood; it is contained in the anatomy
and liberated in the peaceful expression of Christ's features. The viewer is surprised by the
importance given to the wounds on Christ's live flesh, which are reminiscent ofthe practice of
slave whipping and flaying. 14
Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa) A última ceia [The last supper] detalhe final do sécu lo XVI II [end of the XV III century]
,,-,adeira policromada [polychrome wood] Santuário Bom Jesus de Matosinho, Congonhas, Minas Gerais foto Welerson Fernandes

84 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibal ismos


Finally, it is important to point out the appearance of caste paintings in Mexico, which
attempted to systematically display the diverse ethnic groups produced by racial mixing. This is
the first instance when artists'looked at their own society in order to devise a taxonomy ofthe
differences. These paintings, executed in the XVII century, comprise a number of different pictor-
ial traditions by artists with different forms of training and skill. They range from the art ofMiguel
Cabrera to anonymous paintings oflesser skill. They affirm the phenomenon of miscegenation
and they are a valuable as documents about a caste-based society in the process of disappearance.
This model of a society organized in categories follows the Enlightenment's classifying
zeal. This family tree of society in New Spain had at its base the crossing ofSpaniards, Africans
and Indians, and was presented in a family arrangementof couples and children, giving primacy
to the practice of marriage. The series of paintings are usually sixteen, which are the product of the
three different human species:
"A Spanish man and an Indian woman yield Mestizos. A Spaniard and a Mestizo woman
produce Castizos. A Spaniard and a Castizo woman produce Spaniards again. From a Spaniard
and a Negro, Mulattos are born. A Spaniard and a Mulatto woman yield Moorish. From Moorish
and Spaniard, Albino. From Albino and Spaniard, what is born 'Leaps-Back' [... ]"
Defining a Mestizo society using the terminology inscribed in the paintings is a practice
that was borrowed from natural history. This type of ethnic organization somehow approaches a
physical anthropology of society in the Spanish and Portuguese Americas. However, certain social,
politicaI and economic conditions were clearly invented, as seen in the description of clothing,
social habits, trades and professions and the environment. It is obvious that the terminology
proposed is not homogeneous and it often adopted categories and expressions from popular
speech. Although marred by lack of scientific rigor, these paintings have invaluable artistic
importance. It is also unclear how the pia ce of each group in a society thus structured deter-
mined the rights and responsibilities of a caste society in the process of disappearance. 15
Ana Maria BelIuzzo. Translatedfrom the Portuguese by Odile Cisneros.

L Claude Lévi-Strauss, La pensée sauvage. Paris: Librairie Plon, 7. João Adolfo Hansen, Alegoria. Construção e interpretação da
1962, P· 28 9· met4fora, São Paulo: Atual, 1986.
2. Benedito Nunes. Oswald canibal. São Paulo: Editora Pers- 8. Bernadette Boucher, "Da comparação à metáfora", La
pectiva, 1979 sauvage aux seins pendants. Paris: Herman, 1977, PP-40-41.
3. Hans Staden, Wahrhaftige Historia und Beschreibung Eyner 9. Cesare Ripa, Iconologia, cited in Pietro Buscaroli (ed.) and
Landschaft der Wilden Nackten Grimmigen Meschfresser Leuthen ... Mario Praz (preface), Milan: TEA, 1993.
Marburg: Andres Kolben, 1557 10. André Corvisier, História moderna, trans. Rolando Roque da
Jean de Léry. Histoíre d'un voyagefait en la terre du Brésil, Autrement Silva and Carmeme Olivia de Castro Amaral, São Paulo/Rio de
dite Amérique. La Rochelle: Antoine Chuppin, 1578. Theodore Janeiro: Difel, 1976, P.239.
de Bry, America tertia pars memorabile provincíae brasiliae, Frank- II. Leopoldo Castedo, The Cuzco círcle. New York: Center for

furt, 1592. There are possible correspondences between the lnter-American Relations/The American Federation for the
social practices through which cannibalism is effectuated and Arts,1976.
the cannibalized body itself. His study refers to the social 12. Jacques Lafaye, Quetzalcóatl y Guadalupe: Laformacíón de la
structure of the lndians and lends itself to the analysis of myths. concíencía nacíonal en México, México: Fondo de Cultura Econó-
The illustrations and the texts propose some hypothesis. mica, 1985.
4. Bernardette Boucher. La sauvage aux seins pendants, Paris, 13. Germain Bazin, O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil
Herman, 1977, PP.70-72. trans. Mariza Murray, Rio de Janeiro: Record, sd. P. 228.
5. Michel de Montaigne. "Dos canibais" ln: Ensaios trans. by 14. Emanoel Araújo (ed.), O universo mágico do barroco brasileiro,
Sérgio Milliet from the 1580 original, São Paulo: Abril Cul- São Paulo: Galeria de Arte do SESl, 1998.
tural, 1980. IS. María Concepción Sáiz, Las castas mexicanas. Un género pic-
6. Jean-Michel Palmier.]acques Lacan, lo Simbólico y lo imaginario, tórico americano, Milan: Olivetti, 1989.
Buenos Aires: Editorial Proteo, 1971, PP.19, 20, 22 and 26.

85 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Ana Maria Belluzzo


Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII
curadoria Ana Maria Belluzzo e Jean-François Chougnet

Tupi or not tupi, that is the


- n1
q U est 10 Jean-François Chougnet

A curiosidade de Montaigne pelo Novo Mundo se manifesta em dois dos capítulos mais conhe-
cidos dos Ensaios, o capítulo "Dos canibais", sobre os costumes dos índios do Brasil2 (livro I,
capítulo XXXI); e o "Dos coches", sobre a conquista do México (livro III, capítulo VI). A existência
desses textos distanciados um do outro no tempo-já que o primeiro figura na edição de 1580,
tendo aliás sido objeto apenas de retoques parciais em marginalia no Exemplaire de Bordeaux3 ,
e o segundo, na de 1588-atesta a constância da reflexão de Montaigne sobre as questões
colocadas pelos descobri mentos de sua época.
Não foi por acaso que Montaigne mandara inscrever em sua biblioteca a seguinte sen-
tença, citação de Lucrécio: "O gênero humano é excessivamente sedento de narrativas". A "nar-
rativa" de Montaigne sobre os canibais, que não deve ser reduzida simplesmente à questão da
antropofagia ritual, suscitou uma literatura imensa, que pode ser ligada a três correntes: em
primeiro lugar, uma corrente historiográfica, que se manifestou na busca das fontes que inspi-
raram o fidalgo bordelês, a republicação dos textos essenciais da literatura de viagens, reno-
vando para cada geração essa aproximaçã0 4 ; a idéia, um pouco fora de moda, segundo a qual
Montaigne estaria na origem da temática do "bom selvagem"; e, por fim, alimentada pelas
próprias evoluções da crítica literária, as pesquisas mais próximas da retórica e das complexi-
dades do próprio textoS.
Se Montaigne apaixonou e ainda apaixona, é porque oferece uma leitura tripla da
sociedade dos índios brasileiros: real, simbólica e imaginária 6 •

o real
A primeira fonte reivindicada por Montaigne seria de primeira mão: "Durante muito tempo tive a
meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto
neste século, no lugarem que tomou pé Villegagnon e a que deu o nome de 'França Antártica'."7
Inúmeras vezes questionou-se a verossimilhança desse interlocutor, até a descoberta de uma carta
que parecia atestá-lo. A frase também sugere uma filiação com as narrativas que acompanharam
a expedição de Villegagnon.
É preciso, portanto, devolver Montaigne a·seu século.
Villegagnon chega à baía do Rio deJaneiro em 10 de novembro de 1555 e ocupa a ilhota que
ainda hoje leva o seu nome. Dirige a única missão predominantemente protestante do século
XVI. De fato, à época em que os reis católicos enviam soldados e religiosos, a Reforma concentra
seus esforços na Europa. A expansão missionária dessa época, estreitamente ligada à expansão
econômica, é sobretudo um feito ibérico; a presença francesa no Brasil antes da dominação

86 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antrópofagia e Histórias de Canibalismos


generalizada por parte de Portugal não passou de breve parêntese-aberto em 1555, fechado
em 11 de março de 1560 com a queda do estabelecimento.
Além disso, após inúmeras peripécias, um desdobramento inesperado: as querelas de que
os membros da expedição haviam pensado fugir ressurgiam entre eles próprios e os mobilizavam.
"A história toma então um ru mo tão estran ho", escreve Lévi-Strauss, "q ue me su rpreende
que ainda não se tenha apossado dela nenhum cineasta ou romancista. Que filme ela não daria!
Isolados num continente tão desconhecido quanto um outro planeta, completamente igno-
rantes quanto à natureza e quanto aos homens, incapazes de cultivar a terra para garantir a
própria subsistência, dependentes para todas as suas necessidades de uma população incom-
preensível, que de resto passou a odiá-los, atacados pelas doenças, este punhado de franceses
que se haviam exposto a todos os perigos para fugir às lutas metropolitanas e fundar uma colônia
em que todas as crenças pudessem coexistirem um clima de tolerância e liberdade [... ] passam
semanas em discussões tolas: como é que se deve interpretar a Ceia?; é preciso misturar a água
e o vinho para a consagração?" 8
Os Ensaios traem o conhecimento que Montaigne tinha dos textos dos cosmógrafos, o que
não o impede de desconfiar profundamente deles.
"O homem que tinha a meu serviço [... ] era simples e grosseiro de espírito, o que dá maior
valor a seu testemunho [... ] A informação objetiva, nós a temos das pessoas muito escrupulosas
ou muito simples, que não tenham imaginação para inventare justificar suas invenções e igual-
mente que não sejam sectárias. Assim era o meu informante, o qual, ademais, apresentou-me
marinheiros e comerciantes que conhecera na viagem, o que me induz a acreditarem suas infor-
mações sem me preocupar demasiado com a opinião dos cosmógrafos. Fora preciso encontrar
Adriana Varejão Proposta para uma catequese [Proposal for a catechism] óleo sobre tela [oil on canvas] 140x240cm coleção
particular [private collection], São Paulo

87 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


topógrafos que nos falassem, em particular, dos lugares por onde andaram. Mas, porque levam
sobre nós a vantagem de ter visto a Palestina, reivindicam o privilégio de contar o que se passa
no restante do mundo."9
Essa ironia de Montaigne em relação aos cosmógrafos, dos quais o maior mérito não se
devia ao gosto pela verosimilhança, só pode dizer respeito a André Thevet. Monge menor, viajou
porconta própria ao Oriente Médio e publicou diversas obras antes de ser nomeado "conservador-
aj udante das cu riosidades do rei". Foi por freq üentar a Corte que Montaigne provavel mente teve
contato com André Thevet, que acompanhara Villegagnon por alguns meses. Thevet intitulou o
seu livro publicado em 1557, de Singularités de la France antarctique, autrement nommée Amérique
[Singularidades da França antártica, também chamada de América]10. Quando Montaigne ter-
minou os seus Ensaios, corriam já numerosas edições de Singularités de la France antarctique. Que
Montaigne ignorasse esses volumes então em circulação não é, pois, hipótese admissível.
"Três dentre eles Ce como lastimo que se tenham deixado tentar pela novidade e trocado
seu clima suave pelo nosso!), ignorando quanto lhes custará de tranqüilidade e felicidade o
conhecimento de nossos costumes corrompidos, e quão rápida será sua perda, que suponho já
iniciada, estiveram em Ruão quando ali se encontrava Carlos IX."11 Os historiadores 12 fazem notar
que, já em 1509, sete brasileiros adornados de enduapes, de acangataras de penas vistosas,
armados de arcos, de flechas e de tacapes, dançaram para a população de Ruão. As visitas se
renovavam.
Theodore de Bry America tertia pars ... América terceira parte .. [America third par!. .. ] Frankfurt, 1592 coleção Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, São Paulo

88 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Foi em Ruão que, em 1 e 2 de outubro de 1550, o rei Henrique II e a rainha Catarina de
Médicis deram suntuosa recepção. O programa compreendia um "embate americano ou isquio-
maquia dos selvagens". Uma aldeia tupinambá surgiu numa praça, com os indígenas vestidos
como selvagens, tatuados, seminus. Estavam rodeados de animais, de árvores, de pássaros e de
frutas do Brasil: cantaram, dançaram, comeram, beberam, guerrearam-fazendo revivera terra
longínqua. Houve até um combate simulado 13. Em 1563, o rei Carlos IX, então muito jovem, viu
em Ruão os três brasileiros aos quais Montaigne sem dúvida se refere. É bem possível, enfim,
que Montaigne tenha reencontrado os indígenas brasileiros na "festa brasileira" realizada em
Bordéus em 9 de abril de 1565, na presença de Carlos IX.
Essa paixão pelos brasileiros era, de fato, comum naqueles anos. Paris ainda os receberá
em 1613, após as missões de Claude d'Abbeville ao nordeste do Brasil. A representação desses
tupinambás manifestava-se na gravura artística desse tempo, a partir de Theodore de Bry. Um
castelo do leste da França, o castelo de Montbras, ainda conserva um ciclo de afrescos realizados
sob essa inspiraçã0 14.
Enfim, além dos testemunhos que recolheu e dos complicados empréstimos que tomou da
literatura das viagens, Montaigne parece ter tido uma verdadeira prática etnográfica:
"Podem ver-se em muitos lugares, em particular em minha casa, esses leitos, cordas,
espadas, pulseiras de madeira que lhes protegem o pulso no combate, e longos caniços furados
de um lado que tocam para ritmar suas danças".15 Montaigne confessa assim possuir uma sala
de curiosidades, ou antes uma coleção etnográfica. As cordas citadas são colares, feitos de
matapus 16 , de conchas, de dentes de animais ou de caroços secos, descritos sobretudo por Hans

89 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


Staden 17. As espadas são massas ou cassetetes (ibirapema ou tacape)18. Nunca foi possível aos
historiadores e etnólogos identificar as "pulseiras de madeira que lhes protegem o pulso no
combate", do mesmo modo que o bastão de dança.

o simbólico
Como a numerosos contemporâneos seus confrontados com questões teológicas muito agudas,
uma questão intriga Montaigne: terão religião os tupinambás?
"Acreditam na imortalidade da alma [... ]."19
A idéia de que os índios não tinham religião será em geral admitida pela maioria dos via-
jantes do Novo Mundo. A observação de Montaigne constitui uma das raras exceções a essa
idéia aceita, inspirando-se talvez nas posições de Jean de Léry. Este, depois de se haver sacrifi-
cado à idéia de que os índios brasileiros não têm religião, matiza seu julgamento: "Entretanto,
ainda alguma luz atravessa as trevas de sua ignorância. Acreditam não só na imortalidade da
alma, mas ainda que, depois da morte, as que viveram dentro das normas consideradas certas,
que são as de matarem e comerem muitos inimigos, vão para além das altas montanhas dançar
em lindos jardins com as almas de seus avós (os Campos Elíseos dos poetas). Ao contrário, as
almas dos covardes vão ter com Ainhã, nome do diabo, que as atormenta sem cessar."20
A antropofagia, Montaigne a analisa como prática simbólica: "Quanto aos prisioneiros,
guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam,
aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propício,
amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o
mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter
o condenado afastado de alguns passos e incapaz de reação. Isso feito, ambos o moem de bor-
doadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presenteando os amigos
ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem, entretanto, para se alimentarem, como o faziam
os antigos citas, mas sim em sinal de extrema vingança."21 Essa forma de vingança era, aliás,
a única explicação do próprio Thevet para os atos de antropofagia no Brasil, visto que: "esses
selvagens são extraord inariamente vi ngativos". 22
Se, no capítulo XXXI, Montaigne explica a antropofagia como legítimo exercício da vingança
(para os canibais), um pouco mais tarde verá outra possibilidade: já não se tratará do vencedor
que come o vencido, mas do filho que come o pai, por respeito e afeição. "Nada me parece mais
horrível à imaginação do que um filho comero pai. Os povos entre os quais esse costume existia,
outrora, encaravam-no, entretanto, como prova de devoção e afeição [ ... ] regenerando-o [o
corpo dos pais] através da transmutação da carne morta em carne viva pela digestão."23
Montaigne prefigura de maneira extraordinária as pesquisas mais atuais dos antropólogos
sobre a antropofagia 24, de fato, distinguem estes um "exocanibalismo" que visa o extermínio
absoluto do adversário, corpo e alma, de um "endocanibalismo", relativo particularmente aos
mortos, o qual confina com uma forma de respeito aqsoluto, que veda a entrega dos mortos
à terra.
Porfim, a idéia mais espetacularé a da relativização do julgamento: a barbárie dos europeus
nada fica a dever à dos índios.
"Podemos, portanto, qualificar esses povos como bárbaros, em dando apenas ouvidos à
inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de
barbaridades. "25
Jean de Léry parece ter inspirado ponto por ponto esse paralelo de Montaigne, tão desfavo-
rável aos europeus 26 : "é útil, entretanto, que ao ler semelhantes barbaridades praticadas diaria-

90 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


mente no Brasil, não se esqueçam os leitores do que se pratica entre nós. [ ... ] Mais precisamente
se considerarmos o ato brutal de mastigare literalmente comer (como dizemos) a carne humana,
isso não ocorre também em outras regiões, mesmo aquelas conhecidas como terras Cristãs [... ]
E sem seguir muito adiante, e que vimos em França durante a sangrenta tragédia iniciada [em
Paris] a 24 de agosto de 1572? Sou francês e pesa-me dizê-lo. Não acuso aqueles que não foram
a cau sa entre outros atos horrendos a relatar q ue foram perpetuados durante o rei nado, [... ]
o fígado e o coração e outras partes do corpo de alguns indivíduos não foram comidos porfuriosos
assassi nos de q ue se horrorizam os infernos?"27

o imaginário
Na obra de Montaigne, o imaginário do canibalismo se desdobra a partirda posição ao mesmo
tempo poética e refinada em que ele situa o prisioneiro fadado a sorte tão funesta: "Tenho em
meu podero canto de um desses prisioneiros. Eis o que diz: 'Que se aproximem todos com cora-
gem e se juntem para comê-lo; em o fazendo, comerão seus pais e seus avós, que já serviram de
alimento a ele próprio e deles seu corpo se constituiu . Estes músculos, esta carne, estas veias,
diz-lhes, são vossas, pobres loucos. Não reconheceis a substância dos membros de vossos ante-
passados: saboreai-os atentamente, sentireis o gosto de vossa própria carne.' Haverá algo bár-
baro nessa com posição?"28
Documento algum ilustra tão bem, como esse, a razão de ser da antropofagia ritual, do
Theodore de Bry America tertia pars ... América terceira parte .. [America third part...] Frankfurt, 1592 coleção Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, São Paulo

91 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


exocanibalismo. Aqui a vingança pelo sangue se estabelece em toda a sua grandeza sincera e
bárbara. Para que o sacrifício fosse fiel à intenção, era necessário que o condenado demonstrasse
sua valentia, que tivesse combatido com virilidade e proclamasse suas proezas anteriores, suas
vitórias sobre os membros da tribo que agora ia abatê-lo e devorá-lo. Em conseqüência, o pri-
sioneiro narrava seus combates, dizendo ter devorado o corpo do pai deste, do irmão daquele,
dando prova de intrepidez total.
Jean de léry cita este diálogo entre o carrasco e a vítima: "Agora estás em nosso poder e
serás morto por mim e moqueado e devorado portodos". Mas tão resoluta quanto Atílio Régulo
ao morrer pela República Romana, a vítima ainda responde: "Meus pais me vingarão".29
E o ciclo trágico da cadeia continuava perpetuamente: cada morte abria uma dívida que
era saldada por outra morte, que então abria um outro débit0 30 .
O canto transcrito (ou imaginado?) porMontaigne é a expressão mais sutil de um "caniba-
lismo de discurso". 31 Inspirou a Grethe, grande admirador dos escritores franceses do século XVI
e de Montaigne em particular, um poema, "Todeslied eines Gefangenen" [Canto de morte de
um prisionei ro]:

Kommt nur kühnlich, kommt nur alie


Und versammelt euch zum Schmause!
Denn ihrwerdet mich mit Drauer
Mich mit Hoffnung nimmer beugen.
Aber noch nicht überwunden!
Kommt, verzhret meine Glider
Und verzehrt zugleich mit ihnen
Eure Ahnherrn, eure Vater
DiezurSpeise mirgeworden!
Dieses Fleisch, das ich euch reiche
1st, ihrToren, euer eignes
Und in meinen innern Knochen
Stickt das mark von euren Ahnherrn
Kommt nur, kommt, mitjedem Bissen
Kann sie euerGaumen schmecken. 32

Sem o sentir, foi pelo lado do discurso que Montaigne conduziu a discussão toda do canibalismo
dos índios do Brasil; a ele se revezaram Grethe e, mais tarde, Oswald de Andrade. "Só me interes-
sa o que não é meu. lei do homem. lei do antropófago."33 A carne da vítima torna-se palavra,
canto e constitui o troféu último da relação canibal de troca.
Jean-François Chougnet. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silva Ramos.

92 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. Oswald de Andrade, "Manifesto antropófago" (1928), Gil- viagens ao Brasil, trad. Guiomar de Carvalho Franco, Belo
berto Mendonça Telles (org.), Vanguarda européia e modernismo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp (Reconquista do Brasil,
brasileiro, Petrópolis: Vozes, 1972. 1a série, voI.17), 1988, em especial o livro II, capítulos 16 e 17.]
2. Convém notar que a palavra "canibal", introduzida pelo 18. Alfred Métraux, "L'anthropophagie rituelle des Tupinam-
próprio Cristóvão Colombo a partir de uma palavra caraíba, bá", 1928, Religions et magies indiennes d'Amérique du Sud, Galli-
não tinha no século XVI o significado de hoje. Tratava-se de mard, 1967, P.54.
descrever um povo desconhecido. Esse deslizamento de sen- 19. Ensaios, capítulo XXXI, P.348. [EUB, ibid., p.261.]
tido para a simples remissão às práticas antropofágicas é o 20. Jean de Léry, Indiens de la Renaissance. Histoire d'un voyage
que os lingüistas chamam de sinédoque. fait en la terre du Brésil, capítulo XV, introdução de Anne Marie
3. A análise comparativa e estatística dos capítulos foi con- Chartier, Paris: EPI, 1987, P.197.
duzida por Antoine Tournon em "Je n'ai jamais lu les Essais de 21. Ensaios, capítulo XXXI, P.349. [EUB, ibid., p.262.]
Montaigne", Paris, Bulletin Textuel, n.12, 1993. 22. Le Brésil d'AndréThevet, op. cit., p.160-167. [IET, P.135.]
4. Frank Lestringant, Le cannibale, grandeur et décadence, Paris: 23. Michel de Montaigne, Ensaios, livro II, capítulo XII ("Apolo-
Plon, 1994. Tradução inglesa: Cannibals, Oxford: Polity, 1997. gia de Raymond Sebond"), Paris: Gallimard, PléYade, P.565.
5. Entre as publicações mais recentes, podemos citar as con- [EUB, vol. II, P.290.]
tribuições de Catherine Demure e de Jack Abecassis ao coló- 24. Maurice Godeliere Michel Panoff(coord.), Le corps humain,
quio "Montaigne et le Nouveau Monde", Paris, 18-20 de maio supplicié, possédé, cannibalisé, Amsterdã: Éditions des Archives
de 1992, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, série VII, Contemporaines, 1998. O conhecimento do canibalismo na
29-30-31, P·179- 208 . Oceania tem feito a pesquisa progredirconsideralielmente.
6. Essa divisão é inspirada naquela que André Green propôs 25. Ensaios, capítulo XXXI, P.347. [EUB, vol.l, P.263.]
para a análise do canibalismo em "Cannibalisme: réalité ou 26. Sobre o paralelismo dos descobrimentos com as guerras
fantasme agi", Nouvelle revue de psychanalyse, n.6 (outono de religiosas, convém consultar a obra de Frank Lestringant, Une
1972), Paris, P.27. sainte horreur ou le voyage en Eucharistie, XVleme-XVllleme siec/e,
7. Ensaios, capítulo XXXI, P.338. [EUB, vol. I, P.256.] Paris: Presses Universitaires de France, 1996.
8. Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris: Plon, Terre Hu- 27. Jean de Léry, op. cit., capítulo XV, P.193. [IEL, P.203.]
maine, 1955, capítulo IX, p.89-90. Claude Lévi-Strauss sempre 28. Ensaios, capítulo XXXI, P.355. [EUB, ibid., P.265.]
filiou suas pesquisas no Brasil aJean de Léry, como o teste- 29. Jean de Léry, op. cit., capítulo XV, P.185. [IEL, P.196.]
munha sobretudo seu prólogo à reedição (em livro de bolso) 30. Pode impressionar-nos o aparecimento dessa lógica de
da Histoire d'un voyage, Paris: Livre de Poche, 1994 (texto fixado troca quase monetária num século que inventou a contabili-
por Frank Lestringant). dade moderna e a "economia-mundo".
9. Ensaios, capítulo XXXI, P.343. [EUB, ibid., P·258.] 31. Michel de Certeau. "Le lieu de I'autre. Montaigne: 'Des
10. Le Brésil d'AndréThevet, edição integral, organizada, apre- cannibales"', CEuvres et critiques, VIII 1-2, 1983, p.60. Ele evoca
sentada e com notas de Frank Lestringant, Paris: Chandeigne, "u ma econom ia da palavra da qual o corpo é o preço".
1997· 32. Goethe, Gedichte, reunidos por Friedhelm Kemp, Carl
11. Ensaios, capítulo XXXI, P.357. [EUB, ibid., p.266.] HauserVerlag, 1979, P·79:
12. Gaffarel, Histoire du Brésil français au XVle siec/e, Paris, 1878. "Vinde, vinde todos
Cf. o estudo de Guy Mermier, "L'essai les Cannibales de Mon- Evos ajuntai para o banquete!
taigne", Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, série V, Pois não podereis me dobrar
7-8,1973, e sua bibliografia; e o estudo de Luís da Câmara Com vossas esperanças e ameaças.
Cascudo, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, série V, 14-15, Vede, estou aqui, um prisioneiro,
1975, p.89-102 . Mas vencido ainda não!
13. De acordo com Ferdinand Denis, que reimprimiu e anotou Vinde partilharde meus despojos
(Paris: Techener, 1850) o opúsculo Une fête brésilienne célébrée à E partilhai assim de
Rouen en 1550. Vossos ancestrais, de vossos pais
14. Simone Collin-Roset, "Le Château de Montbras", Congres Que meu pasto já foram!
archéologique de France, Société Française d'Archéologie, 1991, Esta carne que vos estendo,
P· 20 7-22 7· Tolos que sois, é a vossa,
15. Ensaios, capítulo XXXI, P.348. [EUB, ibid., p.261] Eem meus ossos está
16. Matapu: caracol marinho [N. do T.]. De vossos ancestrais o tutano.
17. Hans Staden Relation véridique et précise des moeurs et coutumes Vinde, então; vinde, e em todo bocado
des Tupinambas, Marbourg, 1557; Nus, féroces et anthropophages, Vosso paladar o recon hecerá."
Paris: A.M.Métailié, 1979, poche Seuil. [Edição brasileira: Duas 33. Oswald de Andrade, op. cito

93 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII
curadoria Ana Maria Belluzzo e Jean-François Chougnet

Tupi or not tupi, that is the


- n1
q U es t 10 Jean-François Chougnet

Montaigne demonstrates his curiosity for the New World in two ofthe better-known chapters
from his Essaís, one entitled "On the cannibals" on morality among the Brazilian Amerindians 2
(Book I, chapter XXXI), and the second entitled "On coaches" which deals with the conquest of
Mexico (Book III, chapter VI). The existence ofthese temporally remote texts (the first ofwhich
appeared in the 1580 edition ofthe Exemplaíre de Bordeaux,3 the second appearing in the 1588 edi-
tion) is testament to Montaigne's incessant reflection upon the questions arising from the
expanding frontiers ofhis era.
It was no accident that Montaigne inscribed upon his own library the following quotation
from Luctretius: "The human being has an excessive appetite for tales." Montaigne was unable
to limit his "tale" of the cannibals to the simple question of anthropological ritual, instigating
numerous literary works which one might now define in terms of three fields of interest. First,
an historiographical field as expressed in the search for sources which served as inspiration to
the gentleman ofBordeaux, encompassing the essential texts on traveI which were republished
and rediscovered with each generation. 4 Second, a somewhat outdated position which according
to Montaigne would beco me the fundamental principIe behind the idea ofthe "noble savage."
Third, fuelled by advances in literary criticism itself, there is the research focused upon the
rhetoric and complexities ofthe texts themselves. 5
IfMontaigne excited debate then and continues to do so to this day, it is thanks to his triple
reading ofBrazilian Amerindian society through the real, the symbolic and the imaginary. 6

The real
The first of the sources cited by Montaigne he had penned himself: "I had with me for a long
period a man who resided in this other world for some ten or twelve years, and who was discov-
ered in our very century at the place where Villegagnon went ashore and which he called la France
Antarctíque."7 We are questioned several times about the plausibility of this spokesman even to
the point where we are shown a letter whose discovery would appear to confirm his existence.
The sentence also seems to correspond with certain tales of the expedition itself.
We should, therefore, consider Montaigne within the context ofhis time.
Villegagnon sailed into Rio de Janeiro harbor on the 10th ofNovember, 1555, and installed
his party on a small island which bears his name today. He was at the head of the only Protestant
missionary group ofthe 16th century. While the Catholic kings put their soldiers and missionar-
ies to sea, the Reformists concentrated their efforts in Europe. The missionary expansion at the
time, which was directly linked to economic expansion, was an essentially Iberian affair, and the

94 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


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i)cm h,b.:d(fí Cbtf.;l;>ll<'h btro. '
j;;Xrwôllc aud] ItUI1N;t~n b\P~h('n midJ.

presence of the French in Brazil before the Portuguese assumed contraI is but a short chapter
opened in I555 and closed again with the fall ofthe establishment on the nth ofMarch, I560.
Furthermore, following the numeraus incidents and unexpected diversions, the squabbles
which they had sought to escape re-emerged within their midst and mobilized them.
"The story takes so curious a turn," writes Lévi-Strauss, "that I am amazed no novelist ar
scenario-writer has seized upon it. What a film it would make! A handful ofFrenchmen, isolated
on an unknown continent that may as well have been another planet, totally ignorant in the ways
ofits nature and its people, incapable of cultivating the soil for their own subsistence, and entire-
ly dependent upon an incomprehensible population who in any case had taken them for sworn
enemies, assaulted by disease, this handful ofFrenchmen who had exposed themselves to all
manner of danger in arder to escape the metrapolitan struggle and found a united bratherhood
where all beliefs could coexist under a regime of tolerance and liberty [... ] passing the time in
insane discussions: How should the Last Supper be interpreted? Should water be mixed with
wine for the Consecration?"8
The Essaís shaw Montaigne's particular interpretation ofthe texts by the cosmographes [cos-
mographers], alerting us to some prafound reservations as to their appraach.
"That man of mine was a simple, raugh fellow-qualities which make for a good witness
[... ] So you need either a very trustworthy man or else a man so simple that he has nothing in him
Hans Staden Warhaftige historia und beschreibung História real e descrição [Real history and description] primeira edição do
livro [first edition of the book] Marpurg, Andres Colben 1557 18x24cm coleção Museu Paulista da Universidade de São Paulo foto
Walter Morgenthaler

95 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


on which to build such false discoveries or make them plausible; and he must be wedded to no
cause. Such was my man; moreover on various occasions he showed me several seamen and
merchants whom he knew on that voyage. So I am content with what he told me, without inquir-
ing what the cosmographes have to say about it. What we need is topographers who would make
detailed accounts ofthe places which they had actually been to. But because they have the advan-
tage of visiting Palestine, they want to enjoy the right of telling us tales about the rest of the
world."9
Montaigne's ironic view ofthe cosmographes would in alllikelihood be directed towards the
most outstanding among them, André Thevet, a Cordelier monk. Thevet had travelled exten-
sively in the Middle-East and published several pie ces before being named as the "Guardian of the
King's curiosities." Montaigne would probably have met Thevet within the circles ofthe court
that they frequented. Thevet had spent several months with Villegagnon, entitling his book pub-
lished in 1557 Singularités de la FranceAntarctique, autremont nomméAmérique [Singularities ofFrench
Antarctica, also called America] .10 Singularités had been circulated widely while Montaigne was
putting the finishing touches to his Essais, and to think that he was unaware of their content is
highly improbable.
"Three such natives, unaware of what price in peace and happiness they would have to pay
to buya knowledge of our corruptions, and unaware that such commerce would lead to their
downfall-which I suspect to be already far advanced-pitifully allowing themselves to be
cheated by their desire" for novelty and leaving the gentleness of their regions to come and see
ours, were at Rouen at the sarne time as King Charles IX."11 Historians 12 have pointed out that
as earlyas 1509, seven Brazilian Indians, dressed to the nines in flight feathers and armed with
bows and tacape arrows, danced before the people ofRouen. Such visits would become frequento
On the 1st and 2nd ofOctober, ISSO, King Henri II and Queen Catherine de Médicis held a
sumptuous reception at Rouen. The program included an "American confrontation or savage
fight." A village ofTupinamba Indians issued forth upan the stage clad in a savage manner, tat-
tooed and half-naked. Surrounded byanimals, trees, birds and fruits ofBrazil they sang, danced,
ate, drank, wrestled, and conjured up the ways of a faraway land. There was even simulated
combat. 13 ln 1563 the young King Charles IX brought three Amerindians to Rouen to which
Montaigne would refer throughout his work. It is highly probable that Montaigne rediscovered
the indigenous Brazilians at the "Brazilian party" in Bordeaux on the 9th ofApril 1565, atwhich
Charles IX was himself presento
Such passion for the Brazilians was in fact quite the rage during this period. They appeared
in Paris in 1613 following Claude d'Abbeville's voyages to northern Brazil. Tupinamba Amerindi-
ans became the increasingly popular subjects of engravings following an initial interest shown
by Theadore de Bry, and the Chateau de Montbras in eastern France is hame ta a series of frescoes
inspired by this very subject. 14
Finally, beyond the eyewitness accounts that he gathered and the complex ideas borrowed
from the travelliterature, Montaigne demonstrated a genuine fiare for practical ethnography:
"ln my own house, as in many other places, you can see the style of their beds and rope-
work as well as their wooden swords and the wooden bracelets with which they arm their wrists in
battle, and the big open-ended canes to the sound af which they maintain the rhythm af their
dances."15 Montaigne goes as far as to confess that he himself has a cabinet of curiosities or
ethnographic collection. The ropes which he describes are the necldaces or matapus of shells,
animaIs' teeth or dried nuts described notably by Hans Staden. 16 The swords are the bludgeons or
clubs Cibirapema or tacape).17 Identification of the wooden bracelets which cover the warriors'

96 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


wrists in combat has never been convincingly asserted by historians or ethnologists, nor the
bâton de danse.

The symbolic
As with many ofhis contemporaries also confronted by such lively new matter for theological
debate, Montaigne was primarily concerned with one question alone. Did the Tupinamba have a
religion?
"They believe in the immortality of the soul [... ] "18
The idea that the Amerindians had no religion was the general consensus among the voy-
agers in the newworld. Montaigne's remarkwas arare exception to this view, perhaps inspired
by the position put forward by Jean de Léry who abandoned his initial view that the Brazilians
had no religion and altered his judgement. "Nonetheless, in order that we should look into this
matter, I would begin by stating that I beheld some light within the heavy darkness of ignorance
that surrounded them, and I would venture to say that they do believe that the body has life after
death, and those that lived virtuously, that is to say according to their own ways, who have been
well avenged and have eaten well of the flesh of their enemies find their way to beyond the high
mountains, dancing in wonderous gardens with their forefathers (these are the poet's Elysian
Fields). On the other hand, the effeminate and undistinguished members who have neglected to
defend the honor oftheir heritage, are goingwith Aygan (as the Devi! is known in their tongue)
who, they say, ceaselessly torments them."19
Concerning the subject of anthropophagy, Montaigne's analysis is directed toward the sym-
bolic aspect of the practice: "For a long period they treat captives well and provide them with all
the comforts which they can devise, afterwards the mas ter of each cap tive summons a great
assembly ofhis acquaintances; he ties a rope to one ofthe arms ofhis prisoner and holds him by
it, standing a few feet away for fear ofbeing caught in the blows and allows his dearest friend to
hold the prisoner the sarne way by the other arm: then, before the whole assembly, they both
hack at him with their swords and kill him. This done, they roast him and make a common meal
ofhim, sending chunks ofhis flesh to absent friends. This is not as some think done for food-
as the Scythians used to do in antiquity-but to symbolize ultimate revenge."20
Thevet himself describes Brazilian cannibalism as a form of vengeance, and he explains
that "the savages are marvelously vindictive."21
If, in chapter XXXI, Montaigne, following the Cannibals' view, deals with anthropophagy
as a legitimate practice for vengeance, he would later see another possible explanation; it was not
about the victor eating the vanquished, but rather the son eating the father out of respect and
affection. "Nothing could be quite as horrible as imagining oneself eating one's father. People
who obey such a custom do so as a demonstration oftheir faith and love [... ] and is regenerated
through their transmutation into living flesh by means of digestion and nourishment."22
ln an extraordinary way, Montaigne anticipated the most modern of anthropological
approaches towards cannibalism,23 in that he distinguished between "exocannibalism," which
required the absolute extermination ofthe victim's body and soul, and "endocannibalism," deal-
ing mainly with the dead for whom the absolute respect required that the body should not be
given back to the dust itself.
Finally, the most spectacular ofideas concerns the relativism ofjudgement, or the idea that
the barbarity ofEuropeans should not yield to the barbarity of the Amerindians.
"We may well call them barbarians with respect to the rules of reason, but not with respect
to us, for we surpass them in all forms ofbarbarity."24

97 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


Jean de Lérywould seem to have fully comprehended the principIe parallel to Montaigne's
that was so unfavorable to Europeans: 25 "those who will read of such horrendous things that are
practiced daily in the barbarous nations ofBrazil [should] think also a little of those who do such
things among us [... ] More to the point, if we consider the brutal act of chewing and literally eat-
ing (as we say) the human flesh, is this not to be found in other regions, even those which are
known as Christian lands [... ] And without going further ahead, what ofFrance? (I am French and
it angers me to say it.) During the bloody tragedy which began in Paris on the 24th ofAugust, 1572,
for which I do not accuse those who were not the cause, among other horrible acts to recount
which were perpetuated throughout the kingdom, [... ] the livers, hearts and other body parts of
some, were they not eaten by the furious murderers ofwhom the Devil himself might be afraid?"26

The imaginary
Montaigne's treatment ofthe imaginary is exemplified by the poetic and somewhat refined posi-
tion of the prisoner doomed to an horrific fate : "I have a song made by one such prisoner which
contains the following: 'Let them all dare to come and gather to feast on him, for with him they
will feast on their own fathers and ancestors who have served as food and sustenance for his
body. These sinews, this flesh and these veins-poor fools that we are-are your very ownj you
do not realize that they still contain the very substance ofthe limbs ofyour forebears : savor them
well, for you will find that they taste of your very own.' An invention devoid ofbarbarity." 27
Theodore de Bry America tertia pars ... América terceira parte .. [America third part. .. ] Frankfurt, 1592 coleção Biblioteca Municipal
~liiário de Andrade , São Paulo

98 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


No document comes dose to this in illustrating the raison d'être for ritual anthropophagy,
or exocannibalism. Vengeance through blood is well and truly fixed within its mighty and bar-
barous contexto ln order that the sacrifice be true to its intentions, it was required that the con-
demned man should have manifested his courage, fought bravely and prodaimed the feats ofhis
ancestors and their victories over the very tribe that was going to devour him. Furthermore, in
boasting ofhis previous battles, the prisoner would describe having eaten the body of so-and-
so's father and the brother of such-and-such, thereby boasting the strength ofhis resolve.
Jean de Léry cites the conversation between the executioner and his victim. "You, who now
find yourself within our power, will soon be put to death by me, and then roasted and eaten
by all the rest of us." "And thus," the victim would respond (as determined to suffer for his peo-
pIe as Regulus was prepared to face death for his Roman republic) "will I be avenged for my
parents tOO."28
The cyde would continue in perpetuaI tragedy, with each death becoming a debt to pay
requiring another death and another debt to pay.29
The song transcribed (or imagined?) by Montaigne is the most subtle expression of a
"cannibalism of the word."30 It would later inspire Goethe, a great admirer ofFrench writers from
the 16th century and particularly ofMontaigne's, to write a poem, "Todeslied eines Gefangenen"
[The prisoner's death-song]:

"Kommt nur kühnlich, kommt nur alle


Und versammelt euch zum Schmause!

99 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


Denn ihr werdet mieh mit Drauer
Mieh mit Hoffnung nimmer beugen.
Aber noeh nieht überwunden!
Kommt, verzhret meine Glider
Und verzehrt zugleieh mit ihnen
Eure Ahnherrn, eure Vater
Die zur Speise mir geworden!
Dieses Fleiseh, das ich eu eh reiche
1st, ihr Toren, euer eignes
Und in meinen innern Knoehen
Stiekt das mark von euren Ahnherrn
Kommt nur, kommt, mit jedem Bissen
Kann sie euer Gaumen sehmeeken." 31

Brazilian eannibalism is thus brought to us in its most direet form by Montaigne, relayed by
Goethe and again by Oswald de Andrade, through the saying "Só me interessa o que não é meu.
Lei do homem. Lei do antropofágo."32 The flesh ofthe victim beeomes the word, the ery that
eontains the ultimate prize of the eannibal exehange.
Jean-François Chougnet

100 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. Oswald de Andrade, "Manifesto antropofágo," São Paulo, 17. Alfred Métraux, "l'Anthropophagie rituelle des Tupinamba"
May 19 28 (1928), in Relí.gions et ma.gies indiennes d'Amérique du Sud, Galli-
2. It should be noted that the word "cannibal" as borrowed by mard, 1967, P.S4.
Christopher Columbus himself from a Carib word did not 18. The complete Essays, chapter XXXI, P.234.
have the sarne significance in the 16th century as it does 19. Jean de Léry, Indiens de la Renaissance, histoire d'un voya.ge
today. It was used to describe an unknown tribe. The effect of fait en la terre du Brésíl, chapter XVI, forward by Anne Marie
a shift in meaning such that the word now refers to the prac- Chartier, Paris, EPI, 1987 P.197.
tice of anthropophagy (cannibalism) is known to linguists as 20. The complete Essays, chapter XXXI, P.23S.
a synecdoche. 21. Le Brésíl d'AndréThevet, op. cit., pp.160-167.
3. Comparative and statistical analysis ofthese chapters in the 22. Michel de Montaigne, Essais, Book II, chapter XII, Paris:
"Exemplaire de Bordeaux" by Antoine Tournon, "Je n'ai jamais Gallimard, Plélade, p.s6s (Apology for Raymond Sebond).
lu les Essais de Montaigne," Paris, Bulletin textuel, 1993, nO.12. 23. Maurice Godelier and Michel Panoff (coord.), Le corps
4. Frank Lestringant, Le cannibale, .grandeur et décadence, Paris, humain, supplídé, possédé, canibalísé, Amsterdam: Éditions des
Plon, 1994, English translation Cannibals, Oxford, polity, 1997. Archives Contemporaines, 1998. Knowledge of cannibalism in
5. Among the more recent publications one would cite the Oceania has made research progress considerably.
contributions by Catherine Demure and Jack Abecassis from 24. Essais, chapter XXXI, P.347.
the colloquium "Montaigne et le Nouveau Monde" (Paris, 25. On the parallels between discoveries and the Religious
18-20 May 1992), Bulletin de la Sodété des Amis de Montai.gne, Wars, refer to the work ofFrank Lestringant, Une sainte horreur
Series VII, no. 29-3°-31, pp.I79-208. ou le voya.ge en Eucharistie, XVIeme-XVIJIeme siecle, Paris, Presses
6. This division is inspired by the proposed analysis of canni- Universitaires de France, 1996.
balism by André Green, "Cannibalisme: réalité ou fantasme 26. Jean de Léry, op. cit., P.193.
agi," Paris, Nouvelle revue de psychanalyse, n.6 (Fall 1972), P.27. 27. The complete Essays, chapter XXXI, P.239.
7. Essais, chapter XXXI, P.338. 28. Jean de Léry, op. cit., p.18s.
8. Claude Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris: Plon, Terre 29. One may well be shocked by the logic behind such mone-
Humaine, 1955 pp.89-90. (A World on the wane, translated by tary terms during the century which saw the invention of
John Russell, Hutchinson, 1961, p.61.) Claude Lévi-Strauss had modern accounting and the "Global Market."
always seen his research on the Brazilian Amerindians as 30. Michel de Certeau, "Le lieu de l'autre. Montaigne: 'Des
closely related to the work ofJean de Léry, as is most obvious cannibales,''' Oeuvres et critiques, VIII 1-2,1983, p.60. He evokes
in his interview in the foreward to the republished pocket edi- "une économie de la parole dont le corps est le prix" (an econ-
tion ofHistoire d'un voya.ge, Paris: Livre de Poche, 1994 (publi- omy of words when the body is the prize. T.N.)
cation established by Frank Lestringant). 31. Goethe, Gedíchte, edited by Friedhelm Kemp, Carl Hauser
9. Michel de Montaigne, The complete Essays, Book I, chapter Verlag, 1979, P.79:
XXXI, translated by M.A. Sceech, London, Penguin Books, "Come ye boldly, come ye all,
1987, p.229. Essais, chapter XXXI, P.231. And join together for the banquet!
10. Le Brésíl d~ndréThevet, complete edition, established, pre- For I shall not by your threats
sented and annotated by Frank Lestringant, Paris: Chandeigne, And your wishes submit myself.
1997· For I am not yet conquered!
II. The complete Essays, chapter XXXI, P.240. Come, share my remains,
12. Gaffarel, Histoire du Brésílfrançais au XVIe siecle, Paris, 1878. And in doing partake of
Cf. study by Guy Mermier, "l'Essai les cannibales de Mon- Your ancestors, your fathers
taigne," BulIetin de la Sodété des Amis de Montai.gne, Series V no. Who became but food for me!
7-8 (1973) and its bibliography and study by Luis da Camara This flesh which I offer you,
Cascudo, BulIetin de la Sodété des Amis de Montai.gne, Series V, no. Mad that you are, it is your own,
14-15, 1975, pp.89-102. And my inner bones hold
13. After Ferdinand Denis, who reprinted and annotated the The marrow of your forefathers.
ISS0 opuscule Unefite brésílienne ce1ébrée à Rouen en 1550 (Paris: Come then, come, in every bite
Techener, 1850). Your palette shall know it.
14. Simone Collin-Roset, "Le château de Montbras" in Congres 32. Oswald de Andrade, op. cit.: "All that interests me is not
archéologique de France, Société Française d'Archéologie, mine. The law of mano The law of the anthropophagite."
1991, PP· 2 07-2,27·
IS. The complete Essays, chapter XXXI, P.348.
16. Hans Staden, ReIation véridique et prédse des moeurs et cou-
tumes des Tupinambas, Marbourg, 1557, Nus, féroces et anthro-
popha.ges, Paris, A. M. Métailié, 1979, poche Seuil.

101 Albert Eckhout e séculos XVI-XVIII Jean-François Chougnet


Luis Pérez Oramas

Paisagem e fundação:
Frans Post e a invenção da
• •
paisagem americana

No dia 25 de outubro de 1636, extraordinários acidentes da História levaram o pintor Frans Post
até a embarcação que o conduziria à América, à Corte do príncipe de Nassau. Essa data, a exa-
tidão desse evento assinala a "consciência territorial" da América rumo ao futuro de sua própria
"invenção paisagística". A América como terra existia, existia a natureza tropical, mas a rigor
não existia a "paisagem" dessa terra e dessa natureza, pois ainda não existia sua "representação
como paisagem".1
Contudo, nas embarcações de Maurício de Nassau vinha o primeiro dos que empreenderiam
tal representação, o olhar inadvertido que faria, para as convenções da história da arte, as "pri-
meiras paisagens" e se chamava, com 24 anos de idade, FransJanzs Post, de Haarlem, Holanda.
Esse detalhe não passará despercebido a ninguém: Post vinha de um lugar onde o seu olhar
estava marcado por um certo tipo de construção paisagística. Por esse motivo suas obras, apesar
de brasileiras, não deixam de ser holandesas e suas paisagens, instigantemente estranhas para
um europeu de seu tempo, se comparam e se aproximam formalmente daquelas de Ruysdael,
de I<oninck ou de Van Goyen. Uma "condensação" lhes imprime certa mácula e as obriga a ser,
ao mesmo tempo, uma paisagem nova, "primeira" e uma paisagem conhecida, "segunda", já
vista, anterior.
Digamos, portanto, que Post veio fazer com sua pintura uma espécie de "utopia": essa
paisagem impossível que é sempre (e nunca) a primeira das paisagens. Para empreendê-Ia não
se podia ter consciência alguma. Era preciso pintar as margens do rio São Francisco, ou a dis-
tante cidade da Paraíba, com a mesma naturalidade com que Vermeer pintava a conhecida
cidade de Delftvista de suas águas. Nada permite entrever nesses quadros o sintoma de serem
primeiros, heróicos ou primitivos, e é precisamente sua superfície neutra de paisagens "puras",
ou indiferentes, quase inadvertidas, sua esquematização tosca, sua ausência de frondosidade,
sua "maneira despojada", quase sem descontinuidade, o que as transforma em um capítulo
especial da paisagística americana. A primeira paisagem, como o homem ao colocar seu volu-
moso pé no deserto lunar, decepciona, é uma "novidade" que já conhecíamos; é "irreconhecível"
também por serformalmente insignificante. E no momento de se enraizar no contorno de uma
escritura pictórica, não é (mais) uma primeira paisagem; como a voz da ninfa Eco em seus
reflexos, que nunca pode ser uma palavra primeira 2 , toda a paisagem é (já) uma segunda pai-
sagem, outra paisagem.
Esta alteridade da paisagem, como toda alteridade da representação, acontece sempre
depois: uma hierarquia irreparável da memória (e da experiência) a coloca em uma situação de

102 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


retardamento. Toda paisagem, por ser irreparavel mente "segunda", está "depois da paisagem";
toda paisagem é metapaisagem. Assim começaria a se delinear uma hipótese que confere a certa
prática "caprichosa" da paisagem, cujo modelo primitivo será (também) essa parte da obra de
Post realizada no seu regresso à Holanda, uma envergadura fundamental cuja densidade teórica
se dissimula no bosque fantasioso das "condensações", das "ficções naturais" e da "fantasia
memoriosa" da paisagem.
Frans Post realizou, pois, entre 1636 e 1640, em terras brasileiras, uma empresa de fundação
paisagística. Pintou dezoito paisagens "primitivas", estritas, esquemáticas que passam-
enquanto ainda ficam pelo mundo sete delas-por serem as "primeiras paisagens" da América.
Mas Post pintou como pintor holandês, com seu olhar abundante à moda de Haarlem, olhando
"descritivamente" só o visível, enxugando a pintura de toda contribuição emblemática ou
alegórica, narrativa ou retórica; vale dizer, pintou como um holandês no Brasil, contra uma secu-
lar e poderosa tradição italianizante. Conseqüentemente, essas primeiras paisagens (já) não o
são mais: estão impregnadas do olhar involucrado de um pintor holandês que nelas condensa as
convenções de uma escola, com sua maneira "européia" de pintar, junto à natureza ainda sem
nome e certamente sem aspecto do continente americano. Finalmente, para culminara aventu-
ra com o seu anverso, ao voltar para a Holanda Post não fez mais que pintar, como um pintorde
Frans Post Vista da cidade e domicílio de Frederik na Paraíba, Brasil View of the town and homestead of Frederik in Paraíba,
Brazil 1638 óleo sobre tela 61x85cm

103 Frans Post Lui s Pérez Oramas


outro mundo, na serena uniformidade das distantes Províncias Unidas, "paisagens brasileiras",
recordações do trópico que lhe outorgariam uma indiscutível forma de "distinção", "caprichos
paisagísticos" realizados inoportunamente e com atraso, como uma longa e lânguida "devo-
lução" das paisagens que na suajuventude, ao atravessar o mar oceano, havia digerido.
Toda fundação atua de acordo com uma "dupla temporalidade". Toda fundação se desdobra
e gera seus efeitos, em dois tempos diferentes, complementares, substituíveis, mutuamente
aniquilantes. Assim Post, fundadorda "paisagem americana", veio ao Brasil-em um primeiro
momento da fundação-para depois, novamente na Holanda, ao longo de uma durável e pro-
longada produção pictórica irtomando consciência-em um segundo momento da fundação,
em cada quadro e na somatória de todos os quadros-de uma paisagem que já tinha perdido e
precisava, portanto, restituir (ou substituir). Vieram então os "caprichos", as "fantasias paisa-
gísticas" que o tornaram conhecido, até hoje, por uma dupla obsessão: obsessão paisagística 3
e obsessão tropical.
Poder-se-ia pretender que o verdadeiro momento de "fundação" da paisagem americana
fosse este, segundo, destemporalizado, retardado, "caprichoso", "fantasioso" das paisagens
fictícias, imaginárias, "compostas" por Frans Post em seu regresso à Holanda. Assim, a paisagem
americana estaria assinalada, desde a sua fundação por Post, por uma espécie de "alteridade"
que a faz ser, sem prejudicar sua fidelidade paisagística, uma forma e uma figura de ficção.
Com a condição de interpretar a "dupla temporalidade" da obra de Post-dezoito paisagens
primitivas, mais tarde dezenas de "caprichos paisagísticos"-à luz esclarecedora de uma célebre
e moderna teoria da fundação proposta por Sigmund Freud, no início deste século, sob o pretex-
to de um certo Moisés, pai da religião monoteísta, como uma "ficção teórica" na qual se enun-
ciava a universalidade hipotética desses dois tempos excludentes que assinalam toda fundação.
Assim é a "novela" freudiana de Moisés; o pai da religião monoteísta teria sido outro,
aquele que veio de longe, de fora, um egípcio, o estrangeiro 4 • Para além da discutida verossimili-
tude da hipótese freudiana, resta-nos sua pertinência teóriêa, sua potência de "disseminação".
De acordo com esta, a operação constitutiva de toda fundação é uma "mudança de lugar", um
desaparecimento que convida a uma reaparição, uma substituição. Toda fundação tem dois
tempos, o tempo de um "egípcio" que emigra e é morto no deserto, o tempo do deserto; e o
tempo de um substituto que adotará o mesmo nome daquele e que, em outro lugare em outra
hora, irá concluir seu ato de fundação. Toda fundação padece, pois, do regime de uma necessi-
dade retrospectiva por meio da qual algo, que se instaura (uma religião ou uma paisagem)
"muda de aspecto [... ] mas também: muda de lugar, se desloca mais adiante [... ]". O nome
freudiano dessa operação é Entstellung, isto é, deformação s •
Como uma espécie de reflexo narcisista, a história da fundação da paisagem americana pelo
jovem Frans Post segue, rigorosamente, os passos da ficção freudiana de Moisés: um homem
estrangeiro que chega de fora e traz em seu olhar, na ponta de seus pincéis, na matéria casual-
mente descritiva de seus pigmentos, uma modalidade desconhecida, formalizante, de ver a
natureza, de obselVá-la no seu sossego protonarrativo, como se fosse o lugar possível de todos os
relatos, portanto, o lugar de nenhum relato (ainda). Primeiro ato da fundação: dezoito imagens
serenas, esquemáticas, niveladas à terra, com seus céus planos.
Comparadas com as paisagens que Post fará mais tarde, esses primeiros quadros, esse
primeiro-inadvertido-gesto de Fundação (que como tal está destinado à perda e à substitui-
ção) aparece matricialmente caracterizado pelo despojamento. Neles há figuras-mas poucas-
e a composição é esquemática. Microrrelatos de uma terra inédita que ainda não se enraíza na
frondosidade da lenda, essas primeiras paisagens de Post contrastam com as últimas, nas quais

104 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


todas as figuras se reúnem, todas as plantas crescem, todas as flores resplandescem, todas as
raças da América dançam ou se movimentam, e convivem no mesmo espaço as ruínas, os con-
ventos, as choças e até o sacrifício bíblico de Manoá, com seu arcanjo reluzente no céu brasileiro.
Os limites da teoria freudiana da Fundação estariam, no entanto, no que se refere a Post,
marcados pela certeza de ser um mesmo pintor quem, encarnando-se em dois "sujeitos" dife-
rentes, empreende a autoria unitária da fundação paisagística da América. O primeiro, inadver-
tido, olha até extenuar-se um novo país e registra as formas dessa extenuação em suas paisagens:
desolação ou solidão, serenidade inquietante de uma imensidão "abscôndita". O segundo
momento é o do "capricho", o da fantasia que deforma, muda de lugar, condensa na paisagem
todas as suas figuras. O primeiro momento é, a rigor, o de uma experiência "arcádica": terra de
ninguém, terra rude, paisagem crua; o segundo é o da elaboração memoriosa fictícia, fantasiosa
de um Paraíso.
Etodo Paraíso, como versa um poema apócrifo de Borges, é um Paraíso perd ido. As paisa-
gens de Post realizapas ao regressar à Holanda correspondem à perda da paisagem na distância
do retorno: desde então aquela paisagem é simplesmente uma "lacuna" na memória. A repre-
sentação, à distância, à dupla distância (espacialmente da paisagem e no mimetismo de sua
aparência fiel) tem então por destino saciar tal lacuna paisagística. Invenção "memoriosa" e
fantasia que, inevitavelmente, se desapega da realidade, a representação da paisagem seguiria,
desde sua fundação americana por Post na distância européia da América e na sua dupla tem-
poralidade de deserto fiel à natureza vista e de frondosidade caprichosa que a refigura como
paisagem, até a noção freudiana da deformação, operando não tanto por ausência de seme-
lhança como por mudança de lugares. Tratar-se-ia, enfim, de construir um lugar-ausente-
reinventando-o.
Teríamos de pensar, como conseqüência, que esse olhar segundo e inoportuno de Post a
partirda Holanda, esse olharque não olha nada a não ser a construção deformante da memória,
é o olharfundadorda paisagem na América. Atextura dessa fundação-e a textura da invenção
"caprichosa" do lugar que implica-é, precisamente, a distância. Daniel Arrasse, em um texto
iluminadorsobre os espaços da perspectiva e o lugarda paisagem 6 , demonstrou que a operação
específica da paisagem terá consistido em "tornar próximo o distante". "A paisagem como dis-
tância com relação à cidade constitui então o lugar privilegiado para o afloramento do inespera-
do, do bizarro, do irracional, do monstruoso."?
Essa distância é precisamente o que, como o deserto para suas primeiras paisagens,
adquire em Post uma condensação específica, transcendendo o estatuto de uma construção
teórica. Mas a distância da paisagem americana que Post torna próxima nos seus quadros não
é somente uma distância especulativa-a natureza além dos traçados humanos-mas é também
uma distância espacial e uma distância na memória. Se pudéssemos pensar, portanto, que as
paisagens de Post pintadas na Holanda são uma forma pictórica de "duelo" produzido pelo ino-
portuno, pela impossibilidade de tornar contemporâneos a paisagem que se representa e o
olharque-deformando-a-a inventa. Mas, ao mesmo tempo, essa distância será exatamente
em Post-e diferentemente dos pintores de sua escola-o lugarde afloramento do "inesperado"
e o "bizarro" que constituem, a partir da Europa, a paisagem americana. O tempo da fundação
seria, na paisagem de Post, considerando Post paradigma e início na paisagem da América,
o tempo do "capricho": assunto de fantasias que figuram o bizarro e assunto, fundamen-
talmente, de novos caminhos.
Repetindo a viagem abrupta do descobrimento, consumindo a distância oceânica que
separa a Europa da América, Post se deixa surpreender com perplexidade nua por uma terra

105 Frans Post Luis Pérez Oramas


inédita, para em seguida inventar caminhos pictóricos novos em seus caprichos paisagísticos.
Assim, enquanto se desprende da realidade, constrói a "lenda visual" do trópico. Desde a
metrópole européia, com as armas da memória suprindo a extenuação do olhar, se aproxima em
seus caprichos da distância americana, torna-a próxima, torna-a também uma possível terra de
relatos. Trabalho contra a distância e contra o esquecimento, esse paisagismo vem "suplantar"
com sua frondosidade a "verdade plana", "estrita", "desértica" de suas primeiras paisagens.
Trabalho de alteração, de ficção, essa paisagem seria, pois, o "outro lugar" da paisagem, a figu-
ra concreta de sua "alteração"; uma "alteridade" cuja presença, cuja evidência visual é acompa-
nhada de uma forma de silêncio; natureza (ainda) sem nome e (já) sem relatos.
Isso que não tem nome e só possui figuras-a paisagem-pode servista então, ao longe,
como um deserto ou como um capricho, como um lugarvazio ou como uma condensação memo-
riosa de todas as suas variações; como algo, enfim, que só suportaria uma denominação: "a aura
de uma coisa natural; poder-se-ia defini-Ia como a única aparição de uma distância, mesmo que
pudesse estar próxima. Descansando no verão, ao meio-dia, seguir no horizonte a linha de uma
cadeia de montanhas ou uma folha que projeta sua sombra sobre o corpo de quem repousa [... ]"8:
Frans Janzs Post, o jovem, na embarcação de Maurício que se afasta para sempre das margens
memoriosas da América e leva inscritas, como sombras digeridas, todas as figuras da paisagem.
Luiz Pérez Dramas. Traduzido do espanhol por Li/ia Astiz.

1. Alain Roger, Court traité du paysage, Paris: Gallimard, 1997, 5.lbid., p.115·
p.16-3°· 6. Daniel Arrase, "L'espace de la perspective et le lieu du pay-
2. "[ ... ] a ninfa da voz sonora, que não sabe responder com sage", manuscrito inédito.
silêncio a quem lhe fala nem tomar ela mesma primeiro a 7. Cf. Daniel Arrasse, "Lorenzo Lotto dans ses bizarreries: le
palavra [... ]" Cf. Ovídio, Metamorfósis, III, P.353-388. peintre et I'iconographie", Lorenzo Lotto, Atti dei Conuegno
3. "Frans Post é o único pintor holandês conhecido que se Internazionale di Studi per iI VCentenario della Nascita, Treviso, 1981,
dedicou integralmente ao registro e à representação de paisa- nota 24.
gens." Cf. Petere. Sutton, Masters ofXVII century Dutch landscape 8. Cf. Walter Benjamin, "L'oeuvre d'art à I'ere de sa repro-
painting, Boston: Museum ofFineArts, 1987, p.411. ductibilité technique", Essais (11,1935-40), Denoel-Gonthier,
4. Sigmund Freud, "L'homme Mo'ise et la religion mono- 198 3, P·94·
théiste", Trois essa is (1939), Paris: Gallimard, 1986.

106 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Luis Pérez Oramas

Landscape and foundation:


Frans Post and the invention of
the American landscape
On October 25, 1636, the resonant accidents ofhistory led the painter Frans Post to the voyage
that would take him to America, in the retinue of the Prince ofNassau. That date, the exactitude
ofthe event itself, propelled American "territorial consciousness" toward the future ofits own
"invention of landscape." Although the lands of America and tropical nature existed, strictly
speaking the "landscape" ofthose lands and ofthat nature did not exist, because their "repre-
s'entation-as-Iandscape"l did notyet existo
But the first ofthose who undertook this representation, the unobserved eye that, consid-
ering the conventions of art history, made the "first landscapes" oftropical American nature,
arrived in the ships belonging to Maurice ofNassau. The name ofthis 24-year-old was Frans
Janzs Post ofHaarlem, Holland. This detail did not go unnoticed: Post carne from a place that
had directed his vision toward a certain type oflandscape construction. That is why his works,
albeit being Brazilian, do not cease to be Dutch, and his landscapes, disquietingly strange for a
contemporary European, formally compare with and resemble those of de Ruysdael, de Koninck
or Van Goyen. A certain "condensation" marks them and determines that they be simultaneously
a new landscape, "first", and a known landscape, already seen, "second".
Let us then say that Post created a kind of"utopia" with his painting: that impossible land-
scape that is always (and neve r) the first of alllandscapes. ln order to undertake such an enter-
prise, it wasn't possible to possess any kind of conscience. The shores of the San Francisco River
had to be painted, or the far-off city ofparaíba, with the sarne naturalness with which Vermeer
painted the well-known city ofDelft from its waters. These paintings do not evoke any symptoms
revealing that they are the first of their kind, heroic, or original. It is precisely their neutral sur-
faces of"pure," or indifferent and almost unnoticed landscapes, their harsh, schematic quality,
their lack ofluxuriance, their almost discontinuous, "unadorned style," that renders them a spe-
cial chapter of America landscape art. The first landscape is deceptive; it's a "novelty" that we
already knew, much like the first man to put his bulky foot on the lunar deserto It is also "unrec-
ognizable" because it is formally insignificant. As it incarnates itself in the outlines of a pictorial
writing, it is no (longer) first landscape. Like the voice ofEcho, the nymph, whose reflections
can never be a first word, 2 every landscape is (already) a second landscape, another landscape.
This otherness oflandscape, like all otherness of representation, always occurs afterwards:
an irreversible hierarchy of memory (and experience) delays it. Every landscape is inevitably
"second," it always lies "after the landscape"; alllandscape is a meta-Iandscape. This is how a
hypothesis would take form conferring a "foundational importance" on a certain "capricious"
practice ofthe landscape-whose original model would (aIs o) be that part ofPost's work created
on his return to Holland-an importance whose theoretical density becomes disguised in the
fantasizing forest ofthe "condensations" of"natural fiction" and ofthe "memorable fantasy" of
the landscape.

107 Frans Post Luis Pérez Oram as


Frans Post undertook, then, between r636 and r640, the enterprise of a foundationalland-
scape on Brazilian territory. He painted eighteen "primitivist," unadorned, schematic landscapes,
considered the "first landscapes" ofAmerica in view of the remaining seven of them in the world.
But Post painted as a Dutch painter, with his eye sated in the Haarlem manner, looking "descrip-
tively" only at the visible, divesting painting of any emblematic, aIlegorical, narrative or rhetorical
attribute. That is to say, he painted as a Dutch man in Brazil, against a powerful and secular ltal-
ianizing tradition. As a consequence, these first landscapes are no longer landscapes: theyare
impregnated with the eye of a Dutch painter who combines in them the conventions of a school,
with its "European" manner of painting, as weIl as the still nameless, and certainly unpopulated
nature of the American continent. FinaIly, to complete the adventure with an obverse experience,
upon his return to HoIland Post did nothing but paint like a painter from another world. ln the
silvery serenity of the distant United Provinces he painted "Brazilian landscapes," commemora-
tions ofthe tropics. This would bestow upon him a kind ofindisputable "distinction"j theyare
"capricious landscapes" composed in delay and at the wrong time, like a long and languid "reca-
pitulation" of the landscapes that in his youth, by crossing the ocean, he had digested.
Every foundation operates according to a "double temporality." Every foundation extends
itself and generates effects, in two different, complementary, interchangeable, mutuaIlyannihi-
lating time frames. Thus Post, the founder of"American landscape," carne to Brazil-at an early
stage ofthe foundation-in order to later become aware in Holland, throughout a durable and
dilated pictorial production and at a second stage ofthe foundation, in each painting and in the
sum of alI the paintings, of a landscape which he had already lost and for that reason needed to
reconstitute. Then carne the "caprices," the "landscape fantasies" that made him known, up to
our day, for a double fixation: a fixation for landscape3 and a tropical fixation.
One might hope that the real moment of"foundation" for American landscape is this sec-
ond, detemporalized, retarded, "capricious," "whimsical" one ofthe fictional, imaginary, land-
scapes "composed" by Frans Post upon his return to HoIland. Since its foundation by Post, the
American landscape was marked bya type of"otherness" turning it into a form and figure of
"fiction", without impairing its fidelity to landscape.
This was based on the condition to interpret the "double temporality" ofPost's work-
eighteen originallandscapes and dozens of"landscape caprices"-under the clarifYing light of
a modern and celebrated foundation theory proposed by Sigmund Freud, in the beginning of
this century, under a pretext of a certain Moses, father ofthe monotheist religion, as a "theoreti-
cal fiction" that announced the hypothetical universality ofthese unusual times that mark this
foundation.
Such is the Freudian "novel" of Mosesj the father of the monotheistic religion must have
been another, the one who carne from afar, an outsider, an Egyptian, a foreigner. 4 Beyond the
verisimilitude of the Freudian hypothesis, for us what remains important is its theoretical rele-
vance, its power of"dissemination." According to this, the constitutive act of every foundation
is a "change of place," a disappearance that provokes a reappearance, a substitution. Every foun-
dation has two time frames, the time fra'me of an "Egyptian" that emigrates and dies in the
desert, the time frame of the desertj and the time frame of a substitute that will take on the sarne
name as the former and who, in another place and another time, will proceed to conclude his
foundational acto Every foundation suffers, then, the regulation of a retrospective necessity by
means ofwhich something, which establishes itself (a religion or a landscape) "changes aspect
[... ] but also changes places, becomes displaced far beyond [... ]." The Freudian name for that
operation is EntstelIung, meaning, deformation. 5

108 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Like a kind of narcissistic reflection, the history of the foundation of the American landscape
by the young Frans Post rigorously follows the steps ofthe Freudian fiction ofMoses: a foreigner
arrives from far awayand brings, in his eyes, at the tip ofhis brushes, in the dangerously descrip-
tive matter of his pigments, an unknown, formalizing modality, a way of seeing nature, of
observing it in its proto-narrative serenity as ifit were the potential setting of all stories and thus
the scene for no story (notyet). First foundational act: eighteen serene images, schematic, drawn
at eye level, representing flat skies.
Compared with the landscapes that Post later composed, this first-unobserved-moment
ofFoundation (destined as such to loss and substitution) appears as ifmasterly characterized by
dispossession. There are hardly any figures in them and the composition is schematic. As micro-
accounts of an unknown land as yet not embodied in the luxuriance oflegend, these first land-
scapes ofPost contrast with the last ones in which all the figures unite, all the plants grow, all
the flowers glow, all the races ofAmerica dance or move, and the sarne space is shared by ruins,
convents, shacks and even the biblical sacrifice ofManoah, with his archangellighting up the
Brazilian sky.
However, inasmuch as they pertain to Post, the limits of a Freudian theory ofFoundation
would be marked by the certainty that it is the sarne painter who, embodying himselfin two dif-
ferent "subjects," undertakes the unitary authorship ofthe foundation oflandscape in America.
The first moment, unnoticed, looks forward-to the point of exhaustion-at a new country and
registers the forms of that exhaustion in its landscapes: desolation or solitude, the disquieting
serenity of a "fugitive" immensity. The second moment is one of"caprice," of a deformative
fantasy that changes places and condenses all its figures into landscape. The first moment is, to
be exact, that of an "Arcadian" experience: nobody's land, a coarse land, crude landscapes; the
.second is a reminiscent, fictional, imaginative elaboration of a Paradise.
And every Paradise, as an apocryphal poem ofBorges states, is a lost Paradise. The land-
scapes Post created upon his return to Holland respond to the loss oflandscape in the distance
of return: from there that landscape is simplyan "open space" in the memory. Representation at
a distance, at a double distance (a spatial one oflandscape, a mimetic one ofits physical appear-
ance) has then the destiny to fulfill the aforementioned space in landscape art. This "imaginative"
creation and fantasy, that inevitably breaks away from reality, this representation of landscape
would proceed from its' American foundation by Post in the European distance of America, and
in its double temporality as a desert faithful to the observed nature of a capricious luxuriance
which refigures it as landscape, to the Freudian notion of deformation, o.perating more as a
change of scenery than as an absence oflikeness. It would be a matter, ultimately, of constructing
an absent place-reinventing it.
One would have to think, as a consequence, thãt this second retrospective and displaced
"look" ofPost's from Holland, this look that doesn't look at anything but the deformative con-
struction of memory, is the founding look of the landscape in America. The texture of this foun-
dation-and the texture ofthe "capricious" invention ofthe place which itimplies-is precisely,
distance. Daniel Arrasse, in an enlightening text about the spaces of perspective and the place of
landscape, 6 has demonstrated that the precise operation oflandscape would have consisted in
"bringing the distant near." "Landscape as distance in relation to the city then constitutes the
privileged place for the flourishing of the unexpected, of the bizarre, of the irrational, of the
monstrous."7
This distance is precisely what, like the desert for his first landscapes, acquires in Post a
specific concreteness, transcending the statute of a theoretical construction. But the distance of

109 Frans Post Luis Pérez Oramas


American landscape that Post brings doser in his paintings is not only a speculative distance-
nature that goes beyond human designs-but it's also a spatial distance and a distance of mem·
ory. Therefore, one might think that the Post landscapes painted in Holland are a pictorial form
of"grieving" produced by the displacement oftime, by the impossibility of making contemporary
either the landscape that is represented or the vision which-in its deformation-invents it. But,
at the sarne time, this distance would become in Post-setting him apart from the other painters
ofhis school-precisely the place where the "unexpected" and the "bizarre," which constitute
American landscape as seen from Europe, would flourish. The time ofthe foundation would be,
in Post's landscape, and inasmuch as Post is both the paradigm and starting point for landscape
in America, the time of"caprice": a subject offantasies that feature the bizarre and fundamen·
tally, a subject of new paths.
Repeating the abrupt voyage of discovery, and consuming the oceanic distance which divides
Europe from America, Post allows the unknown land to surprise him with a raw perplexity which
willlater allow him to invent novel pictorial approaches in his capricious landscapes. Thus,
while he breaks away from reality, he constructs the "visuallegend" of the tropics. From the
European metropolis, using the weapons of memory to compensate for the extenuation of the
gaze he capriciously approximates the American distance. He brings it doser; he also makes it a
potentialland of narratives. An effort against distance and against oblivion, this landscape art
"supplants" in its luxuriance the "unadorned," "deserted," "flat truth," ofhis first landscapes. A
labor of alteration, of fiction·making, this landscape art would thus be like the "other place" of
the landscape, the concrete figure of its "alteration"; an "otherness" whose presence, whose
visual evidence is accompanied bya kind of silence: a (yet) unnamed nature, and one (already)
without stories.
That which is nameless and only possesses figures-the landscape-can then be seen
from afar as a desert or as caprice, as an empty place or as the reminiscent condensation of all its
variations; as something that would eventually uphold only one denomination: "the aura of a
natural thing; it could be defined as the only apparition of a distance, no matter how dose it
might be. Resting in summer time, at noon, following in the horizon the line of a chain of
mountains or a leaf that projects its shadow on the body of someone resting [... ] "8: Frans Janzs
Post, the youth on Maurice's ship who sails far away forever from the memorable shores of
America and takes with him inscribed, like digested shadows, all the figures of the landscape.
Luiz Pérez Dramas. Translatedfrom the Spanish by Lyn Di Iorio.

r. Alain Roger, Court traíté du paysage, Paris: Gallimard, I997, 5. Ibid., P· lI 5·


pp.I6-3 0 • 6. See Daniel Arrasse, "L'espace de la perspective et le lieu du
2. "[ ... ] the nymph with the sonorous voice who can neither paysage," unpublished manuscript.
respond with silence to those who speak to her nor herself 7. Daniel Arrasse: "Lorenzo Lotto dans ses bizarreries: le
speak the first word [... ]" Cf. Ovid, The metamorphoses, III, peintre et l'iconographie," Lorenzo Lotto, Attí deI Convegno
PP·353-3 88 . Internazíonale dí Studí per íl V Centenarío della Nascíta, Treviso,
3. "Frans Post is the only known Dutch painter to have been I98I, footnote 24.
employed full time to record and depictlandscapes." Cf. Peter 8. Walter Benjamin, "L'reuvre d'art à l'ere de sa reproducti-
C. Sutton, Masters of XVII century Dutch landscape paíntíng, bilité technique," in Essaís (II, I935-I940), Denoel-Gonthier,
Boston: Museum ofFine Arts, I987, P.4lI. I9 83, P·94·
4. Sigmund Freud, "L'homme MOlse et la religion mono-
théiste," Troís essaís, (I939), Paris: Gallimard, I986.

110 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


María Concepción García Sáiz

o passado também nos devora

A procura da identidade nacional é um dos grandes temas da cultura ibero-americana, que vem
se tornando evidente em numerosos exemplos, fáceis de serem detectados muito antes que se
consumassem as sucessivas independências dos impérios coloniais europeus. Essa necessidade
de reconhecimento do que lhe é próprio é vivenciado de uma forma consciente ao longo dos
séculos XVI, XVII e XVIII, período em que se vai delineando um conjunto de características que já
nestas datas devem servividas como diferentes e que, posteriormente, irão constituir a essência
da mensagem nacionalista frente aos outros.
Um dos recursos mais comuns para darvida a essa identidade foi a construção de um dis-
curso de recuperação do passado, em que era fundamental sua recriação a fim de conciliar os
interesses de algumas sociedades que se haviam formado-como todas, evidentemente-a
partirde um processo permanente de sincretismo, no qual não haviam faltado a aculturação,
a assimilação e a adaptação inevitável. Para os países com culturas indígenas fortemente estru-
turadas, a fórmula consistiu em incorporá-Ias ao discurso oficial a partirde uma absorção daque-
les valores considerados mais positivos introduzindo-os no organismo do novo estado com um
critério aglutinador, embora no caminho ficassem centenas de perguntas sem respostas. Era o
caso do estado mexicano com o passado mexica e do Estado peruano com o passado incaico,
que ambos acabaram de devorarem um festim que se havia iniciado séculos antes.
Em muitos casos, isso supõe que aqueles que não faziam parte desse passado mítico te-
nham ficado à margem dos projetos nacionais que, de acordo com o caso e a ocasião, causaram
sua absorção à custa da perda de sua própria identidade-eles também sofrendo a fagocitose-
ou mantendo-os como justificativa da diversidade cultural que, segundo as circunstâncias, vem
sendo considerada como elemento enriquecedorou desestruturador dessa idéia de nação.
Nesse complexo processo, os aspectos simbólicos do canibalismo têm sem dúvida seu
lugar. Desta maneira, o elemento reverencial do endocanibalismo-o consumo dos parentes e
membros da comunidade-pode manifestar-se por essa absorção de um passado seletivo, por
meio do qual a cultura nacional ritualiza sua relação com seus integrantes. Por sua parte, o exo-
canibalismo, com seu componente de absorção dos valores do inimigo, em um ato não isento
de vingança e da ascensão ao poder, pode ser detectado em várias respostas que, de acordo com
as definições que lhes queiramos dar, poderemos qualificar também como sincréticas, de
resistência ou de assimilação, mas que em nenhum caso anulam essa referência simbólica.

111 o passado também nos devora María Concepción García Sáiz


112 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos
Na realidade, o próprio enunciado do discurso da antropofagia, como símbolo de defi-
nição de uma cultura, supõe por si mesmo o nascimento dessa unidade, imprescindível na hora
de manifestar nossa singularidade face aos demais. Da mesma maneira, a formulação das "cas-
tas" como gênero pictórico americano-especificamente novo-hispânico e do século dezoito-
serve para mostraro desejo da dissolução da diversidade, étnica e cultural, como um dos passos
necessários para a construção da pátria, embora para isso fossem utilizadas as imagens mais
cotidianas do dia-a-dia e se construísse um mundo ordenado de acordo com o gosto das monar-
quias absolutas e ilustradas, reforçado pela nova interpretação que as ciências davam à orde-
nação dos diferentes reinos da Natureza.
A presença dos caciques indígenas nas procissões de Corpus Christi andinas, acompanhados
pelos símbolos do poder incaico, como se pode apreciar na série de quadros dedicados a esse
tema pelos artistas de Cuzco, são também um exemplo paradigmático da cultura andina,
entendida logicamente como uma totalidade integrada que já, inevitavelmente, é elaborada
com as ramificações da cultura européia como um novo ingrediente. Esses personagens, ou
aqueles retratados como doadores em numerosas pinturas desse período, estão transferindo de
forma manifesta sua própria comunidade e a sociedade colonial em geral, sua inclusão na
trama do poder que surge após a conquista, pelo qual foram devorados e do qual se nutriram,
por sua vez, para perpetuar sua função. Da maneira como também pretende demonstrar essa
simbólica árvore genealógica em que estão representados os incas e seus herdeiros, os monarcas
espanhóis, aos quais, a título de exemplo, chega-se até a acrescentar Simón Bolívar.
Com isso, a pintura colonial vai dando expressão plástica a uma realidade, na qual o endo-
canibalismo e o exocanibalismo estão permanentemente presentes e vão desempenhando um
papel fundamental na formação das diferentes culturas nacionais ibero-americanas. O que hoje
é cada uma delas é uma realidade na qual tudo contribuiu para formar parte do próprio passado,
tudo foi devorado e o organismo metabolizou-o, transformando-o em uma nova energia. A
análise entomológica de cada caso, de cada situação, pode dar lugar a denominações diferen-
çáveis, mas a vivência não se realiza a partirda análise.
María Concepción García Sáiz. Traduzido do espanhol por Lilia Astiz.
Ignacio María Barreda Las castas mexicanas [The Mexican castes] série completa [full series] 1777 óleo sobre tela [oil on canvas]
77x49cm coleção Real Academia Espanola de la Lengua, Madri

113 O passado também nos devora María Concepción García Sáiz


María Concepción García Sáiz

The past also devours us

The search for a national identity is one of the great themes of Spanish-American culture that
became evident in numerous cases even before independence was achieved successively by the
European colonial empires. This need to recognize one's own was experienced in a very conscious
way during the sixteenth, seventeenth, and eighteenth centuries. This was a period during which
a set of traits was taking shape that was already felt to be different, and that would later constitute
the essence of the nationalist message against other ones.
One of the most habitual resources that brought this identity into being was the construction
of a discourse on recovering the pasto Fundamental to this was a reconstruction, to reconcile the
interests of societies which had formed-like all societies, evidently-as a departure from a per-
manent form of syncretism, in which acculturation, assimilation and forced adaptation also
played a parto For the countries with strongly structured indigenous cultures, the formula used was
this population's incorporation into the officialdiscourse through the absorption ofthe values
considered to be the most positive. They were introduced into the organism of the new state with
an agglutinative criterion, even as this process left hundreds of questions unanswered. Such would
be the case with the Mexican state-and the Mexican past or with that ofthe Peruvian state and the
Inca past, both of which ended up being devouring in a feast that had started centuries before.
ln many cases, the process dictatedrhat those who did not form a part ofthe mythic past
should be marginalized in the national projects which, according to the individual cases and
circumstances, have provoked their absorption at the cost of the loss of their own identity~
phagocytically engulfing them as well-or upholding them .as a justification of the cultural
diversity that, according to the circumstances, has been considered as either enriching or
destroying of the idea of a nation.
The symbolic aspects of cannibalism are undoubtedly a part ofthis complex processo Thus,
the reverential element of endo-cannibalism-the consumption ofthe parents and the members
of the community-can manifest itself through the selective absorption of the past, by means of
which the national culture ritualizes its relationship with its constituents. On the other hand,
exo-cannibalism, in its absorption ofthe enemies' values, because it does not exclude vengeance
or the assumption of the enemies' power, can be detected in the multiple solutions which,
according to the definitions we want to give them, can also be classified as syncretic, resistant,
or assimilative. These do not however annul this symbolic reference.

114 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


ln reality, the very enunciation of the discourse of anthrapophagy, as a defining symbol of
a culture, presupposes the elucidation of that unity indispensable at the moment of showing our
singularity to others. ln the sarne manner, the formulation of"castes," as an American pictorial
genre-specificallyan eighteenth century nouveau-hispanic one-serves to shaw the desire for
the dissolution of ethnic and cultural diversity. This is shown as one of the steps necessary for
the construction of a homeland, even if for this, the most commonplace images fram daily life
must be used and an ordered world constructed, according to the taste of the enlightened and
absolute monarchies, and bolstered by the new interpretation that the sciences gave to the
ordering of the different kingdoms of nature.
The presence ofthe indigenous chieftains in the Andean Corpus Christi pracessions, accom-
panied by the symbols of Inca power, judging by the observation of a series of paintings
by artists from Cuzco on this theme, are also a paradigmatic example of Andean culture. They
are logically understood as an integrated totality which inevitably includes manifestations of
European culture as a new ingredient. These figures, ar those depicted as patrans in numeraus
paintings of the period, are transferring, in a notorious way, to their own community and to
colonial society in general, their inclusion in the fabric of power which emerged after the Con-
quest. Thraugh this they have been gobbled up and fram this, in their turn, they have been fed in
arder to perpetuate their function. This is also demonstrated by thatsymbolic family tree which
portrays the Incas and their descendants, the Spanish monarchs, to which Simón Bolívar is also
added in certain cases.
ln this manner colonial painting give plastic expression to a reality in which endo-canni-
balism and exo-cannibalism are permanently located and play a fundamental rale in the formation
of the different Spanish-American national cultures. Each of them is today a reality in which
everything has entered to form part of the past itself; everything has been devoured and the
organism has metabolized it all, transforming it into new energy. The entomological analysis
of each case and situation may gene rate disparate denominations, but lived experience differs
fram analysis. María Concepción García Sáiz. Translatedfrom the Spanish by Lyn Di Iorío.

115 o passado também nos devora María Concepción García Sáiz


Século XIX curadoria Régis Michel

A síndrome de Saturno ou a
Lei do Pai: máquinas
canibais da modernidade

I. Tabu: o pai come o filho


Estádio supremo
Goya: um velho dejoelhos, mãos postas e olhos fechados, abre uma boca confiante, onde a mão
do padre introduz uma hóstia. É a última comunhão deJosé Calasanz, santo populardo barro-
co, e o último grande quadro de Goya antes do canto fúnebre das pinturas negras': ilustração
lúgubre do rito eucarístico, na qual a morte ronda os personagens, em busca de sua presa. O
velho parece trajar seu próprio luto, o padre tem ares de carrasco e os fiéis são outros tantos ma-
rionetes devotos cujas fácies patibulares evocam aqui e ali os monstros da Quinta dei Sordo. Éque
o rito eucarístico nadá tem que suscite a mínima alegria. Goya se mostra aqui um sagaz leitor
de Freud. A comunhão cristã é o estádio supremo do canibalismo ocidental. Com isso entendamos
que ele floresce, como o capitalismo na obra de Lênin, nesse avatarteatral de um culto imperia-
lista que anima um costume cruel: comer o outro. Mas que outro? A resposta é patente: o filho. O
cristão que comunga come o corpo do filho que, de acordo com o texto evangélico, oferece a
própria vida pela redenção da humanidade. Aessa oblação voluntária, contudo, falta verossimi-
Ihança. De onde vem a exigência de semelhante sacrifício? Está, aí, a (verdadeira) questão. E, desta
vez, a resposta não é tão cômoda. A explicação dada pelo cristianismo não passa de um enigma
a mais: o pecado original, etc. Mas essa ficção bíblica merece pouco crédito. Freud propõe uma
versão diferente, aparentemente mais lógica: o assassinato do pai 2 • Que um homem sacrifique a
existência para expiar uma falta subentende que essa falta seja um crime. Vida porvida: tal é o
princípio dajustiça retributiva (de resto, Freud se refere à lei de talião)3. É preciso, então, que a
cena primitiva da humanidade bíblica seja uma cena de homicídio, onde a transgressão do
interdito anda lado a lado com a supressão de seu autor. Mas, no mesmo instante em que sacri-
fica a existência, o filho porsua vez torna-se deus. Toma o lugardo pai, de quem expiava a morte 4 •
Basta dizer que a comunhão cristã é, para Freud, outro assassinato, ainda que simbólico: um novo
parricídio.

Refeição totêmica
Que o rito da Eucaristia seja uma versão civilizada da refeição totêmica não é invenção do pen-
samento freudiano. A hipótese pode ser encontrada na obra de Frazer, a quem de bom grado
Freud presta homenagem s • E aí é fácil veros interesses estratégicos. É que tal hipótese sustenta
com vigor a tese mais contestada de sua antropologia: a universal idade de Éd ip06. Ao sugeri r q ue
Cristo tenha sido crucificado apenas para tornar-se Deus (a expiação transforma-se em usurpação),
Freud reinterpreta a seu favor a argumentação cristã sobre o modo retórico de um paradoxo
calculista. Pois esse exercício dialético retoma uma velha história na qual, para possuir a mãe,

120 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


o filho tem de matar o pai: conhecemos a ladai-
nha. A saga religiosa se inscreve obrigatoriamente
na estrutura simbólica da economia libidinal. Mas
é preciso confessar que essa anexação fagocitária
é, por sua vez, um processo ... canibal. Para impor
a fábula edipiana, Freud toma liberdades duvi-
dosas em relação à fábula eucarística. Não há texto
que sustente a hipótese fundadora de um parricídio
original. Na verdade, trata-se do inverso: é bem
outra a lenda que nos conta o Gênesis. Há mais. Na
doxa cristã (mais tarde católica, depois da Refor-
ma), a eucaristia não é simples metáfora, um frag-
mento circularde pão ázimo. O que o comungante
come-e é nisso que ele acredita, pelo menos-
é o próprio corpo de Cristo. A transubstanciação
torna a hóstia um pouco mais do que um vestígio
ou um emblema: o princípio efetivo de uma pre-
sença real. Ninguém é obrigado a concordar com
essa alquimia artificiosa. Trata-se apenas de um
dogma. Mas ela não deixa de ter conseqüência
di reta sobre o jogo de papéis, que distribui o poder
na mitologia cristã, a qual toma o cuidado de dis-
tinguir o fil ho do pai, acrescentado-lhes, para dar
boa medida, uma entidade estritamente conceituai, em que se resolve a ousada equação- a
soma algébrica-dos dois termos precedentes: o Espírito (santo). Esse vetar escolástico de
todos os idealismos, que cristaliza os atributos maiores da divindade, transforma o duo filial
em trio doutrinal. Ora, a Trindade cristã, produto polêmico (desnecessário explicar) de séculos
de heresia, não é de ordem racional. Mas de ordem fálica. Suas hipóstases masculinas têm um
único objetivo: impor a lei do pai. E esta passa necessariamente pelo sacrifício ritual do filho.
O Verbo (Logos) se faz carne (Phallus) sem maiores aflições. Assim o exige a metafísica ocidental
do patriarcado.

Ecce Homo
Na obra de Dante, ao último círculo do Inferno (o nono) é relegado o piordos crimes-a traição.
Mas de todos os traidores que assombram o final do poema, inclusive os célebres, só um ainda
nos é familiar, senão popular: Ugolin0 7 • Tirano de Pisa, cujo povo o destituíra, Ugolino foi mura-
do numa torre com os filhos. Quando o desespero lhe inspira um gesto equívoco-morder as
próprias mãos-, os filhos lhe oferecem a própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa.
Morrem os filhos. E o pai acaba por lhes comer os cadáveres antes de por sua vez perecer. Dante
o condena a roer eternamente o crânio do rival, o arcebispo Ruggiero, que lhe causara a ruína. De
Reynolds a Rodin, por via dos românticos, a figura de Ugolino fascina os inventores da moderni-
dade 8 • Pois ela conjuga dois ingredientes primordiais de uma arte nova, a violência e o senti-
mento, a história e o drama, o político e o patético. Reynolds codificou a cena num quadro famoso,
que pode ser visto como um manifesto do retorno a Michelangelo, do qual ele é o profeta 9 • O
Franc isco Goya La última comunión de Joseph Calasanz A última comunhão de Joseph Calasanz [The last commun ion of
Joseph Calasanz] 1819 óleo sobre tela [oil on canvas] 250x180cm coleção Escuelas Pias de San Anton, Madri

121 Século XIX Rég is Michel


pintorescolheu o momento do poema em que os cativos percebem que estão sendo emparedados.
E a imagem é regida por uma antítese incisiva, em que o aspecto hierático-petrificado-de
Ugolino se opõe à aflição-convulsiva-de seus filhos. Essa duplicidade retórica é ~e intenção
estóica. Exalta a grandeza do herói, sozinho contra todos, no desalento de um destino tão
funesto. Reynolds moraliza ao se esquecer do resto. E os artistas que a ele se seguem fazem o
mesmo. Füssli apresenta à Royal Academy um quadro de importância, hoje desaparecido, do qual
se conhecem apenas gravuras 10 • Trata-se de insuflar na cena vigor épico (alguns diriam teatral),
que Reynolds ignora. Mas a estrutura da imagem permanece idêntica: o mesmo episódio, a
mesma antítese. O que muda é só o motivo do pai, que segura sobre os joelhos o corpo de um
dos filhos. Eesse abraço ostentatório, que sugere-discretamente-a antropofagia do epílogo,
é o mesmo de um vampiro ou de um súcubo: não estamos longe do Cauchemar [Pesadelo] em
que o artista convocava essas criaturas noturnas. Blake sempre se interessou pelo personagem
de Ugolino, de quem fez nos anos dajuventude (depois de 1780) umJó leigo, até bem profano,
em que Dante substituiria a Bíblia, e Deus, o arcebispo Ruggiero: uma figura dojusto prostrado
pela injustiça dos homens. Quarenta anos mais tarde, no fim da vida, o artista volta ao tema
numa daquelas aquarelas sobrecarregadas de cor, em que floresce sua violência expressiva 11 • E
a cena de desespero é uma cena de redenção. Dois anjos simétricos, de aparência primitiva, que
Francisco Goya Scene de martyre (Cannibales préparant leurs victimes) Cena de martírio (Canibais preparando suas vítimas)
[Martyrdom scene (Cannibals preparing their victims)] s.d. óleo sobre madeira [oil on wood] 32,8x46,8cm coleção Musée de
Beaux-Arts et d'Archéologie, Besançon

122 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Can ibali smos
se inclinam para Ugolino, parecem prometer melhor sorte aos cativos. A criatura de Dante é
subtraída aos Infernos. Já suspeitávamos disso. Para 8lake, Ugolino é mesmo um pai, mas um
pai celestial, isto é, um deus. Delacroix, assombrado pelo assunto há muito tempo, se dermos
crédito a seu Diário, perpetua essa conotação religiosa quando, no fim da vida, pinta sua versão
do mit0 12 : Ugolino, parado nos degraus ao pé de uma coluna, que evoca o cenário lúgubre de
um Ecce Homo, e os filhos prostrados a seus pés numa reptação coletiva, senão trinitária, que faz
lembrar os êxtases místicos e as efusões oblativas da pintura barroca (um dentre eles tem os
braços em cruz).

Pequeno' Polegar
O violento paradoxo dessas representações é que o condenado torna-se mártir, quando é um
criminoso. A felonia, a vilania, a tirania de Ugolino são esquecidas. O suplício tem valor expia-
tório, senão sublimatório, visto que a fome é prima da ascese, ainda que involuntária: na suspen-
são forçada da função nutritiva se imiscui a ética estóica (depois cristã) da renúncia voluntária
aos apetites animais. Essa inversão dos papéis históricos tem como efeito direto a exaltação da
instância paterna em detrimento da relação filial. Que os filhos de Ugolino sacrifiquem a exis-
tência torna-se o postulado natural de uma lógica às avessas-o contrário é que seria chocante.
Francisco Goya Scene de martyre (Cannibales contempant des restes humains) Cena de martírio (Canibais contemplando os
restos humanos) [Martyrdom scene (Cannibals contemplating the human remains)] s,d, óleo sobre madeira [oil on wood]
32,7x47cm coleção Musée de Beaux-Arts et d'Archéolog ie, Besançon

123 Século XIX Régis Michel


o Segundo Império unge politicamente a figura do pai: o
Imperador, afinal, é o pai da nação, ainda mais quando
se trata de um Bonaparte, mesmo que o ogro de Auster-
litz já houvesse cedido o posto ao pequeno polegar de
Sedan. Carpeaux funde no bronze da arte antiga essa
figura imperiosa, senão imperial: seu Ugolino crê-se
um novo Laocoonte 13 • O escultor, que apresenta seu
grupo no Salão de 186314-aquele dos rejeitados, dos
dissidentes, dos modernos-, se esforça por juntar
Dante a Michelângelo, a fim de obter a receita do drama.
Assim, sob o cinzel do artista, o herói se assemelha a
Moisés e aos Médicis: a lembrança manifesta das tum-
bas de Florença não cessa de assombrar a atitude medita-
tiva do tirano canibal. Carpeaux acaba optando pelo
próprio momento do gesto equívoco em que se cristali-
za o destino do herói, quando morde os dedos devido ao
tormento excessivo. Seus filhos se equivocam, e nós com
eles: juraríamos que a fome é que lhe sugere esse ... ato
extremo. Mas a aparência de conflito vale apenas pela
forma: assegura ao pensador uma dignidade moral que
é condição de sua credibilidade-o que pensaríamos de
um canibal sereno consumindo sua prole? Carpeaux
confu nde o d rama com a ênfase. Mas seu Ugol ino se
revela tão patriarcal (no sentido político-sexual, confor-
me o entende a tradição feminista desde-pelo menos-Luce Irigaray)15 que apaga todo o resto.
Eesse apagamento se traduz na própria relação entre as figuras, que superdimensiona a do pai 16.
Os filhos não são mais que criaturas menores, secundárias, inferiores, ectoplasmas ou tropismos,
homúnculos ou anões, que rastejam a seus pés numa atitude patética, em que a humilhação
coletiva toma a forma do motivo súplice de um abraço devoto. Eis o pai, na variante burguesa
(bonapartista) do chefe de horda-a mesma ratificada por Freud em Totem e tabu-no apogeu
de seu poder absoluto, isto é, fálico, ou mesmo castrador, e, em conseqüência, canibal. Mas
esse canibalismo ainda é potencial. Para chegarmos ao fundo dessa religião do pai, é preciso
mostrá-lo no ato. Essas categorias abstratas da velha escolástica nada têm de simulacro. Um
artista marginal como Chenavard, imbuído de idéias filosóficas, não hesita em pintar Ugolino
debruçando-se sobre o filho para lhe morder a carne 1? Eessa efusão mortífera, que um desenho
do Louvre enaltece, é, na nudez incestuosa dos corpos, uma submissão nitidamente homossexual.
Rodin vai mais longe ainda, se é possível, na exploração mórbida do registro agonístico. É ver-
dade que o escultor, freudiano sem o saber, é um perito manifesto do teatro das pulsões. Daí
essas páginas espantosas em que o melê dos corpos-festim sem limites-remete a tribo
famélica do celerado de Dante às fantasias orais da animalidade, em que desta vez desponta o
amor do censor18 . Essas pessoas são monstros. E a moral é salva. Não se violam impu nemente
os vel hos tabus ...
Francisco Goya
Saturno devorando a sus hijos Saturno devorando seus filhos [Saturn devouring his sons] 1797-98 sanguínea [sangu ine]
20,2x14,7cm coleção Museo dei Prado, Madri
Mala mujer Mulher má [Bad woman] 1801-03 tinta sobre papel [ink on pape r] 21,5x 14,4cm coleção Musée du Louvre cortesia
Réunion des Musées Nationaux, Pari s foto J. G. Berizzi

124 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofag ia e Histórias de Canibali smos


Homem-sanduíche
Na arte do Ocidente, poucos são os mitos tão negros quanto esse de Ugolino. Os inocentes é que
são emparedados, as crianças é que morrem de fome, um pai é que come os filhos: tristes trópi-
cos da instituição familiar. A injustiça, a tortura e o crime são as palavras mestras dessa narrativa
fúnebre: metáfora sulfúrea da sociedade política. Mas isso ainda é pouco em comparação com
o essencial. Pois a história de Ugolino sanciona a volta grandiosa do reprimido na consciência
ocidental: a antropofagia. Mas a pulsão canibal não funciona sem o corolário punitivo que é a
lei do pai. Daí vem a sorte imprevista do episódio, que sem isso ficaria mal explicado. No imagi-
nário erudita, o herói carnívoro de Dante substitui a figura goyesca de Saturno, sucessora ela
própria de algumas outras que, entre os Antigos, tinham mão pesada e apetite uoraz, tais como
Tântalo, Medéia ou Polifemo. Pressente-se o porquê dessa metamorfose. Éque a saga carniceira
do herói medieval é feita de ingredientes artificiosos, com os quais a instância paterna se legiti-
ma. Os filhos se solidarizam com o pai a ponto de compartilharde seu suplício (não é por acaso
que se trata de um tirano, cujo poder não conhece limites): o mesmo castigo os une em uma res-
ponsabilidade coletiua, que renega todos os postulados do individualismo ocidental. Mas há pior:
os filhos oferecem a vida para salvaro pai. Essa oferenda é absurda, uma vez que em nada modi-
ficará o resultado fatal. Na melhordas hipóteses, nada é além de um expediente provisório para
adiar a agonia. Na espécie, portanto, a própria metáfora canibal é, antes de tudo, uma narrativa
de legitimação, conforme o entendia Lyotard 19 : serve para avalizar a estrutura edipiana de uma
sociedade fálica governada exclusivamente, segundo Freud, pela angústia da castração. A aven-
tura de Ugolino é apenas uma fantasia teatral em que se exorciza (por intermédio da arte) a sub-
missão simbólica à onipotência do pai. Dever-se-ia mesmo dizer: à sua diuindade. Pois o pai é
Deus. Eo sacrifício dos filhos é análogo ao de Cristo, quando este pretende doar sua vida ao pai
eterno, a fim de salvar a humanidade. Em ambos os casos,
o objetivo consiste em reforçar um sistema político em que
Logos e Phal/us se confundem. Ao que tudo indica, a socie-
dade liberal do século XIXjá não é inteiramente a sociedade
patriarcal do Antigo Regime, na qual o rei é um deus sobre a
terra (um tirano ... por direito divino), na qual o pai tem
autoridade absoluta sobre os filhos. Mas o Código Civil
continua a assegurar a onipotência da figura paterna até a
grande carnificina de 1914, que lhe atesta a violência cani-
bal (retorno a Saturno). Ugolino, em suma, nada mais é
nessa fIliação maldita que um agente publicitário do pior
quilate: o homem-sanduíche do falogocentrismo ... 20

II. Transgressão: os filhos comem o pai


Gólgota moderno
Ao regressar de Roma, no outono de 1817, Géricault se de-
bruça sobre um caso sensacionalista [a fait diuers] que se
transforma em escândalo político: o caso Fualdes é um dos
grandes enigmas da história judiciária, mesmo que os
modernos proponham uma solução plausível para ele 21 •
Trata-se provavelmente de um crime monarquista. Fualdes,
procurador do Império, foi assassinado em sua cidade
(Rodez) por uma corja de vagabundos a serviço dos ultras,

125 Século XIX Régis Michel


ansiosos por eliminar uma testemunha incômoda de suas atividades fraudulentas. Do caso,
Géricault produziu apenas uma série de desenhQs que talvez destinasse à litografia. Um deles repre-
senta a cena do homicídi0 22 • Nele se vêem sicários musculosos, punhal na mão, que rodeiam
uma mesa sobre a qual jaz o cadáver (só as pernas aparecem). Em torno deles, mulheres agi-
tadas, cúmplices ou testemunhas, cujos corpos atléticos estão em uníssono com os demais. A
imagem é apenas uma dança de morte, em que a identidade da vítima importa pouquíssimo. O
velho Fualdes, funcionário do Estado, torna-se o arquétipo do poder monárquico e da autori-
dade patriarcal. O que Géricault mostra, em suma, é um parricídio: a execução coletiva de um
substituto do pai 23 • Como todos os desenhos da série, a imagem põe de lado os detalhes da
anedota e as trivialidades da contingência. Resta só um balé cruel, cuja violência giratória tem
o estatuto simbólico de cerimônia fúnebre: esse crime sórdido é um rito selvagem em que os filhos
matam o pai para se apoderardas mulheres (um dos assassinos agarra uma delas, que está nua,
pelos cabelos). A cena ilustra, em uma palavra, a tese central de Totem e tabu. Géricault a enrique-
ce com um motivo macabro (mas realista). Uma das mulheres dá de bebero sangue da vítima a
um porco. Esse motivo sulfúreo nada tem de metáfora: comprovam-no os documentos. Mas tudo
tem de sacrilégio: é uma versão transgressiva da comunhão cristã, na qual o sangue substituiria
a hóstia-ainda que, bem consideradas as coisas, a comunhão esteja familiarizada com ambas
as espécies. Com Freud, falar-se-ia de uma refeição totêmica, se a figura do pai aqui não fosse
duas vezes vilipendiada: pelo homicídio e pelo escárnio. O caso Fualdes é assim, para Géricault,
o vetor ideal de um teatro iconoclasta, que seria a versão profana, senão blasfematória, da paixão
de Cristo. Os outros desenhos, que contam os diversos episódios dessa tragédia provinciana (o
seqüestro, o transporte e a imersão do supliciado), são como os planos de tomada de um film
noir: as estações clandestinas de um Gólgota modern0 24 • Géricault é um artista marginal, que
permanece alheio ao sistema acadêmico. Sem dúvida vem daí seu desdém 'manifesto pela
norma social-pelos interditos burgueses. Por isso, também não surpreende que ele tenha sido
o primeiro pintora exaltar o assassinato do pai. Éverdade que outros haviam aberto o caminho.
No final do Iluminismo, a pintura histórica é o que a crítica denomina, com Diderot à frente, de
pintura negra, em que o herói não é mais que a sombra de si mesmo, o inverso do personagem, o
negativo da função: em resumo, um anti-herói. Édipo e Belisário são os dois modelos desse
imaginário sulfúreo, que visou inicialmente a eficácia política: são os
quadros engajados-ver David-na luta contra a monarquia, em nome
dos Filósofos (e às vezes no sentido oposto). O fenômeno, que remonta ao
Caracala de Greuze 25 , outra reflexão sobre o parricídio, é notório demais
para que insistamos nele: ninguém mais ignora esse combate militante
contra a ideologia patriarcal do Antigo Regime.

Máquina esquizofrênica
Géricault ainda vai mais longe. Suas obras multiplicam as figuras mori-
bundas. O Cuirassier [Couraceiro], de 1814, que se retira do fogo; os
sobreviventes do Grande Exército, que regressam da Rússia; o meio-soldo
do Império, que ergue uma perna de madeira-encarnam (entre muitos
outros) esse universo do drama e do luto, em que se compraz a arte dele-
téria de Géricault, cuja pintura é só uma variação permanente sobre o
motivo patético do homem ferido. Não é preciso dizer que a ferida é sim-
bólica. As opiniões convergem para ver nela uma metáfora óbvia da cas-
tração, da qual o próprio Géricault não hesita em mostrar o cerimonial

126 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


público sob a forma recorrente da pena capital (ou equiva-
lente): decapitação, enforcamento, estrangulação, fustigação
etc. 26 Esse mundo punitivo é um jardim dos suplícios-
um de verdade-bem antes dos devaneios decadentes do
final do século. Mas isso ainda é muito pouco para servirde
exutório libidinal ao inconsciente do artista. A história for-
necerá o melhor pretexto: Ajangada do Medusa. Ora, a figura
dajangada é a metáfora ideal de uma sociedade dissidente.
Porque esse mundo aberto é na verdade um recinto fechado
[a huis-clos], cuja insularidade o protege das instâncias
repressivas-das pressões sociais. Nem Deus, nem senhor:
nada de superego. Do que resulta uma seqüência inédita de
anarquia pulsional, que dá vazão a um auge de violência:
arruaças, rixas, motins; os náufragos dajangada passam o
tempo a se autodestruir (é bem verdade que não tinham lá
grande coisa a fazer). Pelo menos, esses exercícios homicidas
têm por ganho secundário distraí-los da fome, ao matarem
(também) o tempo. Géricault desenha vigorosamente esses
combates furiosos, abraços de corpos, orgias de carne, cujos
atores formam um monstro de cem cabeças: mistura da Hidra
com o Leviatã. Um desenho de Amsterdã leva ao paroxismo
esse caos belicoso, onde cada um parece devorar o outro com a energia do desespero 27 . É nesse
ponto que um estudo famoso para o grande quadro do Salão de 181g-versão abandonada do
episódio-introduz abertamente o próprio tema de um ato canibal, em que reencontramos a
atmosfera noturna dos pesadelos de Goya28~ Ora, esse acréscimo corresponde a suplemento, no
sentido mais derridiano do termo. Em si mesmo, o quadro todo não é senão um dispositivo
latente de canibalismo generalizado, em que culmina a revogação marítima dos interditos soci-
ais. Andaríamos mal, porém, se concluíssemos ser esse mundo sem lei. Não nos desembara-
çamos do discurso fálico com tamanha facilidade. Assim, a lei do pai governa ainda o espaço do
quadro 29 . Mas sua autoridade é contestada. Donde a divisão da imagem em duas partes contra-
ditórias 30 • No primeiro plano, o pai abraça o filho, que agoniza entre os cadáveres, a menos que
já estivesse morto. Essa ligação filial é puramente hipotética. Mas é significativo que a glosa-o
mito-da obra tenha preferido sujeitar os personagens aos grilhões da filiação. É outra vez a
fábula de Dante que Géricault pinta na parte da frente do quadro: um necrotério ambulante cujos
hóspedes já foram mutilados, senão engolidos pela engenharia castradora dajangada (à esquerda,
um náufrago já não tem pernas; à direita, já não tem cabeça). Mas o suposto pai, moderno
Ugolino, adota a postura canônica da melancolia düreriana somente para chorar a coroa perdi-
da. Pois o resto dos sobreviventes lhe vira as costas: querem é ser salvos, isto é, escapar à tirania
mortífera desse pai castrador, senão canibal. E só vêem outro futuro numa estratégia fálica de
supercompensação freudiana. Músculos, gestos, efusões, tudo conspira virilmente para a exaltação
do mesmo: o homossexualismo da cena 31 • Éfácil perceber o hiato inédito que, em desprezo aos
códigos acadêmicos, dilacera a composição: é a Spaltung (a cesura) do esquizofrênico. E essa
Auguste Rodin
à esquerda [Ieft] On s'y tue Aqui nos matamos [Here we kill] s.d. lápis e tinta sobre papel quadriculado [pencil and ink on squared
pape r] 13,7x9,7cm coleção Musée Rodin, Paris
acima [above] Ugolin entouré de ses trois enfants Ugolino cercado por seus três filhos [Ugolin surrounded by his three sons]
s.d. lápis, tinta e guache sobre papel [pencil, ink and gouache on pape r] 17,3x13,7 cm coleção Musée Rodin, Paris

127 Século XIX Régis Michel


liberação do desejo faz de AJangada-pela metade-uma máquina esquizofrênica ao gosto de
Deleuze 32 : máquina dériuante, délirante, désirante ... [à deriua, do delírio, do desejo ... ]

III. Totem: a sociedade come os filhos


Mau selvagem
O homem do Iluminismo, que é um homem racional-o Au~darung, diz o velho Kant, é a
autonomia do entendiment0 33 - , não conhece o canibalismo, que é avatarda superstição, não
da razão. A Enciclopédia lhe recusa o privilégio de um verbete. Ela só trata do fenômeno no artigo
Caraíbas (artigo anônimo)34, o que, além do mais, é a melhor maneira de se desembaraçar dele:
pelo exotismo. A distância do outro lugar-um outro lugar quase irreal-é o primeiro grau da
negação. Canibalismo, isso é lá com os outros, a saber, com o selvagem. Compreendamos: os
índios das Antilhas (aquelas índias ocidentais), "selvagens insulares da América". Canibal será,
portanto, sinônimo de ... caraíba: o canibalismo não é avatar universal da humanidade racional,
mas prática limitada de tribos autóctones, que de humano têm só a aparência (quando muito).
Os caraíbas da Enciclopédia servem de antítese ideal-de perfeito contraste-aos humanos civi-
lizados que são os europeus (o vocábulo aparece, em todas as letras, como um ideal implícito de
civilização). De modo que o próprio retrato desses indígenas é pouco lisonjeiro: são seres pregui-
çosos, polígamos e politeístas, que andam nus, vivem muito e-tara suprema-não põem "fral-
das" nos filhos, os quais andam de quatro patas como animais. Essa animal idade ... humilhante
como uma doença vergonhosa, é a chave da argumentação. A Enciclopédia evoca, sob a máscara
das Antilhas, um estado de natureza sobre o qual o pensamento de Rousseau ainda não produziu
um mito positivo, quer dizer, político (de resto, a obrajamais será rousseauniana). Nessa visão
pejorativa, racista, ocidental, do outro absoluto que é o selvagem-um mau selvagem-, o cani-
balismo é quase o acessório obrigatório (o atributo ... natural) de uma condição primitiva, em
que reina a tirania do corpo, sistema cumulativo de inclinações, de apetites, até de instintos
(dir-se-ia hoje de pulsões), que é próprio de um mundo sem lei. Mais ainda, é preciso que o desejo
canibal esteja estritamente enquadrado-legitimado, controlado-por um motivo confessável,
que é a guerra. Os caraíbas, escreve o enciclopedista, "comem os prisioneiros", donde se deduz
que comam apenas estes (e mais ninguém), até mesmo que não os comam todos-mas esse últi-
mo ponto, que depende da gramática, é discutível, se considerarmos o tempo presente do verbo
no indicativo ou no imperativo. Há mais, porém. Aqui, o canibalismo é duplamente redimido (não
ousamos dizer justificado) porsua utilidade social, que consiste em repartir os restos da vítima:
não se trata de prática solitária, portanto subversiva, mas de um ato coletivo, senão comu-
nitário, um comportamento convivial, senão amigável, graças ao aspecto culinário de sua acomo-
dação. Nem o cru nem o cozido, tão caros aos etnólogos 35 • Mas o assado. Poronde a civilização
retorna à preparação-a catarse-do comestível. Pois o assado expurga, purificando (pelo fogo)
aquilo que a carne humana teria de ... humano demais: o sangue, a pele-numa palavra, a carne.
E por aí vai a razão dos Filósofos: abstrai a quintessência de um mundo irracional, do mesmo
modo como nos esforçamos porfugira um tormento que nos corrói. E sabe-se muito bem (ver
Horkheimer e Adorno) aonde conduz essa razão, sectária, autoritária e mesmo totalitária: a
Auschwitz 36 •

Cão de guarda
Vinte anos depois, um gravador neófito, ainda desconhecido, que fará carreira na Suécia, produz
em imagem-uma estampa de sucess0 37-a mais canibal das criaturas, que imediatamente
assume o nome de seu inventor: la chimere de monsieur Desprez [A quimera do senhor Desprez]3s.

128 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


É um monstro de três cabeças que devora um ser
humano, do qual não se percebe mais que o peito
supliciado, já com aparência deescorchado. O letreiro
da estampa-a legenda da imagem-resume com
erudição as proezas do animal. Ali estão, porém,
apenas os dados imaginários de uma história impro-
vável (u ma Antigu idade de ci rcu nstância). O texto é só
um pretexto: esse animal é mítico. Ora, os mitos têm,
como se sabe, seu peso de símbolo. Não é por acaso
que o lugar assolado pela besta seja a África, terra
privilegiada por miragens cruéis. Como na Enciclopé-
dia, o exotismo é aqui o princípio heurístico de uma
utopia racial, senão racista, que invoca a duvidosa
equação da negritude com o canibalismo: o primitivo é um ogro, sobretudo se é negro. Não
se poderia lisonjear melhor as banalidades seculares do discurso colonial. Ora, o monstro-
desconfiamos-não mora em um lugar qualquer. As paragens pareie assombradas são as do poder:
as ruínas de um palácio outrora glorioso, no tempo de Massinissa, rei dos númidas, celebrado
por Suetônio e alguns outros. A Quimera, em suma, não passa de uma alegoria do Estado (ou
da Lei): o cão de guarda [Ie chien degarde] da ordem estabelecida, teria dito Nizan 39 • Eas vítimas
não são qualquer um. Mas viajantes que seguem errantes pelos caminhos, quer dizer, nômades, ou
ainda rebeldes (os nômades são sempre rebeldes em potencial). A função policial do monstro é
inequívoca: a Lei devora o rebelde num processo gigante de castração simbólica, em que se fun-
damenta o contrato social dos Filósofos-o estatuto repressivo da razão do Iluminismo. Pois a
Quimera de Desprez põe-se em ação defronte de um antro que tem a forma geométrica-a
racionalidade perfeita-do semicírculo, em que bem se reconhece a arquitetura visionária dos
grandes utopistas, especialmente Boullée: a forma de um cenotáfio. De fato, o artista celebri-
zou-se em virtude de uma série de tumbas do gênero egípcio, onde a pedra devora os cadáveres,
exatamente como a Quimera (a única diferença é que são os pés, não o peito, que ultrapassam
o sepulcro). Esse mecanismo opressor de petrificação-verdadeiro festim de pedra-acaba de
provar, se ainda fosse preciso, que a lei e a morte constituem as duas faces da mesma entidade.
Interiormente, o vazio, o mineral e as trevas: a ordem inquietante dos cemitérios. Exteriormente, a
vida, o vegetal e a selva: o universo orgânico da natureza. E a Quimera se mantém, mediadora
homicida, sobre a linha divisória: na órbita perfeita de uma razão carnívora ...

Mulher fálica
A criatura de Desprez manifesta uma outra característica: é sexuada. Esse monstro é uma mulher.
(O próprio nome quimera se refere a uma tradição cultural de gênero feminino.) Seu corpo tricé-
falo não deixa de evocar a trindade funesta das Parcas e a das Erinias, na mitologia grega, ou
das Feiticeiras, no Macbeth de Shakespeare. Mas essas três cabeças não são idênticas. Inspirada
em uma ave de rapina, a do meio é provida de apêndices mortais (o colo, o bico) cuja natureza
é patente, isto é, fálica. A quimera é, portanto, sexualmente ambígua. Pertence aparentemente
à feminilidade. Mas uma feminilidade masculina, provida de um falo ostensivo. Donde a singula-
ridade de seu estatuto retórico: a alegoria (visível) se apaga diante do simbolismo (latente). Em
termos saussurianos, diríamos que o significante reabsorve o significado por meio de um fenô-
meno latente de ... canibalismo semântico. Assim, reencontramos sob uma outra forma, que é
Auguste Rodin Ugolin Ugolino gesso [plaster] 1882 41x39cm coleção Musée Rodin, Paris foto Bruno Jarret

129 Século XIX Régis Michel


literal, essa equação familiar do imaginário ocidental: a Lei é o Falo e, por conseguinte, a lei do
pai. Mas uma mulher é que o encarna, ainda que fálica. E essa figura equívoca da iconografia
política é a matriz ideal de um sincretismo inédito, em que pouco a pouco se cristaliza um tema
obsessivo da modernidade: o mito romântico da mulherfatal. Daí advém o sucesso da esfrnge. A
esfinge é um avatar recorrente da moda egípcia, que reinou no século passado, desde a expe-
dição, de Bonaparte. Tem aparência de anjo e de quimera, de monstro e de prostituta. Gustave
Moreau, grande amadorde heroínas castradoras (Salomé, Dalila e outras), empresta-lhe asas de
cisne e patas de felino, uma tiara de rainha e seios de cortesã 40 . Essa mistura de gêneros está
mais de acordo com a tradição grega, em que a esfinge é produto bastardo de uma genealogia
complexa. Ao redor do ídolo jazem os cadáveres das vítimas: ela deuora os passantes que não
sabem resolver seus enigmas. Só Édipo terá êxito. Donde a perdição do monstro. Mas a lei do pai
logo se restabelece sob a forma que se conhece. A esfinge grega mantém, com a lenda edipiana,
relações ... de família. Assim é que devasta os arredores de Tebas quando Laios, pai de Édipo, falta
aos deveres de sua função (patriarcal). Valere Bernard associa, na mesma seqüência de gravuras
tenebrosas estas deidades carniceiras: Esfinge, Medusa, Súcubo. E Félicien Rops, ao ilustrar as
Diaboliques [Diabólicas] de Barbey d'Aurevilly, acrescenta uma dimensão cristã, isto é, trans-
gressiva, sexual e blasfematória, a esse Panteão maléfico, em que os deuses se fazem demônios
em virtude de uma inuersão (nitzscheana) de todos os valores (burgueses).

Moloch social
O paradigma quimérico-o modelo de Desprez-estrutura ainda toda uma série de represen-
tações clássicas, em que o arranjo das figuras se transforma em pesadelo. Esses dispositivos
literários, que encenam tanto a feitiçaria (Goya, Merson) quanto a fábula (Moreau, Klinger) são
máquinas canibais, no mesmo sentido que Deleuze falava de machines désirantes [máquinas do dese-
jo]. Os corpos são aí regidos pela mecânica pura de um abraço mortal, onde florescem os tropos
da metonímia (simbiose, coalescência, fusão). Ora, esse teatrinho de marionetes de papel, que
conjuga as fantasias das classes dominantes de modo sadomasoquista, tem sua versão política.
Pois a lei é dura: veja-se o cutelo da guilhotina, de que Raffet mostra, após Géricault, os efeitos ...
cortantes41 . Ea lei é policial: castiga os rebeldes, como o Prometeu de Klinger, cujo transporte aéreo
por Zeus e Hermes tem o aspecto fagocitário de um monstro de três cabeças. Pior: a lei é cega-na
obra de Moreau, os cavalos de Diomedes acabam devorando o pai que os alimenta; sem excesso
de gratidã0 42 . Dir-se-á que a lei é despótica até (ainda na obra de Moreau, o Minotauro exige de
Atenas um tributo de carne fresca)43. No final do século, ao fomentar os nacionalismos, o Estado
torna-se a metáfora canibal de uma Europa fratricida. Quando Meissonier pinta o cerco de Paris
pelas tropas alemãs em 1870, coloca uma alegoria da França sobre uma pilha de cadáveres44 . E
aquela mulher superviril, com a bandeira tricolore a pele de leão (a mesma usada por Hércules),
é a versão patriótica da esfinge edipiana. O mesmo artista, bastante reacionário, havia pintado sem
querer, vinte anos antes, a República liberal sob seu aspecto mais feroz. A Barricada mostra os
momentos seguintes ao golpe-o Nachtriiglich freudiano-de junho de 184845. O solo estájunca-
do de cadáveres, que se misturam às pedras do calçamento numa simbiose irônica: esses arrua-
ceiros proletários são mesmo ... homens da rua. Que os mói, os desmancha, os tritura, numa
palavra: os devora. A barricada é a figura emblemática de todas as repressões: o próprio tropo
do interdito. Freud diz não havercultura sem sublimação, quer dizer, sem repressã046 . Para Sartre,
Junho de 48 foi a grande fratura da modernidade 47 . Assim, o uerdadeiro canibal dos novos tempos
é daí em diante esse Moloch social: o Estado burguês que afoga em sangue as revoluções ...
Corpo sem órgãos
Goya outra vez. Homens nus se azafamam ao redorde cadáveres, dos quais um pende na ponta
de uma corda, e o outro jaz sobre o solo. O balcão ou o gancho do açougueiro: acreditaríamos
estar num açougue a céu aberto, onde a carne seria humana. E os clientes, canibais. Mas esses
lúgubres preparativos para um ritual antropófago encontram seu contraponto imediato numa
reunião de família (sic), em que vemos um seluagem brandircom júbilo troféus macabros-uma
cabeça, uma mão-sob o olhar atento de seus semelhantes. Os historiadores da arte ainda se
à esquerda [Ieft] Cildo Meireles Tiradentes: tótem-monumento ao preso político [Tiradentes: monument-totem for the politicai
prisioner] registro fotográfico [photographic record] Belo Horizonte, Abril 1970 foto Luiz Alphonsus
acima [above] Pedro Américo Tiradentes esquartejado [Quarted Tiradentes] 1893 óleo sobre tela [oil on canvas] 266x164cm
coleção Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora, Brasil

131 Século XIX Régis Michel


indagam qual episódio histórico ilustram esses quadros famosos, ordinariamente datados da
década de 180048 • E, como sempre, suas preocupações provam ser destituídas de pertinência.
Pois o que Goya quis dizer não nos importa muito: a arqueologia póstuma das intenções criadoras
nada é além de medíocre avatarda necromancia. O artista, que se compraz em esquadrinharos
arcanos da razão para daí extrair criaturas de pesadelo (súcubos mitológicos, aves carniceiras e
feiticeiras infanticidas), toma às auessas o incorrigível otimismo da filosofia do Iluminismo:
mostra uma sociedade sem lei-uma humanidade sem tabus. E o resultado nada fica devendo
à crueldade. Pode ser que na aparência depreciativa desses primitivos simiescos haja algumas
gramas de moralismo. Mas o que nós vemos é antes de tudo a sua exultação libertária, que recusa
os velhos postulados do humanismo filosófico. Sim, o homem é mau; a natureza, agressiva; e o
universo, ameaçador-onde reina a guerra de todos contra todos. Mas essa constatação, que lem-
bra Hobbes e esquece a Enciclopédia, nada é comparada à experiência intensa que é a ilimitação
do desejo. Que já não conhece a lei do falo, da castração, do Édipo e outras bricolagens norma-
tivas do Ocidente capitalista. Que já não conhece lei alguma além da sua. Esse canibal, que em
cada mão segura os órgãos da vítima como se para caçoar deles, tende a tornar-se, por antífrase,
uma alegoria patente daquilo a que Deleuze chama de corpo sem órgãos49 : puro sistema de fluxo,
regulado pelo desejo, que escapa às ameaças punitivas da castração. O próprio Goya se renega no
Gustave Moreau Diomede dévoré par ses chevaux Diomedes devorado por seus cavalos [Diomede devoured by his horses]
1870 óleo sobre tela [oil on canvas] 46,4x38,1 cm coleção French & Company Inc., Nova York

132 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


frenesi sórdido dessa dança do escalpo, cuja energia libidinal já não se acha indissoluvelmente
ligada às instâncias repressivas da censura freudiana. Pois é ele também o pintordo Saturno que
devora a prole nas paredes alucinadas da Quinta dei Sordo so : sinistra apologia da lei do pai. Mais
uma vez, as palavras dizem menos que a imagem. Saturno é um ogro: engole mais que devora,
olho esbugalhado, boca escancarada e as feições disformes de um velho louco. Mas há um meio
de escapar a seu insaciável apetite. A esquizofrenia do desejo é a única coisa capaz de excon-
jurar a síndrome de Saturno e seus leitmotivs burgueses, a tirania do Édipo, o primado do falo, o
imperialismo do significante. Portanto, esqueçamos resolutamente tudo que precede, a fábula
freudiana, a horda primitiva e o assassinato do pai, que só fazem reforçar o discurso do senhor.
Nem totem nem tabu. O desejo (do outro) acaba sempre por exceder a lei (do pai). Assim se
rompe (enfim) a cadeia das metáforas: só o desejo é canibaL ..
Régis Michel. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. Madri, San Antonio Abad, 1819 (Gassier-Wilson n.1638). 27. Amsterdã, Historisch Museum, coleção Foder (Inv. A
2. S. Freud, Totem et tabou (Totem und Tabu, 1912-1913), trad. fr. 10959, cato exp. 1991, n.191 P.379-380, prancha 231).
S.jankelevitch (1923, rev.1965), reed. Paris, 1989, P.230' 28. Paris, coleção particular (cat. exp. 1991, n.189 P.379, pran-
3. Idem. cha 234 P.147).
4. Ibid., P·231. 29. Ver o esboço do Louvre (RF 2229, cato exp. 1991, n.199 P.382
5. j.G.Frazer, "Taboo and the perils of the sou I", The golden prancha 239 P.250).
bough, 11,1911 (cf. S. Freud, op.cit., P.231, n.l, etc.). 30. Cf. R.Michel, loc. cit., P.25-26.
6. De Malinowski a Deleuze ... 31. N.Bryson, "Géricaultand masculinity", Visual cuJture.lmages
7. Dante, Inferno (La divina comedia), Cantos XXXII, 124-139 e and interpretations, Londres: Hanover, 1994, p.229-259. Cf. R.
XXXIII, 1-90, trad. fr. (à vista do texto original) j. Risset, Paris, Michel, loc. cit., P.24-25.
1985, P·294-301. 32. G.Deleuze; F.Guattari, "Les machines désirantes", L'Anti-
8. Cf. F.A. Yates, "Transformations of Dante's Ugolino", The CEdipe. Capitalisme et schizophrénie, Paris, 1972-1973, P.7-58.
journal ofthe Warburg and Courtauld Institutes, XIV, 1951, P.92-117. 33. E. Kant, Réponse à la question: Qu'est-ce que les Lumieres? (1784),
9. Knole Park, Kent, 1773. Paris: Fr. Proust, 1991, P.43.
10. Moses Haughton, 1811 (Yates, loc. cit., p.111-113 e prancha 34. Diderot e D'Alembert, Encyclopédie, ou Dictionnaire raisonné
19/a). des sciences, des arts et des métiers, Paris, 1751, II, p.669.
11. Cf. Yates, loc. cit., p.112-113 e prancha 20. 35. CI. Lévi-Strauss, Le cru et le cuit, (Mytho/ogiques I), Paris, 1964.
12. Ordrupgaard, Copenhague, 1860 Uohnson, n.337, P.153- 36. M. Horkheimer; Th. W. Adorno, "Le concept d' Aufkliirung",
154, prancha 158). Desenho: acervo do Louvre, RF 9452. La dialectique de la raison (Dialektik der Aufkliirung, 1947), trad. fr.
13. Cf. cat. exp. Carpeaux, Paris: Grand Palais, 1975, nos 49 esq. E. Kaufholz (1974), Paris, reed. 1994, p.21-57.
("I ntrod ução"). 37. Paris, Bibliotheque Nationale de France, 1771 (estampa
14. Paris, Musée d'Orsay. exposta).
15. L.lrigaray, "Des marchandises entre elles" (1975), Ce sexe 38. Cf. R. Michel, "De la chimere au fantasme", La chimere de
qui n'en est pas un, Paris, 1977, P.189-193. Monsieur Desprez, cato exp., Régis Michel (coord.), Paris, 1994,
16. Ver sobretudo os desenhos (expostos) no Louvre (RF 1258 P·7-1 4·
a 1260). 39. P. Nizan, Les chiens de garde, Paris, 1932.
17. Desenho do Louvre, RF 36768 (exposto), porvolta de 1845- 40. CEdipe voyageur, Metz, Musée d'Art et d'Historie, c.1888
1846 (estudo para O inferno, quadro de Montpellier), Musée (Mathieu n.358).
Fabre (cf. A. Grünewald, Revue du Louvre, 1986, n.l). 41. Paris, Musée du Louvre, 1833 (RF 23278, desenho exposto).
18. Vero grupo de obras sobre o tema emprestadas pelo Musée 42. Ruão, Musée des Beaux-Arts, 1865 (Mathieu n.78).
Rodin de Paris. 43. Bourg-en-Bresse, Musée de I'Ain, 1855 (Mathieu n.29).
19. j. -F. Lyotard, La condition postmoderne, Pari s, 1979, P.17-20. 44. Paris, Musée d'Orsay, 1870 (RF 1249; obra exposta).
20.j.Derrida, Positions, Paris, 1972, P.109-121. 45. Paris, Musée d'Orsay, 1848, Salão de 1850-51 (RF 1942-31).
21. P.Darmon, La rumeur de Rodez, Paris, 1991, cf. p.222-230. 46. S. Freud, Malaise dans la civi/isation (Das Unbehagen in der Kul-
22. Paris, coleção Prat (cat. exp. 1991, n.165 P.373, prancha 210 tur, 1929), trad. fr. Ch. etj.Odier, Paris, 1971, P.93 esq.
P·13 1). 47. j.-P.Sartre, L'idiot de la famille, III, Paris, 1972, P.447 esq.
23. Cf. R. Michel, "Le nom de Géricault ou I'art n'a pas de sexe, 48. Besançon, Musée des Beaux-Arts et d'Archéologie (Gas-
mais ne parle que de ça", Géricault, R. Michel (coord.), Paris, sier-Wilson, n.922-923).
1996, I, p.12-14. 49. G.Deleuze; F.Guattari, op. cit., p.7-22; Mille Plateaux. Capi-
24. Veros dois desenhos aqui expostos (Louvre, Rec. 30 e 31). talisme et schizophrénie 2, Paris, 1980, P.185-204.
25. Paris, Musée du Louvre, Salão de 1769. 50. Madri, Museo dei Prado (Gassier-Wilson n.1624). Vero
26. L. Nochli n, "Géricau It orthe absence of women", Géricault, desenho (exposto) do Museo dei Prado (1797-1798, Gassier-
op. cit., P-403-421. Cf. R. Michel, loc. cit., P.14-21 Wilson n.635).

133 Século XIX Régis Michel


Século XIX curadoria Régis Michel

The Saturn syndrome or the law


of the Father: cannibal machines
of modernity
I. Taboo: the father eats the son
Supreme stage
Goya: an old man on his knees, joining his hands and closing his eyes, opens a confident mouth
into which the hand ofthe priest introduces the host. It is the last communion ofJoseph Calasanz,
a popular saint ofthe baroque era, and Goya's major painting before the funereal hymn ofthe
dark paintings: 1 a lugubrious illustration of the eucharistic rite, where death prowls among the
characters, in quest ofits prey. The old man seems to mourn his own death, the priest looks like
an executioner, and the faithful are devout puppets whose particular faces sometimes recall the
monsters of the Quinta deI Sordo. The eucharistic rite does not incite the faintest exhilaration. Here
Goya appears as a shrewd reader ofFreud. The Christian communion is the supreme stage ofWest-
ern cannibalism. Let us say that it blossoms, like capitalism with Lenin, in this theatrical avatar
of an imperialist cultwhich promises a cruel practice: to eatthe other. Butwhat other? The answer
is obvious: the sono The Christian who receives communion eats the body of the son, the one
who, according to the evangelistic text, offers his life for the redemption ofhumanity. However,
this voluntary oblation lacks plausibility. From where comes the requirement for such a sacrifice?
That is the (true) questiono This time the response is not so easy. Christianism holds an explanation,
which remains another enigma: the original sin, and so on. But this biblical fiction is not very
credible. Freud proposes a different version, which appears to be a more logical one: the murder
ofthefather. 2 That a man sacrifices his existence in order to expiate a sin necessarily signifies that
this sin is a [capital] crime. One life against another: such is the principIe ofretributive justice
(Freud refers to the law ofthe talion).3 The primitive scene ofbiblical humanity must therefore
be a murder scene, where the transgression of the interdict goes along with the suppression of
its author. But at the sarne instant that he sacrifices his existence, the son in turn becomes god:
he replaces the father, whose death he expiated. 4 It is enough to say that the Christian communion
is, according to Freud, another murder, be it symbolic: a new parricide.

Totemic meal
That the eucharistic rite is an urbane version of the totemic meal is not an invention ofFreudian
thought. The hypothesis was already formulated by Frazer, to whom Freud willingly pays tribute. 5
And there we clearly see the strategic stakes. For it powerfully supports the most controversiaI the-
sis ofhis anthropology: the universality of the Oedipus. 6 By suggesting that the Christ was only
crucified in order to become God (expiation changes into usurpation), Freud turns to his advan-
tage the Christian argument on the rhetoric mode of a calculating paradoxo For this dialectic
exercise revives an oId story, where the son must kill the father in order to possess the mother:

134 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


one knows the refrain. The religious saga is automatically
enrolled within the symbolic structure ofthe libidinal econo-
my. But one is forced to admit that such a phagocytic annex-
ation is in its turn a ... cannibal processo ln arder to establish
the Oedipal fable, Freud takes questionable liberties with the
eucharistic fable. No text backs the founding hypothesis of
an original parricide. It is rather the opposite: the Book of
Genesis recounts quite another legend. There is more. The
eucharist, in Christian dogma (then Catholic, after the Refar-
mation), is not a simple metaphor, a circular fragment of
unleavened breado What the communicant eats-at least s/he
believes so-is the very body of the Christ. The transsub-
stantiation makes the host little more than a reli c or an
emblem: the effective principIe of a real presence. None is
forced to share this trickyalchemy. It is onlya dogma. But it
is not without a direct consequence on the game of roles that
distributes the power in Christian mythology, which takes
care to distinguish the son from the father by adding to them,
for good measure, a strictly conceptual entity where the
adventurous equation-the algebraic sum-of the two
precedents is solved: the Holy Spirit. This scholastic vehicle
of all the idealisms, that crystallizes the major attributes ofthe divinity, turns the filial duo into a
doctrinal trio. Now the Christian Trinity, a polemical product (and for good reasons) of centuries
ofheresy, is not of a rational order. But of a phallic one. Its male hypostases only have one objec-
tive: to impose the law ofthe father. And it inevitably passes through the ritual sacrifice ofthe
sonoThe Verb (Logos) becomes flesh (Phallus) without much reluctance, since it is required by
the Western metaphysics of the patriarchate.

Ecce Homo
ln the last cycle ofDante's Hell (the ninth), the worst of crimes is relegated: treason. But of all the
traitors, even the renowned, who haunt the end of the poem, only one is still familiar, if not pop-
ular: UgolinoJ A tyrant ofPisa, dismissed by his people, Ugolino was immured in a tower along
with his sons. When despair pushes him to commit an equivocaI gesture-he bites his hands-
his sons offer him their flesh in order to appease his hunger. Ugolino refuses. They die. And the
father ends up by eating their corpses before dying as well. Dante eternally condemns him to gnaw
away at his rival's skull, the archbishop Ruggiero, who is responsible for his loss. From Reynolds
to Rodin via the Romanticists, the figure ofUgolino fascinates the inventors ofmodernity.8 For
it combines two major ingredients of a new art, violence and feeling, history and drama, the polit-
icaI and the pathetic. Reynolds codified the scene in a famous painting that passes for a manifesto
of the return to Michelangelo of which he is the prophet. 9 The painter has chosen the moment in
the poem when the prisoners understand that they are being immured. And the image is governed
bya sharp antithesis where Ugolino's petrified hieratism opposes hissons' convulsive distress.
This rhetorical splitting is of stoical intention. It exalts the hero's greatness, who is alone against
Paul Chenavard Ugolin et un de ses fils (Ugolin mangeant son fils) Ugolino e um de seus filhos (Ugolino comendo seu filho)
[Ugolin and one of his sons (Ugolin eating his san)] 1845-46 carvão e sanguínea sobre papel [charcoal and sanguine on pape r]
35x27,5cm coleção Musée du Louvre, Paris cortesia Réunion des Musées Nationaux, Paris foto M. Bellot

135 Século XIX Régis Michel


all the others, in the despondency of such a tragic fate. Reynolds moralizes by forgetting the resto
And the artists that follow do the sarne. Füssli presents an important painting at the Royal Acade-
my (now lost), which one only knows through the engraving. 10 It aims at inspiring the scene with
an epic-some would say theatrical-vigour that Reynolds ignores. But the structure of the
image remains identical: the sarne episode, the sarne antithesis. The only change is the motif of
thefather, who holds on his knees the body of a son. And this ostentatious embrace, which sug-
gests-discretely-the anthropophagy ofthe epilogue is that of a vampire or of a succubus: we
are not very far from the Nightmare where the artist summoned these nocturnal creatures. Blake
was always interested in ~he character ofUgolino, whom he turned, in his youthful years (after
1780), into a secular, if not profane Job, where Dante would replace the Bible, and God, the arch-
bishop Ruggiero: a figure of the just overcome by the injustice of men. Forty years later, at the
end ofhis life, the artist takes up the theme once again in one ofhis overloaded watercolours,
where expressive violence blooms.11 And the scene of despair becomes one of redemption. Two
symmetrical angeIs of primitive appearance, who lean towards Ugolino, seem to promise the
prisoners a better fate. Dante's creature evades Hell. We already suspected as much. According
to Blake, Ugolino is a father, but a celestial one, in other words, a godo Delacroix, who has been
haunted by the subject for a long time, if one believes his Journal, perpetuates this religious con-
notation when he paints late on in life his version ofthe myth: 12 Ugolino stands on the stairs,
near a column, which evokes the gloomy decor of an Ecce Homo, and his sons groveI at his feet,
in a collective, if not Trinitarian, reptation which recalls the mystical ecstasies and the oblative
effusions ofbaroque paintings (one ofthem holds his arms in a cross).

Tom Thumb
The acute paradox ofthese representations is that the condemned becomes a martyr, when he is
a criminal. Ugolino's treachery, villainy, and tyranny are forgotten. The torture has an expiatory,
if not sublimatory worth, and especially as the famine is related to the asceticísm, be it involuntary:
in the forced suspense ofthe nutritive function interferes
the stoical ethics (afterwards Christian) of the deliberate
renouncing of animal appetites. This reversal ofhistori-
cal roles has the direct effect of exalting the paternal
instance to the detriment of the filial relationship. That
Ugolino's sons sacrifice their existence becomes the
natural postulate of a backwards logic-what would be
shocking is the opposite. The Second Empire endows
the figure of the father with a politicaI unction: the
emperor is, after all, the nation's father, especiallywhen
dealingwith a Bonaparte, even if Austerlitz's ogre has let
Sedan's Tom Thumb take his place. Carpeaux casts this
imperious, if not imperial figure, in the antique bronze:
his Ugolino thinks he is a new Laocoon. 13 The sculptor,
who presents his group at the Salon of r86314-that of
the rejected, the dissidents, the moderns-strives to add
Dante to Michelangelo in order to obtain the recipe of
the drama. Thus, under the artist's chisel, the hero takes
after Moses and the Medici: the obvious memory of the
Florentine mausoleum does not cease to haunt the med-
itative attitude of the cannibal tyrant. Carpeaux ends up by opting for the very moment of the
equivocaI gesture when the hero's fate crystallizes, when he gnaws away at his fingers due to an
excess of agony. His sons make a mistake, and us along with them: one would swear that it is the
hunger that suggests this . . . extremity. But the appearance of a conflict is purely formal: it guar-
antees the thinker a moral dignity which is the condition ofhis credit-what would one think of a
serene cannibal consuming his progeny? Carpeaux confuses the drama with the emphasis. But
his Ugolino proves to be so patriarchal (in the politico-sexual sense of the feminist critique
since-at least-Luce lrigaray)15 that he wipes out the resto And this obliteration is expressed in
the very connection of the figures, which oversizes that of the father. 16 The sons are nothing but
minor, secondary, inferior creatures, ectoplasms or tropisms, runts or dwarfs, who grovel at his
feet in a pathetic attitude where the collective humilíation takes up the beseeching motif of a
devout embrace. Here is the father, in a bourgeois (Bonapartist) variant ofthe chief ofthe horde-
the sarne one that Freud adopts in Totem and taboo at the height ofhis absolute, that is, phallic, or
even castrating, and therefore cannibal power. But this cannibalism is still a potential one. One
must show him in action to go to the end of this religion of the father. These abstract categories
of the old scholastic possess nothing of the imitation. A marginal artist like Chenavard, imbued
with philosophical ideas, does not hesitate to paint Ugolino leaning towards his son in order to
bite his flesh .17 And this murderous effusion, which is magnified bya drawing from the Louvre,
is, in the incestuous nudity of the bodies, of a clearly homosexual obedience. Rodin goes even
further, if one can, in the morbid exploration ofthe agonistic register. It is true that the sculptor,
à esquerda [Ieft] Jean-Baptiste Carpeaux Ugolin et ses enfants Ugolino e seus filhos [Ugolin and his children] 1860 lápis e tinta
sobre papel [penei I and ink on paper] 42,4x29cm coleção Musée du Louvre, Paris cortesia Réunion des Musées Nationaux, Paris
acima [above] William Blake Count Ugolino and his sons in prision Conde Ugolino e seus filhos na prisão 1826 óleo, têmpera
e ouro sobre madeira [oil, tempera and gold on wood] 37,8x 51,6cm coleção The Fitzwilliam Museum, Cambridge

137 Século XIX Régis Michel


Freudian without knowing it, is an established expert in the theatre of instincts. From there we get
these startling pages where the mêlée of bodies-a banquet without limits-sends back the
starving tribe ofDante's villain to the oral fantasies ofthe animality where once again the love of
the censor is dawning. 18 Those people are monsters. And the moral is safe. One does not violate
the old taboos with impunity...

Sandwich-man
Few myths in Western art are as dark as that ofUgolino. There are innocents who are immured,
children who die of hunger, a father who eats his sons: sad tropics of the family institution.
Injustice, torture and crime are the key words of this funereal narrative: a sulphurous metaphor
ofthe politicaI society. But it is still too little compared with the essential. For the story ofUgolino
sanctions the great return ofthe repressed within Western consciousness: anthropophagy. Now
the cannibalistic instinct does not go without its punitive corollary which is the law of the father.
From there comes the unexpected fortune that one would hardly explain for lack of it. Dante's
carnivorous hero takes over, in imagery, the Goyalike figure of Saturn, the one that succeeded
several others, which had, according to the ancients, a heavy hand and a voracious appetite, like
Tantalus, Medea, or Polyphemus. One can guess as to the why of this metamorphosis. The
butcherlike saga of the medieval hero is made of tricky ingredients which give the paternal
authority a legitimacy. The sons stand with the father to the point of sharing his torture (it is not
by chance that one is dealing with a tyrant, where power knows no limits): a single punishment
unites them in a collective responsibility that renounces all the postulates ofWestern individualismo
But there is worse: the sons offer their lives to save the father. This offering is absurd since it
does not alter in any way the fatal outcome. It is at best a provisional way of deferring the agony.
Denis Auguste Marie Raffet Deux études de la tête d'un homme mort Dois estudos da cabeça de um homem morto [Two studies
of a deadman's head] 1833 lápis sobre papel [penei I on paper] 13,2x20,5cm coleção Musée du Louvre, Paris, cortesia Réunion
des Musées Nationaux, Paris

138 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Also the cannibal metaphor is before anything in this case a narrative oflegítímatíon as Lyotard
meant it: 19 it serves to endorse the Oedipal structure of a phallic society exclusively ruled, accord-
ing to Freud, by the anguish of castration. Ugolino's adventure is nothing but a theatrical fanta-
sywhere the symbolic submission to the omnipresence ofthe father is exorcised (through art).
One should even say: to his dívíníty. For the father is God. And the sacrifice ofthe sons is analo-
gous to that of the Christ, when he claims to give his life to the eternal father in order to save
humanity. ln both cases, the objective consists of reinforcing a politicaI system where Logos and
Phallus merge. More than likely the liberal society of the XIX century is no longer quite the patrí-
archal society ofthe Ancient Regime, where the king is a god on earth (a tyrant... of divine right) ,
where the father holds absolute authority over his children. But the Civil Code continues to assure
the full power of the paternal figure until the great butchery of I9I4, which attests to its cannibal
violence (a return to Saturn). ln this cursedfílíatíon, Ugolino is nothing but a promotional agent
ofthe worst taste: the sandwich-man ofphallogocentrism ... 20

II. Transgression: the sons eat the father


Modern Golgotha
On his return from Rome, in the autumn OfI8I7, Géricault directs his attention to a sensation-
alist news story [a faít dívers] that turns into a politicaI scandal: the Fualdes a.ffaír is one of the
greatest enigmas in judicial history, even if modern historians propose a plausible solution. 21 lt
most likely deals with a politicaI murder. Fualdes, a prosecutor of the Empire, was assassinated in
his city ofRodez bya clique of crooks working for the ultras (royalists), who tried to eliminate an
embarrassing witness to their fraudulent activities. Géricault only produced on the matter a
series of drawings that may have been intended for lithographs. One ofthem shows the scene of
the crime. 22 One sees muscular sicarii, a dagger in hand, surrounding a table where lays a corpse
(only the legs are visible). Around them women move about, accomplices or witnesses, whose
athletic bodies are in unison with the resto The drawing is nothing but a dance of death where the
victim's identity is oflittle importance. The old Fualdes, a civil servant, becomes the archetype
of monarchial power and patriarchal authority. ln short, Géricault depicts a parrícíde: the collective
execution of a substitute of the father. 23 Like alI the drawings of the series, the image evacuates
the details of the anecdote and the trivialities of the contingency. What remains is a cruel ballet
whose gyratory violence has the symbolic status of a funeral ceremony: this sordid crime is a sav-
age rítual where the sons kill the father in order to seize the women (one ofthe assassins takes
hold of a woman, who is naked, by the hair). The scene illustrates in one word the central thesis
ofrotem and taboo. Géricault includes a macabre though realistic motif: one of the women waters
a pig with the victim's blood. This sulphurous motifhas nothing to do with a metaphor: it is
attested byall the documents. But everything to do with a sacrílege: it is a transgressive version of
the Christian communion where the blood replaces the host, although the Christian communion
is familiar with both, after alI. With Freud, one would speak of a totemíc meal if the figure of the
father were not twice scorned in this case: by murder and by derision. Thus, the Fualdes affair,
according to Géricault, is the ideal vector of an iconoclastic theatre, which would be the profane,
ifnot blasphemous, version ofthe Passion ofChrist. The other drawings, which recount the
diverse episodes ofthis provincial tragedy (the abduction, the transport and the immersion ofthe
tortured victim), are like the shots of a fílm noír: the clandestine stations of a modern Golgotha. 24
Géricault is an artist on the fringe of society, who remains a stranger to the academic system.
From there probably comes his manifest disdain for the social norm-for the bourgeois rules.
Neither is it surprising to realize that he is the first artist to exalt the murder ofthe father. lt is

139 SécuJo XIX Régis Michel


true that others opened the way. History painting, at the end of the Enlightenment, is what the
critics call, beginning with Diderot, a dark painting where the hero is nothing but a shadow of
himself, the reverse ofthe character, the negative ofthe function:in brief, an antihero. Oedipus
and Belisarius are the two models of this subversive imagery that aims primarily at politicaI effi·
ciency: they are paintings commítted to-see David-the critique of the monarchy in the name of
the Philosophers (and sometimes in the opposite sense). The phenomenon, which dates back to
Greuze's Caracalla,25 another meditation on parricide, is too notorious to insist upon: no one
ignores any longer this militant struggle against the patriarchal ideology of the Ancient Regime.

Schizophrenic machine
Géricault goes even further. The moribund figures multiply in his works. The Cuírassier of 1814,
which withdraws from the fire, the survivors of the Great Army who return from Russia, the vet·
eran ofthe Empire, who displays a wooden leg, embody (among many others) this universe of
drama and grief, where his deleterious art revels. Géricault's painting is but a permanent variation
on the pathetic motif ofthe wounded mano lt goes without saying that the wound is symbolic. One
agrees to see it in an obvious metaphor of castration, ofwhich Géricault himself does not hesitate
to show the public protocol on the recurrent mo de of a capital execution (or its equivalent): decap·
itation, hanging, strangulation, flaying, etc. 26 This punitive world is a garden of tortures [un
jardin des supplices]-a real one-well before the decadent reveries ofthe end ofthe century. But
it is still too little to serve as a libidinal release of the artist's unconscious. History will supply the
best pretext: The raft ofthe Medusa. Now the figure ofthe raft becomes the ideal metaphor of adis·
sident society. For this open world is actually behind closed doors [huis·clos] and its insularity protects
it from repressive authorities-from social pressure. Neither God nor master: no superego. The
result is an unexpected sequence ofinstinctual anarchy where a climactic violence is freed: riots,
brawls, mutinies, the shipwreck victims ofthe raft spend their time destroying one another (it is
true that they do not have much else to do). At least those homicidal exercises provide them with
the secondary benefit of distracting their hunger by killing (aIs o) time. Géricault draws at leisure
these furious strangleholds, embraces ofbodies, orgies offlesh, where the actors form a hun·
dred·headed monster: a mixture ofHydra and Leviathan. A drawing from Amsterdam brings its
bellicose chaos to its paroxysm where each one appears to devour the other with the energy of
despair. 27 lt is to the point that a famous study for the great painting ofthe 1819 Salon-an
abandoned version of the episode-openly introduces the very motif of a cannibal act where one
finds once again the nocturnal atmosphere ofGoya's nightmares. 28 Now this addition is a variety
ofsupplement in the most Derridian sense of the word. The painting itself is but a latent device of
generalized cannibalism where culminates the maritime lifting of social prohibitions. But itwould
be wrong to think that this world is wíthout laws. One does not get rid ofthe phallic discourse so
easily. The law of the father still governs the pictorial space. 29 But its ferula is contested. Which
leads to the division of the image in two contradictory parts. 30 ln the foreground, the father
embraces his son, who is dying among the corpses, unless he is already dead. This filial couple is
purely hypothetical. But it is significant that the gloss-the myth-ofthe work imprisons the
characters in the shackles offiliatíon. lt is still Dante's fable that Géricault paints in the front of
the canvas: an ambulatory morgue whose residents are already crippled, if not devoured by the
castrating industry ofthe raft (to the left, one victim lost his legs, to the right, another lost his
head). But the putative father, a modern Ugolino, only adopts the canonical posture of the
Dürerian melancholy in order to mourn his lost crown. For the rest of the survivors tum theír backs
to him: they want to be saved, to escape the mortal tyranny of this castrating, if not cannibal,

140 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


father. And they do not see any other fate than a phallic strategy ofFreudian overcompensatíon.
Muscles, gestures, effusions, everything conspires in a virile way to the exaltation of the sarne:
the homosexuality ofthe scene. 31 One better perceives the unprecedented hiatus that splits the
composition regardless ofthe academic codes: it is the Spaltung (the caesura) of schizophrenia.
And this liberation ofthe desire makes the Raft-for a half-a schízophreníc machine in the taste
ofDeleuze: 32 a drifting, raving, desiring machine ...

III. Totem: society eats its children


Bad savage
The man of the Enlightenment, who is a rational man-the Au.fklãrung, Kant says, is the autonomy
of understanding 33-ignores cannibalism, which is an avatar of superstition, not of reason. The
Encydopedía denies it the privilege of a field label. The only section dealing with the phenomenon
is an article titled Caríbbean-an anonymous one 34-which is still the bestway to get rid ofit: by
Theodore Géricault Têtes coupées Cabeças cortadas [Cut heads] 1818-19 óleo sobre tela [oil on canvas] 50x61 cm coleção
Nationalmuseum, Estocolmo

141 Século XIX Régis Michel


its exoticism. The distance of the elsewhere-an almost unreal elsewhere-is the first degree of
the negation. Cannibalism is the other's problem, namely, the savage, or the Indians ofthe Antilles
(those Westlndies), "savage islanders of America." Canníbal will therefore be synonymous with ...
Caríbbean. Cannibalism is not the universal avatar of a reasonable humanity, but a limited prac-
tice ofnative people, whose only human feature is their appearance (and even sol. The Caríbbean
ofthe Encyclopedía serve as the best antithesis-as a perfect foil-to the highly civilized humans
who are the Europeans (the term clearly appears like an implicit ideal of civilization). Thus the por-
trait of these natives is not very tlattering: they are lazy beings, polygamous and polytheistic, who
go naked, live long, and-a supreme tlaw-they do not swaddle their children, who walk on all
fours, as animaIs do. This creeping animality, like a shameful disease, is the key to the argumento
The Encyclopedía evokes, in the guise ofthe West Indies, a state ofnature ofwhich Rousseau's
thought has not yet made a positive, in other words, politicaI myth (the publication anyway was
never rousseauíste). ln this pejorative, racist, Western vision ofthe absolute other that is the sav-
age-a bad savage-cannibalism is almost the required accessory (the .. . natural attribute) of a
primitive condition where the tyranny of the body rages, a cumulative system of inclinations,
appetites, even impulses (nowadays one would say ínstíncts) , which is the main feature of a law-
less world. Now the cannibal desire still has to be strictly framed-Iegitimized, controlled-by
a reputable motive, which is war. The Caribbeans, writes the encyclopedist, "eat their prisoners,"
from where one infers that they eat only them (and no one else), even that they do not eat them all-
but this last point, which is a grammatical matter, proves to be disputable, depending on whether
one considers the verb as an indicative or an imperative. But there is more. Cannibalism is here
doubly redeemed (one does not dare say justified) by its social use which consists of sharing the
Theodore Géricault La revolte des matelots contre les officiers sur le radeau de la Méduse A revo lta dos marinheiros contra os
oficiais sobre a jangada do Medusa [The rebel lion of the mariners against the officers on the raft of the Medusa) 1818 tinta sobre
papel [ink on paper) 40,6x59,3cm coleção FODOR-Amsterdams Historisch Museum, Amsterdã

142 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


remains of the victim: it is not a solitary, therefore subversive practice, but a collective, if not
communal act, a convivial, if not a friendly process, thanks to the culinary turn ofits preparation.
Neither the raw nor the cooked, dear to the ethnologues. 35 But the roasted. Bywhere the civilisation
makes a return in the treatment-the catharsís-ofthe edible. For the roasted expurgates by puri-
fYing (through the fire) what the human flesh would have oftoo ... human: the blood, the skin,
in short, the flesh. Thus goes the reason ofthe Philosophers: it abstracts the quintessence of an
irrational world like one tries to flee from the torment that gnaws away at one's soul. And we
know (see Horkheimer and Adorno) where that sectarian, authoritarian, even totalitarian reason
leads us: to Auschwitz. 36

Guard dog
Twenty years later, a neophyte engraver, still unknown, who will make a career in Sweden, pro-
duces as an image-a popular print37-the most cannibal of creatures, which immediately takes
on the name ofits inventor: The chímera ofMíster Desprez. 38 It is a three-headed monster devouring
a human being whose only remaining visible feature is his battered chest, like an écorché. The letter
ofthe print-the caption ofthe image-knowledgeably sums up the prowesses ofthe animal.
Theyare nothing but the imaginary data of an improbable story (a circumstantial Arttiquity). The
text is onlya pretext: this animal is mythical. Now the myths have, as one knows, their weight of
symbols. It is not by chance if the beast rages in Africa, the privileged land of cruel mirages.
Exoticism is here, like in the Encyclopedía, the heuristic principIe of a racial, if not racist, utopia
which invokes the dubious equation of negritude and cannibalism: the primitive is an ogre, espe-
cially ifhe is black. One would not know a better way to flatter the secular clichés of the colonial
discourse. Now the monster, as one imagines, does not live just anywhere. The areas that he haunts
are those of power: the ruins of apalace, which was once glorious, at the time ofMassinissa, king
ofthe Numidians, who was celebrated by Suetonius and some others. The chimera, in sum, is
nothing other than an allegory of the State (or of the Law): the guard dog [te chíen de garde] , as
Nizan would have said, ofthe established order. 39 And hervictims are notjust anybody. But trav-
ellers wandering on the road, in other words, nomads or rebels (nomads are always potential
rebels). The police function ofthe monster is unambiguous: the Law devours the rebel in a giant
process of symbolic castration on which the social contract of the Philosophers is based-the
repressive status of the Enlightened reason. For Desprez's Chímera roams about in front of a cav-
ern which has the geometríc form-the perfect rationality-of a semicircle, where one readily
recognizes the visionary architecture of the great utopians, beginning with Boullée: the form of
a cenotaph. The artist has in fact beco me known through a series of tombs in the Egyptian mood
where the stone devours the corpses as the Chimera does (the only difference is that the feei:, not
the chest, jut out of the sepulchre). This oppressive mechanism of petrlfícatíon-a real stone
feast-finishes by proving, if it needed to be, that law and death are the two faces of the sarne
entity. Inside, the void, the mineral and the dark: the disturbing order of cemeteríes. Outside, the
living, the plant, and the jungle: the organic universe of nature. And the Chimera, as a homicidal
mediato r, holds itself on the dividing line: in the perfect orbit of a carnivorous reason ...

Phallic woman
Desprez's creature demonstrates another characteristic: it is sexual. This monster is a woman.
(The veryword chímera refers to a cultural tradition offemale gender). Its three-headed body
recalls the lugubrious trinity of the Fates and the Erynies, in Greek mythology, or the witches in
Shakespeare's Macbeth. But these three heads are not identical. The middle one, inspired by a

143 Século XIX Régis Michel


bird ofprey, is equipped with deadly appendages (the neck, the beak) , whose nature is patent, in
other words phallíc. The Chimera is therefore sexually ambiguous. She most likely belongs to
femininity. But a maIe femininity endowed with a conspicuous phallus. From where comes the
oddness ofits rhetoric status: the (open) allegory fades away in front ofthe (latent) symbolism.
One would say, in Saussurian terms, that the signifier resorbs the signified through the latent
phenomenon of. .. semantic cannibalism. There we find again under another form, which is lit-
eral, thatfamilíar equation ofWestern imagery: the Law is the Phallus, and as a result, the law of
the father. But it is a woman who embodies it, though a phallic one. And this equivocaI figure of
politicaI iconography is the ideal matrix of an original syncretism where an obsessional theme
of modernity crystallizes at leisure: the romantic myth of the femme fataIe. From there comes the
success of the sphinge. The female of the sphinx is a recurrent avatar of the Egyptian mo de that
reigned in the last century since Bonaparte's expedition. It is a kind of cross between an angel
and a chimera, a monster and a whore. Gustave Moreau, a great amateur of castratinn heroines
(Salome, Dalila and others), lends it the wings of a swan and the paws of a feline, the tiara of a
queen and the breasts of a courtesan. 40 This mixing of genres is more in accordance with Greek
tradition, where the sphinx is the bastard product of a complex genealogy. Around the idollie
the corpses ofthe victims: she devours the passers-bywho can not solve her enigmas. Only Oedi-
pus succeeds. Which leads to the loss ofthe monster. But the law ofthe father is immediately
restored under the form with which one is already familiar. The Greek sphinx (which is a
sphinge) maintains ... famíly relations with the Oedipallegend. It is in this way that she destroys
the surroundings ofThebes when Laios, Oedipus's father, fails in the duties ofhis (patriarchal)
function. Valere Bernard associates the sarne carnivorous deities, Sphinge, Medusa, and Succubus,
in the sarne sequence of dark engravings. And Félicien Rops, illustrating Barbey d'Aurevilly's
Diaboliques, adds a Christian dimension-a transgressive, sexual and blasphemous one-to this
cursed Pantheon where the gods turn into devils according to the (Nietzschean) inversion of all
(bourgeois) values.

Social Moloch
The Chimeric paradigm-Desprez's model-still structures a whole series of classical repre-
sentations where the layout of the figures becomes a nightmare. Those literary devices that play
with witchcraft (Goya, Merson) and the fable (Moreau, Klinger) are cannibal machines, in the
Deleuzian sense of desiring ones [machines désirantes]. There the bodies are ruled by the pure
mechanics of a deadly embrace where the tropes of metonymy blossom (symbiosis, coalescence,
fusion). Now this small puppet theatre, made ofpaper, which declines the fantasies ofthe dom-
inant classes on a sadomasochistic mode, has its politicaI version. For the law is of iron: see the
blade ofthe guillotine, ofwhich Raffet shows, after Géricault, the ... cutting effects. 41 And the
law is repressive: it chastises the rebels, like Klinger's Prometheus, where the aerial transport by
Zeus and Hermes has the phagocytic aspect of a three-headed monster. Worse: the law is blind-
Diomede's horses, with Moreau, end up by devouring their nutrient father, with no excess of
gratitude. 42 One would even say that it is despotíc (the Minotaurus, with Moreau, again requires
from Athens its tribute offresh flesh).43 At the end ofthe century, when it stirs up nationalism,
the State becomes the cannibal metaphor of afratricídal Europe. When Meissonier paints the siege
ofParis by the German troops in I870, he places an allegory ofFrance on a heap of corpses. 44 And
this overvirile woman, with her three-coloured flag and her lion's skin (that ofHercules), is the
patriotíc version ofthe Oedipal sphinge. The sarne artist, a reactionary bourgeois, had painted
without meaning to, twenty years earlier, the liberal Republic under its most ferocious appearance.

144 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


The Barricade shows the aftermath- l'apres coup (Freud's Nachtriiglích)-ofJune 1848.45 The ground
is strewn with corpses, mixing with the cobblestones, in an ironic symbiosis: those proletarian
rioters are actually... men ofthe street. Who grinds them, dismembers them, crushes them, in short,
devours them. The barricade is an emblematic figure of all repressions : the very trope ofthe inter-
dict. No culture without sublimation, says Freud, which means, without repression.46 According
to Sartre, June 1848 was the great splít of modernity. 47 Thus the true cannibal of modern times is
from now on this social Moloch: the bourgeois State which drowns the revolutions in blood .. .

Body without organs


Goya again. Nude men bustle about corpses, of which one hangs at the end of a rape, and the
other lies on the graund. The block or the hook: one could call it an open-air butcher's shop where
the meat would be humano And the customers would be cannibals. But these gloomy preparations
of an anthrapophagous ritual have their direct counterpoint in a family reunion (sic) where one
Theodore Géficault Le radeau de la Méduse-premiere esquisse (étude d'ensemble I dite Schikler) A jangada do Medusa-
primeiro esboço [The raft of the Medusa-first sketch] 1818-19 óleo sobre tela [oi l on canvas] 37,5x46cm coleção Musée du
Louvre, Pari s cortesia Réunion des Musées Nationaux foto Hervé Lewandowski

145 Século XIX Rég is Mi chel


sees a savage waving aboutwith jubilation macabre trophies-a head, a hand-under the watch-
fuI eye ofhis peers. Art historians still question the historical episode illustrated by these famous
paintings that one generally dates from the r800s. 48 And their concerns prove to be, as usual,
deprived of pertinence. For what Goya wanted to say does not matter to us: the posthumous
archaeology of creative intentions is nothing other than a mediocre avatar of necromancy. The
artist, who enjoys scrutinizing the arcanums of reason in order to extract nightmarish creatures
(mythological succubi, relentless vultures, infanticide witches), reverses the incorrigible optimism
ofthe Enlightened philosophy: he presents a societywithoutlaws-a humanitywithout taboos.
And the result proves to be cruel. There may be, in the pejorative appearance ofthese simian prim-
itives, an ounce of moralismo But what we see is above all their libertarian liveliness which chal-
lenges the old postulates of philosophical humanismoYes, man is evil, nature aggressive and uni-
verse menacing, where rages the war of alI against alI. But the conclusion, which recalls Hobbes,
and forgets the Encyclopedia, is nothing compared with this massive experience that is the illimi-
tation of desire. Which no longer recognizes the law of the phallus, of castration, of Oedipus
and other normative layouts (bricolages) ofWestern capitalismoWhich does not acknowledge any
law but its own. The cannibal who holds in each hand his victim's organs so as to scoff at him
attempts to become paradoxically a patent allegory of what Deleuze names the body without organs
[le corps sans organes] :49 apure system of flows, regulated by the desire, which escapes the puni-
tive threats of castration. Goya retracts in the dreary frenzy ofthis scalp dance whose libidinal
energy is no longer held by the repressive apparatus of Freudian censorship. For he is also the
Ernest Meissonier Le siege de Paris O cerco de Paris 1870 óleo sobre tela [oil on canvas] 53,5x70,5cm coleção Musée d'Orsay,
Pari s legado de [bequest of] Mme. Meissonier cortesia Réunion des Musées Nationaux, Paris foto Hervé Lewandowski

146 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


painter ofSaturn devouring his offspring on the walls of the Quinta dei Sordo: 50 a sinister apologia
of the law of the father. The words are well below the image. Saturn is an ogre: he swaIlows more
than he devours, eye bulging, mouth gaping, with the deformed features of a crazy old mano But
there is a way to escape fram his insatiable appetite. Only the schizophrenia of desire is able to
exorcise the syndrome ofSaturn and its bourgeois leitmotivs, the tyranny ofOedipus, the primacy
of the phallus, the imperialism of the signifier. One will then resolutely forget everything that
precedes, the Freudian fable, the primitive horde and the murder ofthe father, which only serve
to reinforce the master's discourse. Neither totem nor taboo. The desire (ofthe other) always
ends up by exceeding the law (ofthe father). Thus-at last-breaks the chain ofmetaphors: the
desire alone is cannibal... Régis Michel. Translatedfrom the French by Martha Sesin.

I. Madrid, San Antonio Abad, 1819 (Gassier-WiIson n. 1638). 27. Amsterdam, Historisch Museum, Foder collection (Inv. A
2. S.Freud, Totem etTabou (Totem und Tabu, I9I2/I9I3), trad. fr. S. I0959, cato exp. 1991, n.I9I PP.379-380, plate 231).
Jankelevitch (1923, rev. 1965), reed. Paris, 1989, P.230. 28. Paris, private collection (cat. exp. 1991, n.I89 P.379, plate
3. Idem. 234P·I47)·
4. Ibid., P·23I. 29. See Louvre sketch (RF 2229, cato exp. 1991, n.I99 P.382
5. J.G.Frazer, "Taboo and the periIs ofthe souI," The golden plate 239 P·250).
bough, II, I9II (cf. S. Freud, op. cit., P.23I, n. I, etc.). 30. Cf. R.Michel, Ioc. cit., PP.25-26.
6. From Malinowski to Deleuze ... 31. N.Bryson, "Géricault and masculinity", Visual culture. Images
7. Dante, Inferno (La divina comedia), Cantos XXXII, 124-139 and interpretations, London: Hanover, 1994, PP.229-259. Cf. R.
and XXXIII, I-90, trans. fr. (based on original text) J. Risset, MicheI, Ioc. cit., PP.24-25.
Paris, 1985, PP.294-30I. 32. G.Deleuze; F.Guattari, "Les machines désirantes," L'Anti-
8. Cf. F.A. Yates, "Transformations of Dante's Ugolino," CEdipe. Capitalísme et schizophrénie, Paris, 1972-1973, PP.7-58.
The journal of the Warburg and Courtauld Institutes, XiV, 1951, 33. E.Kant, Réponse à la question: Qu'est-ce que les Lumieres? (1784),
Pp·9 2- I q. Paris: Fr. Proust, 1991, P.43.
9. Knole Park, Kent, 1773. 34. Diderot and D'Alembert, Encyclopédie, ou Dictionnaire raison-
IO. Moses Haughton, I8II (Yates, Ioc. cit., pp.III-II3 and né des scíences, des arts et des métiers, Paris, 1751, II, p.669.
plate I9/a). 35. Cl.Lévi-Strauss, Le cru et le cuit, (Mythologiques 1), Paris,
II. Cf. Yates, Ioc. cit., p.II2-II3 and plate 20. 19 64.
12. Ordrupgaard, Copenhagen, 1860 (Johnson, n.337, PP.I53- 36. M.Horkheimer; Th. W. Adorno, "Le concept d'Aujkléirung,"
154, plate 158). Drawing: Louvre collection, RF 9452. La dialectique de la raison (Dialektik der Aujkléirung, 1947), trans.
13. Cf. cato exp. Carpeaux, Paris: Grand Palais, 1975, nos.49 and fr. E.Kaufholz, 1974, Paris, reed. 1994, pp.2I-57.
sq. ("Introduction"). 37. Paris, Bibliotheque Nationale de France, 1771 (exhibited
14. Paris, Musée d'Orsay. print).
15. L. lrigaray, "Des marchandises entre elles" (1975), Ce sexe 38. Cf. R. MicheI, "De la chimere au fantasme," La chimere de
qui n'en est pas un, Paris, 1977, PP.I89-I93. Monsieur Desprez, cato exhib., Régis Michel (coord.), Paris, 1994,
16. See above all the drawings (exhibited) at the Louvre (RF PP·7-I 4·
I258 a I260). 39. P.Nizan, Les chiens degarde, Paris, 1932.
17. Drawing from Louvre, RF 36768 (exhibited), c.I845-I846 40. CEdipe voyageur, Metz, Musée d'Art et d'Historie, c.I888
(study for Inferno, painting by Montpellier), Musée Fabre (cf. (Mathieu n. 358).
A. Grünewald, Revue du Louvre, 1986, n.I). 41. Paris, Musée du Louvre, 1833 (RF 23278, exhibited drawing).
18. See group of works about this theme Ient by the Musée 42. Rouen, Musée des Beaux-Arts, 1865 (Mathieu n.78).
Rodin de Paris. 43. Bourg-en-Bresse, Musée de I'Ain, 1855 (Mathieu n.29).
19. J.-F.Lyotard, La condition postmoderne, Paris, 1979, pp.q-20. 44. Paris, Musée d'Orsay, 1870 (RF 1249; exhibited work).
20. J.Derrida, Positions, Paris, 1972, PP.I09-I2I. 45. Paris, Musée d'Orsay, 1848, Salon OfI850-5I (RF 1942-31).
21. P.Darmon, La rumem de Rodez, Paris, 1991, cf. pp.222-230. 46. S.Freud, Malaise dans la cívilísation (Das Unbehagen in der Kul-
22. Paris, Prat collection (cat. exhib. 1991, n.I65 P.373, plate tur, 1929), trans. fr. Ch. etJ. Odier, Paris, 1971, P.93 and sq.
210 P.I3I). 47. J.-P.Sartre, L'idiot de lafamílle, III, Paris, 1972, P.447 and sq.
23. Cf. R.Michel, "Le nom de Géricault ou I'artn'a pas de sexe, 48. Besançon, Musée des Beaux-Arts et d'Archéologie (Gas-
mais ne parle que de ça," Géricault, R. MicheI (coord.), Paris, sier-Wilson, n.922-923).
1996, I, pp.I2-14. 49. G.Deleuze; F. Guattari, op. cit., pp.7-22; Mílle Plateaux.
24. See the two drawings exhibited here (Louvre, Rec. 30 and Capitalísme et schizophrénie 2, Paris, 1980, PP.I85-204.
31). 50. Madrid, Museo deI Prado (Gassier-Wilson n.I624). See
25. Paris, Musée duLouvre, Salon OfI769. drawing (exhibited) atMuseo del Prado (1797-1798, Gassier-
26. 1.Nochlin, "Géricault or the absence ofwomen," Géricault, Wilson n.635).
op. cit., PP.403-42I. Cf. R. Michel, Ioc. cit., PP.I4-2I

147 Século XIX Régis Michel


Genevieve Lacambre

Gustave Moreau: Hércules e


a Hidra de Lerna 1
Gustave Moreau possuía excelente cultura clássica e nada ignorava da mitologia greco-romana.
Numa época em que se impunha o realismo de Courbet, ele fez uma viagem de estudos à Itália,
que durou quase dois anos (de outubro de 1857 a setembro de 1859). Entre os artistas da Renas-
cença que o interessaram, Carpaccio, o qual pode ser somente estudado em Veneza, como indi-
cam os guias, atraiu particularmente sua atenção, pois ele copiou suas obras tanto nas galerias
da Academia quanto na Scuola dei Schiavoni. Foi lá que pintou, mantendo as proporções do
original, uma fiel e notável cópia da célebre tela Saint Georges et le dragon [São Jorge e o dragão].
Moreau estudou escrupulosamente, espalhados no chão, os despojos das vítimas do monstro-
crânios e diversas ossadas, mas também corpos recentemente mutilados, braços arrancados,
cabeça decepada. Ele se recorda desse fato nos diversos episódios da lenda de Hércules: Diomede
déuorés par ses cheuaux [Diomedes devorado porseus cavalos] (Salão de 1866, Musée de Beaux-Arts
de Rouen) e Hercule et I'Hydre de Leme [Hércules e a Hidra de Lerna] (Salão de 1876, The Art Institute
ofChicago), para o qual fez centenas de desenhos; além disso, são conservadas no Musée Gustave
Moreau várias versões em aquarela e a óleo.
A maior de todas, aqui exposta, é composta no sentido da largura e apresenta algumas
variantes, essencialmente na paisagem rochosa e na pose de Hércules, um joelho dobrado, numa
atitude de espera antes do combate. De fato, esse gesto foi mantido igualmente para a tela do
Salão-como o revela a radiografia feita em Chicago-, mas acabou sendo modificado, com a
perna esticada para trás. Em 1889, o crítico Paul Leprieur assim descrevia o quadro: "Proposi-
talmente ousado, é surpreendente o contraste entre o jovem deus-belo como uma mulher,
esbelto como Apolo, trazendo na cabeça a pele de um leão e um ramo de louro, cujo braço ape-
nas, armado com uma clava, robusto e musculoso, atesta o vigor físico-e o monstro assustador
que combaterá, reunião de todos os horrores, apoiado numa cauda gigantesca, na qual se
escalonam [ ... ] sete corpos de serpentes medon has [... ] Abaixo deles há um pântano fétido,
onde os cadáveres apodrecem empilhados, onde seres meio mortos, meio vivos, emergem, aqui
e ali, com expressões de condenados dignas de Dante".2
Nesse cara a cara que precede o combate, em que os protagonistas estão como que con-
gelados, o artista aplica um dos dois princípios de sua arte, o da "bela inércia". O estado de rela-
tivo inacabamento da versão exposta priva-nos da aplicação do princípio complementar, o da
"riqueza necessária". Na versão de Chicago, Moreau alcança uma extraordinária precisão docu-
mentai na representação das cabeças da Hidra, todas elas diferentes, estudadas a partir das
pranchas das melhores obras de zoólogos eruditos, o abade Bonnaterre (1790), Wagler (1833)
ou Cuvier (1836), que ele podia consultar no Museu de História Natural.
Hércules surge como um herói civilizador, encarregado de livrar a humanidade de sua sel-
vageria primitiva. Moreau estava bem informado sobre os diferentes relatos concernentes aos
trabalhos de Hércules. Havia até mesmo pensado em reagrupá-los em um políptico, que ele
realizaria sobre esmalte.

148 .XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Por ocasião do primeiro de seus "trabalhos"- mataro leão de Neméia-Hércules talhou
sua clava e, em seguida, cobriu-se com a pele mágica do animal, cuja cabeça lhe serviria daí por
diante de capacete. Em seguida, seu primo, o rei da Argólida, Euristeu, encarregou-o de matar a
Hidra. O monstro, filho de Equidna e de Tifão, criado por Hera Uuno), perto da fonte de Amimone,
nos pântanos de Lerna, destruía as colheitas e os rebanhos e, com seu hálito incandescente,
matava quem dele se aproximasse. Segundo os autores, ele podia ter cabeças humanas ou
cabeças de serpentes em número variável. Hércules o matou com flechas flamejantes, depois
cortou a última cabeça imortal e esmagou-a debaixo de um rochedo.
Em sua lista de "composições antigas e bíblicas", inscrita a partirde 1860 em seu Liure de
notes (rouge) [Livro de notas (vermelho)]3, Gustave Moreau havia descrito uma interpretação mora-
lizante, à maneira daquelas contidas na edição de 1660 das Métamorphoses [Metamorfoses] de
Ovídio, comentada por Pierre du Ryer, com o herói no calor da ação: "Hércules combatendo a
Gustave Moreau Hercule et I'Hydre de Lerne Hércules e a Hidra de Lerna [H ercu les and th e Hyd ra] c. 1870 óleo sobre tela [oi l
on canvas] 142 x168cm coleção Musée Gustave Moreau, Paris

149 Gustave Moreau Geneviéve Lacambre


Hidra, cabeças de jovens e encantadoras mulheres formam uma auréola em torno da cabeça de
Hércules, emblemas de vícios e paixões renascem incessantemente no coração do homem".
Mais adiante, na mesma lista, encontra·se uma abordagem pitoresca do tema: "Hércules em
busca da Hidra escondida entre plantas. Tarde. Gesto do caçador (familiar)". Um pequeno quadro
mostra, com efeito, Hércules à espreita4, chegando pela direita. Uma bela aquarela presenteada
à sua amiga Alexandrine Dureux e que voltou para o artistaS também mostra Hércules à direita,
correndo em direção a uma hidra com cabeça de serpente, com um corpo intumescido, no qual
estão enxertadas pequenas serpentes; ela é imensa, mantém·se verticalmente à esquerda da
composição, enquanto as vítimas estão estendidas no centro. Encontra·se a mesma evolução na
representação de Hercule au lac Stymphale [Hércules no lago Estínfalo]6, à direita e correndo, em
um esboço; no grande quadro ele está à esquerda, em atitude de espreita.
Antes de chegar a essa fixidez simbólica dos protagonistas, Moreau ainda conserva alguns
elementos narrativos na versão aqui apresentada, pois, atrás de Hércules, surge seu sobrinho
Lolau, que o ajudou, ativando o fogo destruidor.
No momento da guerra perdida de 1870-1871, a Hidra simbolizava, para os caricaturistas,
as forças do inimigo alemão, que renasciam sem cessar. Após os tumultos da Comuna de Paris,
ela tornou·se um símbolo da anarquia.
Moreau, que havia começado os estudos para seu grande quadro antes de 1870, não igno·
rava tais símbolos e confessava naturalmente, naqueles anos difíceis, que escolhia os temas em
função de suas reações à situação do momento (ele pouco confiava na república que nascia). No
entanto, a apresentação de Hércules e da Hidra, bem como as duas versões da história de Salomé,
Salomé dansant deuant Hérode [Salomé dançando diante de Herodes]? e L'Apparition [A aparição]8, não
suscitaram comentário político algum, no momento em que se realizava o Salão de 1876. O artista
trabalhava com muita lentidão em suas ambiciosas composições e a atualidade era mutável.
Em inúmeras pinturas, Moreau contrasta sem dificuldade as cenas de carnificina, imagens
da decadência, com a figura redentora do herói, como neste caso, ou do poeta, com em Les pré·
tendants [Os pretendentes]. Esta vasta tela quadrada, iniciada em 1852, no período crucial do fim
da Segunda República e do retorno à ordem, que acompanhou a ascensão de Luís Napoleão
Bonaparte, futuro Napoleão III, foi retomada porvolta de 1860, ampliada no final de 1882 e per·
maneceu inacabada até a morte do artista. Enquanto Ulisses, guiado por Minerva, mata com
suas flechas os Pretendentes, surpresos com seu retorno a ítaca, e cujos cadáveres acumulam·se
no primeiro plano, o centro da composição está reservado a um poeta com sua lira. A esse
respeito, observa o artista: "A poesia grega, a civilização grega, Homero. Apesarda narração do
fato brutal, da acumulação de fatos materiais e selvagens, sempre a idéia poética dominante,
no meio do sangue, dos gritos, das lágrimas, a lira, a lira, sempre a lira emerge e surge radiosa."9
Mostrar os corpos feridos, os corpos esquartejados, é, portanto, mostrar também o nasci·
mento da civilização. Geneuieue Lacambre. Traduzido do francês por Car/os Eugênio Marcondes de Moura.

1. Gustave Moreau (Paris, 1826-Paris, 1898), Hércules e a Hidra 5. Musée Gustave-Moreau, no gabinete do primeiro andar,
de Lema, óleo sobre tela, 142 x 168 cm, legada pelo artista ao Inv. '5506 (26x51 cm.).
Estado, 1898, aceita em 1902, Musée Gustave Moreau, Paris, 6.lbid., cato 264ecat. 85 (145x128cm).
Cat·34· 7. Los Angeles, Coleção Hammer.
2. Paul Leprieur, Gustaue Moreau et son oeuure, Paris, 1889, 8. Paris, Musée do Louvre, departamento de artes gráficas,
P·3 6 -37· acervo do Musée d'Orsay.
3. Musée Gustave-Moreau, Arq., GM 500, P.3. 9. L'assembleur de rêues, Escritos completos de Gustave Moreau,
4. Pierre-Louis Mathieu, Gustaue Moreau, sa uie, son oeuure, cata- prefácio de Jean Pa/adi/he, texto organizado e anotado por
logue raisonné de I'oeuure acheué, Fribourg, 1976, n.153, reimpres- Pierre-Louis Mathieu, Paris: Fontfroide, 1984, P.33.
são, Oxford: Phaidon, 1977. Este quadro voltou a surgir recen-
temente em um leilão na Christie's de Londres, em 16 dejunho
de 1995.

150 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Geneviêve Lacambre

Gustave Moreau: Hercules


and the Hydra 1

Gustave Moreau had an excelIent background in classical culture and knew everything there was
to know about Greco-Roman mythology. At a time when the realism of Courbet was at its most
influential, he made a voyage to study in ltaly that lasted almost two years, from October r857 to
September r859. Ofthe ltalian Renaissance artists that interested him, Carpaccio, whom one
can only study in Venice as the guidebooks indicate, in particular holds his attention, because he
copies his works both in the GalIeria delI 'Academia and San Giorgio degli Schiavoni. lt is there
that he paints, in the face ofthe grandeur ofthe original, a faithful and remarkable copy ofthe
celebrated St. George and the Dragon. There he scrupulously studies the remains ofthe monster's
victims-skulIs and various bones, but also freshly mutilated bodies, torn arms, decapitated
heads that are strewn across the ground. He recalIs various episodes in the legend ofHercules:
Díomede dévorés par ses chevaux [Diomedes devoured by his horses] (Salon of r866, Musée des
Beaux-Art de Rouen) and Hercule et l'Hydre de Leme [Hercules and the Hydra] (Salon of r876, The
Artlnstitute ofChicago), forwhich he made several hundred drawings. Manywatercolor and oil
versions of these are preserved at the Musée Gustave Moreau.
The largest one shown here is also the widest, and presents some variations, essentialIy in
the rocl<y landscape and in Hercules' s pose, with knee bent as ifwaiting for combato ln fact, this
gesture was also retained for the canvas shown at the Salon as the X-ray done in Chicago
reveals-butwas finalIy modified, the leg stretched out behind. ln r889, the critic Paul Leprieur
described the painting thus: "Striking and boldlywilled is the contrast between the young god-
beautiful as a woman, svelte as ApolIo, decked in the skin of a lion and a laurel branch whose arm,
furnished with a club, robust and muscled, alone attests to his physical vigor-and the forbid-
ding monster he will fight, replete with every horror, resting on a giant tail on which rise [... ]
seven bodies of hideous serpents [... ] Below them is a fetid swamp where the cadavers rot in
piles, where half-dead and half-alive beings emerge here and there with expressions worthy of
Dante's damned."2
ln this face-off that precedes the battle where the protagonists appear frozen, the artist
applies one oftwo principIes ofhis art, that of"beautiful inertia." The relatively unfinished state
of the version shown deprives us of the application of the complementary principIe, that of
"necessary richness." ln the version in Chicago, Moreau attains an extraordinary documentary

151 Gustave Moreau Geneviêve Lacambre


precision in the representation ofthe Hydra's heads, all different, studied from plates ofthe best
works by the learned zoologists Abbey Bonnaterre (r790), Wagler (r833), or Cuvier (r836) whom
he could consult in the museum of natural history.
Hercules indeed appears as a civilizing hero charged with freeing humanity from primitive
savagery. Moreau was certainly informed about different narratives concerning Hercules's
labors. He had even dreamed of gathering them in a polyptych to be done in enamel.
From the first ofhis "labors"-killing the Nemean lion-Hercules had carved his club,
then dressed himself in the magic pelt of the animal whose severed head served from then on as
a helmet. He was then charged by his cousin, Eurystheus, the king ofArgolis, with killing Hydra.
This monster, the progeny ofEchidna and Typhon, raised by Hera (Juno) near the source of
Amymone, in the Lernean marshes, destroyed harvests and herds and killed with his flaming
breath whomever approached. He can have, according to various authors, human heads or the
heads of serpents and their number varies. Hercules kills it with flaming arrows then cuts the
last immortal head and crushes it beneath a boulder.
ln his list of"ancient and biblical compositions" written from r860 on in his Livre de notes
(rouge) [Notebook (red)] , 3 Gustave Moreau had described a moralizing interpretation, in the man-
ner ofthose contained in his r660 edition ofOvid's Métamorphoses [Metamorphoses] annotated by
Pierredu Ryer, with the hero in the heat of action: "Hercules battling the Hydra, the heads of
young and charming women forming an aureole around Hercules's head, emblems ofthe vices,
passions unceasingly reborn in the heart of man." Further down, in the sarne list, one finds a
picturesque approach to the subject: "Hercules in search ofHydra hidden in the reeds. Evening.
The hunter's (familiar) gesture." A small painting does in fact show Hercules lying in wait,4
arriving from the right. A beautiful watercolor given to his friend Alexandrine Dureux and returned
to the artist, 5 also shows Hercules on the right, running in the direction of a serpent-headed
hydra, to whose swollen body little serpents have attached themselves. The monster is immense,
standing vertically to the left of the composition, while the victims are stretched out in the center.
One finds the sarne evolution in the representation ofHercule au lac Stymphale [Hercules at the
Lake ofStymphalus]:6 on the right and running in a sketch, to the left and at a standstill in the
large painting.
Before coming to this symbolic fixitywith his protagonists, Moreau retains a few narrative
elements in the version presented here. Behind Hercules appears his nephew Aeolus, who
helped him to start the destructive fire.
During the lost war of r870-7r, the Hydra symbolizes, for the caricaturists, the forces of
the German enemy unceasingly reborn. After the troubles of the Paris Commune, it becomes a
symbol of anarchy.
Moreau, who began his studies for his great painting before r870, was aware ofsuch symbols
and averred in those difficult years that he chose his subjects as a function ofhis reactions to the
situation ofthe moment (he had little confidence in the emerging republic). Nonetheless the
presentation of Hercules and the Hydra, like the two versions of the story of Salome, Salomé
dansant devant Hérode [Salomé dancing before Herod] 7 and rApparitíon [Apparition],8 elicited no
politicaI commentary when it was shown in the Salon of r876. The artist worked too slowly on
his ambitious compositions and the cultural climate had changed.
ln numerous paintings, Moreau juxtaposes scenes of carnage, images of decadence with
the redemptive figure ofthe hero, as he does here, or ofthe poet, as in Les prétendants [The suitors].
This vast squared painting begun in r852, during the crucial period of the end of the second
Republic and the return to order that accom panied the ascension of Louis N apoleon Bonaparte,

152 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


the future Napoleon III, to the throne, was taken up again around 1860, enlarged at the end of
1882, and left unfinished upon the artist's death. While Ulysses, guided by Minerva, kills the
suitors, surprised by his return to Ithaca, with his arrows, their bodies accumulating in the fore·
ground, the center of the composition is reserved for a poet with a lyre. ln this regard, the artist
notes: "Greek poetry, Greek civilization, Homer. Despite the narrative ofthe brutal fact, the piling
up of materiaIs and savage facts, the poetic idea always dominates in the midst ofblood, of cries,
of tears, the lyre, the lyre, always the lyre emerges and appears radiant."9
Thus, to show wounded bodies, bodies torn limb from limb, is to show the birth of civi·
lization. Genevieve Lacambre. Translatedfrom the Prench by Sheíla Paria Glaser.

L Gustave Moreau (Paris, 1826-Paris, 1898), Hercules and the 5. Musée Gustave-Moreau, in the boudoir on the first fIoor,
Hydra, oH on canvas, 142x168cm, legacy ofthe artist to the inv. 15506 (26x51cm).
State, 1898, accepted in 1902, Musée Gustave Moreau, Paris, 6. Ibid, cato 264 and cato 85 (r45 x 128 cm).
Cat·34· 7. Los Angeles, Hammer collection.
2. Paul Leprieur, Gustave Moreau et son ouevre, Paris, 1889, pp. 8. Paris, Musée du Louvre, department ofgraphic arts, collec-
3 6-37. tion of the Musée d'Orsay.
3. Musée Gustave-Moreau, Arch. GM 500, P.3. 9. L'assembleur des rêves. Écrits complets de Gustave Moreau, preface
4. Pierre-Louis Mathieu, Gustave Moreau, Gustave Moreau, sa víe, by Jean Paladilhe, edited and annotated by Pierre-Louis Math-
son oeuvre, catalogue raísonné de l'oeuvre achevé, Fribourg, 1976, n. ieu, Paris: Fontfroide, 1984, P.33.
153, reprint. Oxford: Phaidon, 1977. This canvas reappeared
recently in a sale at Christie's in London, on 16 June 1995.

153 Gustave Moreau Geneviêve Lacambre


Claudie Judrin

Rodin e a fome
Rodin era um homem de apetite, "um espírito sedento".1 De seu corpo emanava um sentimento
de extraordinária força. Mas, como ele mesmo confessa, viveu na precariedade até os cinqüenta
anos e conheceu as cores desbotadas da pobreza. "Eu me lembro de minha mocidade, em que
sempre tinha fome. Quando alguém me convidava, era incrível o que eu comia."2 Desses
momentos difíceis lhe ficará o gosto pelos frutos da terra e a persistente predileção pela sopa de
repolho e toucinho de sua companheira Rose Beuret. Ele manifesta o apetite característico do
homem que na juventude, e até mesmo na maturidade, não comeu o que sua fome exigia.
Camille Claudel, amante possessiva, chega ao ponto de lhe censurar os excessos de comida
daqueles malditos jantares com o maldito mundo que ela detesta. 3 Como é que se chega
a gostar do trabalho com tanta "ferocidade".4 Além de uma constituição sólida recebida dos
pais, ele tenta suprir as carências de uma educação incompleta, já que aos dezessete anos
foi obrigado a trabalhar para ganhar a vida. Disso sua obra é a prova; disso os objetos que cole-
cionou, a paixão.
Por intermédio de Dante, Rodin toca não em um mito, mas em um caso sensacionalista
dos mais sórdidos.
O conde Ugolino S della Gherardesca viveu na Itália, no século XIII, e por haver mudado de
lado, um gibelino de família que se tornara guelfo por interesse, foi acusado de traição pelo
arcebispo de Pisa, Ruggiero degli Ubaldini. Condenado a morrer de fome, o tirano foi encerrado
com dois de seus filhos e dois de seus netos em uma torre da cidade de Pisa, à qual depois se
deu o nome de "Torre da Fome". Dante, que conhecera um outro neto de Ugolino, encontra o
conde no nono círculo do Inferno, no último canto de O inferno, pouco antes de sair da terra dos
mortos. Lápis na mão, Rodin segue passo a passo o texto de Dante, que inclusive anota no
papel; seus desenhos ilustram uma espécie de drama em quatro atos, que se desenrolam em
uma semana e obedecem às regras-de unidade de tempo e lugar-do teatro clássico.
Uma refeição monstruosa é o início e o fim de tudo. Dante e, atrás de si, Rodin assistem à
refeição de Ugolino, observando "dois desgraçados confinados à mesma vala, de tal modo que
a cabeça do primeiro sobrepujava e cobria a cabeça do segundo: mas aquele que prevalecia afer-
rava-se ao outro e Ihe devorava o crân io e o rosto, como um homem esfai mado devora seu pão". 6
Ugolino é condenado ajamais saciar sua vingança e devorar seu carrasco, o arcebispo Ruggiero.

154 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Um primeiro desenho mostra Ugolino com um pé sobre o inimigo, num movimento ao
mesmo tempo inqu.ieto e vitorioso. Foi escolhido para ornamentar o programa de uma peça em
cinco atos de François de Curei, le repas du lion [A refeição do leão], representada em Paris, no
teatro Antoine, em 26 de novembro de 1897. Trata-se de um drama metafórico revolucionário
em que "para que aos chacais fiquem os restos, primeiro é necessário que o leão tenha satisfeito
seu apetite".
Um segundo desenho põe em cena o corpo-a-corpo entre os dois homens. O drama é
banhado em correntes de tinta e guache que em parte escondem a inscrição: "Ugolino, em meio
à sua refeição, interrompe-a para responder a Dante". Impregnado pela leitura de Baudelaire,
Rodi n acrescenta, abaixo, bem a propósito: "du sang que nous perdons croit etse fortifie" [no sangue
que perdemos se enraíza e viça],7 verso do poema "O inimigo", que começa assim: "O douleur! ô
douleur! le Temps mange la uie.fEt I'obscur ennemi qui nous ronge le creur" [Ó dor! O Tempo faz da vida
uma carniça, e o sombrio inimigo que nos rói as rosas].
Numerosos desenhos ilustram a narrativa do primeiro dia do encarceramento de Ugolino,
quando o pai abraça estreitamente os filhos; e o medo deles ao ouvirem as portas da prisão
serem muradas; depois a aflição do pai que, transportado, enfurecido de dor, morde os braços.
No segundo dia de jejum, os filhos rodeiam o pai para lhe pedir que tome de volta essas carnes
que lhes havia dado, as carnes de seus próprios corpos. O quarto dia vê a morte do filho mais
novo, pois é sabido que, ante a provação das guerras e privações, as criatu ras mais jovens são as
primeiras a sucumbir: "assim os vi tombar um a um, todos os três, entre o quinto e o sexto dia:
de sorte que, já nada enxergando, atirei-me urrando e rastejando sobre aqueles corpos inani-
mados; chamando-os dois dias depois de morrerem e ainda tornando a chamá-los até que a
fome extinguisse em mim aquilo que a dor havia poupado". E é aí que vem o sacrilégio-
Ugolino devora os filhos para lhes conservar um pai. Éa lei do mais forte, é a fome do mais forte,
é o Bicho-Papão diante do Pequeno Polegar.
Mais audacioso que Carpeaux, Rodin não hesita em esculpiro seu Ugolin [Ugolino] com
quatro patas, na postura da fera. No entanto, por alguma espécie de pudor fundamental, não
Auguste Rodin Cerbere dévorant un homme Cérbero devorando um homem [Cerberus devouring a man] s.d. carvão e tinta sobre
papel [charcoal and ink on pape r] 13,7x21,3cm coleção Musée Rodin, Paris cortesia Musée Rodin ADAGP, Paris

155 Auguste Rodin Claudie Judrin


chega ao ato de canibalismo. Goya fora bem além, ao ousar pintar a refeição monstruosa em
toda sua crueza, mas é verdade que escolhera a irrealidade de uma cena mitológica, com seu
Saturne [Saturno], hoje no Museo dei Prado.
Ao longo da vida, Rodin foi atraído pela fábula antiga, pelo mito. Na época em que Ugolino
lhe ocupava os pensamentos, e até mesmo mais tarde, gostava de misturar a história de Ugolino
com a de Medéia. Desenhou um homem de barbas, sentado, que batizou de Saturno (fig. 1).
Encontramos a mesma divindade engolindo os filhos, membro a membro, nos moldes entalhados
que ele comprava, coisa que numerosos artistas de seu tempo também faziam (figs. 2 e 3).
Transformou o desenho de uma mulher num Cerbere [Cérbero] de três fauces (fig. 4), com quem
havia cruzado na esteira de Dante, à entrada dos Infernos (fig. 5).
Inspiraram-no as narrativas de Homero. Desenhou Ulisses diversas vezes e esculpiu um
Polypheme [Polifemo] debruçado sobre o rochedo que abriga os amores do pastor Acis com a
nereida Galatéia. Os críticos sabiam-no impregnado de lendas, e Paul Gsell dele dizia que
"comia e bebia como Polifemo (fig. 6), embora sempre mantivesse a mais lúcida inteligência".8
Para não abandonar os miasmas das trevas, esculpiu um Succube [Súcubo] na postura da
Esfinge que devorava todos os que passavam porTebas e não lhe sabiam responderos enigmas.
É preciso reconhecer aí o demônio-fêmea "esverdeado" de la muse malade [A musa doente]
de Baudelaire, que aos olhos de Rodin era a versão moderna de Dante.
Haverá luta mais bela, mais belo corpo-a-:-corpo que esse desenho de dois homens de
musculatura digna de Michelângelo, que se encarniçam em sinistro combate? Em sua ilus-
tração das Flores do mal,9 Rodin os colocajunto ao poema la destruction [A destruição], posto que
seu comentário se aplica aos versos de Causerie [Conversa]: "On s'y soule, on s'y tue, on s'y prend aux
cheueux" [Aqui nos saciamos, aqui nos matamos, aqui nos pegamos pelos cabelos].
Baudelaire ainda está presente num desenho de Rodin em que se acham anotadas as
palavras spleen e uampire. Uma mulher sentada parece ter-se saciado do corpo de uma mulher
recostada. Será que o desenhista assim se faz cúmplice do poeta que escreve em "O Heautonti-
morou menos": ''je suis de mon CCEur le uampire" [De meu coração sou o vampiro]?
Um pintor ou um escultor, de qualquer época, mesmo da nossa, serve-se de um outro
artista para fazer sua fortuna. Logo que Rodin sai da necessidade, para cair na glória, passa a
acumulare colecionartoda sorte de objetos (cujo número chega a mais de sete mil) de origens
bem diversas, os quais usa ao saborda inspiração. No centro da mesa de sua sala de jantar, na
ui lia des Brillants, em Meudon, não hesita em colocar um mármore antigo que lhe dá prazer admi-
rar durante as refeições. É à luz dessa influência, desse gosto pela utilidade, que devemos ver
cada uma dessas aquisições que constituem outras tantas manifestações de apropriação e de
fome do outro. A regra do conhecimento é saber digerir uma substância e saber fazer de um
empréstimo uma invenção.
ClaudieJudrin. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. Henri Dujardin-Beaumetz, Entretiens auec Rodin, Paris, 1913, 6. As citações do Inferno são as que Rodin lera na tradução de
p.112. Rivarol, de 1785.
2. Antoine Bourdelle, La sculpture et Rodin, 1937, p.213. 7. Cf. Charles Baudelaire, As ~ores do mal (edição bilíngüe),
3. Carta de Camille Claudel a Auguste Rodin, Inv. Ma.108. introdução, tradução e notas de Ivan Junqueira, Rio deJaneiro:
Arquivos do Museu Rodin. Nova Fronteira, 2a • ed., 1985, P.130-131.
4. Gustave Coquiot, Rodin à I'hôtel Biron et à Meudon, Paris: 1917, 8. Paul Gsell, "Auguste Rodin", La reuue de Paris, 15 dejaneiro
P·25· de 1918, P-404.
5. ClaudieJudrin, Ugolin, catálogo de exposição, Paris: Musée 9. Charles Baudelaire, Vingt-cinq poemes des Fleurs du mal illustrés
Rodin, 1982, dossiê 2. par Rodin, Paris: La Société des Amis du Livre Moderne, 1918.

156 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Claudie Judrin

Rodin and hunger

Rodin was a man of appetites, an "avid mind." 1 A feeling of extraordinary power emanated from
his body. But, by his own admission, he also lived precariously until the age offifty and knew the
pallid colors of poverty. "I remember my younger days when I was always hungry. When some-
one invited me, it's incredible what I ate." 2 These difficult times left him with a taste for the
fruits ofthe earth, and he always showed a preference for the cabbage and bacon soup ofhis
life partner, Rose Beuret. He manifested the appetite of a man who, in his youth and even in
his mature years, did not get his filI. Camille Claudel, a possessive mistress, went so far as to
reproach him for the excessive amount of food at his damned dinners with the damned high
society she despised. 3 How does one come to love work so "ferociously"?4 He inherited a solid
constitution from his parents, and moreover, tried to fill in the gaps ofhis education, left incom-
plete because he had had to earn a living at seventeen. His oeuvre was the proof of that fierce
love; and his collection was his passion.
Through Dante, Rodin dealt, not with a myth, but with an extremely sordid little incident.
Count Ugolino S della Gherardesca lived in Italy in the thirteenth century and, because he
changed camps, because he was a ghibeline by virtue ofhis familyand became a guelf out of self-
interest, he was accused of treason by Ruggiero degli Ubaldini, archbishop ofPisa. Condemned
to starve to death, the tyrant was locked up with two ofhis sons and two ofhis grandsons in a
Pisa tower, which carne to be known as the "Tower ofHunger." ln the last cantos ofThe inferno,
Dante, who knew another ofUgolino's grandsons, comes upon the count in the ninth eircle of
Hell, before leaving the land ofthe dead. Rodin followed Dante's text, step by step and peneil in
hand, consigning it to paper: his drawings illustrate a kind of tragedy in four acts, which take place
within a single week and obey the rules of classical theater regarding the unity oftime and place.
Auguste Rodin Cerbere Cérbero [Cerberus] s.d. grafite e aquarela sobre papel [penei I and watercolor on pape r] 25x32,7cm
coleção Musée Rodin, Paris cortesia Musée Rodin ADAGP, Paris

157 Auguste Rodin Claudie Judrin


Everything begins and ends with a monstrous meal. Dante, with Rodin behind him, is wit-
ness to Ugolino's acto The two of them see "two shades frozen in a single hole/-Packed so
dose, one head hooded the other;/The way the starving devour their bread, the soul/Above had
denched the otherwith his teeth where the brain meets the nape" (32:r24-28).6 Ugolino is con-
demned never to satisfY his vengeance and to devour his tormentor, Archbishop Ruggiero.
A first drawing depicts Ugolino in a gesture both uneasy and triumphant, with a foot on his
enemy. 1t was chosen to illustrate the program of a five-act play by François de CureI, Le repas du
lion [The lion's meal] , which was performed in Paris at the Antoine Theater on 26 November
r897. Curel's play is a metaphorical drama of revolution, in which "for jackals to have leftovers,
the lion must first have satisfied his appetite."
A second drawing depicts the two men locked in struggle. The dramatic scene is covered
with flowing ink and gouache, which partly mask the inscription: "Ugolino making his cruel
meal interrupts it to reply to Dante." Rodin, imbued with Baudelaire's poetry, adds the fallowing,
very much to the point, beneath the first inscription "du sang que nous perdons croít et sefortifíe." [Who
gnaws aur hearts and fattens on our blaadF. This is a line ofI:ennemí [The enemy], from a stanza
that begins: "O douleur! ô douleur! Le temps mange la víe,/Et l'obscur ennemí quí nous ronge le coeur." [O
grief! O grief! How time devours our life/The hidden foe who conquers without strife].
Many drawings illustrate the story ofUgolino's first day in prison, when the father holds
his children tight; their terrorwhen the prison doors are sealed up, then the father's distress when,
beside himselfwith sorrow, out ofhis mind, he bites his own arms. On the second day of fasting,
the sons surround their father to beg him to take back the bodies he gave them. On the fourth
day, the littlest child dies, since it is well known that in ordeals ofwar and privation, the youngest
are the first victims: "I watched the others fall till all were dead,/Between the fifth day and the
sixth: And 1,/Already going blind, groped over my broad-/Calling to them, though I had watched
them die,/For two long days. And then the hunger had more/Power than ever sorrow had over
me." 1t is then that the sacrilege occurs. Ugolino devours his children to keep their father alive.
1t is the law of the jungle, the reign of the greatest hunger-the ogre confronting Tom Thumb.
Radin, more daring than Carpeaux, does not hesitate to sculpt his Ugolin [Ugolino] in the
attitude of a beast, on all fours; but, out of a fundamental sense of propriety, he does not go so
far as to depict the act of cannibalism. Goya had gone much further, daring to paint the monstrous
meal in all its cruelty, though, in his Saturne [Saturn], now in the Museo del Prado, he chose the
unreality of a mythological scene.
Throughout his !ife, Rodin was attracted to dassical fables, to myths. During the period
when Ugolino occupied his thoughts, and even later, he easily combined the story ofUgolino
and that ofMedea. He drew a seated man with beard and baptized him Saturn (fig. r). One finds
the sarne god swallowing his children limb by limb on intaglio moldings Rodin purchased, like
many artists ofhis time (figs. 2 and 3). He transformed the drawing of a woman into the three-
headed Cerbere [Cerberus], which he had come across in Dante, at the entrance to Hell (fig. 5).
Homer's narratives inspired him. He drew Odysseus several times and sculpted a Polypheme
[Polyphemus] leaning over the rock that concealed the amorous encounters between the shep-
herd Acis and his nymph, Galatea. Critics knew he was imbued with legends, and Paul Gsell said
"he ate and drank like Polyphemus (fig. 6) and always displayed the most lucid intelligence."8
Still within the mias mas of darkness, he sculpted a Succube [Succubus] in the attitude ofthe
Sphinx devouring all those who passed by Thebes and did not know the answer to its riddles.
This succubus must be the "green-hued" female demon in Baudelaire's La muse mala de
[Ailing Muse]; in Rodin's view, Baudelaire was the modern version ofDante.

158 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Is there a more beautiful depiction of struggle, of a hand-to-hand fight, than his drawing
of two men, their musculature worthyofMichelangelo, locked in sinister combat? Rodin put them
in his illustration of the The jIowers of evíl, 9 facing the poem La destruction [The destruction], though
his commentaryapplies to a line from Causerie [Discourse]: "On s'y soúle, on s'y tue, on s'y prend
aux cheveux." [Here we satiate, here we kill, here we pull each other's hairs out].
Baudelaire is again present in a Rodin drawing annotated spleen and vampire. A seated woman
seems to have satisfied her hunger on the overturned body of another woman. Has the artist
beco me the accomplice ofthe poet, who writes in Heautontimoroumenos: "]e suis de mon coeur le vam-
pire" [Am I the vampire of my gore]?
ln every era, even our own, a painter or sculptor will use another artist to make manna for
himself. As soon as Rodin escaped want and attained glory, he amassed and collected all sorts of
objects (more than seven thousand have been counted) of very diverse origins, which he put to
use as inspiration struck him. ln the villa ofLes Brillants in Meudon, he even placed an antique
marble in the center ofhis dining room table, where he liked to admire it as he ate his meals. It
is in the light of this influence, this pursuit of personal gain, that one ought to consider each
ofhis acquisitions-so many signs ofhis hunger, ofhis appropriation ofthe other. The key to
knowledge lies in understanding how to digest a substance, how to make a new invention from
something borrowed. Claudie ]udrin. Translated from the Prench by Jane Marie Todd.

1. Henri Dujardin-Beaumetz, Entretiens avec Rodin, Paris, 1913, Straus, and Giroux, 1994. Rodin had read the French transla-
p.II2. tion by Rivarol (178S).
2. Antoine Bourdelle, La sculpture de Rodin, 1937, p.213. 7. Translations of Baudelaire are from The jIowers of evíl and
3. Letter from Camille Claudel to Auguste Rodin, Inv. Ms. 108, Paris spleen: poems by Charles Baudelaire, trans. William H. Cros-
archives of the Musée Rodin. by Rochester, New York: BOA Editions, 1991-J.M.T.
4. Gustave Coquiot, Rodin à l'hôtel Biron et à Meudon, Paris, 1917, 8. Paul Gsell, "Auguste Rodin," La revue de Paris, IS January
P·2S· 19 18 , P·404·
S. Claudie Judrin, Ugolín, exhibition catalog, Paris: Musée 9. Charles Baudelaire, Vingt-cínq poemes desjIeurs du mal íllustrés
Rodin, 1982, dossier 2. par Rodin, Paris: La Société des Amis du Livre Moderne, 1918.
6. The inferno ofDante, trans. Robert Pinsky, New York: Farrar,
anônimo [anonymous] Saturne dévorant ses enfants Saturno devorando seus filhos [Saturn devouring his children] século XIX
[century] moldagem de entalhe em gesso [sunken relief molding in plaster] 3,9x4,6xO,8cm coleção Musé Rodin-Collection
des Antiques, Paris cortesia Musée Rodin foto Luc e Laia Joubert

159 Auguste Rodin Claudie Judrin


curadoria Pieter Th. Tjabbes

Van Gogh em São Paulo


A vida e obra de Vincentvan Gogh (1853-1890) pertencem à nossa herança comum. Encantam-
nos tanto a qualidade da obra quanto o curso dramático dessa vida, que a riqueza da correspon-
dência de van Gogh revela até os mínimos detalhes. Ele se tornou o protótipo do artista
moderno e, bem ao contrário de seus predecessores, um modelo consumado de desregramento
social e extrema solidão. Vincent tinha uma visão inteiramente diferente de seu papel como
artista: almejava atuarcomo parte integrante da sociedade. Suas cartas refletem esforços cons-
tantes para definir e defender esse papel. De forma alguma ele era tão completamente desco-
nhecido e incompreendido quanto os biógrafos gostam de enfatizar. Vários artistas negociavam
obras com ele ou prezavam sua contribuição para o surgimento da arte moderna: "Quem nos
representa nas formas e cores, retratando o ardor, a essência do século XIX, a reanimação da
grandeza? [... ] Conheço um indivíduo assim, um pioneiro solitário; luta sozinho na calada da
noite; seu nome, Vincent, é para as gerações futuras".' As obras que produziu durante pouco
mais de dois anos, em Arles, Saint-Rémy e Auvers, são de longe as favoritas do público, como
comprova sua freqüência nas exposições nos museus. Essa preferência também transparece no
Museu de Arte de São Paulo, cuja coleção compreende quatro obras de Vincent van Gogh, todas
dos dois últimos anos de sua vida. A mostra Vincent van Gogh, parte do Núcleo Histórico da
XXIV Bienal de São Paulo, foi montada visando colocar essas quatro obras numa perspectiva
mais ampla, realçando assim também a obra mais antiga do artista.
Ele foi um pintorde sua época, isto é, um realista, mas também um exemplo do renasci-
mento do romanticismo do norte da Europa. Rosenblum afirmou que o próprio fato de a arte
dele estar tão intrinsecamente relacionada às suas experiências não-artísticas-a busca por
valores religiosos, os esforços para penetrar com os olhos e sentimentos os mistérios do lugar-
comum, quer de pessoas, de coisas, quer da natureza-o distingue de seus contemporâneos
franceses 2 •
De um lado, Vincent sempre questionou sua técnica; de outro, as cartas ao irmão Theo reve-
lam que ele via a si mesmo como uma força na história da arte. Atesta essa visão a constância
com que ele classificava sua obra como "estudos" e "pinturas", sendo que as "pinturas" cons-
tituíam pequeníssima minoria. A insegurança de Vincent quanto à própria técnica foi uma das
razões de ele relutarem pintar com a imaginação, em trabalhar sem um modelo.

Apropriação
Identificamos a antropofagia na obra de Vincent ao constatar que freqüentemente ele usava
como guia a composição da obra de outro artista, sem copiá-Ia às cegas. Millet, o "pintor de
agricultores", foi indubitavelmente o artista que ele mais copiou, muito embora as pinceladas
e o uso das cores sejam inequivocamente de van Gogh. "Percebendo o valor, a originalidade e a

160 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


superioridade de Delacroix e de Millet, porexemplo, sinto que preciso desses artistas como base
para extrair o melhor de minhas modestas capacidades."3 Por sua vez, muitos artistas são seus
devedores: a obra e o cu rso dramático da vida de Vi ncent têm sido constante fonte de inspi ração.
Gauguin, os fauvistas, Mondrian, Sluijters e os expressionistas alemães, todos eles aprenderam
com sua obra.
Sabe-se que ele vendeu muito poucos trabalhos durante sua vida. Mesmo assim, foi capaz
de continuar produzindo arte, apesar da contínua ameaça de pobreza, em virtude da mesada
que recebia do irmão, Theo. Suas cartas ao irmão são profusas em referências a dinheiro. A
mesada Ihe ti rava um pouco a necessidade de vender as obras. Houve casos em q ue Vi ncent até
se recusou a vender, porque preferia manter juntas determinadas obras. Surpreendentemente,
Theo, ele próprio um marchand, parece ter feito pouq uíssi mo esforço para vender ou mesmo
Passeio ao crepúsculo [Walk at dusk] 1890 óleo sobre tela [oil on canvas] 49,5x45,5cm coleção Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand foto Roberto Neves

161 Vincent van Gogh Pieter Th . Tjabbes


expor o trabalho de Vincent. Amor e ódio parecem ter marcado o relacionamento entre os dois
irmãos, com o Vincent artista sendo canibalizado pelo irmão. Ao fornecer a Vincent quantias
muito variáveis (provavelmente por causa dos próprios problemas financeiros), Theo o tornou
completamente dependente de si. O artista logo reconheceu que todos os seus trabalhos per-
tenciam basicamente a Theo, que não parece tertido muita .dificuldade em aceitar tal submissão.
Essa dependência de Vincent em relação a seu irmão era mais do que financeira: em suas car-
tas, tentou repetidas vezes explicar e justificar seu modo de vida. A única maneira pela qual
exprimia críticas à excessiva dependência para com o irmão era pelas constantes observações
quanto ao montante ou à falta dos pagamentos de Theo. Raramente Vincent insistiu com Theo
para que fizesse mais a fim de difundir seu trabalho. Os dois irmãos permaneceram uma
unidade autônoma, de um lado caracterizada pelo relacionamento artista-comprador/patrono
e, de outro, pela dominação nociva que Theo exercia. De vez em quando, este parecia identifi-
car-se com o Vincent artista e realizar, mediante o controle da vida e obra de Vincent, as aspi-
rações artísticas que ele próprio tinha-reprimidas em virtude da necessidade econômica de
trabal har para um marchand. Como para confi rmar essa idéia, Theo morreu seis meses após o
suicídio do irmão.

Cor e emoção
Vincent acreditava muito no significado emocional das cores: escrevendo sobre a pintura Café
noturno (1888): "Tentei expressar por meio do vermelho e do verde as terríveis paixões da
humanidade. Há, em toda parte, choque e contraste dos vermelhos e verdes mais díspares nas
figuras dos desordeiros adormecidos, na sala vazia, lúgubre, violeta e azul".4 Mas, também nos
primeiros trabalhos de Vincent, a cor tinha um significado simbólico, como nos retratos de
agricultores: "Pintei-os da corde uma batata (obviamente ainda com casca) coberta de terra.
Montes de feno perto de fazenda [Haystacks near a farm ] 1888 caneta sobre papel [pen on paper] 24,1 x31 ,5cm coleção
Szépmüvészeti Museum, Budapeste
Desgastado [Worn out] 1881 lápis, aguada de nanquim [penci l, ink wash] 23,5x31cm coleção Stichting P. en N. de Çloer, Amsterdã
foto Pieter de Vri es

162 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofagia e Hi stórias de Canibalismos


Ao fazer isso, percebo que já se disse o mesmo dos agricultores pintados por Millet: 'que parecem
ter sido pintados com a terra em que plantam"'.s Em 1885, van Gogh até teve aulas de piano a
fim de aprender as nuances da escala cromática e comparar as notas do piano com as cores.
Vincent reconhecia o problema de casar as cores de seus temas com os pigmentos de que
dispunha: "Não deveria eu supor que um pintor devesse partir das cores de sua paleta, do que
das cores da natureza?"6 A leitura da Grammaire des arts du dessin [Gramática das artes do desenho]
(1867), de Blanc, e o contato com o impressionismo em Paris, em 1886, estimularam-no a reorga-
nizar sua composição cromática. O princípio da complementaridade considera como aliadas
vitoriosas as cores quando justapostas em estado puro, mas inimigas mortais quando mistu-
radas. Os primeiros sinais dessas idéias aparecem em Hortas em Montmartre (1887).
O uso que Vincent fez da cor também foi profundamente influenciado pelas xilogravuras
japonesas Ukyie-o: as composições e superfícies monocromáticas que realçam essa qualidade
bidimensional são discerníveis em sua obra. Vincent idealizou o espírito comunitário japonês e
muitas vezes definiu a própria estada em Arles como a situação que mais o aproximava do
Japão. Aí ele também tentou realizar sua utopia a respeito de uma colônia de artistas. Em Arles,
Vincent usou cores intensas, altamente expressivas, que refletiam sua fé em "um mundo novo,
confiante numa ressurreição grandiosa da arte".7 No entanto, depois do fracasso de sua colabo-
ração com Gauguin, seu otimismo desvaneceu-se: "Embora ao longe eu perceba uma forma
nova de pintura, não sou capaz de realizá-la".8

Retratos
Os retratos sempre fascinaram Vincent, que produziu muitos de si mesmo. De um lado, a moti-
vação pode ter sido de ordem financeira (os modelos teriam exigido pagamento). De outro lado,
ele pode simplesmente ter visto em si mesmo o modelo mais eficaz. A apreciação dos auto-
retratos como um conjunto revela grande diversidade de técnicas e expressão: aparentemente,
ele os via como uma oportunidade para experimentação. Considerava-os desafiadores: "Dizem
que é difícil conhecer a si mesmo-no que estou bastante disposto a acreditar-, mas pintar a
si mesmo também não é fácil".9 Geralmente, os retratos dos outros serviam para transmitir

163 Vincent van Gogh Pieter Th. Tjabbes


valores e sentimentos genéricos, em vez do próprio indivíduo retratado. Escrevendo a respeito de
Sien, uma prostituta com quem viveu algum tempo: "A meus olhos ela é bonita, e nela encontro
exatamente o que quero; sua vida tem sido dura, mágoa e adversidade deixaram nela suas
marcas e, portanto, agora posso fazer alguma coisa com ela. Quando a terra não está arada,
dela não se tira colheita alguma. Pois essa mulher foi arada-e assim nela encontro mais do
que numa multidão de mulheres não cultivadas".lO Os primeiros trabalhos de Vincent refletiam
um realismo imbuído de preocupação social; queria retratar a vida dos camponeses, por mais
dura e difícil que fosse. Queria pintar homens e mulheres dotados de qualidades eternas. Esse
sentimento pode também ter sido representado no retrato A arlesiana (1890), no qual procurou
uma expressão que remetesse a Millet: "Ah Millet! Millet! Ele pintou a humanidade e essa enti-
dade lá em cima ('quelque chose là-haut') de uma maneira familiar mas solene"." No retrato
de Armand Roulin (1889), de casaco azul-escuro contra um fundo de relva verde, as camadas de
tinta superpostas demonstram o intento original de uma dicotomia em faixas horizontais, o que
associa o arranjo dessa versão àquela do irmão mais jovem, Camille Roulin. O fundo monocro-
mático dessas obras reflete a influência das xilogravuras japonesas.

Paisagens e emoção
As obras mais antigas de Vincent contêm elementos do simbolismo, como Paisagem de outono ao
anoitecer (1885). Uma vez que procurava o sobrenatural na natureza, o modo de usar a luz, quer
solar, lunar, ou artificial, tinha mais a vercom a luz mágica de Friedrich e Turnerdo que com a luz
examinada empiricamente de seus contemporâneos. Tal uso da iluminação como mensageira
da emoção torna a vir à tona nos últimos trabalhos de Vincent, cujo amor pelo campo também
tinha qualidade religiosa: "A saudade desse espaço infinito simbolizado pelo plantadore pelos
feixes de trigo ainda me delicia. Vejo na natureza, nas árvores por exemplo, expressão, como se

164 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


a natureza fosse uma alma"12, comoexemplificado no desenhoJardim da paróquia (1884). Embora
sempre baseasse seus trabalhos em cenas reais, escreveu: "Isso não me impede de ter uma
necessidade terrível-será que direi a palavra?- de religião. Então saio à noite para pintar as
estrelas [... ]".13 Para Vincent, o céu noturno era fonte de uma das mais apaixonantes metáforas
dos mistérios do universo. Terá ele pretendido que assim fosse interpretado o Passeio ao crepúsculo
(1890)? Será que os ciprestes simbolizam a morte, e será o céu o símbolo de uma ressurreição
apocalíptica?
As paisagens também se prestam a uma interpretação diferente, mais pessoal. Espelham
a ai ma tortu rada de Vi ncent, refletem-I he a esperança e as depressões. Esse papel se tornou
cada vez mais evidente a partirde sua internação no asilo de Saint-Rémy. O Banco de pedra nojardim
do asilo (1889), com sua ausênciá de horizonte e foco num espaço limitado, transmite sua sen-
sação de solidão e confinamento. Vincent descreveu o próprio estado mental em termos muito
visuais: "É estranho que toda vez que tento raciocinar, dar conta da razão por que estou aqui,
fique tomado de terrível aversão e medo que me impedem de pensar. É verdade que isso tem
uma tendência de diminuir um pouco, mas parece provar que meu cérebro sofre de um distúrbio
qualquer; desse modo, fico assustado a ponto de sentir medo por nada e não ser capaz de me
lem brar de coi sa algu ma". 14

Autodestru ição
Avida de Vincentvan Gogh caracterizou-se por traços que a psicanálise conhece por "autocaniba-
lismo". Primeiro, em seu estilo de vida espartano, os cuidados individuais ficaram subordinados
à esquerda [Ieft) Paisagem de outono ao anoitecer [Autumn landscape at dusk) 1885 óleo sobre tela [oi l on canvas) 53,3x92,6cm
coleção Centraal Museum, Utretch
acima [above) Jardim da paróquia [Parsonage garden) 1884 caneta sobre papel [pen on pape r) 51,5 x 38cm Stedelijk Museum,
Amsterdã

165 Vincent van Gogh Pi eter Th . Tjabbes


à produção artística. Vincent comia mal, dormia pouco e, em certas épocas da vida, bebia em
excesso. As cartas revelam que tinha consciência dos prejuízos físicos daí resultantes, o que lhe
parecia conseqüência inevitável e lógica de buscar a produção de um conjunto de obras coeso,
destinado a estimular a arte. Repetidas vezes, deu a entender que não esperava viver muito e,
por isso, queria investir toda a energia no trabalho. A automutilação infame, quando cortou o
lóbulo de uma orelha após uma discussão com Gauguin e o deu de presente a um bordel local,
foi amplamente interpretada. O ato assemelha-se à autopunição na forma de sacrifício: Vincent
ofereceu seu sacrifício a uma mulher dissoluta que, por sua vez, possuía traços de santidade
(Maria Madalena). Por fim, o suicídio pôs fim à sua autodestruição.

Autoria
Nossa exposição Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos lança luz a uma
interpretação possivelmente nova à questão muito atual da autoria de diversas obras de Vincent.
A crescente probabilidade de que parcela significativa de sua obra tenha sido forjada ou a ele
indevidamente atribuída comprova o tremendo vigor de seu trabalho, o que sublinha a incapa-
cidade de alguns respeitados críticos reconhecerem este tipo de atribuição antropofágica.
Quase imediatamente após a morte de Vincent, passaram a lhe copiar a obra e, em alguns casos,
até pintaram versões novas. A motivação parece ter sido impelida menos pelo interesse
econômico do que pelo desejo de identificação com o talento universal de Vincent. É intrigante
a teoria-que ainda tem de ser provada-de que seu amigo Doctor Gachet, tanto patrono das
artes quanto pintor, tenha feito uma série de pinturas no estilo de Vincent. O acalorado debate
sobre a autenticidade de algumas obras prova nosso contínuo fascínio com Vincent van Gogh,
mais de um século após sua morte.
Pieter Th. Tjabbes. Traduzido do inglês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. J.J. Isaacson, "Gevoelens over de Nederlandsche Kunst op 7. Vincent van Gogh, carta B19A, novembro, 1888.
de Wereldtentoonstelling II", De Portefeuille2, Paris (agosto 8. Vincent van Gogh, carta 614A, novembro, 1889.
1889), Parijse Brieven III, P.248-49. 9. Vincentvan Gogh, carta 604, setembro, 1889.
2. Robert Rosenblum, Modem paintin9 and the Northem Romantic 10. Vincent van Gogh, carta R8, maio, 1882.
tradition: from Friedrich to Rothko, 1975, ed. 1988, P.91-92. 11. Vincentvan Gogh, carta W20, fevereiro, 1890.
3. Vincentvan Gogh, carta 605, setembro, 1889. 12. Vincentvan Gogh, carta B7,junho, 1888.
4. Vincentvan Gogh, carta 533, setembro, 1888. 13. Vincentvan Gogh, carta 543, setembro, 1888.
5. Vi ncent van Gogh, carta 405, maio, 1885. 14. Vincent van Gogh, carta 599, junho, 1889.
6. Vincent van Gogh, carta 429, outubro, 1885.

166 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


curadoria Pieter Th. Tjabbes

Van Gogh in São Paulo

The life and work ofVincent van Gogh (r853-r890) pertains to our common legacy. We are
enraptured both by the quality ofhis work and the dramatic course ofhis life, revealed in great
detail through the profusion of his correspondence. The prototype of the modern artist, and
unlike his predecessors, he has become a paragon of social profligacy and utter solitude. Vincent
took a very particular view ofhis role as an artist: he longed to function as an integral part ofthe
society. His letters convey constant efforts to define and defend his role. He was by no means as
totally unknown and misunderstood as biographers fondly emphasize. Various artists traded
work with him or praised his contribution to the emergence of modern art: "Who represents us
in shapes and colors, depicting the zealouness, the essence ofthe XIX century, the reawakening
of greatness? [... ] I know one such individual, a solitary pioneer; he struggles alone in the depth
of night; his name, Vincent, is for future generations."l The works he produced in slightly ove r
two years in Arles, Saint-Rémy and Auvers are by far the favorites among the public, as borne out
Banco de pedra no jardim do asilo [Stone bench in the garden of the asylum ]1889 óleo sobre tela [oil on canvas] 39x46cm coleção
Museu de Arte de São Pau lo Assis Chateaubriand foto Roberto Neves

167 Vincent van Gogh Pieter Th. Tjabbes


by the current frequency of their exhibition in museums. This preference is also apparent fram
the collection in the Museu de Arte de São Paulo, where the four works by Vincent van Gogh are
all fram the last two years ofhis life. The exhibition Vincent van Gogh, part ofthe Núcleo Histórico
of the XXN Bienal de São Paulo has been assembled with a view toward placing these four works
in a braader perspective, and in this way also highlighting his earlier work.
He was a painter ofhis day, that is, a Realist, but also an example of the Northern ramantic
reviva!. Rosenblum explained that the very fact that his art was so inextricably related to his own
non-artistic experiences-his search for religious values, his efforts to penetrate with his eyes
and his feelings the mysteries ofthe commonplace, whether people, things ar nature-separates
him fram his French contemporaries. 2
On the one hand Vincent always questioned his technique; on the other hand his letters to
his brather Theo revealed that he saw himself as a strang presence in art history. His consistent
classification ofhis work as "studies" and "paintings", with the "paintings" as a tiny minority,
attests to this view. Vincent's insecurity about his technique was one ofthe reasons for his reluc-
tance to paint using his imagination, to work without a mode!.

Appropriation
Antropofagia is identifiable in Vincent's work in that he often used the composition of another
artist's work as a guide without copying it blindly. Millet, the "painter offarmers," was undoubt-
edly the artist whose work he copied most, even though the strakes and use of colors are unmis-
Hortas em Montmartre [Vegetab le gardens in Montmartre] 1887 óleo sobre tela [oil on canvas] 96 x120cm coleção Stedelijk Museum ,
Amsterdã
Árvores numa ladeira [Trees on a slope] 1887 óleo sobre tela [oil on canvas ] 37x45,5 coleção Stichting P. en N. de Boer, Amsterdã

168 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibalismos


takably van Gogh's. "Sensing the value, the originality and the superiority ofDelacroix and
Millet, for example, l feel l need these artists as ~ basis for producing to the best of my modest
abilities."3 ln turn, many artists were indebted to him: his work and dramatic course oflife have
been a constant source ofinspiration. Gauguin, the fauvists, Mondrian, Sluijters and the German
expressionists alllearned from his worl<:.
lt is well known that he sold very few works during his lifetime. Nevertheless, he was able
to continue producing art despite the constant threat of poverty because of the monthly
allowance he received from his brother Theo. His letters to his brother include abundant refer-
ences to money. The allowance made his need to sell his works less acute. ln some cases Vincent
even refused to sell because he preferred to keep certain works together. Surprisingly, Theo, who
was an art-dealer himself, seems to have made precious little effort to sell or even exhibit Vincent's
worl<:. The relationship between the two brothers seems to have been marked by love and hate,
with Vincent the artist being cannibalized by his brother. By providing money in varying
amounts (most likely because ofhis own financial problems), Theo rendered Vincent totally
dependent upon him. The artist soon acknowledged that all his works basically belonged to
Theo, who seems to have had little difficulty accepting such submission. Vincent's dependence
on his brother was more than financial: in his letters he tried repeatedly to explain and justifY his
way of life. Criticism of his excessive dependence on his brother was expressed only through
constant remarks on the amount or the absence ofTheo's payments. Vincent rarely nagged Theo
to do more to disseminate his worl<:. The two brothers remained an autonomous unit, charac-
terized on the one hand byan artist-buyer/patron relationship and on the other hand by Theo's

169 Vincent van Gogh Pieter Th. Tjabbes


unhealthy domineering. At times, Theo appeared to identifY with Vincent the artist and to realize
his own artistic aspirations-suppressed out ofhis economic need to work at an art-dealer's-
by controlling Vincent's life and work. As ifto confirm this idea, Theo died six months after his
brother's suicide.

Color and emotion


Vincent believed very much in the emotional significance of colors: writing about the painting
Níght café (1888): "1 have tried to express the terrible passions ofhumanity by means ofred and
green [... ]. Everywhere there is a clash and contrast of the most disparate reds and greens in the
figures ofthe sleeping hooligans, in the empty, dreary room, in violet and blue."4 Also in Vincent's
early work, color had a symbolic significance, such as in his portraits of farmers: "1 have painted
them in the color of a potato (obviously with the peels still on) covered with earth. ln doing so, 1
realize that the sarne has been said about the farmers painted by Millet: 'his farmers lookas if
they have been painted in the soil they plant'."s ln 1885 he even took piano lessons in order to
learn about the nuances of color-tones, to compare the notes ofthe piano with colors.
Vincent acknowledged the problem of matching the colors of his subjects with the pig-
ments available to him: "Mightn't 1 presume that a painter had better start from the colors on his
palette than from the colors in nature?"6 His reading ofBlanc's Grammaíre des arts du dessín (1867)
and his encounter with impressionism in Paris in 1886 stimulated him to re-organize his color-
o escolar (O filho do carteiro) [The schoolboy (The mailman's son)]
1888 óleo sobre tela [oil on canvas] 63x54cm coleção Museu
de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand foto Roberto Neves
Armand Roulin 1888 óleo sobre tela [oil on canvas] 65x54cm coleção Museum Boijmans Van Beuningen , Roterdã

170 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


composition. The principIe of complementarity considers that colors are victorious allies when
juxtaposed in apure state but deadly enemies when mixed. The first signs of these ideas are
apparent in Vegetable gardens ín Montmartre (r887).
Vincent's use of colar was also deeply influenced by the Japanese Ukyio-e woodcuts: the
monochrome surfaces and compositions highlighting this two-dimensional quality are dis-
cernible in his work. He idealized the Japanese community spirit and repeatedly described
his stay in Arles as the situation that brought him closest to Japan. There he also tried to realize
his utopia of an artist's colony. ln Arles he used powerful, highly expressive colors that reflected
his faith in "a new world confident of a grandiose resurrection of art."7 After the failure ofhis
collaboration with Gauguin, however, his optimism faded: "Though l perceive a new form of
painting in the distance, l am unable to realize it."8

Portraits
Vincent was always fascinated with portraits and produced many ofhimself. On the one hand,
his motives may have been economic (models would have demanded payment). On the other
hand, he may simply have viewed himself as the most effective model. Considering the self-

171 Vincent van Gogh Pieter Th. Tjabbes


portraits as a group reveals great diversity in technique
and expression: apparently he saw self-portraits as an
opportunity for experimentation. He considered them
challenging: "They say-and I am very willing to
believe it-that it is difficult to know yourself, but it
isn't easy to paint yourself either."9 Generally, the
portraits of others served to convey general values
and feelings rather than the individual depicted. Writ-
ing about Sien, a prostitute with whom he lived for a
while: "ln my eyes she is beautiful, and I find in her
exactly what I want; her life has been rough, and sor-
row and adversity have put their marks upon her so
now I can do something with her. When the earth is
not plowed, you can get no harvest from it. She has
been plowed -and so I find more in her than in a
crowd of unplowed ones."10 His early work reflected
a realism imbued with social concern; he wanted to
portray the life of the peasants, tough and difficult
though it might be. Vincent wanted to paint men and
women with eternal qualities. This sentiment may also
have figured in the portrait ofThe Arlésienne (r890) in
which he pursued an expression with a reference to
Millet: "Ah Milllet! Millet! He has painted mankind and that entity above ('quelque chose la-haut')
in a familiar but solemn manner."ll ln the portrait ofArmand Roulín (r889), in a dark blue jacket
against a grassy green background, the superimposed layers of paint indicate the original intent
of a dichotomy in horizontal stripes, relating this version's arrangement to that ofthe younger
brother Camílle Roulín. The monochromatic background ofthese works reflects the influence of
the Japanese woodcuts.

Landscape and emotion


Vincent' s early work contains elements of symbolism, as in Autumn landscape at dusk (r885). Since
he was looking for the supernatural in nature, his use oflight, whether solar, lunar or artificial,
had more to do with the magicallight ofPriedrich and Turner than the empirically examined light
ofhis contemporaries. This use oflight as the messenger of emotion resurfaces in Vincent's later
work. His love for the countryside also had a religious quality: "Longing for that infinite space
symbolized by the planter and the sheaf ofwheat still delight me." "I see in nature, for example in
trees, expression, as if nature were a soul," 12 as conveyed in the drawing Parsonage garden (r884).
Although he always based his works on scenes from reallife, he wrote: "That does not prevent me
from having a terrible need of shall I say the word?-of religion. Then I go out at night to paint the
stars [... ] ."13 Por Vincent the night sky could provide one of the most passionate metaphors of
the mysteries ofthe universe. Did he intend for Walk at dusk (r890) to be interpreted that way?
Do the cypresses symbolize death and is the sky a symbol of an apocalyptic resurrection?
The landscapes also lend themselves to a different, more personal interpretation. They are
a mirror ofVincent's tortured soul, as reflections ofhis hope and depressions. This role became
A arlesiana [The Arlésienne] 1890 óleo sobre tela [oil on canvas] 64x54cm coleção Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand foto Roberto Neves

172 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


increasingly evident from the moment he was admitted to the asylum in Saint·Rémy. Stone bench
in thegarden ofthe asylum (1889), with its absence ofhorizon and focus on a limited space, conveys
his sense of solitude and confinement. He described his state of mind in very visual terms: "It is
strange that every time I try to reason out, to account for the reason why I am here, I am taken by
a terrible fright and abhorrence that prevents me from thinking. It is true that it has a tendency
to diminish a bit, but it seems to prove to me that my brain suffers from whatever disturbance it
is; at this manner it is bewildering to feel fear for nothing and being unable to remember."14

Self-destruction
Vincentvan Gogh's life was characterized by traits known in psychoanalysis as "auto·cannibalist."
First, in his Spartan lifestyle personal care became subordinate to the production ofhis work.
Vincent ate poorly, slept little and drank excessively at certain times in his life. His letters reveal
an awareness of the resulting damage to his body, which he seemed to take for granted as the
logical consequence ofhis quest to produce a cohesive group ofworks intended to stimulate art.
Repeatedly, he hinted that he did not expect to live long and therefore wanted to invest all his
energy in his work. His infamous self·mutilation, in which he cut offhis ear lobe after an argu·
ment with Gauguin and delivered it to a local bordello as a gift, has been interpreted extensively.
The act resembles self·punishment in the form of a sacrifice: he offered his sacrifice to a loose
woman, who in turn bore traits ofholiness (Maria Magdalena). Finally, his suicide brought an
end to his self·destruction.

Attribution
The present exhibition Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos sheds light
on a possibly new interpretation for the very current issue of attribution regarding so many of
Vincent's works. The increasing likelihood that a significant share ofhis oeuvre has been forged
or improperly attributed attests to the tremendous potency ofhis work, which underlies the fail·
ure of respected critics to recognize this kind of anthropophagic attribution. Almost immedi·
ately after Vincent' s death, people copied his work and in some cases even painted new versions.
Their motives seem to have been driven less by economic concerns than by the desire to identifY
with Vincent's universal talento The theory-which has yet to be proven-that his friend Dr.
Gachet, who was both a patron ofthe arts and a painter, did a series ofpaintings in Vincent's
style is intriguing. The heated debate about the authenticity of some works proves our ongoing
fascination with Vincent van Gogh, more than a century after his death.
Peter Th. Tjabbes. Translatedfrom the Dutch by Lee Mitzman.

r. J.J. Isaiicson, "Gevoelens over de Nederlandsche Kunst op 7. Vincentvan Gogh, letter B19A, November, 1888.
de Wereldtentoonstelling II," De Portefeuille2, Paris (August 8. Vincentvan Gogh, letter 614A, November, 1889.
1889), in Paríjse Bríeven III, PP.248-49. 9. Vincentvan Gogh, letter 604, September, 1889.
2. Robert Rosenblum, Modem paíntíng and the Northern Romantíc 10. Vincentvan Gogh, letter R8, May, 1882.
tradítíon:from Fríedrích to Rothko, 1975, ed. 1988, PP.91-92. II. Vincent van Gogh, letter w20, February, 1890.

3. Vincent van Gogh, letter 605, September, 1889. 12. Vincentvan Gogh, letter B7, June, 1888.
4. Vincentvan Gogh, letter 533, September, 1888. 13. Vincentvan Gogh, letter 543, September, 1888.
5. Vincentvan Gogh, letter 405, May, 1885. 14. Vincentvan Gogh, letter 599, June, 1889.
6. Vincentvan Gogh, letter 429, October, 1885.
curadoria Luis Pérez Oramas

Armando Reverón:
antropofagia da luz e melancolia
da paisagem

"[... ] é a extenuação do olharo que faz de um país, paisagem."


-Louis Marin

Antropofagia da luz
Armando Reverón pertence a uma geração de pintores venezuelanos que teve como limite figura-
tivo de suas obras uma montanha alta-Ávila-e que nos seus perfis descobriu, sob a aparência
ingênua das paisagens mais convencionais, a primeira "forma pura" de pintura na história
artística da Venezuela. A Montanha de Ávila, de cujo cume Alexandre von Humboldt imaginava
ver a totalidade do território sul-americano, foi o pivô figurativo e simbólico de uma pintura que,
permutando sem cessar seus perfis e cores, traçou inesperadamente para a arte do país a pos-
sibilidade de um olhar moderno.
A imensa muralha da montanha caraquenha, que abrigou com sua forma e seu nome a
escola de pintura com que Reverón compartilhou seu tempo-a Escola de Caracas ou Círculo
de Belas Artes-mas à qual Reverón deu as costas sintomaticamente, foi por sua vez a primeira
concretização pictórica do sublime, uma imensidão desmedida, um inesgotável objeto para a
representação, um emblema natural do labirinto citadino com seus sulcos, aberturas, colinas
infinitas e uma somatória de sombras para uma pintura que tinha, com os precários instru-
mentos de uma história pobre em artes e carente de academias, a luz equatorial pordesafio.
A "Escola de Caracas" se refugiou à sombra dessa montanha, protegeu-se em suas aberturas
entre colinas e fez de sua forma imponente um emblema e um símbolo de um tipo de paisagem
tranqüila, previsível, humanizada, que olha a imensidão da montanha como limite, como fron-
teira, como término, como desproporção, desde a acolhedora povoação que foi naqueles anos do
Dunas de Catía La Mar [Catía La Mar dunes] 1925 óleo sobre tela [oil on canvas] 56,4x66,5cm coleção Patricia Phelps de
Cisneros, Caracas

174 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


início do século a cidade de Caracas. Se Plínio tivesse morado naquela cidade de pintores au plein
air [ao ar livre], teria visto nessa montanha a figura inevitável da Arte e a teria visto também na
luz da qual ela protege, e não "no raio, na tempestade, ou no trovão", o impossível em pintura 1 •
Não se conhece um só quadro de Reverón no qual se represente, como fizeram seus com-
panheiros de geração, desde o sul, em sua frontalidade plena, a montanha de Ávila. Armando
Reverón evitou, num gesto sobre o qual muito pouco se escreveu, essa figura inevitável. Ele foi
morar ao pé da outra encosta da montanha, onde as escarpas e colinas descambam para o mar
do Caribe, na praia de Macuto, de costas para a cidade e para o mundo, deixando aos pintores
citadinos o ofício de inventar uma soterrada modernidade pictórica; modernidade esta que não
se mostrou tanto na aparência das obras como no rigor de um princípio de regulação da pintura
que, sob a repetição convencional das paisagens de Ávila, se pudesse resumir em pintar essa
montanha para, com isso, segundo as célebres palavras de Bataille consagradas a Manet, "não
expressar nada na pintura que tivesse um equivalente no discurso".2 Mas por ir até a beira do
mar, por buscar a visão infinita que desde a cidade a muralha cega das montanhas impedia,
Reverón não pôde evitar que na sua pintura aparecesse a sombra da montanha na contraluz,
espectral, queimada como um espólio.
A parábola desse pintor singular, desse paisagista moderno, começa pela memória desse
gesto: obviar uma visão que tem limites, evitar esse olhar que se detém na irreparável presença
de um corpo monumental, para buscar outra visão ancorada em infinitos, ilimitada, na qual
todos os corpos se desfazem como sombras, isto é, como rastros, como espectros. Mais do que

175 Armando Reverõn Luis Pérez Oramas


qualqueroutra, a pintura de Reverón é, pois, "escritura das sombras", e o é porassim ser, como
nenhuma outra, pintura da luz equatorial. Desta forma, esse pintor conhecido por ser "o pintor
da luz" terá levado sua pintura até o que foi, nos textos arcaicos que informam sobre as origensda
arte, a operação primitiva do fazer pictórico: "adumbratio", "skiagraphia", escritura de sombras 3 •
Encontraríamos aí o sintoma de um trabalho "regressivo", que não se limitaria com
certeza somente aos assuntos da luz. Tudo parece indicar que, obviando as alturas de uma
iconografia escarpada da paisagem, Reverón procurou uma paisagem de planícies, de extensões
marinhas, na qual se concretizou pela primeira vez na Venezuela uma pintura de qualidade for-
mai plana, um fazer pictórico que encontraria, sob a aparência de um deserto-essa paisagem
e essa pintura despojada de meios-essa identificação da pintura com a literalidade de seu
"meio" q ue passa, para certa i ntel igência formal ista, não desprovida de razão, por i nd ício iden-
tificatório de uma pintura moderna.
Reverón absorveu-dirigiu-toda a luz e fez na pintura o equivalente a uma parábola da
visão que tem o enceguecimento como condição de conversão ao visível. Dupla metáfora: metá-
fora de uma antropofagia de luz e metáfora de uma pintura tornada cega por concentrar nela
justamente toda a potência daquilo que a torna possível como arte da visão. Entre ambas, entre
a antropofagia da luz e o enceguecimento da pintura-que não é mais que o equivalente verná-
culo de uma extenuação "sublime" da representação, auto-reflexivamente exposta ao seu poder
e à sua nulidade-está em jogo, pois, uma forma reveladora de regressão: "Chamamos regressão
-escreve Freud em A interpretação dos sonhos-o fato de que no sonho a representação retorna à
imagem sensorial da qual um dia surgiu [... ]" ,4 a que acrescenta lucidamente George Didi-
Huberman: "Fora de toda conotação pejorativa ou nostálgica-gênero degeneração ou gênero
arquétipo-a regressão aparecia, então, no texto freudiano, como um instrumento teórico mais
Luz tras 'mi enramada Luz atrás da minha ramagem [Light behind my branches] 1926 óleo sobre tela [oil on canvas] 48 x 64cm
coleção particular, Caracas

176 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


que clínico, e mais precisamente como um instrumento 'tópico': exigia que pensássemos as
condições fundamentais de um tipo de matéria da imagem à qual, nos diz Freud, a representação
justamente retorna". 5
O que se vislumbra, no final desse incendiário processo de pintura, o que fica no final
dessa queda de ícaro nas planícies do Caribe é, justamente, uma gramática pictórica de puros
despojos. Tudo conduz a paisagem em Reverón até seus rastros, rastros de luz que são sombras;
rastros de pintura que são gestos expostos do trabalho da arte e da física mesmo do ato pictórico.
Tudo conduz a paisagem em Reverón até o deserto, que é, por ser uma imagem sensorial, por
estar figurado depois do abnegadamente sensível, a partir do qual se constitui toda imagem, a
matriz mesma da paisagem e seu paradigma gerativo. Esse paisagismo é literal, e o é em dois
sentidos complementares e opostos: trata-se de uma paisagem literalmente fiel ao que fica na
combustão retiniana do olhar quando se olha sem mediações protetoras para o astro da luz
equatorial-um enceguecimento-; trata-se também de uma pintura-de um aparato de
enunciação pictórica-literalmente exposta, revelada em sua literalidade mais básica: economia
de gestos, ameaça de o visível estar-ficar-impresso como num sudário.
"Padeceria de um risco mortal o pintorque quisesse com a Imagem oferecera luz ao olhar,
porque seria condenado a perdera vista, cegar-se num ofuscamento puro, no qual se consumiria
toda forma; porque seria condenado a perder a obra em si onde a imagem encontra a exatidão
de seu poema, a quererfazerdela a expressão pura do estado possível de seu servisto.,,6 Esse
tem sido o risco pictórico-e a decisão-reveronianos. O que ficaria dessa experiência incen-
diária da paisagem, como de toda aventura extenuante, a não ser um campo calcinado, a
cenografia pictórica de uma melancolia da paisagem? Porque a empresa reveroniana, longe de
sertão heróica que se pode imaginá-Ia além das experiências excêntricas do personagem rodea-
do por um mundo inédito e teatral, consistiu, sim, em empreender essa impossível paisagem da
luz, estabelecendo crivos, enramadas, gelosias, corpos espessos de sombras que o pro-
tegessem-e a nós em sua pintura-dos perigos daquela primeira e fulgurante digestão de luz
equatorial, e entre eles, do último risco que pode correr toda pintura: o do enceguecimento
capaz de consumi-Ia.
Ficaria também um modelo estranho, irreconhecível, para a aventura moderna da pintura
na Venezuela e na América Latina. Um modelo que conecta, sem transições de época, o último
paisagismo impressionista adiado na América equatorial com a primeira absorção monocromá-
tica e que estabelece essa América como terra de uma pintura de formas puras, indiferente, a
uma relação ótica, perceptiva, fenomenológica, corporal com o mundo concreto e concretamente
com o mundo natural.

Modernidade orgânica
Armando Reverón inaugurou portanto, inadvertidamente, uma versão inexplicada-e por acaso
inexplicável-da modernidade, cujo destino não é menos formal, não é menos absorto nem
menos indiferente, mas cujo meio, cuja possibilidade reside em uma inexorável transição corpo-
ral. Aqueles que viram Reverón pintar sabem dos mitos e crenças que tentava evocar ou exorcizar
por meio de um ritual de dança e concentração, que tinha como centro obsessivo seu próprio
corpo. Amordaçado por trapos que o prendiam com violência, a cintura-a metade-do corpo
era como a projeção do horizonte nas suas paisagens. Poder-se-ia pretender, não obstante, que
essa paisagística, próxima ao desvanecimento-porém nunca à imaterialidade-, esteve profun-
damente assinalada pela presença viva, pela experiência ansiosa dos limites do corpo. Trata-se de
uma paisagística do possível, de uma visibilidade peneirada-opaca-pela surdinas do corpo.

177 Armando Reverõn Luis Pérez Oramas


Dessa maneira, o que em outros lares foi um paradigma ideal, uma equação, uma abrupta
criação do espírito-a saber, a pintura como um campo aberto e despojado, a evidência reve-
ladora de sua utilização do plano, a materialização denunciante de seus meios e de seu medium - '
foi em Reverón pura resignação, pura subjetividade, submissão corporal ao perceptível que irre-
paravelmente se concretizava na pintura. Com isso, nosso monocromo foi e é uma paisagem da
praia do Caribe-uma realidade, não um conceito espacial-assim como nossa redução da pin-
tura a seu logaritmo da espacialidade foi um espaço existencial, sensivelmente representado -
uma duna, uma enseada, um playón-no qual as irregularidades artesanais e precárias do suporte
serviram de ocasião-de kairós pictórico-ao holocausto da mímese pictórica.
O modelo dessa primeira paisagística da luz é, pois, o de um edipse. Reverón se expõe
como ícaro ao sol, para deixar que suas obras se constituam com a luz que vislumbra pelas bor-
das da opacidade de seu corpo. Em mais de um de seus quadros aparece assim: à contraluz,
opondo sua massa corporal identificada ao deserto da tela contra a luz, que ao filtrar-se desenha,
como uma certa lenda antiga, os contornos na tela. O mito de um encontro heróico com a luz
deveria, portanto, ser matizado: Revéron não só pintou com resplendor, também e sobretudo o
fez com sombras. Desde muito cedo, paralelamente à construção de uma casa magnífica que foi
se tornando um lugarameno e um jardim, uma arcádia tropical e um túmulo umbroso, Reverón
foi inscrevendo em sua pintura gelosias, foi construindo sua pintura como um crivo: Luz tras mi
enramada [Luz atrás da minha ramagem], assim se intitula uma dessas obras, poética entre todas
as da primeira operação reveroniana, de aproximação e de distanciamento em relação à luz.
Reverón desenvolveu a pintura, sem deixarde ser fiel ao mundo e ao visível fenomenal, até
o estado primitivo, onde só se vê sua materialidade desconstruída, a matéria virtual de sua
imagem. EI árbol [A árvore] é o emblema e o resultado desse processo: gotas de luz sobre o chão
do suporte, pontilhismo desconstruído, desprendido, indolente, exacerbado, sumo de um desa-
parecimento que teria o rastro das coisas na mímese pictórica como condição do aparecimento
das tramas da pintura em estado de possibilidade pura: "a verdade em pintura".
Tudo leva a pensarque o escurecimento da luminosidade do primeiro Reverón é o início de
um processo pictórico marcado por certo "padecimento", que não apenas mostraria o possível,
mas também o irreparavelmente visível por meio de um paisagismo "patético", posto que foi a
conseqüência de uma pura "paixão ótica": ir da pintura ao suporte; ir da grafia das figuras à
sombra das coisas; do icônico ao indiciai, isto é, do que se escreve ao que se inscreve, ao que se
imprime; do que se traça voluntariamente ao que involuntariamente macula. O resultado de tudo
isso, ao conter insuspeitas conseqüências teóricas, é que a monocromia-e não o monocromo-
apareceu na América com Reverón, como um acidente da atmosfera, como uma catástrofe de
luz e, enfim, como uma "ruína" da paisagem.
Poderíamos precisamente evocar o modelo da "ruína" para compreender o que existe na
paisagem reveroniana de deserto. Algum teórico da arquitetura do grande século barroco, gravi-
tando ao redorde Vitrúvio, chegaria à conclusão de que a ruína, como restos sobre o pó dos traços
de um edifício, seriajustamente aquilo que mais se aproxima do plano original da edificação: a
ruína coincidiria, articularia e "suturaria" existencialmente o período ideal com o resultado
final do edifício. A "ruína" seria, pois, a matriz teórica do edifício. O mesmo pudesse então se
pretender da paisagem quando, como em Reverón, só ficam seus rastros no holocausto da luz.
Ficaria o que está subjacente e o que transcende em toda paisagem: a extenuação de onde
surge, uma planície (de pintura) absoluta, um deserto.
Como em EI playón, de '942, as protuberâncias acidentais do suporte-uma sutura grossa
na tela, uma excrescência da matéria, uma cercania tópica do subjectum-são as ocasiões para

178 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Hi stórias de Canibalismos


convocaro olharde quem olha na direção da luz, que não é imaterialidade, mas precisamente
excesso de matéria, puro resto, sobreabundância e suplementos pictóricos. A pintura de
Reverón constitui sobre a evidência desse grão de materialidade o chão estranho, irreconhe-
cível, de uma modernidade orgânica. Aí, nos interstícios indefiníveis entre o espaço despoja-
do da representação e a representação obcecada do espaço, a pintura de Reverón atinge seu
duplo valorde pintura e de representação, de imagem e de matéria da imagem, de figura e de
figu ração.

A melancolia da paisagem
A pintura de Reverón poderia sero modelo explicativo de uma modernidade que não responde,
pois, a um projeto nem a uma busca que é puro efeito de uma experiência, conseqüência de um
processo cuja lógica seria aquela do irreparável. É nesse sentido que os processos e seus efeitos
plásticos respondem mais em sua obra à noção de "regressão" do que à noção de "descons-
trução" (que poderia lembrarMondrian) ou de "redução" (que poderia lembrarMalevitch). Mas
também porque a "regressão" tem, por oposição à "desconstrução" ou à "redução", um valor
puramente "corporal", um recinto e um destino que, como a pintura de Reverón, se identifica
com a física do próprio corpo.
Os efeitos modernos da obra de Reverón-uma pintura tornada cega, uma pintura abne-
gada, uma objetividade manifesta-só se explicam a partir dessa centralidade do corpo, cujas
fases terão sido três: exposição ao visível e ao que o constitui como visibilidade, a luz; opacidade
espectral, "eclíptica" dos corpos; despojos, coisas, objetos. Curiosamente, no centro da obra de
Reverón estão os corpos representados como presenças adormecidas de sombra, como volumes
Cocoteros (Bosque) Coqueiros (Bosque) [Palmtrees (G rove)] 1931 óleo sobre te la [oil on canvas] 59x77cm coleção Armando
Marques Reverón, Caracas

179 Armando Reverón Lui s Pérez Oram as


flácidos, como atonia orgástica e sonhada, como simples bonecas de pano, equivalentes antro-
pomórficos do desnudamento do suporte em sua pintura. Reverón se ocupou em pintar, na exata
metade de sua vida de artista, uma série de obras nas quais representou-e com elas represe'n-
tou-se a si próprio-figuras femininas, banhistas repousadas, belas jovens nuas, bonecas. A
arquitetura figurativa dessas cenas corporais é a mesma das grandes banhistas que de Courbet
a De Kooning-sem esquecer essa emblemática desconstrução figurativa do julgamento de
Paris que foi o Almoço de ManeC-marcaram emblematicamente a pintura ocidental no início
da modernidade. A arquitetura simbólica dessas obras é, pois, a de uma "cena primitiva", que
se consome como metáfora iconológica do término desse processo de "regressão", por meio do
qual Reverón, expondo seu corpo perceptivo à paisagem, conclui revelando em suas obras o
puro corpo da pintura.
Esses corpos femininos, esses substitutos do desejo e da paisagem, essas figuras cujos
olhos caem, enfadadas, e que nos olham num quase adormecer, estão representadas nesse
recinto que Reverón terminou por construir contra a luz. São as moradoras da sombra, mulheres
à beira do túmulo, damas da morte. Desde então Reverón evitou sistematicamente as horas fulgu-
rantes de luz, a cronologia do ofuscamento. Com esses corpos, Reverón se despediu da luz do
meio-dia e procurou na paisagem as horas da noite ou do amanhecer, no momento em que os
dias se tornam fracos, para substituir a presença apocalíptica de uma visibilidade excessiva pela
figuração da paisagem, pela paisagem possível, brevíssima, da mutação luminosa; pela paisagem
de transição-matinal ou vespertina-na direção das sombras. De tudo isso-uma visão que
pondera a imensidão da terra e que extenuada tenta sua possível imagem-fica o testemunho
de um olhar afogado na melancolia da paisagem: "geo ponderat"8.
Paisaje blanco [White landscape] 1934 óleo sobre tela [oil on canvas] 62x80cm coleção particular, Caracas

180 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Reverón substituiu, na sua obra final, a estabilidade martirizante da plena luz por essas
paisagens melancólicas da mudança, da mutação, da transição existencial. Elas são, na sua
prodigiosa impressão de brevidade do sol nascente ou em sua escritura agônica do falecimento
da luz, metáforas paisagísticas de um olhar encarnado como alma, rastro de um estado físico
da alma. A pintura de Reverón não responde, pois, a uma retórica do sublime, não é o irrepre-
sentável, nem a utopia da luz, o que a movimenta e a constitui como visão. Afogado ante a
imensidão da paisagem, ante o abismo da representação que a luz perfurada, socavando a pos-
sibilidade mesma da pintura, Reverón procurou o possível-não o impossível-na pintura.
E o possível é um instante brevíssimo de tempo, um passo incessante das sombras à luz,
da claridade ao sombrio, uma paisagística do momentum cujo trabalho consiste em agarrar o
"corpo brando" da paisagem, a ocasião inadvertida em que já não opõe resistências-o kairós-
para se converterem resto, em pegadas, em relíquia pictórica. Não são essas as luzes dilatadas,
largas, eternas do Norte e do Sul: tudo o que tenha sido exposto a elas nas coordenadas equato-
riais sabe que sua contemplação só é possível como uma mútua combustão, "como reminiscên-
cia de ter visto no esquecimento do que [se] viu ... "9
Essa relação com o tempo-em suas instâncias e em seus instantes de mudança-é o
específico das paisagens reveronianas e é também o especificamente melancólico que jaz, ou
emerge nelas. A melancolia emerge como uma mancha nessas vistas do playón, nestas paisa-
gens espectrais do porto: emerge-mais ainda do que se inscreve-como uma sombra espessa,
como um rubor cinza na pintura, como uma névoa nos olhos. Haveria ali uma teoria do ador-
mecimento da visão, que é todo o contrário daquela inicial, branca, do ofuscamento. Haveria,
sobretudo, uma teoria da escritura pictórica da melancolia: pequenos redemoinhos do trópico
que Leonardo teria sonhado em suas aventuras alpinas representam indistintamente a fumaça
da indústria, a mercadoria dos portos, os homens que se afanam, as videiras da praia, os sulcos
nos quais já não se distingue mais a luz da água, a secura da terra e a umidade das margens; o
sexo das mulheres que são misturas de trapo; os olhos cujo pesar cai sobre o que fica na pintura
do mundo um instante depois, ou um segundo antes, que o dia surja irreparável com seu fogo
branco e deixe o deserto-absolvido de habitantes que se refugiarão em outras sombras-à
paisagem: "Daí a lentidão de uma 'escrição', o pesarde uma descrição que se afoga e se perde
na vaguidade das circunscrições: 'um pouco', 'quase', 'talvez' como se afogam os olhos sem
lágrimas e o olhar se tolda na borda das pálpebras [... ]"10
luis Pérez Dramas. Traduzido do espanhol por lilian Astiz.

1. Plinio, Historia natural, libro XXXV, 96, Paris: Les Belles Let- 7. Hubert Damisch, Lejugement de Paris, Paris: Flammarion,
tres, 1985, P.77. 1992.
2. Georges Bataille, "Manet", CEuures completes, Paris: Galli- 8. Erwin Panofsky, La uie et I'art d'Albrecht Dürer, Paris: Hazan,
mard, 1977, P.159. 1987, P·254·
3. Cf. Pascal Quignard, La peinture romaine, le sexe et I'effroi, Paris: 9. Pierre Fédida, "La régression, la site de I'étranger", La situa-
Gallimard, 1994, p.64~ tion psychanalitique, Paris: Presses Universitaires de France,
4. Sigmund Freud citado por Georges Didi-Huberman, La 1995, P·234·
ressemblance informe ou le gai sauoir uisuel selon Georges Bataille, 10. Louis Marin, "De la représentation", Hautes études, Paris:
Paris: Macula, 1995, P.250, nota 4. Gallimard, 1994, P·193·
5. Didi-Huberman, op. cit., P.250.
6. Louis Marin, Des pouuoirs de I'image, Seuil, Paris: Gloses, 1993,
P·19·

181 Armando Reverón Luis Pérez Oramas


curadoria Luis Pérez Oramas

Armando Reverón:
antropophagy of light and
melancholy of landscape
"[ ... ] it' s the extenuation of the gaze that turns a country into landscape."
- Louis Marin

Anthropophagy of light
Armando Reverón belongs to a generation ofVenezuelan painters who used a tall mountain-
Ávila-as the figurative standard for their works and found in its contours, beneath the ingen-
uous appearance of the most conventional oflandscapes, the first "pure form" in painting in
Venezuela's artistic history. Ávila Mountain, from whose peaks Alexander Von Humboldt imag-
ined he could espy the totality of all ofSouth America's territory, was the figura tive and symbolic
pivot of a kind of painting that, in its constant mutability of shape and color, unexpectedly
sketched the possibility of a modern outlook for the country's art.
The immense barrier of the Caracas mountain gave both its physical shelter and its name to
the school of painters with whom Reverón spent some time-the Caracas School, or the Círculo
de Bellas Artes-although, significantly, Reverón also turned his back on them. The mountain
was so instrumental because it was the first pictorial incarnation of the sublime, a measureless
immensity, an inexhaustible object of representation, a natural emblem for the labyrinthine city
itself with its infinite folds, valleys, and hills. It was also the summit and the source of shadows
for a school ofpainters who, balanced precariously on the edge ofthe country's scant art history
and its absence of academies, were challenged by the light of the equator.
The "School of Caracas" found refuge in the shadows of that mountain. lt found shelter in
its hills and turned its imposing form into an emblem and a symbol of a certain kind of serene,
predictable, humanized landscape which interprets the immensity of the mountains as a kind of
limit, a frontier, a terminus, an excess, as itwas seen by the sheltered populace thatwas Caracas
in those years at the beginning of the century. IfPliny had lived in that city of pleín aír painters, he
would have seen in that mountain the inevitable figure of Art itself He would also have noticed
in the light from which the mountain shelters, and not in "lightning, tempests or thunder," the
impossible aim of painting. 1
There is no known painting by Reverón in which he represents a full frontal view of Ávila
Mountain, seen from the south as his fellow painters showed it. Armando Reverón avoided this
Maja-mujer acostada Bela jovem-mulher deitada [Young woman-Iying woman] 1936 óleo sobre tela [oil on canvas] 105,7x
141,2cm coleção Fundación Galería de Arte Nacional, Caracas

182 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


inevitable representation, in a gesture which has received scant commentary. He turned his back
on the city and the world and went to live at the foot of the other side of the mountain where the
cliffs and hills overlook the Caribbean sea at Macuto Beach, letting the city painters take up the
task of inventing an underground modern pictorial art. This modernity resided not so much in
the appearance of the works of art as in the rigorous regulation of a mode of painting which, in
its repetition of conventionallandscapes of Ávila, can be summarized as representing this moun-
tain in order, in the famous words that Bataille consecrated to Manet, "not to express anything
a
in painting that would have discursive equivalent."2 But in moving to the seaside, searching for
the infinite vision that the blind walls of the mountains shut off from him in the city, Reverón
could not avoid the apparition ofthe shadow ofthe mountain in his painting, back-lit, spectral,
charred like a remnan t.
Our understanding of the parabola of this strange painter, this modern artist oflandscape,
starts with our memory ofthis gesture: the erasure of a vision with limits, the evasion of a view
that stop at the irreparable presence of a monumental body in order to find another vision
anchored in the infinite, a limitless view in which all bodies dissipate like shadows, that is to say,
like traces, like specters. More than any other, then, Reverón's painting is like "shadowwriting"
and this is, because unlike any other, Reverón is painting the light of the equator. ln doing so,
this painter, known as "the painter oflight" must have taken his painting to what it eventually
became, as the ancient texts, describing the origins of art, inform us regarding the primitive
operation of pictorial art, "adumbratio," "skiagraphia," shadow writing. 3

183 Armando Reverón Luis Pérez Oramas


There would have been in it the symptom of a "regressive" kind of work which would not
have been limited merely to questions oflight. Everything seems to indicate that, forgetting the
iconography of a landscape of sheer heights, Reverón sought a fandscape of plains, of marine
extensions, in which, for the first time in Venezuela, a painting of flat formal quality became
embodied. It was a kind of picture-making that would find, beneath the appearance of a
desert-this landscape and this painting deprived of a means-that identification of painting
with the literalness of its "medium" that is understood, bya certain formalist intelligence, not
unfurnished with reason, as an identifYing trait of modern painting.
Reverón absorbed-directed-all the light and drew in painting the equivalent of a parabo-
la ofvision that has blindness as the condition of conversion to the visible. It's a double metaphor:
the metaphor of an anthropophagy oflight and a metaphor of a kind of painting blinded because
of concentrating in itself that full potency of everything that makes it possible as an art ofvisiono
Between these two, between the anthropophagy oflight and the blindness ofpainting-which
is no more than the vernacular equivalent of a "sublime" extenuation of representation, auto
reflexively exposed to its power and its nullity-a revealing kind of regression is played out.
"What we call regression," Freud writes in The ínterpretatíon of dreams, "is the fact that in dreams
representation returns to the sensory image from which one day it had emerged [... ]"4 To which
Amanecer en el Pozo Ramiro Amanhecer no Pozo Ramiro [Dawn at the Pozo Ramiro] 1938 óleo sobre tela [oil on canvas]
116 x128cm coleção Patricia Phelps de Cisneros, Caracas

184 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Georges Didi-Huberman lucidly adds: "Outside of any pejorative or nostalgic connotation-the
degenerative kind or the archetypal kind-regression appeared then in the Freudian text as a the-
oretical more than a clinical instrumento More precisely, it appeared to be a topical instrumento
It demanded that we ponder the fundamental conditions of a kind of material to the image of
which, Freud teUs us, representation justly returns."5
What is glimpsed at the end of this incendiary process of painting, what is seen at the ter-
minus of this fall ofIcarus into the plains of the Caribbean is, then, a pictorial grammar of pure
remnants. Everything in Reverón's work takes landscape to its traces, the "traces" oflight that are
shadows, the "traces" of paint that are the exposed gestures of the work of art, of the very physics
of the act of painting. Everything in Reverón takes landscape to the desert which is, as a sensory
image figured behind the overwhelmingly tangible from which all images are constituted, the
very matrix oflandscape as well as its generative paradigm. This art oflandscape is literal and it
is so in two ways that are complementary and contrary. On the one hand we are dealing with an
art of landscape which is literally faithful to the effects of retinal shock when we look without
protective mediation at the equatoriallight-a blinding of sight. We are also dealing with a kind
of painting-with an apparatus of pictorial enunciation-that is literally exposed, denuded in its
most basic literalness. This entails an economy of gestures, as ifthe visible were under duress to
be-to stay-under wraps, as in a shroud.
"The painter who would, through an Image, offer light to his gaze would know a mortal
risk, because he would condemn himself to lose his sight, to become blinded in apure confla-
gration in which all forms would be consumed, because he would be condemned to lose the very
work of art in which the image encounters the exactitude of its poem, to want to make of it the
pure expression ofthe possible state ofits being seen."6 This has been the Reveronian pictorial
risk-and decision. What would remain of this incendiary experience oflandscape, as of all
extenuating adventures, if not a scorched terrain, the pictorial scene of a landscape's melan-
choly? Because the Reveronian enterprise, far from being the heroic one that one imagines
behind the eccentric appearance of a personage surrounded by an obscure and theatrical world,
consisted rather in undertaking this impossible landscape oflight, finding screens, arbors,
lattices, dense bodies of shadow that would protect him-and us in his painting-from the
dangers of that first coruscating digestion of equatoriallight, and among them, that ultimate
riskwhich all painting runs: that ofthe blinding ofvision capable of consuming it.
There would also be a strange, unrecognizable model for the adventure of modern painting
in Venezuela and Latin America. It would be a model which connects, without transitions, the
latest impressionist art oflandscape distinguished in equatorial America with the first example
of monochromatic absorption and which establishes as the grounds of an indifferent painting of
pure forms, an optic, perceptual phenomenological, corporeal relationship with the concrete
world and a concrete relationship with the natural world.

Organic modernity
Armando Reverón inadvertently inaugurated an unexplained-and perhaps unexplainable-
version of modernity, whose destiny is not less formal, nor is it less absorbed nor less indifferent,
but whose medium, whose possibility resides in an inexorable corporeal transition. Those who
saw Reverón paint know about the myths and beliefs he was trying to evoke or exorcise by means
of certain kinds of dance and concentration which had as an obsessive foc~s his own body. With
bonds tightlywrapped round his torso, violently keeping his body in check, half ofthe painter's
body carne to be like the projection of the horizon in his paintings. One might pretend that,

185 Armando Reverón Luis Pérez Oramas


notwithstanding, his landscape art, close to vanishing but never to immateriality, was profoundly
marked by the living presence, the anxious experience of the limits of the body. One is dealing here
with a landscape ofthe possible, with a visibility filtered, dulled, by the mutedness ofthe body.
ln this way, what in other places was an ideal paradigm, an equation, an abrupt spiritual
creation-painting as both a clear and despoiled arena, the revealing evidence ofits flatness, an
embodiment which denounced both its media and its "medium"-became pure resignation,
pure subjectivity in Reverón, corporeal submission to the visual that was irreparably embodied
in his painting. As a result, our monochrome was, then, and is, now, a landscape art of the
Caribbean beaches-a reality, not a spatial concept-just as our reduction of painting to its loga-
rithm of spatiality was an existential space, sensitively represented, a dune, an enclosure, a playón
in which the artisanal and precarious irregularities of support served as an occasion for a picto-
rial "kairos," a holocaust of pictorial mimesis.
The model ofthis firstlandscape oflight, then, is that ofthe eclipse. Reverón exposes him-
self like lcarus to the sun in order to allow his works to become constituted by the light he
glimpsed at the borders ofthe opacity ofhis body. ln more than one ofhis paintings he appears
this way: back-lit, placing what can be identified as the corporeal mass ofhis body against the
desert of the canvas and against the light which, as it filters through, draws outlines on the
canvas, as is described in certain ancient legends. The myth of a heroic encounter with light
should then be nuanced: not only did Reverón paint with light-glow, he also painted, above all,
with shadows. From very early on, as in the construction of a magnificent house which passes
through a series of stages: from pleasant place to garden, from tropical arca dia to shady funeral
mound, Reverón gradually inscribed latticework in his painting, he constructed his painting as
a kind of filtering device. One of his works is entitled, Luz tras mi enramada [Light behind my
branches], poetically symbolic more than any other of the first Reveronian experiments with
proximity and distance in relation to light.
Reverón, still faithful to the world and to visible phenomena, has taken painting to the pri-
mordial state in which only its deconstructed materiality is seen, the virtual matter ofits image.
EI árbol [The tree] is the emblem and the result of this process: drops oflight on the ground of
the support, a deconstructed, loose, indolent, exacerbated, pointillism; the height of a disappear-
ance which would have the traces ofthings in pictorial mimes is as the condition ofthe apparition
of a kind of filtered painting in a state of pure possibility: "truth in painting."
This allleads one to think that the luminous obnubilation ofthe early Reverón is the begin-
ning of a pictorial process marked bya certain "lack," which would not only demonstrate the
possible but also the inevitably visible seen through a "pathetic" kind oflandscape art, since it was
the consequence of apure "optic passion": to go from painting to its underpinnings, to go from
the signs ofthe figures to the shadows ofthings, from the icon to the clue, that is to say, from
what is written to what is inscribed, to what is printed, from what is voluntarily drawn to what is
involuntarilya stain. The result of all this, possessing unexpected theoretical consequences, is that
monochromy-and not the monochrome-made its appearance in America through Reverón,
like an atmospheric accident, like a catastrophe oflight, and, finally, as a kind of"ruining" of
the landscape.
We will precisely evoke the model of the "ruin" to understand what is to be found in the
Reveronian desert landscape. A certain theorist of architecture from the great century of the
baroque, speaking ofVitrubius, carne to the conclusion that because the ruin is the remains of a
building's outline, it is what precisely most approximates the original plan ofthe building. The
ruin existentially coincides with, articulates and "sutures" the ideal state with the end result of

186 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


the building. The ruin, then, must be the theoretical matrix ofthe building. We can then say the
sarne thing about landscape when, as in Reverón, only its traces remain in a holocaust oflight.
What remains is what lies beneath and transcends any landscape: the extenuation from which it
arises, a plain of absolute painting, a deserto
Thus, in EI playón (I942), we see the accidental protuberances ofthe support, a dense suture
in the canvas, an excrescence of the material, a topical closeness of the subjectum, all occasions
for convoking the eye of he who beholds the light, which is not immateriality, but precisely a
material excess, pure remains, overabundance, and pictorial supplements. Reverón's painting
constitutes, over the evidence of this grain of materiality, the strange, unrecognizable grounds
of an organic modernity. There, in the indefinable interstices between the stripped space of
representation and the blinded representation of space, Reverón's painting reaches its double
valence of painting and representation, of image and matter, of figure and figurability.

Melancholy of landscape
Reverón's painting could be the explanatory model of a modernity which does not respond
either to a project or a search, which is the pure result of an experience, the consequence of a
process whose logic would be that ofthe irreparable. It's in this sense that the processes and
their plastic effects respond more in their workings to the notion of "regression" than to the
notion of"deconstruction" (which could be used when speaking ofMondrian) or of"reduction"
(which could be used for Malevitch). But this is also because the opposite of "regression" is
"deconstruction" or "reduction," a purely "corporeal" valence, an enclosure and a destiny that,
like Reverón's paintings, are identified with the anatomy ofthe body itself.
The modern features ofReverón's work-a blinded painting, a self-sacrificing painting, a
manifest objectness-can be explained only from the point ofview ofthe body's centralitywhich
EI playón 1942 óleo e têmpera sobre tela [ai I and tempera on canvas] 94x135cm coleção Fundación Galería de Arte Nacional , Caracas

187 Armando Reverón Luis Pérez Oramas


has three phases: exposure to the visible and to what constitutes it as visibility, light; spectral
opacity, or an "ecliptics" ofbodies; remnants, things, objects. Curiously, at the center ofReverón's
work bodies are represented as shadowy, slumbering presences, as flaccid volumes, as orgasmic,
dreamyatony, as simple rag dolls, anthropomorphic equivalents ofthe baring ofthe supports in
his painting. Reverón painted, at the exact midpoint ofhis career as an artist, a series of works
in which he represented-and by which he represented himself-feminine figures, reposing
bathers, nude majas, dolls. The figurative architecture ofthese corporeal scenes is that ofthe great
bathing scenes which emblematically marked Western painting in the dawn of its modernity,
from De Courbet to De Kooning. And let us not forget that emblematic figura tive deconstruction
of the Judgement ofParis which was the Luncheon by Manet. 7 The symbolic architecture of these
works is, then, that of a "primitive scene" which fuses an iconographic metaphor of the ending
ofthat process of"regression" bywhich Reverón, exposing his perceptive body to the landscape,
concludes, revealing in his works the pure body of painting.
These feminine bodies, these substitutes of desire and landscape, these figures whose
withered bodies fall and look at us from the edge of drowsiness, are represented in that enclo-
sure that Reverón ended up constructing against the light. They are the denizens of shadow, the
women at the edge ofthe grave, the ladies of death. From then on, Reverón systematically avoid-
ed the fulgurant hours oflight, the chronology of coruscation. With those bodies Reverón left off
the pursuit of the midday sun and sought landscapes at nighttime or at dawn, at the time when
day weakens, in order to substitute the apocalyptic presence of an excessive visibility for the fig-
urability oflandscape, for a possible, very brief, kind oflandscape painting of the mutation of
light; for a landscape of transitions-matinal or vesperal-toward shadow. Of all this-a vision
which ponders the immensity ofthe earth and which, extenuated, attempts its possible image-
there remains the testimony of an eye bathed in the melancholy oflandscape: "geo ponderat."8
ln his finalwork, Reverón substituted these melancholy landscapes of change, of mutation,
of existential transition, for the punishing stability of fulllight. ln their prodigious recording of
the brevity of the rising sun or in their agonized scripting of the failing of the light, they are
metaphors in landscape of an eye incarnate as soul, a sign of the physical state of the sou!.
Reverón's painting then does not respond to a rhetoric ofthe sublime: it's not that which is
beyond representation, neither is it the utopia oflight that moves it and constitutes it as a visiono
Overwhelmed by the immensity of landscape, by the abysm of representation which light
pierces, undermining the very possibility of painting, Reverón sought the possible-not the
impossible-in painting.
And the possible is a very brief instant of time, an incessant passing of shadow to light, of
clarity to shadow, a landscape art of momentum whose work consists in seizing the "soft body" of
landscape, the inadvertent moment in which it no longer poses resistance-the kaíros-in order
to beco me a remainder, a trace, a pictorial relic. These are not the dilated, wide, eternallights of
the North and the South. All those who have been exposed to them at the equatorial coordinates
know that their contemplation is possible only as mutual combustion, "as a reminiscence of
having seen, having forgotten what has been seen [... ]"9
This relationship to time-to its instances and its instants of change-is what is so specific
to Reverón's landscapes and it is also the specifically melancholic aspect that lies, or emerges,
in them. Melancholy emerges like a stain in these vistas of the playón, in those spectralland-
scapes ofthe porto Much more than an inscription, it emerges like adense shadow, like an ashen
glow in the paintings, like a mist in the eyes. Therein lies a theory of a drowsiness ofvision that
is the complete opposite ofthat initial, white-hot one of dazzling light. Therein, above all, would

188 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


lie a theory of the pictorial writing of melancholy. Small, tropical whirlwinds which Leonardo
would have dreamt about in his alpine adventures represent, without differentiation, the fumes
ofindustry; the merchant life ofthe ports; toiling men; the grape sellers on the beach; the undu-
lations where the water' s light can no longer be seen; the dryness of the earth and the dampness
ofthe riverbanks; the sexes ofwomen like clumps ofrags; the eyes whose sorrow falls on what
remains of the painting of the world an instant later, or a second before, when the day surges
irrepressibly with its white fire leaving a desert behind it- absolved of inhabitants who would
take refuge in other shady areas-in the landscape: "From there we see the slowness of an
'inscription,' the sorrow of a description which drowns and loses itselfin the vagueness ofthese
circumscriptions: 'a little,' 'almost,' 'perhaps,' just as eyes drown in tears and the gaze becomes
veiled at the eyelids' edge [. . .]"10 Luis Pérez Dramas. Translatedfrom the Spanish by Lyn Di Iodo.

I. Pliny, Natural hístor~, Book XXXV, 96, Paris: Les Belles Lettres, 6. Louis Marin, Des pouvoírs de l'íma8e, Paris: Seuil, 1993, P.19.
19 85, P·77· 7. Hubert Damisch, Le jU8ement de París, Paris: Flammarion,
2. Georges Bataille, "Manet," CEuvres completes, Paris: Galli- 199 2 .
mard, 1977, P.159. 8. Erwin Panofsky, La víe et l'art d'Albrecht Dürer, Paris: Hazan,
3. Pascal Quignard, La peínture romaíne, le sexe et l'elfroí, Paris: 19 87, P·254·
Gallimard, 1994, p.64· 9. Pierre Fedida, "La régression, la site de l'étranger," La sítua-
4. Georges Didi-Huberman quoting Sigmund Freud, La ressem- tíon psychanalítique, Paris: Presses Universitaires de France,
blance informe ou le 8ai savoir visuel selon Geor8es Bataille, Paris: 1995, P.234.
Macula, 1995, P.250, footnote 4. Ia. Louis Marin, "De la représentation," Hautes études,Paris:
5. Didi-Huberman, op. cit., P·250. GaUimard, 1994, P·193 ·
Paisaje de Macuto [Landscape of Macuto] 1943 óleo e têmpera sobre te la [oil and tempera on canvas] 71,5x94,5cm coleção
Fundación Galería de Arte Nacional, Caracas

189 Armando Reverón Luis Pérez Oram as


"CATHARINE:

-Garçons, polícia, e outros-saíram correndo dos prédios e apressadamente


subiram a ladeira de volta comigo. Quando retornamos ao lugaronde meu primo
Sebastian desaparecera entre [o bando de crianças nuas], ele-ele jazia nu como
eles estiveram nus contra urna parede branca, e nisso você não vai acreditar,
ninguém tem acreditado, ninguém poderia acreditar, ninguém, ninguém na face
da Terra poderia acreditar, e eu não os cu/pol-Eles tinham devorado partes dele.
[Mrs. Venable reprime um grito.]
Rasgado ou cortado partes dele com as mãos ou as facas ou talvez com aquelas
latas abertas violentamente, com as quais faziam música, tinham rasgado pedaci·
nhos dele, enchendo suas bocas ferozes, deglutinadoras, pretas, pequenas e vazias
com eles. Não se ouvia mais nenhum som, não se via nada senão Sebastian, o que
restou dele, que parecia um grande ramo de rosas vermelhas embrulhadas em
papel branco que foram rasgadas, jogadas, esmagadas!-contra aquela parede
branca fulgurante ... "

Extraído de Tennessee Williams, ["De repente no último verão"] (1958), cena IV.
Traduzido do inglês porVeronica Cordeiro.

190 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


"CATHARINE:
-Waiters, police, and others-ran out ofbuildings and rushed back up the hill
with me. When we got back to where my cousin Sebastian had disappeared in [the
band of naked children], he-he was lying naked as they had been naked against
a white wall, and this you won't believe, nobody has believed it, nobody could
believe it, nobody, nobody on earth could possibly believe it, and I don't blame
them!-They had devoured parts ofhim.
[Mrs. Venable cries out softly]
Torn or cut parts ofhim away with their hands or knives or maybe those jagged tin
cans they made music with, they had torn bits ofhim away and stuffed them into
those gobbling fierce little empty black mouths of theirs. There wasn't a sound
any more, there was nothing to see but Sebastian, what was left of him, that
looked like a big white-paper-wrapped bunch of red rases had been tom, thrown,
crushed!-against that blazing white wall. .. "

Extracted fram Tennessee Williams, "Suddenly last summer" (I958), scene IV,
Tennessee Williams: four plays, N ew York: Signet Classic, I976, P.92.

191 Fragmento
curadoria Paulo Herkenhoff com a assistência de Valéria Piccoli

Monocromos

Monocromos, a autonomia da cor e o mundo sem centro


O branco é devorador de todas as cores. "Branco é luz domada: dinâmica da nossa contem-
plação", definiu o poeta Murilo Mendes 1 • "Se a arte conheceu a harmonia, o ritmo, a beleza, ela
conheceu o zero", está no "Espelho suprematista" (1923) de Malevitch 2 • A arte, como a ciência
e a filosofia, desenvolverá seu método próprio. Jorge Romero Brest analisa a primeira Bienal de
São Paulo "Ia palabra proporción, la palabra matemática, la palabra precisión, [... ] conducén
ai error, pues no se trata de formas artísticas en las que se aplican princípios matemáticos, sino
de la obtención, porvía de la fantasía e intuición, de formas que poseen en el plan estético carac-
teres similares".3 Designa-se como "efeito Bienal" o diálogo propiciado pela Bienal de São Paulo
à arte brasileira. Aqui sendo adequado citar Arp, Vordemberge-Gildewart, Albers, Bill e Lohse.
Na ante-sala da mostra Monocromos estão artistas que foram referência fundamental para o pro-
jeto construtivo na América Latina: Malevitch, Mondrian, van Doesburg, Vantongerloo. Apesar
das correlações com o barroco, as vanguardas construtivas latino-americanas não dispensaram
certo historicismo e essencialismo, como em De Stijl4. Elas recorreram aos fundos utópicos da
Bauhaus, das vanguardas russas, do neoplasticismo e Torres-García, que indica que nosso
Norte é o Sul para recompor o sentido da orientação. O monocromo propicia discutiro processo
de constituição de autonomia da cultura de regiões periféricas frente ao processo eurocêntrico.
Enquanto a antropofagia projetou um processo de emancipação cultural, a cor organizou um
modelo de identidade no Brasil 5 •
A América Latina abandona o entendimento da arte como história de estilos ou de imagens
para dela extrair problemas a desenvolver. Já não é pertinente a noção de "influência". Não mais

192 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


existem modelos a copiar nessa epistheme visual. O conhecimento da história da arte é impres-
cindível para a escolha dos pontos de inserção e ruptura no fundo comum da cultura ocidental.
Na articulação dessa consciência, Ferreira Gullar, o teórico do neo-concretismo, discute a morte
da pintura em "Teoria do não-objeto": "é com Mondrian e Malevitch que a eliminação do objeto
continua. [... ] Enfim, é a pintura que jaz ali desarticulada, à procura de uma nova estrutura, de
um novo modo de ser, de uma nova significação".6 Reiteradamente, Oiticica e Clark se referem
ao neoplasticista e ao suprematista. É possível correlacionaros Núcleos de Oiticica, uma arquite-
tura de planos de cor, aos desenhos arquitetônicos com paredes pintadas como planos mono-
cromáticos de van Doesburg, para além de suas idéias de "paralelismo entre forma pictórica e
forma natural".
Bruno Duborgel discute o infigu rável em Malevitch e a etimologia de suprematismo. Inexis-
tente em russo, foi forjado do lati m e do polonês, designando uma fu nção ontológica: "desvelar",
"revelar", "manifestar", "apresentar" o Absoluto enquanto sem-objeto, o Nada, o ser abissal,
a excitação universal, a "essência das diversidades", o ser não-figurativo, o mundo sem-objeto 7 •
"Eu me metamorfoseei em zero de formas", diz Malevitch 8 • Na economia da modernidade, o
monocromo branco é o essencial e, no entanto, todas as cores. Sobre sua obra suprematista,
Malevitch agrega: "O abismo livre branco, o infinito estão diante de nós".9 Já o "baixo-relevo
pintado" de Arp, Formas expressivas (1932), demonstra o híbrido moderno entre pintura e escul-
tura 10 • Robert Rauschenberg explica a gênese da simplicidade estrutural de suas Pinturas brancas
Kasimir Malevitch Suprematist painting-white cross Pintura suprematista-cruz branca antes de [before] 1920 óleo sobre tela
[oil on canvas] 88x68,5 cm coleção Stedelijk Museum, Amsterd ã

193 Monocromos Paulo Herkenhoff


(1951): enquanto Albers apontava a equivalência das cores, ele hesitava na escolha arbitrária
delas. Uma razão para suas Pinturas brancas foi não colocar a cor a seu serviço pessoal1'.
O monocromo é aqui um surpreendente paradigma. A singularidade surge extrema justa-
mente ali onde pareceria haver maior similitude. Comentando as invenções monocromáticas de
Yves Klein, Rauschenberg e Ellsworth Kelly, Benjamin Buchloch observa como "a coincidência,
e também a simultaneidade e as repetições de outros paradigmas de vanguarda, dá substância
à hipótese de que a formação discursiva do modernismo gerou sua própria dinâmica histórica e
evolucionária. Se pressupomos que os paradigmas visuais operam de forma análoga aos para-
digmas lingüísticos, então a 'Iangue' do modernismo constituiria os 'falantes' neo-vanguardistas
e reproduziria e modificaria constantemente suas 'paroles"'Y Monocromos brancos realizados
em pouco mais de uma década por artistas de todo o mundo indicam a dispersão da idéia de
centro da história da arte. Ela se produz onde está um artista que problematiza o olhar, seja no
Brasil, Venezuela, Itália, França, Estados Unidos, seja no Japão 13 • Yves Klein e Piero Manzoni
marcam a Eu ropa nos anos 50. Ao patentear a idéia do monocromo'4, Klei n se torna proprietário
do azul IKB (lnternational Klein Blue) e da própria cor. Segundo Restany, para Klein o azul é
"uma figuração tangível do espaço infinito",'5 identificando o fenômeno pictórico e o fenômeno
existencial. Seu projeto metodológico almejou o esplendor dos materiais e a intensidade da "cor
em liberdade". Idéias de impregnação e incorporação da cor remetem-nos a Manzoni. Seus
primeiros acromos datam de 1957. Para operar a corporeidade dos monocromos, Manzon i utilizo u
materiais hidrófilos; e peludos ou pedrentos para investigar a superfície, decla rando que "Meu
objetivo é criar uma superfície inteiramente branca (totalmente incolor, neutra) que não mais
Piet Mondrian Composition Composição 1929 óleo sobre tela [oil on canvas] 40,5x32,5cm coleção The National Museum of Modern
Art, Kyoto

194 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


se refere de modo algum a um fenômeno ou a um elemento pictórico estranho à natureza da
su perfície". 16
O artigo "Arte neoconcreta, uma contribuição brasileira"1?, de Ferreira Gullar, demarca a
gênese desse movimento brasileiro e suas referências a Malevitch e ao prenúncio do fim do
quadro por Mondrian 18 . Depois da Gestalttheorie, a fenomenologia de Merleau-Ponty cinde o con-
cretismo brasileiro, então cerrado na objetividade dogmática, orientada pelas teorias de Norbert
Wiener, Charles Peirce, Max Bill e a arte concreta suíça. O neoconcretismo restabeleceu os índices
, da subjetividade, fosse do artista ou do espectador, para a realização do fato plástico. Em sua
trajetória, Hércules Barsotti negocia proporções entre luz e escuridão. Um meneio produz o fato
plástico ao perceber brilho ou luz. Sua delicada operação neoconcreta está em aceitarqualquer
ação mínima do olhar. Branco branco enuncia o exato ponto de constituição do caráterdo espaço:
a fronteira entre planos brancos. Existe aí algo de Morandi e do lugar entre as coisas. No ressalto
da luminosidade se instala a tensão e irrompe a diferença. Esse signo é a passagem que constitui
o nascimento da linguagem. A obra de Lygia Clark é a aventura do plano. Em fins dos anos 50,
compreende que o espaço surge da articulação de planos independentes 19 , como em Planos em
superfície modulada n.1 (1957). Na linha de junção desses planos de madeira permanecem frestas
que a artista incorpora ao discurso plástico como "linha orgânica". São veios por onde correm
sombra e ar. O ar invade o monocromo branco. Já Hélio Oiticica vive a aventura da cor 20 . No
período neoconcreto, Oiticica escreve "Cor, tempo e estrutura", análise do sentido da cor, sendo
o branco a "mais estática, favorecendo a duração silenciosa, densa e metafísica. O encontro de
dois brancos diferentes se dá surdamente, tendo um mais alvura e o outro, naturalmente, mais
opaco".21 Para consolidar a diferença, Oiticica mudava a direção da pincelada 22 . Oiticica busca
o lugarda cor, a "relação orgânica forma-cor", desloca-a do plano para serespaço concreto, até
se tornar arquitetura penetrável. A corporeidade da coré o caminho que endereça a experiência
da arte à potencialidade sensorial plena dos indivíduos.
Emigrando do Japão em 1958, Yayoi I<usama desenvolve as Infinity nets pela repetição de
padrões, como No. D (1959). Donald Judd comparou tais pinturas a "uma grelha grande e frágil
porém vigorosamente esculpida ou a uma renda maciça e sólida".23 A trama dá à artista um
senso de controle frente à sua doença mental 24 . Nesses "quase-monocromos", como os designa
Lynn Zelevansky, o branco finaliza a história do quadro, sobreposto a toda nuance cromática
visível. O branco não refuta a retórica, o excesso, as insídias do gestual, passando a viver ines-
perada crise da razão e da medida 2s . Como uma película de luz, Tomie Ohtake, artista brasileira
nascida no Japão, recobre superfícies com o branco (1961). Porele se filtram outras camadas pic-
tóricas do quadro, desvelando a história da cor e enunciando a pluralidade de cores no branco.
"Segundo o Zen, a cor branca conhece quem está distante dela", lembra Murilo Mendes. Outro
nipo-brasileiro, Manabu Mabe, parte do excesso num monocromo (1962). Antes, Mário Pedrosa
anotara seu "glutônico amor à substância" .26 O gesto caligráfico transiente marca a "gordura"
da capa pictórica como corpo inciso. No campo de luz, Mabe escreve por sombras.
O espaço neoconcreto leva Ferreira Gullar a argumentar, na "Teoria do não-objeto", que as
telas de Fontana são "retardada tentativa de destruir o caráter fictício do espaço pictórico pela
introdução nele de um corte real".2? No "Manifiesto blanco" (1946), Fontana defende a cor
como elemento-espaço para uma arte sem artifícios, que envolvesse som, tempo e matéria. Para
Murilo Mendes, a faca de Fontana é da "arte de dividiro espaço em harmonia com a sua coesão
interna".28 O espaço su rge de atos perfu rantes e cortantes, violentos sobre o su porte-cor e arbi-
trários frente à sua lógica. A lâmina mutila o corp029 e, sobre o branco, abre sombras. Um Plano
em superfície modulada de Clark enuncia seus resvalos de are sombra. Em Vibración en blanco (1960),

195 Monocromos Paulo Herkenhoff


Soto exibe a lógica da trama do suporte, opostamente ao gestualismo de Fontana. Orienta as
aberturas para o esgarçamento, seguindo estritamente a lógica da estrutura do suporte. Por
isso, ainda que frágil, o suporte mantém sua coesão básica para simultaneamente dispersare
reter a densidade do branco e a luz. Numa pintura (Sem título, 1964), Mira Schendel abre retân-
gulos sobre o campo branco. A artista logra introduzir,como cálculo, o vazio ali onde estava
instituído o grau zero do olhar. Os planos retangulares cortam o espaço, como planos negativos
da pintura.
"Branco sobre branco: silêncio absoluto agindo", cantou Murilo Mendes. Alejandro Otero
assume a predominância monocromática que se impunha sobre a formação da cor ao retomar
a pintura a óleo. Trabalha um jogo surdo de ocultamentos e veladuras. O branco é laconismo
num plano de regressão à utopia da pintura de Tela branca (1961)3°. O branco é experiência de
acordes. "A cortem que se estruturar como o som na música", queria Oiticica 31 . A opção abso-
luta de Robert Ryman pelo branco incluía oferta de "uma experiência de deleite, bem-estar e
integridade. Écomo ouvir música"32, para esclarecer a densidade do branco. Winsor (1965) marca
o procedimento de pintar séries e dartítulos que não se associam a objetos, pessoas ou lugares 33 .
Remete à marca de tintas Winsor& Newton. Ryman trabalha a construção da pintura, carregan-
do o pincel de tinta e pintando faixas horizontais da esquerda para a direita até o esgotamento
da carga. Repete a operação fazendo nova faixa abaixo. Robert Storrcompara Ryman ao "Inuit
que consegue lercom precisão um espectro relativamente estreito de neve e gelo, Ryman catalo-
gou a verdadeira variedade do branco, assim demonstrando ironicamente sua não-neutralidade
latente quando visto em relação a si mesmo".34 Para Ryman, o branco "torna visíveis outros
aspectos da pintura que não seriam tão claros com o uso de outras cores".35
Os monocromos brancos revelam o mundo marcado pordiferenças solitárias. O monocro-
mo recarrega-se de significados simbólicos. Introduz questões como diferença, desejo, poder,
racismo ou arte. Isso está na obra de Felix Gonzalez-Torres e na fotografia de sangue de André
Serrano. É a fusão de símbolos na escultura de Anish Kapoorou opera a dissolução da idéia de
autor na pi ntu ra de Gerhard Richter. Éconceito e sua reificação. Yves Klei n repôs o monocromo
e outras cores na discussão do canibalismo.
Aviolência política compara-se ao canibalismo. Montaigne argumenta em seus Ensaios (I,
XXXI) que "nós [os europeus] os excedemos [aos tupinambás canibais] em toda sorte de bar-
baridades". Guerras de religião, os conflitos étnicos, lutas intestinas, o fascismo, demonstram
como a própria sociedade devora seus filhos. A pintura de Glenn Ligon interroga. Sua obra con-
junta com Byron Kim, Black and white (Version # 1) [Preto e branco (Versão n.1)] (1993) consiste
numa série de monocromos, que ironiza a relação cor/etnia como num mostruário comercial de
tintas. "O trabalho de artistas de cor é freqüentemente reduzido a tratar somente do tema de
raça como se nosso gênero, classe sexual e outras identidades não complicassem qualquerdis-
cussão de raça como um assunto, ou como se a raça fosse nosso assunto 'natural"'.36 Sutil-
mente, pinta textos com letras pretas sobre fundo preto para discutir como o uso do nome de
cores para designar etnias pode resultar em racismo, quando o discurso sobre identidade étnica
nega o discurso da subjetividade. Nigel Rolfe produziu Mão na cara (1988) em apoio a Mandela.
Diferenças de projeção-num telão em Wembley ou num monitor pequeno-discutem o
espaço social. O vídeo, um anti-Malevitch, recarrega a imagem de significados. Em tempo real,
o rosto do artista sofre reiterados ataques de uma mão pintada em preto. O subtexto é a violência
política da censura, tortura e identidade individual vinculada à condição física. Transparece o
confronto do indivíduo com a plasticidade do poder. No segmento "Roteiros ... ", Abdoulaye
Konaté apresenta a instalação Genocídios, em que retalhos de tecido vermelho-monocromos-

196 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


remendam a tela. São ferida e sutura sobre um corpo que se mingua porfome e mutila em guer-
ra sob o olhar mediado pelos meios de comunicação. Konaté compõe uma geração de artistas
que incorpora valores ancestrais à espessura do presente. AÁfrica se assume como sujeito crítico
de seu processo político. De origem palestina, Mona Hatoum atua na tradição de simbolização
visual na cultura islâmica e seu interdito da representação. Ornamentos, arabescos, caligrafia e
cores articulam significados sem representar. A superfície abstrata do Prayer mat [Tapete de
oração] (1995) resulta de milhares de alfinetes. Uma bússola, inscrição "kitsch", possibilita
saber a direção de Meca. A superfície abstrata de Prayer mat (1995) contrasta com Entrails carpet
[Tapete de tripas], um território repulsivo, e Marble carpet [Tapete de bolas de gude], cujas mi-
lhares de bolas de vidro desestabilizam o espaço. A sensualidade dos materiais exacerba certas
fragilidades territoriais.
Nas antropometrias, Yves Klein usava pessoas para imprimir pigmentos. "Urgência apro-
priativa", diz Pierre Restany 37, aplicando um termo, vinculado à antropofagia, a esta espécie de
sudário. Klein imprimiu "batalhas" travadas por corpos em turbulentos movimentos-"uma
batalha com uma aura de exuberância incontrolada, êxtase orgásmico, caos orgástico, e violência
selvagem" .38 Em Grande antropopnaBie bleue-HommaBe a Tennessee Williams [Grande antropofagia
azul-Homenagem a Tennessee Williams] (1960), Klein ratifica o canibalismo como prática
simbólica, metáfora da violência e dimensão fantasmática no desejo. Tennessee Williams havia
abordado o tema no livro Suddenly last summer [De repente no último verão], cujo personagem
Sebastian, buscando a realização sensorial, termina consumido por uma gangue, índice brutal
Theo van Doesburg Construction des couleurs dans le 4eme dimension de I'espaçe-temps Construção das cores na 4ª dimensão
do espaço-tempo [Color construction in the 4th dimension of space-time] 1924 guache sobre papel [gouache on pape r]
57,5x57cm coleção Stedelijk Museum, Amsterdã

197 Monocromos Paulo Herkenhoff


da decadência social. Klein, como Montaigne, via a Europa, po r suas guerras, como "'carne'
pu ra [... ]. Rapidamente nos tornaremos antropófagos". 39 Percebia ai nda a eucaristia como rito
antropofágico. O canibalismo, antecedendo à "era azul" edênica, seria etapa da redenção do
homem. Klein comenta "Estamos chegando a uma era antropófaga [... ]. Será a realização pací-
fica numa escala universal das famosas palavras: Aquele que come de minha carne e bebe de
meu sangue viverá em mim e eu nele".40 O canibalismo ancestral religioso de Klein seria destino
de parúsia.
Em Project for an artistic attitude [Projeto para uma atitude artística] (1970), Antonio Dias
inverte a escritura da palavra REALlTY. A relação entre signo visual e signo verbal põe a palavra
em suspensão sobre o campo preto. O espaço não-verbal atua como um imenso monocromo.
Malevitch e sua não-objetividade, ou outros modelos de redução da pintura e sua inscrição na
sociedade, estão implicitamente referidos. Essa obra compõe a série Modelo da arte, que se arti-
cula com Modelo da sociedade, onde se inscreve The invented country/Dias-de-Deus-Dará (1976). No
campo do conhecimento contemporâneo, "a arte é o modelo crítico da arte" e problematiza a
sociedade, como um de seus conteúdos e, implicitamente, falta. O modelo de atitude do artista
é produzir conhecimento no campo de fricção arte/sociedade. Sendo o monocromo uma
redução ao essencial, Cildo Meireles desloca-o para o excesso de cor em Desvio para o vermelho
(1967-1984)41 . Impregnação, primeiro ambiente da instalação, aparentemente aproxima Cildo da
economia de Yves Klein. No entanto, Cildo aborda as manobras do capital, o confronto entre
valorde troca e valorde uso, valor simbólico e valor real. A cor, como operação econômica infla-
cionária, devo ra e neutraliza idéias de valo r. O monocromo faz, agora, percurso inverso: da noção
de zero ao agenciamento da história. Paulo Herkenhoff
Josef Albers Homage to the square Homenagem ao quadrado 1957 óleo sobre masonite [oil on masonite] 61 x 61 cm coleção
Galerie Karsten Greve Colônia, Paris , Milão

198 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. Murilo Mendes, "Texto branco", Transístor, Rio de Janeiro: 17. Ferreira Gullar, Revista crítica de arte, Rio de Janeiro, n.1
Editora Nova Fronteira, 1980, P.371-372. As citações deste (1962). Rodchenko não recebeu menção aí.
autor são deste texto. 18. Ver, por exemplo, o texto de Hélio Oiticica "16 de fevereiro
2. Kasimir Malevitch, "O espelho suprematista", Le miroir de 1961 ", Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986,
suprématiste, Lausanne: L'Ãge de I'Homme", 1997, II, P.97-98. P·27
3. Jorge Romero Brest, "Primera Bienal de San Pablo", Buenos 19. São planos recortados em madeira, que são arrumados
Aires, Ver y estimar, n.23 (maio 1951), P.14. formando retângulos.
4. VerYve-Alain Bois, painting as model, Cambridge: MIT Press, 20. Tratada em uma das salas desta Bienal e em artigo de
1990, P· 104· Viviane Matesco neste livro.
5. Ver "A cor no modernismo brasileiro, a navegação com 21. Hélio Oiticica, "Suplemento dominical", jornal do Brasil
muitas bússolas" do autor neste catálogo. (26.11.1960), Rio deJaneiro.
6. Rio de Janeiro, "Suplemento dominical", jornal do Brasil, 22. "Dezembro de 1959", op. cit., nota 18 supra, p.16.
1960 , P-4- 23. Apud Lynn Zelevansky, "Driving image: Yayoi Kusama in
7. Bruno Duborgel, Malevitch, la question de I'icône, Saint-Eti- NewYork", Yayoi Kusama 1958-1968, Los Angeles: Los Angeles
enne: Cierec, 1997, P.70. Cita A. Nakov e analisa também a CountyMuseum, 1998, p.12.
relação da obra de Malevitch com a arte transfigurativa dos 24. Ibid., P.14.
ícones. 25. Aqui se parodia o Texto branco de Murilo Mendes, nota 1
8. Malevitch, "Du cubisme et du futurisme au suprématisme supra.
Le nouveau réalisme picturial", (1916), Malévitch écrits, Paris: 26. Mário Pedrosa, "Manabu Mabe", jornal do Brasil (28.10.
Champ Libre, 1975, P.185. 1959), Rio deJaneiro.
9. Malevitch, "Le suprématisme", op. cit., nota 2 supra, II, 27. Ferreira Gullar, Rio de Janeiro, "Suplemento dominical",
p.84· Jornal do Brasil, (1960), P-4.
10. Thieny de Duve, Kant after Duchamp, Cambridge: MIT Press, 28. "Fontana", op. cito nota 1 supra, P.376.
1996, P·229· 29. Ver artigo de Rosa Olivares neste livro, P.508-517.
11. Robert Rauschenberg/Calvin Tomkins, The bride and the 30. Essas interpretações de Luis Pérez Oramas foram extraídas
bachelor, Nova York: Viking Press, 1974, P.199-200. de carta ao autorem 25 de agosto de 1998.
12. Benjamin Buchloch, "The primary colors forthe second 31. Verop. cito nota 18 supra, P.25.
time: a paradigm repetition ofthe neo-avant-garde", October, 32. Robert Storr, Robert Ryman, Londres: Tate Gallery e Nova
MIT, n.37 (verão 1986), P.45. York: The Museum ofModern Art, 1993.
13. Textos específicos neste livro abordam especificidades. 33. Entrevista de Robert Ryman a Lynn Zelevanskyem 7.7.1992,
Trabalhamos aqui com paradigmas. Outros artistas poderiam Robert Storr, Robert Ryman, Londres: Tate Gallery e Nova York:
ser incluídos no debate. Rodchenko desenvolveu seus mono- The Museum ofModern Art, 1993, p.118.
cromos nos anos 20. Entre os monocromos brancos devem 34. Op. cito nota anterior, p.16.
ser citados os de Strzeminski e Buchheister, e mais recente- 35. Apud Storr, op. cit., nota 33 supra.
mente, Ellsworth Kelly, Burri, Megert, Goepfert, Castellani, 36. "An interview with Byron Kim", Glenn Ligon unfbecoming,
Colombo, de Vries, Girke, Bartels, Piene, Uecker, Morellet, Filadélfia: Institute ofContemporary Art, 1997, P.54.
entre outros, além de Opalka, no momento em que atingir o 37. Pierre Restany, Yves Klein, le monochrome, Paris: Hachette,
grau zero. Não incluímos os relevos pintados de Schoonhoven, 1974, P·9 8.
von Graevenitz, Sérgio Camargo, Simetti, entre outros. 38. Sidra Stich, Yves Klein, Stuttgart: Cantz, 1994, p.180.
14. Ver Benjamin Buchloch, op. cit., nota 12 supra. Thierry de 39. Nota em seu diário de 1957, apud Stich, nota anterior,
Duve "Yves Klein, orthe dead dealer", October, n. 49 (1998) e p.180.
Kant after Ducnamp, Cambridge: MIT Press, 1996. 40. Yves Klein, Zéro, 1973, p.88.
15. Pierre Restany, "Yves Klein le monochrome", La couleur 41. Desvio para o vermelho é apresentado no Núcleo Histórico da
seu/e, Lyon, 1988, P.73-81. XXIV Bienal, com análise por Lisette Lagnado, P.398-405.
16. ln Azimutn 2, 1960, apud Ursula Perucchi-Petri, La couleur
seule, p.88.

199 Monocromos Paulo Herkenhoff


Monochromes, the autonomy of color and the centerless world
White devours all colors. "White is tamed light: the dynamic of our contemplation," defined the
poet Murilo Mendes. 1 "If art has known harmony, rhythm, beauty, it has known zero," is in
Malevitch's "Suprematist mirror" (1923).2 Art, like philosophy and science, will develop its own
method. Jorge Romero Brest analyses the first Bienal de São Paulo: "the term proportion, the
term mathematics, the term precision, [... ] lead to error, for it is not about artistic forms on
which mathematical principIes are applied, but about obtaining, through fantasy and intuition,
forms that in the aesthetic plan possess similar characteristics."3 The dialogue produced for
Brazilian art by the Bienal de São Paulo is designated as the "Bienal effect." Here it is relevant to
quote Arp, Vordemberge-Gildewart, Albers, Bill and Lohse. ln the anteroom of the Monochromes
exhibition are included artists who were a fundamental reference to the constructive project in
Latin America: Malevitch, Mondrian, van Doesburg, Vantongerloo. Despite the correlations with
the Baroque, the Latin American constructive vanguards did not discard a certain historicism and
essentialism, as in De Stijl. 4 They resorted to the utopian grounds of the Bauhaus, of the Russian
vanguards, to neoplasticism and Torres-García, which shows that our North is the South to
recompose the sense of orientation. The monochrome prompts a discussion on the constitutive
process of the autonomy of cultures from peripheral regions in the face of the eurocentric
processo Whilst antropofagia projected a process of cultural emancipation, color organized an iden-
tity mo deI in Brazil. 5
Latin America abandons the understanding of art as the history of styles or images in order
to extract from it problems to be developed. The notion of"influence" is no longer relevant. There
no longer exist models to follow in that visual epistheme. The knowledge of art history is impera-
tive for choosing the points ofinsertion and rupture in the common ground of western culture.
Articulating this consciousness, the theorist of neoconcretism Ferreira Gullar discusses the death
of painting in "Teoria do não-objeto" [Theory of the non-object]: "it is with Mondrian and Male-
vitch that the elimination of the object continues. [... ] After all, it is painting that lies there inar-
ticulate in search of a new structure, of a new way ofbeing, of a new signification."6 Repeatedly
Oiticica and Clark refer to neoplasticism and suprematism. It is possible to correlate Oiticica's
Núcleos, an architecture of colo r planes with van Doesburg's architectural drawings with painted
walls like monochromatic planes, moving beyond his ideas of "parallelism between pictorial
form and natural form."
Bruno Duborgel discusses the unfigurable in Malevitch and suprematist etymology. Inex-
istent in Russian, it was forged from the Latin and from the Polish designating an ontological
function: "to disclose," "to reveal," "to manifest," "to present," the Absolute as objectless, the
Void, the abyssal being, the universal excitement, the "essence of diversities," the nonfigurative
being, the objectless world. 7 "I have metamorphosed myselfin zero forms," said Malevitch. 8 ln
the economy of modernity, the white monochrome is the essential and, at the sarne time, all colors.
Concerning his suprematist work, Malevitch adds: "The free white abyss, infinity are before
US."9 YetArp's painted bas-reliefExpressiveforms (1932) shows the modern hybrid between painting
and sculpture. 1o Robert Rauschenberg explains the genesis of structural simplicity ofhis White
paintings (1951): whilst Albers pointed out the equivalence of colors, he hesitated in their arbitrary
choice. One of the reasons for his White paintings was not to employ color at his personal service. l l
The monochrome here is an extraordinary paradigm. The singularity emerges as extreme
precisely where there would seem to have been the greatest similitude. Commenting on the
monochromatic inventions ofYves Klein, Rauschenberg and Ellsworth Kelly, Benjamin Buchloch
observed how "the coincidence as well as the simultaneity and repetitions of other avant-garde

200 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


paradigms, substantiates the hypothesis that the discursive formation of modernism generated
its own historical and evolutionary dynamic. lf we assume that the visual paradigms operate
analogously to linguistic paradigms, then the 'langue' of modernism would constitute the neo-
avant-garde 'speakers' and continuously replicate and modifY their 'paroles."'12 White mono-
chromes created in little over a decade by artists from all ove r the world point to the dispersion
of the idea of center in art history. This occurs where there is an artist who questions the gaze,
whether in Brazil, Venezuela, ltaly, France, the United States or Japan. 13 Yves Klein and Piero
Manzoni mark Europe in the '50S. ln manifesting the ideaofthe monochrome,14 Klein became
the owner of the lKB (International Klein Blue) blue and of color itself. According to Restany,
blue for Klein is "a tangible figuration ofthe infinite space,"15 identifYing the pictorial and exis-
tential phenomenons. His methodological project aimed at the brilliancy of the materiaIs and
the intensity of "color in freedom." ldeas of color impregnation and incorporation refer us to
Manzoni. His first achromes date to 1957. ln order to operate the corporeality of the mono-
Max Bill Unidade tripartida [Tripartiteunit] 1948-49 aço inoxidável [stainless steel] 114x88x98,2cm coleção e cortesia Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

201 Monocromos Paulo Herkenhoff


chromes, Manzoni used hydrophilic materiaIs; and also hairy and stony ones to explore the sur-
face, declaring that "My aim is to create an entirelywhite surface (completely colorless, neutral)
that no longer refers in any way to a phenomenon or pictorial element unfamiliar to the nature
of the surface."16
Ferreira Gullar's article "Arte neoconcreta, uma contribuição brasileira" [Neoconcrete art, a
Brazilian contribution], 17 demarcates the genesis ofthis Brazilian movement and its references to
Malevitch and to Mondrian' s foreboding of the end of the painting. 18 After the Gestalttheoríe,
Merleau-Ponty' s phenomenology splits Brazilian concretism, then caught in dogmatic objectivity,
guided by the theories ofNorbert Wiener, Charles Pierce, Max Bill and Swiss concrete art. Neo-
concretism reestablished the indices of subjectivity, whether belonging to the artist or the spec-
tator, for the realization of the plastic facto ln his trajectory, Hércules Barsotti explores the
proportions between light and darkness. A slight movement gives way to the plastic fact when
Jesus Rafael Soto Vibración en blanco [Vibration in white] 1960 gesso, tecido, arame de metal e óleo sobre painel [plaster, cloth,
metal wire and oil on panei] 101,6 x71,1 cm coleção Patricia Phelps de Cisneros, Caracas
Hércules Barsotti Branco branco [White white] 1961 óleo sobre tela [oil on canvas] 100x100cm coleção Patricia Phelps de Cisneros,
Caracas

202 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


coming across brightness or light. His dedicated neoconcrete operation lies in accepting any
minor action ofthe gaze. Branco branco [White white] announces the exact point of constitution
of the nature of space: the borderline between white planes. Present there is something of
Morandi and ofthe place between things. As luminosity emerges tension settles in and difference
irrupts. This sign is the course that constitutes the birth oflanguage. Lygia Clark's work is about
the adventure of the plane. Towards the end of the '50s, the artist realized that space emerges
from the articulation ofindependent planes, 19 such as in Planos em supeifície modulada n.1 [Planes
in modulated surface #1] (r957). ln the junction line of these wooden planes there remain
breaches which the artist incorporates into the plastic discourse like an "organic line." They are
veins through which run shadows and air. Air invades the white monochrome. Instead, Hélio
Oiticica lives the adventure of coloro 20 ln the neoconcrete period, Oiticica wrote, "Color, time and
structure," an analysis ofthe sense of color, white being the "most static that favors silent, dense
and metaphysic duration. The encounter of two different whites occurs deafly, one being more
pure whilst the other is naturally more opaque."21 ln order to counterbalance the difference,
Oiticica would change the brushstroke's direction. 22 He searches for the color's place, the
"organic relation of shape-color," displaces the plane to become concrete space, until it turns

203 Monocromos Paulo Herkenhoff


into penetrable architecture. Color's corporeality is the path that directs the experience of art to
the complete sensorial potentiality ofthe individuaIs.
Emigrating from Japan in 1958, Yayoi Kusama created the Infiníty nets through pattern repe-
tition, as in No. D (1959). Donald Judd compared such paintings to "large fragile, butvigorously
carved grill or to a massive, solid lace."23 The network gives the artist a sense of control in the
face ofher mental illness. 24 ln these "quasi-monochromes," as Lynn Zelevansky designates them,
white finalizes the history ofthe picture, superimposed on all possible and visible color nuances.
White does not refute rhetoric, excess, the misleading traces of the gestural as it comes to live an
unexpected crisis of reason and measure. 25 The Brazilian artist born in Japan, Tomie Ohtake,
covers surfaces with white (1961) like a film oflight. Through it filter other pictoriallayers of the
painting revealing the history of color and manifesting the plurality of colors present in white.
"According to Zen, the colo r white knowswho lies distant from it," recalls Murilo Mendes.
Manabu Mabe, another Japanese-Brazilian, departs from the excess in a monochrome (1962).
Earlier on, Mário Pedrosa had expressed his "gluttonous love of substance."26 The transient cal-
ligraphic gesture registers the thickness of the pictorial covering like an incised body. ln the field
oflight Mabe writes for shadows.
The neoconcrete space leads Ferreira Gullar to argue in "Teoria do não-objeto" that Fontana's
canvases are "a retarded attempt at destroying the fictitious quality of the pictorial space by intro-
ducing in ita real cut."27 ln the "Manifiesto Blanco" [White manifesto] (1946), Fontana defends
color as a space-element for an art devoid of artifice that would involve sound, time and matter.
To Murilo Mendes, Fontana's knife represents the "art of dividing the space in harmony with its
internal cohesion."28 Space springs from perforating and cutting acts, violent on the color-
Antonio Dias Project for an artistic attitude Projeto para uma atitude artística 1970 acrílica sobre tela [acrylic on canvas] 200x300cm
coleção do artista foto Roberto Cecato
Glenn Ligon Strange in the village #9 Estranho na aldeia nQ 9 detalhe 1997 bastão-óleo e carvão em pó sobre linho [oilstick and
coai dust on linen] 244x366cm Max Protech Gallery, Nova York foto Dennis Cowley

204 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


support and arbitrary before its own logic. The blade mutilates the body29 and creates shadows
on the white. Clark's Plano em supeljície modulada [Plane in modulated surface] announces her slips
in air and shadows. ln Vibración en blanco [Vibration in white] (1960), Soto displays the logic ofthe
support's thread and texture, in contrast to Fontana's gesturality. The artist directs the openings
towards dissolution, strictly following the logic of the support's structure. Thus the support
maintains its basic cohesion, despite being still fragile, in order to simultaneously disperse and
retain the density ofthe white as well as light. ln a painting (Untitled, 1964), Mira Schendel opens
rectangles on the white ground. The artist manages to introduce, as a calculating device, the void
where the degree zero of the gaze was established. The rectangular planes cut space like the neg-
ative planes of painting.
"White on white: Absolute white in activity," sang Murilo Mendes. Going back to oil paint-
ing, Alejandro Otero adopts the monochromatic predominance that imposed itself on the for-
mation of coloro He develops a deaf game of concealment and veiling. White becomes laconism
in a plane ofregression towards the utopia ofthe White canvas painting (1961).30 White is the
experience of chords. "Color has to be structured as sound in music," expressed Oiticica. 31
Robert Ryman's absolute choice for white included the offering of"an experience of delight, and
well-being, and rightness. It is like listening to music,"32 to clarifY the density of white. Winsor
(1965), denotes the procedure of painting series and giving titles that are not associated to
objects, people and places. 33 It refers to the brand ofpaints Winsor & Newton. Ryman explores
the construction of painting loading the paintbrush with paint and creating horizontal strips
from left to right until the paint dries up. He repeats this procedure making a new strip below.
Robert Storr compares Ryman to "Inuit who can read with precision a comparably narrow spec-
trum of snow and ice, Ryman has catalogued white's actual variety, thus ironically demonstrating
its latent no-neutrality when seen in relation to itself."34 For Ryman, white "makes other aspects
of painting visible that would not be so clear with the use of other colors."35

205 Monocromos Paulo Herkenhoff


The white monochromes reveal the world marked by solitary differences. The mono·
chrome is imbued with symbolic significance, introducing issues such as difference, desire,
power, racism or art. This is seen in Felix Gonzalez·Torres and in André Serrano's blood pho·
tography. lt is the fusion of symbols in Anish Kapoor's sculpture or prompts the dissolution of
the idea of authorship in Gerhard Richter's painting. lt is concept and its reification. Yves Klein
restored the monQchrome and other colors in the discussion of cannibalism.
PoliticaI violence compares to cannibalism. Montaigne discusses in his Essays (I, XXXI) that
"us [Europeans] exceed them [the cannibal Tupinambás lndians] in all forms ofbarbarity." Reli·
gious wars, ethnic conflicts, civil fights, and fascism demonstrate how society itself devours its
children. Glenn Ligon's painting interrogates. The work done in conjunction with Byron Kim,
Black and white (version # 1) (1993), consists in a series of monochromes which explore the color·
ethnicity relationship ironically, like in a commercial showcase of paints. "The work of the
artists of color is often reduced to being simply about race and nothing else, as if our gender,
sexual, class, and other identities didn't complicate any discussion of race as a subject matter, or
as if race was our 'natural' subject matter."36 ln a subtle way the artist paints black lettered texts
over a black ground to discuss how the use of color names to designate ethnicities can result in
racism when the discourse on ethnic identity denies the discourse of subjectivity. ln support of
Mandela, Nigel Rolfe created Hand onface (1988). Differences ofprojection-whether on a large
screen in Wembley or on a small monitor-discuss social space. The anti·Malevitch video
charges the image with meaning. ln real time, the artist's face suffers repeated attacks bya
black·painted hand. The subtext refers to the politicaI violence of censorship, torture and individ·
ual identity closely linked to the physical condition. The individual's encounter with the plasticity
Nigel Rolfe Hand on face Mão na cara 1988-96 vídeo

206 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


of power is made evident. ln the "Roteiros ... " segment, Abdoulaye Konaté exhibits the installa-
tion Genocide, in which cutouts of a red fabric-monochromes-repair the canvas. These are
wound and suture on a body that wanes in hunger and mutilates in war under the gaze mediat-
ed by the means of communication. Konaté belongs to a generation of artists who incorporate
ancestral values to today's denseness. Africa acknowledges itself as criticaI subject ofits politicaI
processo From Palestinian origin, Mona Hatoum works within the tradition ofvisual symboliza-
tion in lslamic culture and its representation interdict. Ornaments, arabesques, calligraphy, colors
articula te meaning without representing. The abstract surface ofprayer mat (1995) is the result of
thousands of safety-pins. A compass, a "kitsch" inscription, allows one to know the direction of
Meca. The abstract surface ofprayer mat contrasts with Entraíls carpet, a repulsive territory, and
Marble carpet, whose thousands of glass balls destabilize the space. The materiaIs' sensuality
exacerbates certain territorial frailties.
ln his anthropoemetrics, Yves Klein used people for printing pigments. "Appropriative
urgency," says Pierre Restany,37 applying a term linked to anthropophagy to this kind of shroud.
Klein printed "battles" restrained by bodies in turbulent movements-"a battle with the aura of
unrestrained exuberance, orgasmic ecstasy, orgiastic chaos, and savage violence."38 ln Grande
antropophagie bleue-Hommage a Tennessee Williams [Great blue anthropophagy-Homage to Ten-
nessee Williams] (1960), Klein ratifies cannibalism as a symbolic practice, a metaphor ofvio-
lence and a phantasmagoric dimension in desire. Tennessee Williams had approached the theme
in the book Suddenly last summer, where the character Sebastian, in search of sensory realization,
ends up consumed bya gang-a brutal index of social decadence. Like Montaigne, Klein saw
Europe, for its wars, as "pure 'flesh' [... ]. We will rapidly beco me anthropophagites."39 Further
still, he saw the Eucharist as an anthropophagic rite. Preceding the edenic "blue era," cannibalism
would be the phase ofman's redemption. Klein commented that "We ar~ coming into an anthro-
pophagous era [... ]. Itwill be the peaceful realization on a universal scale ofthe famous words:
He who eats of my flesh and drinks of my blood willlive in me and I in him."40 Klein's religious
ancestral cannibalism would be destiny of a last judgment.
ln Projectfor an artistic attitude (1970), Antonio Dias inverts the writing ofthe word REALlTY.
The relationship between visual sign and verbal sign places the word in suspension on the black
ground. The nonverbal space functions as an immense monochrome. Malevitch and his non-
objectivity or other models of the reduction of painting and its recording in society are alluded
to. Constituting the series Model of art, this work is articulated in Model of society in which The
invented countryfDias-de-Deus-Dará is inscribed (r976).
ln the field of contemporary thought, "art is the criticaI model of art," that questions society
as one ofits contents and, implicitly, as lack. The artist's attitude model is to create knowledge
in the friction field of art/society. Departing from the fact that the monochrome is a reduction to
the essential, Cildo Meireles shifts towards the excess of colo r in Desvio para o vermelho [Detour
into red] (1967-1984).41 Impregnação [lmpregnation], the installation's first setting, apparently
draws Cildo closer to Yves Klein's economy. However, Cildo approaches the capital's maneuvers,
the encounter between exchange value and utility value, symbolic value and real value. As an
inflationary economic operation, color devours and neutralizes ideas ofvalue. The monochrome
now takes an opposite course: from the notion of zero to the recording ofhistory.
Paulo Herkenho1f. Translatedfrom the Portuguese by Veronica Cordeiro.

207 Monocromos Paulo Herkenhoff


I. Murilo Mendes, "Texto branco," Transístor, Rio de Janeiro: 17. Ferreira Gullar, Revista crítica de arte, Rio de Janeiro, n.I
Editora Nova Fronteira, '1980, PP.37I-72. The quotations of (1962). Rodchenko was not mentioned there.
the author refer to this texto 18. See, for example, Hélio Oiticica's text "16 de fevereiro de
2. Kasimir Malevitch, Le miroir suprématiste, Lausanne: L'Âge de 1961," Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: Rocco, 1986,
l'Homme, 1997, II, pp. 97-98. P·27·
3. Jorge Romero Brest, "Primera Bienal de San Pablo," Buenos 19. They are planes cut out in wood, arranged so as to form
Aires, Ver y estimar, n.23 (May 1951), P.I4. rectangles.
4. See Yve-Alain Bois, Painting as model, Cambridge: MIT Press, 20. Dealt with in one of the exhibitions of this Bienal and in
1990, p. 104· Viviane Matesco's essay in this book, 386-397
S. See "A cor no modernismo brasileiro, a navegação com 21. Hélio Oiticica, "Suplemento Dominical," Jornal do Brasil
muitas bússolas" by the author in this catalogue. (26.II.I960), Rio de Janeiro.
6. Rio de Janeiro, "Suplemento dominical," Jornal do Brasil, 22. "Dezembro de 1959," op.cit., note 18 above, p.I6.
1960, P-4- 23. Cited in Lynn Zelevansky, "Driving image: Yayoi Kusama
7. Bruno Duborgel, Malevítch, la question de I'icône, Saint-É ti- in NewYork," Yayoi Kusama 1958-1968, Los Angeles: Los Ange-
enne: Cierec, 1997, p. 70. Quotes A. Nakov and also analyses les County Museum, 1998, p.I2.
the relationship ofMalevitch's workwith the transfigurative 24· lbid., p.I4.
art of the icons. 25. Here Murilo Mendes' Texto Branco is parodied, note I above.
8. Malevitch, "Du cubisme et du futurisme au suprématisme. 26. Mário Pedrosa, "Manabu Mabe," Jornal do Brasil (28.10.
Le nouveau réalisme picturial," (1916), Malévitch écríts, Paris: 1959), Rio de Janeiro.
Champ Libre, 1975, P.I85. 27. Ferreira Gullar, Rio de Janeiro, "Suplemento dominical,"
9. Malevitch, "Le suprématisme," op. cito note 2 above, II, p. Jornal do Brasil (1960), P-4-
84· 28. "Fontana," op.cit., note I above, P.376.
10. Thierry de Duve, Kant after Duchamp, Cambridge: MIT 29. See Rosa Olivares' essay in this book, PP.508-5I7
Press, 1996, p.229. 30. These interpretations by Luis Pérez Oramas were extracted
II. Robert Rauschenberg/Calvin Tomkins, The bride and the from a letter to the author on August 25,1998.
bachelor, New York: Viking Press, 1974, PP.I99-200. 31. See op.cit., note 18 above, P.25.
12. Benjamin Buchloch, "The primary colors for the second 32. Robert Storr, Robert Ryman, London: Tate Gallery and New
time: a paradigm repetition ofthe neo-avant-garde," October, York: The Museum ofModern Art, 1993.
MIT, n.37 (Summer 1986), P.45. 33. lnterview by Robert Ryman to Lynn Zelevansky on July 7,
13. Specific texts in this book examine specificities. We work 1992, Robert Storr, Robert Ryman, London: Tate Gallery and
with paradigms here. Other artists could be included in the New York: The Museum ofModern Art, 1993, p.II8.
debate. Rodchenko developed his monochromes in the '20S. 34. Op.cit., previous note, p.I6.
Among the white monochromes we should mention here 35. Cited in Storr, op.cit., note 33 above.
Strzeminski's, and more recently, those by Ellsworth Kelly, 36. "An interview with Byron Kim," Glenn Lígon unlbecoming,
Burri, Megert, Goepfert, Castellani, Colombo, de Vries, Girke, Philadelphia: lnstitute ofContemporary Art, 1997, P.54.
Bartels, Piene, Uecker, Morellet, among others, in addition to 37. Pierre Restany, Yves Klein, le monochrome, Paris: Hachette,
Opalka when the zero degree is reached. We do not include 1974, P·9 8 .
the painted reliefs by Schoonhoven, von Graevenitz, Sérgio 38. Sidra Stich, Yves Klein, Stuttgart: Cantz, 1994, p.I80.
Camargo, Simetti, among others. 39. Note in his journal, 1957, cited in Stich, previous note,
14. See Benjamin Buchloch, op.cit. note 12 above. Thierry de p.I80.
Duve, "Yves Klein, or the dead dealer," October, n.49 (r998) and 40. Yves Klein, Zéro, 1973, p.88.
Kant after Duchamp, Cambridge: MIT Press, 1996. 41. Desvio para o vermelho is displayed in this XXN Bienal, with
IS. Pierre Restany, "Yves Klein le monochrome," La couleur a study by Lisette Lagnado, PP.398-405.
seule, Lyon, 1988, pp. 73-81.
16. ln Azimuth 2, 1960, cited in Ursula Perucchi-Petri, La couleur
seule, p.88.

208 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Torres-García-neoplasticismo em movimento
A origem visível do universalismo construtivo é o neoplasticismo de Mondrian. O neoplas-
ticismo, e o trabalho de Mondrian em particular, se baseia em um sistema de opostos (mas-
culino/feminino, claro/escuro, idéia/matéria), representado por linhas que formam ângulos
retos, por planos definidores e por cores primárias, além do preto e branco. Sua linguagem
abstrata, que procura dar forma às leis universais, inclina-se à elaboração de uma arte impes-
soal, matemática e científica. No entanto, hoje sabemos que mesmo as obras mais abstratas
são veículos para conteúdos. Portanto Mondrian, apesarde sua ligação com o meio teosófico e
seu respeito pelas contribuições de Madame H. P. Blavatzky, não tomou as imagens ligadas a
eles, mas em vez disso, inventou uma linguagem visual para expressar idéias fundamentais
sobre o mundo, a natureza e a vida humana, fluindo para uma unidade harmoniosa de opostos.
As analogias plásticas entre Mondrian e Torres-García são claras: planos subdivididos, li-
nhas espessas, horizontais e verticais. Ambos os artistas também adotam o princípio da cons-
trução assi métrica.
Torres-García e Mondrian procuram realizar uma pintura plana, mas em Mondrian o mate-
rial é (quase) anulado e a pincelada é reduzida à sua máxima austeridade, até que o gesto da
mão desapareça-enquanto Torres-García deixa uma espécie de marca (marca sensível, talvez)
sobre o material, e algumas de suas pinturas assemelham-se a "sinais gravados na pedra".
A pintura de Torres-García é frontal. No entanto, suas figuras têm uma tridimensional idade
inata: suas estruturas podem ser percebidas como alvéolos profundos, semelhantes a paredes
Joaquin Torres-García Construcción en blanco y negro [Bl ack and white construction] 1938 têmpera sobre madeira [tempera
on wood] 81,2x102cm coleção Patricia Phelps de Cisneros, Caracas

209 Monocromos Pau lo Herken hoff


de pedras empilhadas. Pedras, ainda que racionalizadas. O trabalho de Torres-García parte da
realidade, mas não totalmente: o mestre freqüentemente consegue o equilíbrio entre natureza
e razão e este eq uiIíbrio tende a ser denom inado "clássico".
Ambos usam as três cores primárias (amarelo, vermelho, azul) gerando o maior contraste,
a máxima tensão. Em Mondrian, elas se inclinam ao mais alto grau de pureza, longe de toda
influência atmosférica e naturalista. Mondrian mede a core assim obtém o equilíbrio. Sua pin-
tura se torna atonaI. Em Torres-García, o amarelo é ocre, o azul é enegrecido (ele não acrescen-
ta branco como Mondrian) e o vermelho acaba sendo puzzo/i. A cor de Torres-García retém uma
certa sensibilidade, consistente com suas estruturas também sensíveis.
Em Mondrian, os planos de cor estão contidos por um limite controlado pela forma. Mon-
drian era um clássico. Em Torres-García, a relação estrutura da cor/estrutura do desenho é um
contraponto, permitindo que a cortransborde para fora do desenho; portanto, a coré instável e
mantém a instabilidade de suas estruturas.
As estruturas de Mondrian articulam o espaço; uma linha reta é uma linha reta e nada
mais. Torres-García consegue um passo mágico típico das culturas que germinam na América
Latina. Na estrutura de Torres-García, a linha está a ponto de se tornar expressionista: pince-
ladas rápidas que lhe dão uma vibração singular; é o sismógrafo das tensões plásticas entre os
planos. Resíduos da realidade que passam a sobreviver nas suas abstrações. Esta postura é
muito latino-americana e não poderia ser a conseqüência de uma cultura no seu estágio final,
como a que Mondrian representa.
As estruturas de Mondrian seccionam o espaço, tornando-o estático. Torres-García
dinamiza o espaço. As estruturas de Torres-García têm sua própria inércia, que as aproximam
mais da Pintura de Ação do que da pintura mais reflexiva.
O movi mento plástico é o tema central de Torres-García, enq uanto Mond rian se prendeu ao
estático, mesmo nos trabalhos como Broadway boogie-woogie. Mondrian mantém as interseções,
onde verticais e horizontais se contrabalançam umas às outras. Mesmo na sua cor, Mondrian
procura acentuar o equilíbrio ótico de suas telas, ajustando a extensão de cada uma das cores.
(Um vermelho, que irradia mais do que o azul, requer muito menos expansão para conseguir
equivalência). Desta maneira, ele neutraliza a atividade espacial da cor. Uma vez que lhe falta o
recurso da tonalidade para dar unidade à pintura, ele equilibra quantidades para poder unificar.
Mondrian levanta o problema do plano e dentro desse problema investiga a estética dos eixos.
Mondrian procurou atingiro equilíbrio, na arte (tonalidade total, um quadrado paralisado)
e na vida: a cidade perfeita. Toda realidade deve ser expressa por meio de dois eixos essenciais:
o vertical e o horizontal, procurando um equilíbrio que "só pode ser estabelecido por intermédio
do equilíbrio de oposições desiguais mas equivalentes". O absoluto.
Vantongerloo era obstinado na sua procura pela verdade científica como fundamento para
suas propostas plásticas, tanto que poderia serconsiderado o mentorde uma arte programada,
"matematicamente predeterminada". Torres-García escreveria: "Eu não vou contra a regra, eu a
uso [... ] deve ser útil, e nada mais".
Theo van Doesbourg tentaria induzir o dinamismo ao usar a diagonal. Aquilo levou ao
desentendimento entre Doesbourge Mondrian, uma vez que Mondrian incluiu linhas oblíquas
entre seus "ritmos naturais". Ele foi tão longe quanto a afirmarque preferia a curva, que tem
a vantagem da fluidez e o mérito de desempenhar melhor sua função: traduzir sentimentos
naturais, naturalmente excluídos do paraíso da harmonia neoplástica. Entre Mondrian e van
Doesbourg situa-se Torres-García, que havia intuído o problema quando inventou seus brin-
quedos transformáveis (1917). Sua solução é o cata-uento, que dá dinâmica à pintura estática.

210 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Torres-García voltou à vertical e horizontal de Mondrian (no âmago, era um clássico).
Longe de fazer a interseção com uma simples cruz, suas linhas vão contra as perpendiculares,
sempre no lugar determinado pela proporção média, formando algo parecido com um T. Deixam
de ser linhas inertes para serem tensores. Desta forma, ele se aventura na procura por uma
unidade espacial-temporal (próxima à meditação de Paul Klee). É puro fluir. Estrutural. Rítmico.
Torres-García pinta a proto-história da arte cinética.
O universalismo construtivo de Torres-García é o coroamento do neoplasticismo. Torna
expressionista o que havia sido purista, dinâmico o que havia sido estático e acrescenta o símbo-
lo, esquematizando-o. Ao invés de apropriar-se do rígido vocabulário europeu do neoplasticismo
e situá-lo em um contexto latino-americano, ele transforma essas tendências influentes desen-
volvendo uma nova linguagem artística. O artista uruguaio representa, desta maneira, um mo-
mento em que a América Latina se ilumina com luz própria e ao mesmo tempo mantém um
diálogo com a melhor produção européia.
O trabalho de Mondrian estava na origem da definição do sistema de Torres-García. Aquela
visível origem européia (estrutura) inclui a origem primitiva (os esquemas, os símbolos). Torres-
García foi o criadorde uma linguagem pessoal, uma linguagem de fundação na América Latina.
Ángel Kalenberg. Traduzido do inglês por Li/ia Astii.

Torres-García-neoplasticism in movement
The visible root ofConstructive Universalism lies in Mondrian's neoplasticism. Neoplasticism,
and Mondrian's work in particular, is based on a system of opposites (male-female, light-dark,
idea-matter), represented by lines forming right angles, defining planes, and by primary colors
in addition to black and white. lts abstract language, which seeks to give shape to universallaws,
tends toward the elaboration of an impersonal, mathematical and scientific art. Yet today we
know that even the most abstract works are vehicles for contents. Thus Mondrian, despite his
connection with theosophical media and his respect for Madame H. P. Blavatzky's contributions,
did not take the imagery linked to them, but instead invented a visuallanguage to express fim-
damental ideas about the world, nature and human life, flowing into a harmonious unity of
opposites.
The plastic analogies between Mondrian and Torres-GarcÍa are clear: subdivided planes,
thick black lines, horizontaIs and verticaIs. Both artists also adopt the principIe of asymmetric
construction.
Torres-GarcÍa and Mondrian both seek to undertake a planar painting, but in Mondrian the
material is (almost) annulIed and the stroke is reduced to its maximum austerity to the point
where the gesture ofthe artist's hand disappears-while Torres-GarcÍa leaves a relatively sensitive
mark on the material, and some paintings at times resemble "signs engraved in stone."
Torres-GarcÍa's painting is frontal, yet his figures have an innate three-dimensionality: his
structures can be perceived as deep alveoli, like walIs of piled stones. Stones, yet rationalized
ones. Torres-GarcÍa's work departs from reality, although not exclusively: the master frequently
achieves a balance between nature and reason, and that balance tends to be calIed "classicaI."
Both use the three primary colors (yelIow, red, blue), generating the greatest contrast, the
maximum tension. ln Mondrian they tend toward their highest degree of purity, far from alI
atmospheric or naturalistic influence. Mondrian measures the color, and thus obtains balance.
His painting becomes atonaI. Whereas in Torres-GarcÍa the yelIow is ochre, the blue is blackish
(he does not add white, as Mondrian did) and the red ends up being puzzoli. Torres GarcÍa's
color retains a certain sensitiveness, consistent with his also sensitive structures.

211 . Monocromos Paulo Herkenhoff


ln Mondrian the planes of color are contained bya border, controlled by formo Mondrian
was a classicist. ln Torres-GarcÍa the colo r structure/drawing structure relationship is contra-
puntal, allowing the colo r to overlay the drawing; thus the color is unstable and in keeping with
the instability ofhis structures.
Mondrian's structure articulates space; a straight line is a straight line and nothing more.
Torres-GarcÍa takes a magicaI step, typical of the cultures that germinate in Latin America. ln
Torres-GarcÍa's structure the line is on the verge ofbeing expressionist: it has whisk brush-
strokes that give it a peculiar vibration; it is the seismograph of the plastic tensions between the
planes. ln his abstractions, residues of the reality he sets out with survive. This posture is very
Latin American and could not be the consequence of a culture in its final stage, like the one
Mondrian represents.
Mondrian's structures section the space, making it static. Torres-GarcÍa dynamizes space.
Torres-GarcÍa's structures have their own inertia, which brings them closer to Action Painting
than to more reflective painting.
Plastic movementis Torres-GarcÍa's central theme, whereas Mondrian stuckwith the static,
even in works like Broadway boogie-woogie. Mondrian maintains the intersections, where verticaIs
and horizontaIs offset one another. Even in his color Mondrian seeks to accentuate the optical
balance of his canvases by adjusting the expanse of each of the colors. (A red, which radiates
more than a blue, requires much less expanse to achieve equivalence). Thus he neutralizes the
colors' spatial activity. Since he lacks the resource oftone to give the painting unity, he balances
quantities in order to unity. Mondrian raises the problem of the plane, and within that problem
investigates the aesthetics of the axes.
Mondrian sought to achieve equilibrium, in art (total tone, a paralyzed square) and in life:
the perfect city. Every reality must be expressed through two essential axes: the vertical and the
horizontal, seeking an equilibrium that "can only be established through a balance ofunequal
but equivalent oppositions." The absolute.
Vantongerloo was obstinate in his pursuit of a scientific truth as the foundation for his
plastic proposals, so much that he could be considered the mentor of a programmed, "mathemat-
ically predetermined" art. Torres-GarcÍa would write: "I do not go against the rule, I use it [... ] it
must be useful, and nothing more."
Theo van Doesbourg would try to induce dynamism by using the diagonal. That led to the
break between Doesbourg and Mondrian, since Mondrian induded oblique lines among "natural
rhythms." He went so far as to maintain that he preferred the curve, which has the advantage of
fluidity and the merit of better fulfilling its function: to translate natural feelings, naturally
excluded from the paradise of neoplasticist harmony. Between Mondrian and van Doesbourg lies
Torres-GarcÍa, who had intuited the problem when he invented his transformable toys (1917).
His solution is the pinwheel, which renders static painting dynamic.
Torres-GarcÍa later returned to Mondrian's vertical and horizontal (down deep he was a
dassicist). Yet far from intersecting in a simple cross, his lines run up against the perpendiculars,
always at the place determined by the golden section, forming something of a T. They cease to
be inert lines and become tensors. Thus he embarks on the quest for a spatial-temporal unity
(dose to Paul Klee's meditation). It is pure flow. Structural. Rhythmical. Torres GarcÍa paints the
proto-history ofKinetic art.
Torres GarcÍa's Constructive Universalism is a surmounting of neoplasticism. It turns
expressionist what had been purist, dynamic what had been static, and adds the symbol,
schematizing. Rather than appropriating the stern European vocabulary of neoplasticism into a

212 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


South American context, he transformed these influential tendencies to develop a new artistic
language. The Uruguayan artist thus represents a moment in which Latin America becomes
enlightened with its own light while at the sarne time maintaining a fruitful dialogue with the
best ofEuropean artistic production.
Mondrian's work was at the root of the definition ofTorres-GarcÍa's system. That visible
European root (structure) subsumes a primitive root (the schemata, the symbols). Torres-GarcÍa
was the creator of a personallanguage, a foundational one for Latin America.
Ángel Kalenberg. Translatedfrom the Spanísh by Evelyn Tavarellí.

Lucio Fontana-trinta anos depois


Lucio Fontana foi o apogeu italiano, para não dizereuropeu, do modernismo pós-guerra. Moder-
nidade além da guerra. A intelligentsia européia entre-guerras, impelida pelo avanço nazista,
atravessou o Atlântico e partiu para engrossar o sonho americano-e até mesmo quando
retornou, o fez em um clima de "Fiesta" à la Hemingway. Enquanto isso, o modelo americano,
personificando-se na estética greenberguiana, preparava-se na crista da vitória para tornar-se
um modelo universal, sustentado pela fé heróica da Nova Fronteira, da ética puritana e da icono-
clastiajudaica, um modelo em que o espiritualismo e o materialismo estavam unidos na idéia
de Forma-a Antiforma é apenas o outro lado da medalha, ou, se assim quiserem, da moeda. A
partir da periferia-Argentina-Fontana lança o seu "Manifiesto blanco" [Manifesto branco]
que anseia por uma modernidade sem domínio, uma medida concreta contra qualquer ilusio-
nismo. Fontana tinha se aproximado do modernismo desde o início da década de 30, porcausa
Lucio Fontana Concetto spazziale/attesa Conceito espacial/espera [Spacial concept/waiting] 1966 acrílica sobre tela com uma
incisão [acrylic on canvas with an incision] 164x114cm coleção Stedelijk Museum, Amsterdã

213 Monocromos Paulo Herkenhoff


de sua proximidade com os abstracionistas da Lombardia, sua associação e colaboração com
arquitetos-desde Edoardo Persico até Giuseppe Terragni-com o seu expressionismo dioni-
síaco de matriz barroca. Ele sempre esteve mais interessado na expansão do espaço do que na
exploração dos meandros da alma.
A felicidade de Fontana antes da guerra não foi jamais alcançada no pós-guerra, mas ao
mesmo tempo percebe-se que ele foi de algum modo limpo de sua melancolia e tudo tornou-se
dinamicamente positivo. A guerra marca aí um limite negativo, que breca qualquer prazer sus-
penso, mas Fontana mais uma vez contrapõe a isto uma tensão positiva. Ele retorna ao Eu
essencial, e o gesto individual torna-se o ato supremo do artista, mesmo quando manuseia os
novos materiais que a tecnologia oferece a uma cultura expansionista. Continua e define, em
formas não servilmente decorativas, sua colaboração com os arquitetos. Sua escola teria mais
influência sobre os designers italianos da época do que sobre a arte contemporânea, cujas agi-
tações democráticas acabam sempre tendo fôlego curto.
Desde o "Manifiesto blanco" de Buenos Aires, de 1945 (não assinado por Fontana, mas
redigido sob sua influência direta por Bernardo Arias, Horacio Cazeneuve e Marcos Fridman) até
os manifestos do Espacialismo italiano, Spaziali. "Primo manifesto spaziale" [Espaciais. Primeiro
manifesto espacialJ, Milão, 1947; "Secondo manifesto spaziale" [Segundo manifesto espacialJ,
Milão, 1948; "Proposta di un regolamento. Manifesto spaziale" [Proposta de um regulamento.
Manifesto espacialJ, Milão, 1950; "Manifesto dell'arte spaziale. Quarto manifesto spaziale"
[Manifesto da arte espacial. Quarto manifesto espacialJ, Milão, 1951; "Manifesto tecnico"
[Manifesto técnico], Milão 1951; "Manifesto dei movimento spaziale per la televisione" [Mani-
festo do movimento espacial, para a televisão], Milão 1952-,0 percurso é bem curto. Contudo
são daquele tempo os primeiros Concetti spaziali [Conceitos espaciais] (de 1947), e foi nesse con-
texto que ele fez as primeiras experiências de "buracos" perpetrados sobre o papel colado sobre
a tela, ou sobre a tela preparada, e se têm as primeiras monocromias (no máximo em 1949) às
quais ele retornaria em ciclos e séries: Attese [Esperas], de 1959; Squarci [Rasgos] de 1962; as for-
mas ovóides de la fine di Dio [O fim de Deus] entre 1962 e 1964.
As monocromias de Fontana são antes de mais nada superfície, como campo sobre o qual
incide o evento do buraco, do corte, do rasgo. O evento é o resultado de um gesto, gesto indivi-
duai, que é tanto anônimo quanto específico, mas não personalizado.
A superfície é aquela da pintura, em sua mais alta e nobre tradição, dos ícones bizantinos,
de Giotto, Piero della Francesca a Rafael, Manet e Mondrian. Porém os tons são sempre mais
ácidos, até mesmo quando se trata da tela branca: amarelos, verdes, azuis minerais e metálicos,
vermelhos oxidados, rosas que tendem a servioleta, cores nunca puras, que se desviaram de sua
sublime pureza para encontrarem valências tímbricas de uma modernidade substantivada por
princípios de produtividade. E estes princípios, como ácidos, corroeram as escalas cromáticas
dos antigos mestres, que ao contrário, tendiam a um purismo sublime.
O campo oferecido pela superfície da pintura, e que Fontana define na medida exata, é um
campo de forças porcausa do conteúdo simbólico que a tradição e a história, da arte ocidental,
contribuíram para construir: plano da representação, superfície da projeção do imaginário,
espelho opaco das coisas, espaço ilusório ou çoncreto para a construção das figuras e dos ícones.
Fontana o delimita e desnuda em suas monocromias, quer seja o branco da tela preparada, quer
seja uma cor. Nela, cada figura é reabsorvida e desaparece-cede o campo-e o olharse deixa
ficar neste lugar esvaziado de qualquer determinação adicional. Então, nós seremos devolvidos
a nós mesmos, à nossa liberdade e à nossa solidão recíproca; prontos. Prontos para o evento que
sempre esperamos. E o evento se dá como corte, perfuração, ferida, ferida aberta, violação da

214 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


superfície homogênea. Não mais via de fuga ao imaginário, não texto e protesto fantástico na
representação ilusória que nos é dada como alimento, como o osso ao cão, mas sim abertura.
A ação do artista, um ato de vontade, afirma a posição, o status, o agente. Ao mesmo
tempo, ao abrir a superfície, corta o plano simbólico e inaugura a vinda do "Altro-da-sé" [Qutro-
por-si]. Interrompe a relação legítima sobre a qual historicamente se fundamentou a dimensão
da arte e, de maneira análoga, o relacionamento que se constituiu entre o sujeito agente e o
mundo através de articulações lingüísticas codificadas. Corrói a estrutura fechada do sistema
da pintura, do sistema da arte, do sistema da cultura, e a abre às regiões ulteriores do não dito,
do indizível e do não representável. Tira a casca do hoje para revelar dimensões do futuro:
traspassando o espaço dado ou concedido, traspassa o tempo de sua própria permanência nele.
(Fontana como Italo Calvino, como um Borges traduzido e editado porCalvino.) Do lado de cá
está a linguagem, o espaço ocupado pelo Eu subjetivo, do outro lado, além, está o desconhecido:
o corte é a marca da paixão, uma paixão que o rigor da razão esfriou, mas não extinguiu, e do
desejo sem nome e sem limites. Fontana, animado pelas pulsões que conjugam a modernidade
em termos libertários e anarquistas, somando a liberdade da tradição iluminista da Lombardia
com a anarquia do aventureiro argentino, reencontra um novo tempo.
Pie r Luigi Tazzi. Traduzido do italiano por Eugénia Deheinzelin.

Lucio Fontana-thirty years later


Lucio Fontana was the culmination of Italian, rather than European postwarmodernism.
Beyond-the-war modernity. The Nazi advance had driven the prewar European intelligentsia
across the Atlantic, where they fattened the American dream. Those who carne back did so in a
climate that smacked of a Hemingway "Fiesta." ln the meantime, riding the wave of victory, the
American model embodied in Greenberg's aesthetic made ready to beco me a universal model,
sustained by a heroic belief in the New Frontier, the Puritan ethic, and Jewish iconoclasm: a
model in which spiritualism and materialism were united in the idea ofForm. Anti-form was the
other side of the medallion, or of the coin if you will. From the periphery, from Argentina,
Fontana launched his "Manifesto blanco," which hopes for a modernism without domain, a
concrete measure against any and all illusions. Fontana first carne to modernism in the early
1930S through his closeness to the Lombard abstractionists, his association and collaboration
with architects-from Edoardo Persico to Giuseppe Terragni-and his Dionysian expression-
ism of baroque extraction. He was always more interested in the expansion of and into space
than in probing the labyrinths ofthe sou!.
ln the postwar period Fontana would never again achieve his prewar happiness.But at the
sarne time he was somehow cleansed of his melancholy, and everything became dynamically
positive. The war had indeed established a negative limit that had inhibited all pleasures, but
Fontana reacted once again with positive tension. He returned to the essential self, or the indi-
vidual gesture that became the supreme act of the artist, even with the new materiaIs that tech-
nology offers to an expansionist culture. He continued his collaboration with architects and
distinguished himself in forms that were not slavishly decora tive. His mastery would have more
of an influence on the ltalian designers ofthe period than on contemporary art, whose demo-
cratic stirrings would nevertheless prove to be short-lived.
lt's a small step from the 1945 "Manifesto blanco" ofBuenos Aires (which Fontana did not
sign, but which was written under his direct influence by Bernardo Arias, Horacio Cazeneuve
and Marcos Fridman), to the manifestos ofItalian Spatialism, Spazíalí. "Primo manifesto spaziale,"
[Spatials. First spatial manifesto], Milan, 1947; "Secondo manifesto spaziale" [Second spatial

215 Monocromos Paulo Herkenhoff


manifesto], Milan, 1948; "Proposta di un regolamento. Manifesto spaziale" [A regulation's pro-
posaI. Spatial manifesto], Milan, 1950; "Manifesto delI 'arte spaziale. Quarto manifesto spaziale"
[Spatial art manifesto. Fourth spatial manifesto], Milan, 1951; "Manifesto tecnico" [Technical
manifesto], Milan, 1951; "Manifesto del movimento spaziale per la televisione" [Manifesto of
spati~1 movement for television], Milan, 1952. Shortly thereafter he made the first Concetti spazialí
[Spatial concepts], 1947. It was in this context that he first experimented with making "holes" in
paper glued to canvas or on prepared canvases, and with the first monochromes (in 1949 at the
latest), to which he would return again and again in cycles and series: Attese [Waiting], starting
in 1959; Squarcí [Tears] from 1962; the oval forms ofLafine di Dia [The end ofGod] between 1962
and 1964.
Fontana's monochromes are first and foremost surface as field, in which the event ofthe
hole, the cut, the slash takes place. The event is born from a gesture, an individual gesture, but
one that is both anonymous and specific rather than personalized.
His surface is that of painting, but in its highest and most noble tradition, from Byzantine
icons, Giotto, and Piero delIa Francesca to Raphael, Manet and Mondrian. But his tones became
more and more acidic, even when he was using a white canvas: yelIows, greens, mineral and
metallic blues, rusty reds, pinks bordering on violet, colors that are never pure, that have deviated
from their sublime purity toward the tonal values of a modernism substantiated by the principIes
of productivity. And like acid these principIes attacked the chromatic scale of the old masters,
which tended vice versa toward a sublime purity.
The field afforded by the surface of painting and coercively defined by Fontana is a field of
force by virtue of the symbolic outcome that the tradition and history ofWestern art helped to
constitute: field of representation; surface on which to project the imaginary; opaque mirro r of
things; illusory or concrete space to construct figures and icons. Fontana marks and reveals this
field in his monochromes, whether it be the white of prepared canvas or a coloro Bach figure is
reabsorbed and disappears-surrenders the field-and the gaze acquiesces in a field devoid of
any suppletive determination. Then we are restored to ourselves, to our freedom and our mutual
solitude: ready. Ready for the event that we have always awaited. And the event offers itself as a
cut, perforation, wound, open wound, violation ofthe homogeneous surface. Not as an escape
into the imaginary, a text or fantastic pretext in an illusory representation, offered to us the way
one would give a bone to a dog. Instead we are given an opening. The artist's action, an act of
will-power, affirms the position, the statute, the agent. At the sarne time, by opening up the sur-
face it cuts the symbolic plane and inaugurates the advent ofthe "Altro-da-sé" (Other-than-one-
self); it interrupts the legitimate relationship that was the historic basis for the artistic
dimension, as welI as the relationship between the acting subject and the world constituted
through codified linguistic articulations. This action undermines the closed structure ofthe sys-
tem of painting, the system of art, the system of culture, and opens it up to the ulterior regions
of the unsaid, the ineffable, the unrepresentable. It peels away the bark of today to reveal the
dimensions of the future: by piercing the space that has been given or conceded, it pierces the
time in which it is constituted. (Fontana like Italo Calvino, like a Borges translated and edited by
Calvino.) On the near side stands language, the space occupied by the subjective Self; on the far
side, the unknowable. The slash is the sign of passion, a passion that has been chilled but not
extinguished by the rigor of reason, the sign of a nameless, unbound desire. Animated by
impulses that conjugate modernism in libertarian and anarchic terms, fusing the liberty ofthe
Lombard enlightenment tradition with the anarchy ofthe Argentine adventurer, Fontana redis-
covers a new concept oftime. Píer Luigi Tazzí. Translatedfrom the Italían by Michael Moore.

216 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


" f •

Yves Klein-a orgulhosa incandescência do branco


"Le cannibalisme universel qui approche, I'ere anthropophagique que nous allons traverser
bientôt n'est pas de nature cruelle, ni féroce ni humaine. Bien au contraire, elle sera I'expression
vécue ou plutôt I'assimi lation d'une synthese bio logique. Vaincre le silence, le dépecer, prendre
as peau et s'en vêtir pour ne plus jamais avo ir froid spirituellement. Je me sens comme un vampire
vis-à-vis de I'espace universel!" declarou Yves Klein em "Le vrai devient réalite" [O verdadeiro
torna-se realidade] (Zero, Düsseldorf, julho, 1961, n.3), com o tom enigmático, oraculare profé-
tico pelo qual fundaria toda a autoridade espiritual de sua arte.
Para contrariar as aparências deste mundo e revelar à sensibilidade do ser a sua verdade
espiritual, Yves Klein inventará uma arte que integrará de pronto a globalidade de sua vida.
Praticará a pintura como se procede numa cerimônia religiosa, numa encantação litúrgica, numa
posse sacramental-pintar é entregar-se a um ritual mágico para satisfazer uma necessidade
espiritual. A fim de fazer de sua obra a matriz inexcedível de qualquer obra possível, o pintor
anexará sucessivamente todas as façan has "antropófagas" ao ingeri r cada figu ra, ao devorar cada
representação do corpo humano-o Verbo, entretanto, encarnou-se, e o corpo nele fica e per-
siste. Jamais arte alguma terá sido capaz de propiciar aos homens significações espirituais e
sensuais tão poderosas, ao apagar tão visivelmente os aspectos visíveis da Encarnação.
Klein não pintou senão recortando na cor pura a cor pura: Monocromos amarelos, alaranjados,
cor-de-rosa, uermelhos, azuis, uerdes, uioletas, negros, brancos, Monogolds .. . Ao todo, o pintor realizou treze
Monochromes blancs [Monocromos brancos], entre 1957 (o ano das primeiras pinturas brancas é
também o da primeira exposição de pinturas azuis) e 1960 (durante os dois últimos anos de
vida, não fez mais quadros brancos). A superfície branca e rugosa desses pequenos quadros tem
Yves Klein Grande antropophagie bleue-hommage à Tennessee Williams Grande antropofagia azul-homenagem a Tennessee
Willi ams [Bi g blu e antropophagy-homage to Tennessee Willi ams] 1960 pigmento e resina sintética sobre pape l [pigment and
synthetic resin on paper] 276x418cm coleção particu lar [private collection]

217 Monocromos Paulo Herkenhoff


uma matéria granulosa, irregular, acidentada, de grão picado por discretas asperidades arenosas.
Esse branco é a cordas partículas que refletem uma luz sem Sombra. Um Monocromo branco tem
a cor do Vazio, do Imaterial e do Silêncio. Esse branco é a própria cor do espaço do Vide [Vazio]
apresentado, em 1958, entre as paredes retocadas da galeria Iris Clert, em Paris, ou do Museu
Haus lange, em Krefeld, Alemanha, em 1961, e toma a forma da matéria e das asperidades.
O branco, que é a soma silenciosa do conjunto do espectro cromático, é a cor que sobra
quando todas as outras desaparecem: a orgulhosa incandescência do branco absOlveu todas as
qualidades-de refração, de difusão, de reflexão-de todas as outras cores. É a cor canibal
absoluta, aquela que assimila todos os princípios cromáticos, aquela que soube incorporar
todas as virtualidades do espectro, aquela que não teve medo do vermelho, do amarelo, do azul.
O branco comeu todas as cores: é antes de tudo a cor imaterial do vazio que reflete todas as radia-
ções e digere todos os comprimentos de onda. Para além do infinito do céu e além do azul do
espaço, o branco é a cor desse silêncio canibal que teria devorado toda cor.
Com exceção de sua função canibal, Monocromos brancos e sua significação permanecem
enigmáticos. Em compensação, o pintorda "cor pura" não se cansou de explicare enfatizara
quanto a significação de seus Monocromos nada tinha a ver com a arte abstrata. Klein rejeita alto
e bom som a geometria de um Mondrian ou de um Malévitch, apenas para afirmar mais ainda
que "ele não é um pintor abstrato": "Detesto o obscurantismo, que se diz místico, desses falsos
pintores" Qournal [Diário], 3 de setembro de 1957).
Se Klein recusa explicitamente a arte abstrata, é porque reprova essa arte fundada no
ocultismo religioso-e no ódio à imagem, que outra coisa não é senão ódio ao nu feminino.
Não podemos deixar de reconhecer o fato de que os três pais fundadores da abstração-Malévitch,
Mondrian, Kandinsky-têm em comum uma doutrina religiosa ocultista, esotérica, iconoclasta, alimen-
tada porteosofia gnóstica, hermetismo e simbolismo. Na obra de cada um dos três, a prática da
abstração não se compromete simplesmente no esoterismo mais obscurantista, mas igual-
mente no ódio explícito ao nu feminino. Essa aversão subjetiva pelo nu feminino, que acompanha
uma aversão essencial pela imagem, contrapõe-se inteiramente à posição de um Klein. Seus
Yves Klein Anthropometry performance Performance antropometria 9.03.1960 performance Galerie Internacíonal d'Art
Contemporain, Paris

218 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


monocromos não significam de modo algum a rejeição do nu que torna "presente" aquilo que
dá corpo ao desejo sexual-eles representam um alívio e uma imaterialização da carga da matéria.
Se é verdade que Yves, o Monocromo, não é mesmo um pintor abstrato, é porque o artista
jamais rompeu nem buscou romper com a teologia católica. Esta, ao se apoiar integralmente na
doutrina da Encarnação, é e permanece o recurso único da observação da natureza e da repre-
sentação do corpo humano na arte ocidental. Foi no simples dogma da Encarnação que a arte
ocidental pôde achar um meio de sair do implacável iconoclasmo protestante (Mondrian) e da
codificação petrificada do ícone ortodoxo (Kandinsky e, indiretamente, Malévitch).
Nada podemos compreender da significação desses Monocromos, que o pintor identifica
com uma busca da "cor pura", se nos esquecermos de fazervaléreste fato absolutamente capital:
ao mesmo tempo, Klein renova o nu feminino com a invenção de suas famosas Anthropométries
[Antropometrias]. Estas querem apenas proclamar com alegria um desejo que se encarna no
outro sexo. Sublinhemos ainda que suas últimas obras, os Retratos relevos diretamente modela-
dos sobre o corpo, renovam igualmente o nu masculino. Ressaltemos, além disso, que Klein
sempre relacionou o conjunto de sua arte, e, antes de tudo, a sua exploração do espaço, com
uma exploração sistemática da natureza-contrariamente à abstração, que, como tal, rompe
explicitamente com toda exploração do real. Sabemos, por fim, que o pintor do Monocromo-
filho de uma artista relativamente célebre, que praticava uma pintura abstrata de cuja marca o
moço queria a todo custo se desfazer-jamais pensou que ele mesmo pudesse ser visto como
pintor abstrato: "A pintura abstrata é literatura pitoresca sobre estados psicológicos. É pobre.
Sou feliz por não ser um pintor a bstrato " , anota ele em seu Diário, no sábado, 7 de setembro de
1957. Não se poderia ser mais claro, de fato: sou feliz por não ser um pintor abstrato.
Klein terá sido um meteoro que penetrou no céu da arte com prodigiosa fulgurância, in-
tensidade, brevidade. Um meteoro ruidoso que, entre 1955 e 1962, veio fender, com o poderio de
seu fervor, o véu sonâmbulo do niilismo e terá aproveitado, quando muito, oito anos de um
período ativo. Essa arte, que Klein pratica com orgulho-como se a arte, antes dele, jamais
tivesse existido e como se nada, depois dele, jamais devesse repetir-se como antes-, essa arte
orgulhosa reduz a cinzas todas as inércias mentais que da vida separam a arte, para responder
a essa incandescência orgulhosa que ardia nele como ardera em cada uma das obras-primasdo
passado. O pintor do Espaço atira-se no Vazio apenas para se apropriar do céu e fazer de si-
para além do azul do Espaço e para além do branco do Vazio-o conquistadorespiritual do Ima-
terial: o artista, sacerdote e herói, terá sabido libertar sua arte dos impasses niilistas, ocultistas
e abstratos. Klein terá recusado a carga do peso terrestre somente para refutar a queda das
trevas celestes que aniquilam a imagem sob seu manto de noite e para incorporara si, enfim, o
sítio metafísico por excelência: o Espaço, habitado pelo Vazio, é o sítio de glória e esplendor que
para sempre dá à imagem seu regime de graça e luz no Imaterial.
Jean-Michel Ribettes. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silva Ramos.

Vves Klein-the proud incandescence 01 white


"Le cannibalisme universeI qui approche, l'ere anthropophagique que nous aIlons traverser
bientôt n'est pas de nature crueIle, ni féroce ni humaine. Bien au contraire, eIle sera l'expression
vécue ou plutôt l'assimilation d'une synthese biologique. Vaincre le silence, le dépecer, prendre
as peau et s'en vêtir pour ne plus jamais avoir froid spiritueIlement. Je me sens comme un vampire
vis-à-vis de l'espace universel!" declared Yves Klein, in "Le vrai devient réalité" [The truthful
becomes reality] (Zero, Düsseldorf, July 1961, n.3), with the enigmatic, oracular and prophetic
tone through which he would found alI the spiritual authority ofhis art.

219 Monocromos Paulo Herkenhoff


To traverse the appearances of this world and reveal the sensibility of being's spiritual
truth, Yves Klein invented an art that would integrate the entirety ofhis life from the start. He
practiced painting the way one might go about a religious ceremony, a liturgical incantation,
taking the sacraments-painting is giving oneself over to a magic ritual in order to satisfY a spir-
itual necessity. To make his work the inevitable matrix of all possible work, the painter would
graduallyappend "anthropophagite" gestures, swallowing every figure, devouring every repre-
sentation ofthe human body. The Word was made flesh, and the body remained present, insistent.
No art has ever released men from such potent spiritual and sensual meaning by so visibly erasing
the visible effects of the Incarnation.
Klein painted by cutting pure color out ofpure color: Monochromes yellows, oran.ges, pínks, reds,
blues, .greens, víolets, blacks, whítes, Mono.golds . .. ln all, the painter made thirteen Monochrome blancs
[White monochromes] between I957 (the year ofthe first white paintings was also the year of
the first exhibition ofblue paintings) and I960 (during the last two years ofhis life he no longer
made white canvases). The white and rough surface of these small canvases is granular, uneven,
irregular material, its texture specked with sandy asperities. This white is the color of particles
reflecting Light without Shadow. A Monochrome blanc is the colo r ofEmptiness, Immateriality,
and Silence. This white is the very color ofthe space ofVide [Emptiness] presented between the
repainted walls ofthe Iris Clert gallery in Paris in I958, and the Museum Haus Lange in Krefeld,
Germany in I96I, and it weds the material and the asperities.
White, the silent summation of the whole chromatic spectrum, is the color that remains
when the rest have disappeared: the proud incandescence of white has absorbed all the other
colors' qualities-those of refraction, diffusion, reflection. It is the absolute cannibal color, one
that assimilates all chromatic principIes, that is able to incorporate all the virtualities of the spec-
trum, that is not afraid of red, yellow, or blue. White has eaten all the colors: it is, above all, the
immaterial color of the void, reflecting every radiation, digesting every wavelength. Beyond the
infiniteness of the sky and the blue of space, white is the color of this cannibal silence which has
devoured all coloro
Apart from their cannibal function, Monochromes blancs and their signification remain enig-
matic. On the other hand, the painter of"pure color" has sufficiently explained and underscored
how much the signification ofhis Monochromes can in no way be associated with abstract art.
Klein casts aside the geometry of a Mondrian or a Malevitch to assert clearly that "he is not an
abstract painter": "I hate the so-called mystical obscurantism ofthese faux-painters" (he writes
in hisJournal on September 3, I957).
IfKlein explicitly rejects abstract art, lt is indeed because he reproves this art based on reli-
gious occultism-and on the hatred ofthe image, which is nothing other than the hatred ofthe
female nude. We cannot overlook the fact that the threefoundín.gfathers of abstractíon-Malevitch,
Mondrian, Kançlinsky-share an occultíst, esoteríc, íconoclastíc relí.gíous doctríne, sustained by gnostic
theosophy, hermeticism, and symbolism. ln all three, not only is the practice of abstraction com-
promised in the most obscurantist esoterism but also in the explicit hatred of the female nude.
This subjective aversíonfor thefemale nude, which accompanies an essential aversion for the image,
is the exact opposite ofKlein's position. His monochromes do not in any way signifY the rejec-
tion of the nude which "presentifies" that which gives form to sexual desire-they represent an
alleviation and an immaterialization of the heaviness of matter.
Ifit is true that the monochromatic Yves is hardly an abstract painter, it's because the artist
never broke or sought to break with Catholic theology. By relying completely on the doctrine of
the Incarnation, it is and remains the main source ofthe observation ofnature and the repre-

220 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


sentation of the human body in Western art. Only in the dogma of the Incarnation has Western art
been able to find an outlet for implacable Protestant iconoclasm (Mondrian) and the petrified
codification ofthe Orthodox icon (Kandinsky, and indirectly, Malevitch).
We cannot pretend to understand the signification ofthese Monochromes, which the painter
identifies as a quest for "pure color," ifwe neglect to consider this essential fact: Klein revives the
female nude with the invention ofhis famous Anthropométríes [AnthropoemetricsJ, which simply,
joyfully proclaim a desire that is incarnated in the other sexo We might also point out that his last
works, the Relíifs portraíts directly molded on the body, also revive the male nude. We might note,
moreover, that Klein has always related the whole of his art, and above all his exploration of
space, to a systematic exploration of nature-contrary to abstraction, which, as such, breaks
explicitly with any exploration of space, any exploration of the real. We know, finally, that the
painter ofthe Monochrome-the son ofa relatively famous artistwho practiced abstract painting,
from which the young man wanted at all costs to differentiate himself-never thought that he
himself could be perceived as an abstract painter: "Abstract painting is picturesque literature about
psychological states. It's poor. I'm happy not to be an abstract painter," he writes in his ]ournal on
Saturday, September 7,1957. He couldn't be clearer: "I'm happy not to be an abstract painter."
Klein was a meteor in the sky of art, a blaze both brief and intense. This fracas, which carne
between 1955 and 1962 to tear away the somnabulistic veil ofnihilism through its powerful fervor,
was the result of an active period ofbarely eight years. The art which Klein practiced with pride-
as if art, before him, had never existed and as if nothing, after him, should ever be repeated as
before-reduced to ashes the mental inertia separating art from life; this art responded to the
proud incandescence that burned in it as it burned in each of the masterpieces of the pasto The
painter of Space only throws himself into the Void in order to appropriate the heavens and-
beyond the blue ofSpace and beyond the white ofthe Void-to make himselfthe spiritual con-
quistador of the Immaterial: the artist, priest, and hero was able to liberate his art from nihilistic,
occultist, and abstract dead-ends. Klein only rejected the weightiness of the earth to avoid the
celestial shadows falling on and obliterating the image under their mantle of darkness; ultimate-
ly, he annexed the metaphysical site par excellence: Space, inhabited by the Void, the site of glory
and splendor, where the image is accorded its reign of grace and light in the Immaterial.
]ean-Míchel Ríbettes. Translatedfrom the French by ]eanníne Herman.

Piero Manzoni-Achrome
Piero Manzoni criou os primeiros Achrome [Acromo] em 1956. Neles, o artista se liberta de qualquer
atenção a questões existenciais, começa a considerar a tela como "área de liberdade", que ini-
cialmente liberta a si própria de toda implicação cromática ou figurativa e se torna "achrome"-
incolor-uma superfície e uma tela muda, liberta de qualquer interferência alusiva e descritiva,
alegórica e simbólica. O achrome impõe-se como signo auto-significante, elimina todo tipo de
autobiografia e anula a mística pessoal do artista. Reconhece, em sua própria existência, a indi-
vidualidade da tela e do material que a cobre, dá ao seu "nascimento" um valorfundamental. O
achrome, um "incolor", é entidade em estado elementar, não diz nem explica, não é instrumento,
mas sim um campo de ilimitadas possibilidades de vida.
O achrome é a vida do objeto, que pode ser considerado como uma unidade e um momento,
e como uma seqüência homogênea de um único ser que se desdobra no tempo e no espaço.
Aparentemente, ao longo dos anos, pode apresentar diversidades materiais e factuais, mas a sua
formulação contínua é o enunciado de uma presença vital e dinâmica. Indubitavelmente podemos

221 Monocromos Paulo Herkenhoff


ver o achrome como um ser concreto que, assim como o ser Piero Manzoni, deixa rastros contin-
gentes. Ambos convivem, mas situando-se como seres autônomos e independentes, pois Piero
Manzoni, como com os Achrome, fecha a arena da superfície, aberta a toda ação, gesto ou ato.
Ele não entra na tela, mas fecha a tela. Volta-a sobre si próprio, e faz com que ela viva. Seu
objetivo é "oferecer uma superfície integralmente branca (ou melhor, integralmente incolor),
alheia a qualquerfenômeno pictórico, a qualquer intervenção estranha ao valor superficial: um
branco que não é uma paisagem polar, uma matéria evocativa ou uma bela matéria, uma sen-
sação, um símbolo ou outras coisas mais; uma superfície branca que é nada mais que uma
superfície branca (uma superfície incolorque é uma superfície incolor), ou melhor, que é-e ser
é o bastante (o ser total é puro devir)".
Os Achrome nascem como superfícies de tela embebidas em gesso no estado bruto. São
matéria bruta e incolor. Um amálgama amniótico, do qual vão emergindo, gradualmente, enti-
dades formadas pela própria matéria: superfícies encrespadas e quadrados de tela impregnados
de caulim. Sua natureza vital impele-as, celularmente, a se reproduzirem em diversas formas,
que da desordem inicial vão passando à ordem, e, ao mesmo tempo, a própria superfície declara
a sua existência, como forma e material. Para Manzoni, a superfície não éo ponto de encontro
Piero Manzoni Achrome Acromo 1961 rolos de algodão [cotton rolls] 43x31cm coleção Galerie Karsten Greve, Colônia, Paris, Milão

222 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


entre matéria e indivíduo: matéria e indivíduo são declarados como momentos separados, capazes
de movimento em sua condição de autonomia. A realização do Achrome é a indicação de sua pos-
tura, direcionada para a separação das duas polaridades: não é Manzoni, ele próprio, a terminar
a tela; mas esta, embebida de caulim líquido e de cola, é deixada secar, termina-se sozinha.
O trabalho é determinado por um processo auto-suficiente: uma vez encaminado, assume
seu status definitivo por si só. A tela não é pintada, mas embebida de matéria. Na superfície, já
impregnada, não se coloca nenhum pigmento, assim a tela estabiliza-se sem sofrer nenhuma
intervenção externa, que, para Manzoni, resultaria "alheia". Por não serfeita, a tela não pretende
representar o absoluto ou o cotidiano, mas encontra e apresenta apenas o seu ser, que é anônimo
e sem cor. Os Achrome, criados entre '959 e '962, conseguem oferecer o certificado da existência
"infinita" da entidade "quadro", como signo autoprodutivo e auto-significante. Um valor ima-
nente à entidade "quadro", que, como um objeto, não pode ser acrescentado à entidade "indi-
víduo", pois, "vivendo" e ao mesmo tempo "convivendo", não podem ser fracionados, mas
devem servistos ou vividos em sua continuidade: o achrome torna-se entidade total, que pode se
reproduzir em todas as entidades incolores (algodão, fibra de vidro, poliestireno, pele de coelho)
ou devorar outras entidades (objetos, palha, pão e pedras) num processo "vital", cuja duração
coincide com a duração temporal de Piero Manzoni enquanto entidade carnal e corporal,
autônoma e separada. O interesse de Manzoni, portanto, não é o de estar dentro de um objeto,
de uma tela ou de uma matéria, mas ser, fazer com que as coisas (do quadro aos corpos) existam
e vivam independentes: Manzoni não se projeta fisicamente, nem se sublima espiritualmente
em suas obras, mas vive a si próprio na ininterrupta identificação das coisas com as coisas e de
si mesmo com si mesmo.
A obra de arte não diz, não explica; apenas é.
Germano Celant. Traduzido do italiano por Roberta Sarni.

Piero Manzoni-Achrome
Piero Manzoni executes the first ofthe Achromes in 1956. ln these the artist breaks loose of any
attention to existential questions, and begins to consider the canvas as a "space of freedom,"
which initially frees itself of any chromatic-figurative implication and becomes "achrome," color-
less, a mute canvas and surface, free from all allusive, descriptive, allegoric or symbolic interfer-
ence. The achrome stands for itself only, eliminates any kind of autobiography and cancels the
artist's personal mystique. lt recognizes, in its own existence, the individuality ofthe canvas and
of the material that covers it, and gives to their "birth" a fundamental value. The achrome, an
"uncolor," is an entity in an elementary state, it doesn't say and it doesn't explain, not an instru-
ment, but a field of unlimited possibilities oflife.
The achrome is the objective life, which can be considered as a unit and a moment, and as a
homogenous sequence of a sole being which develops in time and space. At the surface it can
present, in the course of the years, differences of matter and of fact, but its continuous formula-
tion is a postulate of a dynamic and vital presence. Doubtlessly one can see the achrome as a con-
crete being which, just as being Piero Manzoni does, leaves contingent traces. Both exist
together, but pose as independent and autonomous beings, as with the Achrome, Piero Manzoni
closes the arena of the surface open to every action, gesture or acto
He does not enter the canvas, but "closes" the canvas. Folding it on himself and giving it
life. His objective is to "give a fullywhite (or rather fully uncolored) surface, beyond all pictorial
phenomena, beyond any intervention foreign to the superficial value: white that is not a polar
landscape, an evocative texture or a beautiful material, a sensation or a symbol or more; a white

223 Monocromos Paulo Herkenhoff


surface that is nothing but a white surface (an uncolored surface that is an uncolored surface),
or better still, that exists and exists for itself (and total existence is pure change) ."
The Achromes begin as canvas surfaces drained with plaster. Blunt and uncolored matter. An
amniotic amalgam in which emerge entities formed of this very matter: wrinkled surfaces and
boxes of canvas soaked with clay. Their vital nature brings them to reproduce cellularly in various
forms, at first disorderly and then orderly, as concurrently the surface itself declares its exis-
tence, as form and material. For Manzoni the surface is not the meeting place for matter and
individual, but rather matter and individual are declared separate events, capable of action based
on a condition of self-sufficiency. The realization of the Achrome is indicative of his attitude,
which tends to separate the two polarities: this is not accomplished by Manzoni himself, but the
canvas, rather, being soaked with liquid clay and glue, is left to dry, and finishes itself.
The work is determined by a self-sufficient process, which, once begun, assumes its defi-
nite statu~ alone. The canvas is not painted, but soaked with matter. Once soaked, on the surface
no pigment is extended, so that the canvas stabilizes free of any external intervention, which
would appear "foreign" to Manzoni. Not being made, the canvas aspires not to represent the
absolute or the trite, but finds and presents only its existerice which is anonymous and colorless.
The Achromes, created between 1959 and 1962, are able to offer a certificate ofthe "infinite" exis-
tence of the "painting" entity, as a self-producing and self-meaning gesture. The intrinsic value
ofthe "painting" entity, which, as an object, cannot be reduced to the "individual" entity, which,
together, "exist" and "co-exist," cannot be broken down, but must be seen or experienced in
their continuity: the achrome thus becomes a total entitywhich can be reproduced in all colorless
entities (cotton, glass fiber, plastic, rabbit skin) or devour other entities (objects, straw, bread
and stones) in a "vital" process, which lasts as long as Piero Manzoni, as a carnal and corporal
entity, self-sufficient and separate. That which interests him therefore is not to exist within an
object, a canvas, a matter, but to simplyexist, to make things (paintings or bodies) exist and live
independently: Manzoni refrains from projecting himself physically or spiritually into his work,
existing in a continuous identification between objects and objects and self and self.
The work of art does not say, does not explain, but only is.
Germano Celant. Translatedfrom the ltalían by Laszlo De Sagon .

Hélio Oiticica-trajetória monocromática


A compreensão da monocromia como condição moderna e eminentemente contemporânea
atravessa toda a obra de Hélio Oiticica: dos Metaesquemas aos Núcleos, dos Núcleos aos Bólides. Ou
seja, do plano ao espaço, do espaço à substância (pigmento), da substância à sua absorção final
pelas coisas do mundo, a cor pelfaz o itinerário completo. Desde o início ela é uma só, inequívo-
ca, homogênea. Pois só quando falamos de u ma cor podemos falar dela integral e su bstancial-
mente. Só assim a coré sempre uma cor, aqui lo que não se conforma a nenhum limite, vibração,
presença que transcende. Tal condição só poderia surgir com a morte do horizonte, da relação
entre figura e fundo, da pintura de cavalete. Uma nova condição, efetivo estar no mundo, que
torna possível um presente sempre atual.
Éo Atelier rouge [Ateliê ve rmelho] de Matisse que antecipa o ateliê monocromático da con-
temporaneidade, o ateliê definitivo da cor. Surge a cor como ob ra, antinaturalista, cor/espaçol
energia. O que antes era um dos elementos de síntese intraplano, propõe, agora, estabelecer
uma nova síntese extraplano, no próprio espaço. De tal modo que anuncia uma passagem como
a deflagrada pela colagem cubista: a obra torna-se um objeto integral entre e com os outros.

224 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofagia e Hi stórias de Canibalismos


Assim o branco surge como a condição inicial, vazio, indagação, neutralidade, anônimo,
impessoal. Proposição aberta e imediata, plana e antiilusionista. Pois com Malevitch a propo·
sição se impõe radical logo de início; não apenas o branco, mas o branco sobre o branco. A cor é
o objeto e o objeto é a cor-objetolcor. Os Relevos e pinturas neoconcretos de Hélio Oiticica são já o
resultado do "conflito entre espaço pictórico e extra·espaço" [H.O.]; e o branco é o termo inicial
da resolução, uma etapa, e não propriamente uma condição, como em Robert Ryman ou Piero
Manzoni-o primeiro como dado estrutural, o segundo como forma de anulação. Na obra de
Hélio o branco é um momento, uma escala do work in progresso
Dos Relevos e pinturas neoconcretos, Núcleo 6, Monocromáticos, Bilaterais, Grande núcleo, Relevos
espaciais até os Penetráveis, o branco é uma passagem obrigatória que leva até as cores mais ativas
e solares, o laranja, o vermelho, o amarelo. Cores núcleos que manifestam "a tendência para uma
vivência da cor, não totalmente contemplativa, nem totalmente orgânica, mas cósmica" [H.O.].
O branco tende a reduzir o contraste, induz à proximidade e estimula a introspecção. A
intenção de Hélio era extroverter, projetar. Propor uma cor energética, solar, luminosa. Projetar
o objeto como um emanador de cor. A superfície monocromática branca introjeta, absorve,
inibe. O espectro cromático tropical ativa, tonifica. Essas proposições, em sua estrita realização
cromática, já antecipariam a formulação ulterior sociocultural do tropicalismo. Tal proposição
sobre a cor projeta a obra como o "corpo da cor", a cor como o "núcleo mesmo da pintura, sua
razão de ser" [H.O.]. Ou, para usaras palavras de Yves Klein, a cor como um "servivo". Assim
percebido, o pólo complementardo movimento de Hélio, a partirdo branco em direção de uma
ativa presença cromática, provavelmente se dá na obra de Sérgio Camargo e em sua ativação
escu Itórica do branco.
Hélio Oiticica Bilateral 1959 óleo sobre madeira [oilon wood]

225 Monocromos Paulo Herkenhoff


Se o percurso cromático de Hélio segue a lógica do nosso entendimento, então o movi-
mento final de sua obra, que se inicia provavelmente com os ParanBolés e Tropicália, anuncia a
absorção final da cor pelas coisas do mundo, uma passagem mais política que artística, um
desejo-limite e definitivo de transformação-o combate corpo a corpo, simbiótico, mund%bra,
do qual a cor chega a ser um símbolo. Paulo Venâncio Filho

Hélio Oiticica-a monochromatic trajectory


The notion of the monochrome as a modern and eminently contemporary condition permeates
Hélio Oiticica's entire work: from Metaesquemas to Núcleos, from Núcleos to Bólídes. ln other words,
from plane to space, from space to substance (pigment), from substance to its final absorption
with worldly things, color treads a complete itinerary. From the beginning, color is unique,
unequivocal, homogeneous. For only when we speak of a colo r are we able to speak of it in an
integral and substantial way. Only then is a color always a color, something that does not conform
to any limitation, vibration, a transcending presence. Such a condition could only spring from the
death of the horizon, from the relation between figure and ground, from easel painting. A new
condition, effective being in the world, which makes possible an always actual presento
Matisse's Atelier rouBe [Red studio] precedes the monochromatic studio of contemporaneity,
the definite studio of coloro Color then emerges as an artwork, anti-naturalistic, color/space/ener-
gy. Whatwas before one ofthe elements ofintra-planar synthesis, now seeks to establish a new,
extra-planar synthesis on the space itself. ln so doing, it heralded a passage such as that intro-
duced by cubist collage: the artwork becomes an integral object among and with others.
ln this way, white appeared as a primary condition, a void, query, neutrality, anonymous,
impersonal. An open and immediate proposition, flat and anti-illusionisitc. ln Malevitch, the pro-
posaI comes forth radically from the very beginning; not merely the white, but white over white.
The color is the object, and the object is the color-object/color. Hélio Oiticica's Relevos e pinturas
neoconcretos [Neoconcrete reliefs and paintings] were alreadya result of"a conflict between pictor-
ial space and extra-space" [H. O.] ; white being the initial term of resolution, a stage in the process,
rather than a condition, as in Robert Ryman or Piero Manzoni-the first as a structural element, the
second as a form ofannulment. ln Hélio's workwhite is a moment, a stage ofthework in progresso
From Relevos and pinturas neoconcretos, Núcleo 6, Monocromáticos, Bilaterais, Grande núcleo [Large
nucleus], and Relevos espaciais [Spatial reliefs] to Penetráveis [Penetrables], white is a mandatory
passage that leads to the more active and solar colors, orange, red, yellow, nuclei colors that
manifest "a tendency toward the livinB experience of color that is not totally contemplative, nor
totally organic, but cosmic" [H. O.].
White tends to reduce the contrast, it induces proximity and stimulates introspection.
Hélio's intention was to externalize, to projecto To propose an energetic, solar, luminous coloro
To project the object as a source of color emanation. The white monochromatic surface introjects,
absorbs, inhibits. The tropical color spectrum activates, invigorates. ln their strict chromatic
realization, these propositions would anticipate the ulterior sociocultural formulation oftropi-
calismo. This proposition on color projects the work as "a body of color," where color is the
"nucleus itself ofpainting, its raison d'être" [H. O.] . ar, in the words ofYves Klein, "colour as a live
being." Seen in this way, the complementary counter-reference to Hélio's movement, departing
from white towards an active chromatic presence, may be found in Sérgio Camargo's work and
in his sculptural activation ofwhite.
IfHélio's color trajectory follows the logic of our understanding, then the final direction of
his work, probably beginning with the Paran90lés and Tropicália, announces the final absorption

226 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


of color through worldly things, a passage that is more politicaI than artistic, a desire-limit and
a definite desire oftransformation-a combatwhich is bodily, symbiotic, worldfwork, ofwhich
color goes as far as to become a symbol.
Paulo Venâncio Filho. Translatedfrom the Portu9uese by Veronica Cordeiro.

Yayoi Kusama-Infinity nets [Redes de infinito]


Yayoi Kusama é uma artista de reconhecida maestria na pintura, escultura, performance e insta-
lação. Iniciou sua carreira no Japão nos anos 50, e viveu e trabalhou em Nova York desde o final
dos anos 50 até o início dos 70. Desde que voltou a Tóquio, a artista vive, por vontade própria,
num hospital psiquiátrico e mantém, fora da instituição, um ateliê e uma equipe de assistentes.
Kusama canaliza para o trabalho, ocupação principal de sua vida, seu estado psicológico. Em
imagens com grande carga óptica, inundadas com uma repetição de formas e padrões antropo-
mórficos, ela recria suas alucinações fantásticas. A série de pinturas Infinity net [Rede de infinito],
que inclui-se entre as primeiras obras da fase madura de sua arte, determina um padrão com o
qual a artista expressa as visões que teve ao longo de sua carreira.
Foi após a mudança para a cidade de Nova York que Yayoi Kusama começou a pensar sobre
a série Infinity net, trabalho no qual se concentrou no início dos anos 60, embora imagens seme-
lhantes estivessem presentes em sua obra anterior. Os quadros da série são maravilhosas redes
de padrões obsessivos, que no início eram trabalhos contendo uma sutil ondulação de branco-
no-branco, e depois continuaram como pinturas que empregavam uma só cor sobre fundo
negro. Seus Infinity nets brancos constituíram a primeira exposição individual da artista em Nova
York, onde foram imediatamente aclamados. É de autoria de Donald Judd a crítica da mostra,
realizada em 1959 na Srata Gallery:

"Há uma extraordinária variedade de configurações e expressões a cada ponto através de


toda a superfície; as pequenas curvas fundem-se em arcos mais longos, distendendo-se ou
deslocando-se ligeiramente, ou formam padrões amorfos ou segmentos de faixas verticais.
As pinceladas são aplicadas com grande força e firmeza, notáveis até mesmo em pequenas
áreas. A qualidade do todo sugere uma analogia com uma grelha frágil, embora de grandes
proporções e vigorosamente esculpida, ou com uma renda sólida e compacta [... ] As cinco
pinturas brancas de grande formato apresentadas nesta exposição são obras fortes, de
conceito avançado [... ] A expressão transcende a pergunta sobre a natureza do trabalho,
se é oriental ou americano. Embora seja um produto das duas culturas, e certamente de
artistas americanos tais como Rothko, Still e Newman, o trabalho de Kusama não é de
maneira alguma uma síntese, e se mantém completamente independente."l

Estas pinturas monocromáticas, muitas vezes em grandes formatos, muitas vezes minimalistica-
mente intituladas, como porexemplo No. whiteA.Z. [Número brancoA.Z.] e No.A.S. [Número A.
S.] (embora também apareçam sob títulos tais como Interminable net [Rede interminável] e pacific
Ocean [Oceano Pacífico]), podem ter, ou ter tido, relação com o expressionismo abstrato, o mini-
malismo e, ainda, com trabalhos de Robert Ryman, contemporâneo de Kusama. No final dos anos
50, as Infinity nets causaram forte impressão em Nova York, e levaram Kusama a tornar-se uma par-
ticipante de grande influência na vanguarda da época. Mas, embora possam ser considerados
como exemplos iniciais importantes do trabalho minimalista, em última instância as pinturas
da série Infinity net são expressões essenciais da perspectiva pessoal de Kusama. A artista criou

227 Monocromos Paulo Herkenhoff


um ambiente abrangente com as Infrnity nets, grandes e brancas, que cobriam as paredes da
Brata Gallery. Suas Infrnity nets são redes de infinito, evocações tangíveis de seu mundo.
A artista descreve uma das alucinações que começou a ter ainda na infância:

"Minha lembrança de um mau presságio: certo dia, eu estava observando uma toalha
estampada com flores vermelhas que cobria a mesa. Olhei para o te to e vi que também
estava coberto de flores vermelhas, assim como as janelas e até mesmo os pilares. As flo-
res estavam por toda parte do aposento, de meu corpo, de todo o universo. Fi nal mente,
cheguei ao ponto de auto-obliteração e depois voltei a mim, reintegrando-me ao infinito
do tempo eterno e ao caráter absoluto do espaço. Não estava tendo uma visão. Tratava-se
de pura realidade. Estava estarrecida. Se não saísse dali, a maldição das flores vermelhas
tomaria conta de minha vida!
Desmantelando e acumulando, proliferando e separando, a sensação da obliteração e os
sons do cosmo invisível. O que são todas essas coisas?"2

O estado psicológico de Yayoi I<usama tem sido a principal inspiração da obra realizada ao
longo de toda a sua carreira (o que convida a comparações com as lembranças, talvez um tanto
apócrifas, das experiências de Louise Bourgeois na sua infância e das experiências de Joseph
Beuys durante a Segunda Guerra Mundial). A arte de I<usama pode servista como tanto como
terapia quanto escape, e seu estado psicológico, tanto como causa quanto inspiração para seu
trabalho, e ainda como elemento propulsor de seu processo. Da mesma forma que sua arte, a
vida da artista é feita de ações repetitivas, e essa "monotonia" permite uma concentração abso-
luta. Ela mantém seu trabalho sob um foco preciso e claro. Embora a arte de I<usama, assim
como a de seus pares Bourgeois e Beuys, possa se cruzar com tendências artísticas variáveis no
decorrerde sua carreira, a artista vem mantendo uma visão regular, vigorosa e totalmente inusi-
tada, à partirda qual cria obras transcendentais. Explorando paisagens do corpo e da mente, da
maneira como os percebe, I<usama evoca energicamente questões mais amplas de realidade,
individualidade emocional, intelectual e identidade física, e a permeabilidade das fronteiras
entre o eu e o mundo exterior. Margery King. Traduzido do inglês por Izabel Murat Burbridge.

Este texto contém informações extraídas de correspondência, conversas e encontros com Yayoi Kusama em
1996, durante a preparação para uma mostra de novas instalações criadas pela artista, realizada no Mattress
Factory Museum, em Pittsburgh, Estados Unidos.

1. Donald Judd, "Reviews and previews: new names this month-Yayoi Kusama", Art news 58, n.6 (outubro de 1959), P.17.
2. Yayoi Kusama, "A passage to anotherworld", catálogo do Mattress Factory Museu m (outono de 1996).

Yayoi Kusama-Infinity nets


Yayoi Kusama is a mas ter painter, sculptor, performance, and installation artist. She began her
career in Japan in the 1950S and lived and worked in New York City from the late '50S through the
early '70S. Since her return to Tokyo, she has lived by her own choice in a psychiatric hospital,
maintaining an off-site studio with a staff of assistants. Kusama's psychological state is chan-
nelled into her work, which is the overarching occupation of her life. Her optically-charged
imagery, overflowing with repeating anthropomorphic shapes and patterns, re-creates her fan-
tastic hallucinations. Kusama's Infíníty net paintings, among her early mature works, set out a
pattern for the expression ofher vision seen over the course ofher career.

228 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Kusama began to focus on the production ofInfinity net paintings after moving to New York
City and concentrated on this subject through the first years of the I960s, though similar
imagery was already visible in her earlier work. The Infinity nets, beautiful textured networks of
obsessive pattern, began with subtly undulating white-on-white works and continued with
paintings employing a single color over a black background. Her white Infiníty nets made up
Kusama's first solo exhibition in New York, and they were immediately well-received. Donald
Judd reviewed the I959 show at the Brata Gallery:

"There is a remarkable variety of configuration and expression from point to point across
the surface; the small curves coalesce into longer arcs, swell or shift slightly, or form amor-
phous patterns or partial vertical bands. The strokes are applied with a great assurance and
strength which even a small are a conveys. The total quality suggests an analogy to a large,
fragile, but vigorously carved grill or to a massive, solid lace [... ] The five white, very large
paintings in this showare strong, advanced in concept [... ] The expression transcends the
question of whether it is Oriental or American. Although it is something ofboth, certainly
of such Americans as Rothko, Still and Newman, it is not at all a synthesis and is thor-
oughly independent."l

These paintings, monochromatic, often large, often minimalistically titled as No. White A.Z. and
No. A. B. (though also given titles such as Interminable net and paclfic Ocean), may be, and have
been, related to abstract expressionism, minimalism, and, for example, to works ofKusama's
contemporary Robert Ryman. Kusama's Infinity nets made a significant impression in New York
in the late I950S, and the artist became an influential participantin the avant-garde scene. How-
ever, while they may be viewed as important early examples of minimalist work, the Infiníty net
paintings are, ultimately, essential expressions ofKusama's personal visiono Kusama created an
all-encompassing environment with the large, white Infiníty nets that covered the walls of the
Brata Gallery. Her Infinity nets are infinity nets, tangible evocations ofher world.
The artist describes one of the hallucinations she began to experience during childhood:

"My ominous recollection, one day, I was looking at a tablecloth covered in red flowers,
which was spread out on the table. Then I looked up towards the ceiling. There, on the win-
dows, and even on the pillars, I could see the sarne red flowers. They were all over the place
in the room, my body, and entire universe. I finally carne to a self-obliteration and returned
to be restored to the infinity of eternal time and the absoluteness of space. I was not having
a visiono It was true reality. I was astounded. Unless I got out ofhere, the curse of those red
flowers will seize my life!
Dismantling and accumulating, proliferating and separating, the sense of obliteratingand
the sounds from the invisible cosmos. What are all these things?"2

Kusama's psychological state has been the central inspiration ofher work over the course
of her career (inviting comparison with the perhaps somewhat apocryphal recollections of
Louise Bourgeois's childhood experiences and Joseph Beuys's experiences during World War II).
Kusama's art may be seen as both therapy and outlet, her psychological state as both cause and
inspiration for her work, and as the impulse behind her processo Like her art, her life is made up
of repetitive actions, and this "monotony" allows for absolute concentration. She maintains a
clear, sharp focus on her work. While Kusama's art, like that ofher peers Bourgeois and Beuys,

229 Monocromos Paulo Herkenhoff


may intersect with varying artistic trends, over the course ofher career, Kusama has maintained
a consistent, powerful, and totally uni que personal vision from which she has created transcen-
dent work. Exploring landscapes of the mind and body as she envisions them, Kusama power-
fully evokes larger questions of perceptions of reality, individual emotional, intellectual, and
physical identity, and the permeability ofboundaries between the self and the outer world.
Margery King

This text has been iriformed by correspondence, conversations, and meetings with Yayoi Kusama that took place
in 1996 during preparation for an exhibition ofnew installations by the artist at the Mattress Factory Museum,
Pittsburgh, Pennsylvania.

1. Donald Judd, "Reviews and previews: new names this month-Yayoi Kusama," Art News 58, no. 6 (October 1959): p.q.
2. Yayoi Kusama, "A passage to another world," Mattress Factory Museum brochure (fali 1996).

Robert Ryman-redução e emoção


É normal supor que uma monocromia branca pertença a uma vertente do modernismo que,
através de um processo de eliminação, empenha-se em revelar as características essenciais de
um meio para chegar a uma noção da "forma pura" desse meio; ou acredita-se que represente
o que restou depois que a pintura se refinou quase até o ponto da não-existência, tornando-se a
materialização de uma idéia sobre arte. Em seu trabalho, Robert Ryman não busca nem a pureza,
nem o excesso lógico de uma pintura minimalista. Ao contrário, ele reduz a informação visual e
a referência para isolare examinaros atributos físicos fundamentais da pintura. No processo,
ele traz para o primeiro plano e torna pictóricos elementos não considerados intrínsecos à
experiência visual da arte: a assinatura do artis~a, o título da obra, seu suporte, seus dispositivos
para pendurar, até sua interação com o espaço ao redor.
Ryman limita sua paleta ao branco porque este é suficientemente recessivo para dar uma
voz às outras propriedades físicas do quadro, e faz com que sua exploração da pintura e o trata-
mento da tinta sejam mais evidentes do que seriam com cores mais escuras, mais brilhantes ou
com composições multicoloridas. Ele também utiliza o branco para examinar a própria natureza
da cor. Geralmente equiparado a uma tela branca e lido como ausência, nas mãos de Ryman o
branco é infinitamente variado e muito presente. Ésuave e liso; delicado e sutil; seco e calcário;
fresco como queijo cremoso ou cálido como creme substancioso. Em trabalhos do fim dos anos
50 e começo dos anos 60, a pintura subjacente e o material impresso são visíveis por baixo das
superfícies. Mais tarde, suportes feitos de diferentes metais ou de fibra de vidro e dispositivos de
plástico, metal, fita ou madeira para pendurá-los, emprestam uma cor sutil às pinturas. A assi-
natura de Ryman aparece, em diferentes pontos, em pintura ocre ou grafite. A grande Surface
ueils [Véus da superfície] de '970-7', tem bordas de giz azul. De fato, a porcentagem de verda-
deiras monocromias não é grande na obra de Ryman. A maioria de suas obras são "quase
monocrom ias".
Em '97', Ryman foi identificado, em uma crítica, como "o último membro funcional da
terceira geração de expressionismo abstrato"1, enquanto outra afirmava que suas obras pareciam
"fazer mais sentido sobre a idéia de [serialidade] do que a maioria das obras dos outros".2 Estas
avaliações situam o projeto de Ryman entre duas gerações de artistas dos EUA. Em primeiro lugar
e principalmente, ele é um pintor que tem uma dívida com a NewYork School. Não obstante, ele
também pertence à geração de conceitualistas e pós-minimalistas com os quais emergiu. Como
eles, cria dentro das limitações de uma série de diretrizes específicas, preestabelecidas, que

230 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


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enfatizam o processo de fazer arte, freqüentemente utilizando as estratégias da arte modular e


da repetição.
Ryman é singular ao reconciliar um profundo compromisso com a pintura e procedimentos
sistemáticos comumente associados à arte minimalista e conceituaI. Sempre analítico, por
admissão própria, é também romântico, alinhando-se nisto com Mark Rothko: "A obra de Rothko
talvez tenha uma semelhança com a minha, no sentido de que ambas são um pouco românti-
cas [... ] Quero dizer, no sentido de que Rothko não é um matemático, sua obra tem muito a ver
com sentimentos, com sensibilidade".3 Como com as telas reduzidas de Rothko, o significado
se encontra na pura beleza das pinturas brancas, profundamente sensuais de Ryman. São, ao
mesmo tempo, emotivas e redutivas. Lynn Zeleuansky. Traduzido do inglês por Marion Mayer.

1. Willis Domingo, "Robert Ryman", Arts ma9azine (março de 1971), P.17. Citado em Lynn Zelevansky, "Chronology" , Robert
Ryman , Londres: Tate Gallery, 1993, p.217-18.
2. Kenneth Baker, "Ryman at Fischbach", Artforum (abril de 1971), p. 79. Citação de Zelevansky, p.218.
3. Citado em Robert Storr, "Simple gifts", Robert Ryman, Londres: Tate Gallery, 1993, P.39.
Robert Ryman Winsor 1965 óleo sobre tela [oil on canvas] 193 x193cm empréstimo à XXIV Bienal em memória de [lo ~m to
the XXIV Bienal in memory of] Thomas Ammann

231 Monocromos Paulo Herkenhoff


Robert Ryman-reduction and emotion
A white monochrome is often assumed to belong to a tendency in modernism that, through a
process of elimination, strives to reveal the essential characteristics of a medium in order to
arrive ata notion ofthat medium's "pure form;" or itis thought to representwhat remains after
painting has refined itself almost to the point of nonexistence, becoming the embodiment of an
idea about art. ln his work, Robert Ryman pursues neither purity nor minimal painting's logical
extreme. Rather, he reduces visual information and reference in order to isolate and examine the
fundamental physical attributes of painting. ln the process, he foregrounds, and makes pictorial,
elements not usually considered intrinsic to the visual experience of art: the artist's signature,
the work's title, its support, its hanging devices, even its interaction with the space around it.
Ryman limits his palette to white because it is recessive enough to allow painting's other
physical properties a voice and it makes his exploration of paint and paint handling more evident
than darker, brighter colors or multi-hued compositions would. He also uses white to examine
the very nature of coloro Usually equated with the blank canvas and read as absence, in Ryman's
hands white is endlessly varied and very much presentoIt is smooth and slick; soft and subtle;
dry and chalky; coollike cream cheese or warm like heavy cream. ln works from the late fifties
and early sixties, colorful underpainting and printed matter are visible beneath the surfaces.
Later, supports made of different metaIs or fiberglass and hanging devices in plastic, metal,
tape, or wood lend subtle color to the paintings. At different points, Ryman's signature appears
in ocher paint or graphite. The large Suiface veils of I970-7I have blue chalk borders. ln fact, the
percentage oftrue monochromes in Ryman's oeuvre is not great. Most ofhis works are "almost
monochromes."
ln I97I, one review identified Ryman as "the last functional member of the third generation
of Abstract Expressionism"l while another claimed that his works seemed "to make more sense
ofthe idea of [seriality] than almost anyone else's dO."2 These appraisals situate Ryman's project
between two generations ofU.S. artists. First and foremost, he is a painter who owes a debt to
the New York school. However, he is also a member of the generation of conceptualists and
postminimalists with which he emerged. Like them, he creates within the limitations of a spe-
cific, preestablished set of guidelines that emphasizes the process of art-making, often using the
strategies of modularity and repetition.
Ryman is unique in reconciling a profound commitment to painting with systemic proce-
dures commonly associated with minimal and conceptual art. Always analytical, by his own
admission, he is also romantic and, in this, he aligns himselfwith Mark Rothko: "Rothko's work
might have a similarity with mine in the sense they may both be kind of romantic [... ] I mean in
the sense that Rothko is not a mathematician, his work has very much to do with feeling, with
sensitivity."3 As with Rothko's pared-down canvases, meaning lies in the sheer beauty of
Ryman's deeply sensual white paintings. They are simultaneously emotive and reductive.
Lynn Zelevansky

L Willis Domingo, "Robert Ryman," Arts magazine (March 1971), P.17. Quoted in Lynn Zelevansky, "Chranology," Robert Ryman,

London: Tate Gallery, 1993, p.217-18.


2. Kenneth Baker, "Ryman at Fischbach," Ariforum (April 1971), P.79. Quote fram Zelevansky, p.218.
3. Quoted in Robert Storr, "Simple gifts," Robert Ryman, London: Tate Gallery, 1993, P.39.
Lygia Pape Divisor 1968 pano quadrado branco de algodão com fendas [white cotton square cloth with slits] dimensões variáveis

232 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


,
..

233 Monocromos Paulo Herkenhoff


Dadá e Surrealismo curadoria Dawn Ades e Didier Ottinger

As dimensões antropofágicas do
dadá e do surrealismo DawnAdes

Terá sido por conhecimento da revista dadaísta Cannibale, editada por Francis Picabia, que os
dissidentes da vanguarda brasileira publicaram o "Manifesto antropófago" e a revista "Antropo-
fagia", na década de 207 Seria possível, mas pouco provável e de qualquerforma desnecessário
para explicar a escolha dessas palavras que tão adequadamente denotam a complexidade das
condições culturais neo-coloniais no Brasil da época, e sua história. É interessante, entretanto,
refletir sobre os motivos que colocaram a antropofagia igualmente em evidência no ambiente
revolto do dadaísmo, em que é também expressiva, mas por razões diferentes.
O dadaísmo floresceu graças às pequenas revistas que proliferaram nas décadas de 10 e 20
e numerosas publicações, algumas das quais não passaram da primeira edição, foram lançadas
em nome do movimento. Estas revistas, juntamente com os saraus "literários" e exposições
abertos ao público, constituem sua verdadeira vida, sua postura antiarte e antiliteratura. Em abril
de 1920, quando Picabia produziu a primeira edição de Cannibale, seu peripatético 391 tinha mais
de três anos de idade. O artista havia publicado os quatro primeiros números deste periódico
em Barcelona, na primavera de 1917, antes de se mudar para Nova York, onde produziu as três
edições seguintes. Essa época coincidiu com o escândalo causado pela obra Fountain [Fonte] de
seu grande amigo Marcel Duchamp, que perdeu seu pequeno periódico The blind man para o 391
de Picabia num jogo de xadrez. Sempre controverso e inovador, o 391 foi um condutor valioso
para as idéias de Duchamp, do ready-made, e para os desenhos e pinturas maquinais secos de
conotação sexual criados por Duchamp e Picabia. Não havia elo significativo ligando o periódico
ao movimento dadaísta nascido em Zurique, em 1916, até 19,8, quando Picabia visitou a Suíça,
onde conheceu o poeta romeno Tristan Tzara. As publicações Dada 4/5, editadas por Tzara, e
391 (n.8) dão conta do estimulante relacionamento de ambos. A edição da 391 traz um ensaio
interessante, virtualmente automático, entitulado "Proses", metade do qual era impresso de
cabeça para baixo na folha para mostrar as posições dos dois homens no momento em que o
escreviam, em lados opostos de uma mesa de hotel, enquanto a Dada 4/5 exibe na capa a obra
Reueil matin, que Picabia criou ao imprimir sobre papel as partes de um relógio desmontado,
mergulhadas em tinta. Picabia retornou a Paris onde, juntamente com Tzara, que chegou em
janeiro de '920, associou-se a um grupo de jovens poetas parisienses cuja revista Littérature havia
anunciado, em '9'9, seu apoio ao dadá. Picabia já se tornara conhecido por suas contribuições
aos Salões de Primavera e Outono, nos quais habitualmente causava escândalo com trabalhos
que testavam a tolerância dos representantes oficiais da arte moderna. O auge dessa trajetória
foi o Salão dos Independentes de 1922 para o qual Picabia enviou três obras: Dance de Saint-Guy
[Dança de Saint-Guy], The merry widow [A viúva alegre] e The straw hat [O chapéu de palha]. Foram
recusadas Straw hat, por conter uma inscrição ("m ... pour celui qui regarde")1 que sugeria obsceni-
dade, e Merry widow por conter u ma fotografia, sendo que os Independentes não aceitavam
fotos. Assim, ironicamente seu único trabalho exposto, Dance de Saint-Guy, era o mais estetica-
mente provocante de todos: uma moldura de quadro, vazia e amarrada com barbante. Ao que
Francis Picabia Cannibale Canibal capa da revista [magazine cover] abril 1920

235 Dadá e surrealismo Dawn Ades


parece, originalmente Picabia pretendera criar uma "instalação viva" com camundongos
brancos-imagine-se uma gaiola labiríntica funcionando como metáfora insolente para o
gosto repetitivo e "behaviorista" do "amante das artes".
Picabia tornou-se o mais conhecido dos artistas dadaístas parisienses e, juntamente com
Tzara e Breton, dirigiu as atividades do Movimento em 1920 e na primavera de 1921. A revista
Canniba/e, lançada em abril de 1920, havia sido criada como um periódico internacional com a
missão de unificar todas as suas diferentes tendências: "Publicação mensal sob a direção de
Francis Picabia com a colaboração de todos os dadaístas do mundo" . A Canniba/e era visualmente
menos chamativa que a 391, embora utilizasse uma variedade de tipos e layouts conflitantes.
Com maior número de páginas que a 391-20, enquanto a 391 tinha no máximo oito-, trazia
não apenas dadaístas fundamentais como também figuras marginais como Cocteau . A revista
durou apenas dois números, e a edição de nO 13 da 391 comemorou o desaparecimento daque-
la publicação com a seguinte nota: "Realmente é impossível para mim produzir a CANNIBALE
regularmente, ela é muito burra. Espero que desta vez vocês aceitem a 391". As notáveis colabo-
rações para a Canniba/e incluíam o "Tableau dada" de Picabia, um quadro sobre o qual foram
acrescentados ready-mades que existem apenas na revista e mostram um macaquinho de brin -
quedo segurando seu rabo à guisa de um pincel fálico, fixo sobre uma base e rodeado pelos
"títulos" Portrait of Cézanne, Portrait of Renoir e Portrait of Rembrandt: natures mortes [Retrato de
Cézanne, Retrato de Renoir e Retrato de Rembrandt: naturezas mortas]; o Tzank cheque de
Duchamp, um cheque meticulosamente desenhado à mão e preenchido em nome de seu de n-
tista, um tipo de ready-made ao contrário; e o poema Suicide [Suicídio], de Aragon, que consistia
apenas das letras do alfabeto.
Como tentativa de consumir inteiramente o dadá, o título da Canniba/e era apropriado,
embora incitasse outras reflexões sobre seus significados no contexto do dadá. É possível que as
conotações primitivas de "canibal" fossem uma referência irônica tanto às reivindicações dos
futuristas que se pretendiam "primitivos de uma nova sensibilidade", como às pinturas africani-
zadas e pré~cubistas de Picasso. Éclaro que até certo ponto o dadá teve participação na vertente
primitivista do modernismo, particularmente quando podia servir à utilização polêmica contra
sua própria civilização falida. Entretanto, o dadá se dizia parte da vanguarda modernista;
("Dadá não é moderno", insistia). Seu senso da inadequação das "escolas de idéias fo rmais"
como tais, e para seus propósitos, revela um dos impulsos subjacentes ao dadá: o de restabelecer
uma imediação para a arte, uma relação direta com a vida. O dadaísta deveria ser tanto quanto
possível o oposto dos "homens do espírito" que, segundo Richard Huelsenbeck, "fixavam-se
nas cidades, pintavam seus pequenos quadros, produziam mecanicamente seus versos, e em
sua estrutura humana [... ] eram irremediavelmente deformados, com musculatura fraca, desin-
teressados das coisas do cotidiano, inimigos da propaganda, in imigos da rua, do logro, das
grandes transações que todos os dias ameaçavam milhares de vidas. Da própria vida. Mas o
dadaísta ama a vida [. .. ]"2. A situação extrema da Berlim devastada pela guerra forneceu as cores
para o texto de Huelsenbeck, seu ataque contra o "modo da arte pela arte" que prevalecia no
dadá de Zurique, o qual "não logrou prosseguir no caminho do abstrato, que em última análise
leva da superfície do quadro à realidade da forma postal"3, e finalmente sua declaração que na
Alemanha "o dadaísmo tornou-se político, auferiu as conseqüências máximas de sua posição e
renunciou totalmente à arte".4 Em Paris, o dadá t rabalhou sua rudeza e agressividade num nível
mais individual do que político-sob o signo da anarquia-, mas também aí a questão era de
vida, e não de arte. Assim, talvez Picabia-cujas pequenas revistas eram cheias de anedotas,
aforismos e mexericos, e cujas produções visuais incorporavam palavras, fotos, objetos comuns

236 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


e, ao menos na teoria se não na prática, animais vivos-, pensasse o dadaísta como sendo um
canibal no sentido que seu material era a vida, e não a arte.
Entretanto, a reação de Picabia, como também a de Duchamp, aos debates sobre "arte
e vida" não era destituída de ironia, a exemplo de suas propostas de usar camundongos bran-
cos verdadei ros ou um macaco vivo (no Tableau dada) em suas "obras de arte". Em Tableau dada
o artista acena sombriamente com a extensão lógica dos "materiais vivos" ao uso de seres
humanos, brincando com a expressão francesa nature morte, ou seja, "natureza morta", dando
uma nova e comicamente sinistra direção ao conceito de "busto retrato".
A ambivalência do dadá com relação à vanguarda da época pode ser muito facilmente
incluída no conceito geral de antiarte. Um de seus principais modos de oposição era a paródia,
o canibalismo cultural por excelência. Assim sendo, as pretensões da vanguarda à novidade e à
originalidade eram impiedosamente imitadas. O poema "simultaneísta" (seja dos Futuristas ou
do proponente francês Henri Sarzun), por exemplo, foi apresentado em Zurique na forma de
três relaxantes canções populares recitadas ou cantadas simultaneamente em alemão, francês
e inglês, e intercaladas com sinos e exclamações sem sentido, com o intuito de criar uma grande
confusão de sons, em vez do poema moderno denso, dinâmico e de multi-significados. A
própria idéia de abstração é posicionada de modo ambivalente no dadá. A despeito de seu
ceticismo quanto à reivindicação de uma "nova linguagem" publicada pelos proponentes da
abstração, Kandinsky e Mondrian, os dadaístas jogavam com a abstração de um modo mais
radical do que aquele reconhecido por Huelsenbeck. Dois exemplos são "Composição", hoje
de paradeiro desconhecido, na qual Marcel Janco reuniu um estranha amálgama de arames e
objetos, possivelmente com a intenção de fazer paródia, e a primeira escultura abstrata "soft",
que Arp produziu a quatro mãos com sua companheira Sophie Taueber.
A prática da colagem, muito variada nas mãos de dadaístas, a canibalização de jornais,
fotos, imagens impressas, reproduções de todo tipo, o desmanche de corpos e a combinação de
seus fragmentos em novas formas também são um tipo de antropofagia.
Não resta dúvida de que o dadá se sentiu profundamente estranho à sociedade responsável
pela mortandade da Primeira Guerra Mundial: "este mundo de sistemas espatifou-se"s, disse
Hugo Sall, fu ndador do Cabaret Voltai re, berço do dadá em Zu riq ue. A rejeição dos valores so-
ciais, políticos e culturais da civilização européia pressupunha também a rejeição do crescente
colonialismo, que foi certamente um fator na Guerra. Embora não ainda neste momento, as
severas críticas à colonização feitas pelo surrealismo, que viria a realizar em 1931 uma mostra
Anti-Colonial em contraposição à imensa exposição Colonial em Paris naquele mesmo ano, é pos-
sível que para o dadá o termo Cannibale sugerisse aliança com o "Outro" colonizado. Neste caso,
a inspiração pode tervindo de Alfred Jany, um dos antecessores imediatos do dadá, cujo humor
era particularmente estimulante para Duchamp. O texto curto que Jarry escreveu em 1902 e enti-
tulou Anthropophagy [Antropofagia] é uma crítica astuciosa à intersecção da antropologia com a
colonização.
Jarry sugere que a antropofagia, "ramo negligenciado da antropologia"6, é praticada de
dois modos: comendo um ser humano, ou sendo devorado por ele. Segundo o autor, no relatório
publicado em Patrie, edição de 17 de fevereiro de 1902, uma recente "missão antropofágica" à
Nova Guiné obtivera êxito absoluto, visto que nenhum de seus membros retornara. Antes das
missões antropofágicas a ciência da antropofagia engatinhava, pois selvagens não comem uns
aos outros. Mas seria um engano considerar a nova prática interessante apenas por seu apelo
Vik Muniz Sigmund (pictures of chocolate) Sigmund (retratos de chocolate) 1997 impressão em cibacromo [cibachrome print]
121,9x152,4cm coleção Charles Cosac, São Paulo cortesia Galeria Camargo Vilaça, São Paulo

237 Dadá e surrealismo Dawn Ades


gastronômico. Ela tem a ver com uma das tendências mais antigas e nobres do espírito
humano, ou seja, a assimilação daquilo que aprecia. (Supostamente o coração traz coragem, os
olhos, perspicácia, e assim por diante). Ao devorar exploradores brancos, os papuanos enga-
javam-se numa "espécie de comunhão com a civilização deles". Tratando-se de missão antro-
pofágica, a única alternativa a não retornar era não partir.
Dentro de um espírito iconoclástico e antimissionário semelhante, Leopoldo Chariarse
descreveu no artigo "Les mélanges inadmissible" [As misturas inadmissíveis], publicado na
revista surrealista do pós-guerra Le surréalisme, même, as dificuldades de cunho teológico encon-
tradas por um padre católico no Amazonas face ao problema de enterrar restos mortais humanos
que haviam sido misturados com carne de porco e transformados em lingüiça. Tanto em Jany
como na famosa sátira de Swift, The modest proposal [A proposta modesta], que propunha o cani-
balismo como solução para os problemas da fome e da superpopulação, "canibalismo" é o fruto
irônico da "civilização".
"Coma seu miolo." Esse foi o convite grosseiro que Tzara fez a Breton e sua facção durante
o arremedo de julgamento de Maurice Barres em 1923, quando o dadá de Paris desmoronava?
Se o "canibalismo" coloriu de várias maneiras o movimento dadá, subversivo e inevitavelmente
de curta duração, no surrealismo ele se alinhou principalmente com a sexualidade e o desejo.
Freud, mitologia e história natural (em particular, a figura do louva-a-deus) forneceram aos
surrealistas terreno suficiente para a exploração metafórica da fome sexual e corporal, sendo
que no trabalho de Dalí esses dois impulsos foram mais intensamente pesquisados.
Entretanto, em Dalí a figuração mais notável do canibalismo ocorre num contexto histórico
específico. Como disse Jarry, a antropofagia pode ser praticada de dois modos: comendo ou
sendo comido. O Autumnal cannibalism [Canibalismo de outono] de Dalí é uma alegoria da Guerra
Civil Espanhola na forma de duas figuras que se devoram simultaneamente. A dilaceração de um
único corpo em seu Soft construction with boiled beans: premonition ofCiuil War [Construção mole com
feijão cozido: premonição de Guerra Civil] torna-se, em Autumnal cannibalism, uma cena ainda
mais terrível da destruição mútua de duas figuras simbioticamente ligadas. O fato de que uma
delas veste camisa vermelha e a outra camisa branca poderia simbolizar as facções de direita e
esquerda, que se confrontavam na Guerra Civil Espanhola. A notória recusa de Dalí em alinhar-
se com o governo republicano e sua renitente postura apolítica vinham acompanhados por um
apaixonado senso de tragédia, que via como "o completo desejo carnal da guerra civil daquela
terra de Espanha".8 Entretanto, o artista também incorpora essas duas figuras no drama cani-
balístico de pai e filho que havia explorado anteriormente, odo mito de Guilherme Tell. Com
profundas raízes na história pessoal de Dalí, o mito de Guilherme Te II , no qual invasores aus-
tríacos forçaram o patriota suíço a atirar numa maçã colocada sobre a cabeça de seu próprio filho,
foi reinterpretado pelo artista em termos de ameaça paternal e rivalidade, segundo a teoria
freudiana da construção do mito de Édipo. Aqui, ele coloca uma maçã sobre a cabeça da figura
à direita, embora esta pareça ser a dominante, "paternal". Esta pintura complexa, na qual o
corpo do "filho" amolece e é espremido como um seio maternal expressa a confusão antinatural
da Guerra Civil em termos de remeter às gravuras de Goya, assim como o faz Soft construction.
Em Dalí, a relação totêmica entre alimento e corpo humano é inquietante. A presença de
comida-feijão cozido, maçã, costeletas de porco colocadas sobre o ombro de Gala no Portrait
of 1933 [Retrato de 1933]-representa aquilo que o artista chamou de "vítimas expiatórias do
sacrifício abortivo".9 Na fotografia de Dalí, na qual ele aparece equilibrando um ouriço do mar
sobre sua cabeça, o animal evidentemente simbolizou para ele a maçã de Guilherme Te II , "sím-
bolo da ambivalência canibalística apaixonada que mais cedo ou mais tarde acaba no desenho

238 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


da fúria atávica e ritualística do arco de vingança paterna que dispara a derradeira seta do sacri-
fício expiatório-o tema eterno do pai que sacrifica seu filho: Saturno devorou seus filhos com
a própria mandíbula, Deus Pai sacrificou Jesus Cristo, Abraão imolou Isaac, Guzman el Bueno
emprestou para seu filho a própria adaga, e Guilherme Tell apontou uma flecha para a maçã na
cabeça de seu próprio filho" .10 Exceto no caso do Tragic myth of Millet's Angelus [Mito trágico do
Angelus de Millet], no qual Dalí explorou uma variante maternal deles, a imago paterna é domi-
nante, tendo Lenin como um dentre muitos avatares. Na pintura monumental de 1933 The enigma
ofWilliam Tell [O enigma de Guilherme Te II] , Dalí equilibra um bife cru na nádega de Lenin para
desviar sua atenção (a do pai) da pequenina figura de sua amante, Gala, a seus pés dentro de uma
casca de noz. Mas a distração totêmica se revela mais ambígua em pinturas tais como Anthropo-
morphic bread [Pão antropomórfico], que retrata uma baguete fálica, semi-oculta, misturando
medo e desejo num ímpeto canibalístico.
A valorização da carne do corpo nu tem sempre algo de canibalístico, especialmente quando
transformada em pigmento róseo e denso. Uma das imagens secretas mais famosas de ícones do
século XX tais como Etant donnés: 1. Le gaz d'ec/airgage 2. La chute d'eau (1946-66), de Duchamp, era
L'origine du monde [A origem do mundo], o nu truncado de Courbet, já notoriamente comparado
a um cepo de açougueiro. O tratamento que Dalí dava aos desejos corporais tem muito pouco em
comum com uma sensualidade tão ostensiva. Suas representações do corpo nu, com superfícies
quase metálicas, não tem nada desse prazer sensual em particu lar, e certamente parecem afastar
até mesmo a possibilidade dele, embora o tema do canibalismo seja tratado mais abertamente
em sua obra do que naquela de qualquer outro pintor surrealista.
Max Ernst Quadro para jovens [Painting for young people] 1943 óleo sobre tela [oil on canvas] 60,2x75,5cm coleção e cortesia
Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

)
239 Dadá e surrealismo Dawn Ades
Dalí nutria um envolvimento sensual profundo com o ato de comer, que via como sendo a
mais imediata das sensações e descrevia ainda como filosófica: "no momento supremo em que
alcança a essência de algo, você descobreo genuíno gosto da verdade".ll Na essência do uso
metafórico que Dalí fazia da idéia de canibalismo encontra-se o desejo de dotaro sentimento com
o mesmo poder advindo da sensação de comer. "Realmente poder comer o objeto do desejo."12
O texto que Dalí escreveu para o jornal surrealista Minotaure, "De la beauté terrifiante et comes-
tible de I'architecture modern' style" [Da beleza ~terrorizante e comestível da arquitetura em
estilo moderno] usa as superfícies fluentes de pedra das construções art nouveau de Barcelona
como trampolim para exploraresse ímpeto humano essencial, e o artista leva suas implicações
a toda uma estonteante série de aplicações. Para ele, as colunas delicadas remetem a aspirações
imperialistas, tais como as de Napoleão, e portanto "aos canibalismos da história".13 Mas essa
arq uitetu ra é pri nci pai mente "a real ização de desejos sol id ificados", um parad igma para o obje-
to surrealista, o qual pode introduzir uma "nova era do canibalismo de objetos", e Dalí conclui
seu texto reconstruindo famosa máxima de Breton, "La beauté sera surréalisteou ne sera pas"
[A beleza será surrealista, ou não será] em suas próprias palavras: "La beauté sera comestible
ou ne sera pas" [A beleza será comestível, ou não será] 14.
Dawn Ades. Traduzido do inglês por Izabel Murat Burbridge.

1. "m ... para o observador" [N. do T.]. dadaístas. A canção consistia em grupos de palavras reagru-
2. Richard Huelsenbeck, "En avantdada: a historyofdadaism" padas a cada verso. Esta linha era a variante final de "mangez
(1920), Robert MothelWell, Dada painters and poets, Nova York, du chocolat, lavez votre cerveau" [coma chocolate, lave seu
1951, p.28. cérebro].
3· Ibid., P·37· 8. Salvador Dalí, The swet life ofSaluador Dalí, Londres, 1968,
4. Idem. P·35 8 .
5. Hugo Ball, "Dada fragments 1916-17", MothelWell, op. cit, 9. Ibid., P·319·
P·51. 10. Idem.
6. Alfred Jarry, "Anthropophagie" (1902), Jarry, la chandelle 11.lbid., p.l0.
uerte, Paris ,1969, P.174. 12. Salvador Dalí, "De la beauté, terrifiante et comestible, de
7. Tristan Tzara, "Chanson dada". Tzara cantou sua "Canção I'architecture modern' style", Minotaure, n.3 (1933), Paris, P.72.
dadá", em vez de prestar depoimento no arremedo de julga- 13· lbid ., P·7 2 .
mento do patriota francês Maurice Barre organizado pelos 14. Ibid., P.76.
Salvador Dalí
Cannibalism Canibalismo 1934 gravura [print] 32,5x25cm coleção particular [private collection]
Cannibalism Canibalismo 1934 gravura [print] 32,5x25cm coleção particular [private collection]

240 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Dadá e Surrealismo curadoria Dawn Ades e Didier Ottinger

The anthropophagic dimensions


of dada and surrealism DawnAdes

When the young Turks of the Brazilian avant-garde in the 1920S named their manifesto and
review "Antropofagia," was it in the knowledge ofFrancis Picabia's dada review Canníbale? This
was possible, but unlikely, and in any case unnecessary to explain their choice of this word which
so aptly refers to the complexity ofthe contemporaneous neocolonial cultural conditions in Brazil,
and their reactions against them. What is interesting though, is to consider why this word should
also come to the fore in the rebellious atmosphere of dada, where it is also telling, but for rather
different reasons.
Dada thrived on the little magazines that proliferated in the 1910S and '20S, and numerous
publications, some only lasting for one issue, appeared in its name. These magazines, together
with the public "literary" evenings and exhibitions, constitute its true life, and its anti-art and anti-
literature stance. When Picabia produced the first issue of Canníbale in April 1920, his peripatetic
review 391 was already ove r three years old. He had published the first four numbers in Barcelona
in the spring Of1917, then moved to New York, where the next three issues appeared; here, it
coincided with the Fountaín scandal orchestrated by Picabia's dose friend Marcel Duchamp,
whose little review The blínd man ceded to 391 as the result of a chess game. Always contentious and
inventive, 391 was a significant conduit for the idea, originating with Duchamp, of the ready-
made, and for the dry machine drawings and paintings with their sexual innuendoes developed
by both Duchamp and Picabia. There was no significant link with the dada movement, born in
Zurich in 1916, until Picabia visited Switzerland in 1918, where he met the Rumanian poet Tristan
Tzara. Tzara's Dada 4/5, and 391 no. 8 witness their mutual stimulation; one interesting textin 391
no. 8 was "Proses," a virtually automatic text, half ofit printed upside down to show the positions
ofthe two men when writing it on opposite sides of a hotel table, while the cover ofDada 4/5
was Picabia's Reveíl matín, the dismembered parts of a watch dipped in ink and printed on paper.
Picabia returned to Paris, and when Tzara arrived in January 1920 an alliance was formed with a
group of young Paris poets, whose magazine Líttérature had in 1919 announced its allegiance to
dada. Picabia was already notorious for his contributions to the Autumn and Spring Salons
where he regularly created a scandal with works that tested the tolerance of the official repre-
sentatives of modern art; this reached a péak with the 1922 Indépendents. Picabia sent in three
works: Dance de Saínt-Guy, The merry wídow and The straw hat. The straw hat was refused because of

241 Dadá e surrealismo Dawn Ades


the implied obscenity in its inscription ("m ... pour celuí quí regarde") , and the Merry wídow because
it contained a photograph, and the Indépendents did not accept photographs. So the only exhibit
was, ironically, the Dance de Saínt-Guy, aesthetically the most provocative ofthem all: an empty
picture frame laced with string. Originally, it seems, Picabia had intended a "living installation"
including white mice-one can imagine a cage-a labyrinth functioning as an insolent metaphor
for the "behaviourist'" repetitive taste ofthe "art-Iover."
Picabia was the most notorious ofthe Paris dadas, and he, Tzara and Breton led the dada
activities in 1920 and the spring of 1921. Canníbale, launched in April 1920, was intended as an
international dada review to unite all its different tendencies: "Monthly review under the direc-
tion ofFrancis Picabia with the collaboration of all the dadaists in the world." Canníbale was less
visually electric than 391, though it still used a variety oftypefaces and conflicting layouts. Itwas
longer than 391, consisting oftwenty rather than 391's maximum of eight pages, and including
not just core dadaists but marginal figures like Cocteau. It only lasted for two issues, and 391 no.
13 celebrated its demise with the note "Really it's impossible for me to produce CANNIBALE reg-
ularly, it's too stupid. I hope you'll accept 391 this time." Among the notable contributions in
Canníbale were Picabia's Tableau dada: a toy monkey clutching its tail as a phallic paint brush,
fixed to a base surrounded by the "titles": Portrait ofCézanne, Portrait ofRenoir and Portrait of
Rembrandt: Natures mortes; Duchamp's Tzank cheque: a meticulously hand-drawn cheque to his
dentist, a kind ofreversed ready-made; and Aragon's poem "Suicide": which consisted simply of
the letters ofthe alphabet.
As an attempt to consume the whole of dada, Canníbale's title was appropriate, but the title
invites other speculations about its meanings in the context of dada. The primitive connotations
of "cannibal" were possibly an ironic reference to the claims put out by the futurists to be the
"primitives of a new sensibility," as well as to the precubist Africanist paintings ofPicasso. Dada
of course to an extent participated in the primitivising strand of modernism, particularly when
it could be turned to polemical use against its own bankrupt civilisation. But dada did not claim
to be part of the modernist avant-garde; ("Dada is not modern," it insisted). Its sense of the inad-
equacy ofthe "schools offormal ideas" as such, for their purposes, reveals one ofthe underly-
ing impulses behind dada: that of restoring to art an immediacy, a direct relationship with life.
The dadaist as far as possible was to be the opposite of the "men of the spirit" who, as Richard
Huelsenbeck said, "sat in the cities, painted their little pictures, ground out their verses, and in
their whole human structure [... ] were hopelessly deformed, with weak muscles, without inter-
est in the things of the day, enemies of the advertisement, enemies of the street, ofbluff, of the
big transactions which everyday menaced the lives ofthousands. Oflife itself. But the dadaist
laves life [... ]."1 The extreme situation in war-devastated Berlin coloured the tone ofHuelsen-
beck's text, its attack on the "art for art's sake mood" that lay ove r Zurich dada, which "failed to
advance along the abstract road, which ultimately leads from the painted surface to the reality of
the post-office form,"2 ànd finally his statement that in Germany, "dadaism became politicaI, it
drew theultimate consequences ofits position and renounced art completely."3 ln Paris dada
worked out its aggression and rudeness at a more individual rather than politicallevel-under the
sign of anarchy-but there too it was a question oflife rather than art. So perhaps Picabia, whose
little magazines were full of anecdotes, aphorisms and gossip, and whose visual productions
incorporated words, photographs, ordinary objects and, in theory if not in practice, living ani-
maIs, thought of the dadaist as a cannibal in the sense that his materiaIs were life rather than art.
Picabia's response, like Duchamp's, to the "art and life" debates was not, however, without
irony, as in his proposals to use real white mice, ar a living monkey (for Tableau dada) in his

242 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


"works of art;" in Tableau dada he hints darkly at the logical
extension of"live materiaIs" to the use ofhuman beings, play-
ing with the French term for a "stilllife," nature morte, literally
"dead nature," and giving a new and comically sinister turn to
the notion ofthe "portrait bust."
Dada's ambivalence to the avant-garde ofthe time can be
too easily subsumed under a general idea of"anti-art." One of
its central modes of opposition was parody: cultural cannibal-
ism par excellence. So the claims of the avant-garde to newness
and originality were mercilessly mimicked: the "simultaneist"
poem, for example, (whether of the futurists or the French pro-
ponent Henri Barzun) was performed in Zurich in the form of
three anodyne popular songs in English, French and German
spoken or sung simultaneously, interspersed with bells and
meaningless exclamations, to create a jumbled confusion of
sound rather than the dynamic multilayered modern poem.
The idea of abstraction itself has an ambivalent position in
dada. Sceptical of the claims to a "new language" put out by
the proponents of abstraction Kandinsky and Mondrian, the
dadaists nonetheless played with abstraction in a more radical
way than Huelsenbeck recognised. Marcel Janco, for example,
in a now lost "Composition" gathered a strange amalgamation
ofwires and, objects which may have been intended as parodic;
Arp too, together with his partner Sophie Taueber, produced the first "soft" abstract sculpture.
The practice of collage, various as it was in the hands of dada, cannibalising newspapers,
photographs, prints, reproductions of all kinds, disassembling bodies and recombining their
fragments in new forms, is also a kind of anthropophagy.
That dada felt itself profoundly alien to the society responsible for the carnage of the First
World War is undoubted; "this world of systems has gone to pieces,"4 as Hugo Ball, founder of
the Cabaret Voltaire, dada's birthplace in Zurich, put it. Rejection of the social and politicaI, as
well as cultural values ofEuropean civilisation presupposed a rejection too ofits colonial expan-
sion-certainlya factor in the War. Although not yet the outspoken criticism of colonialisation
found in surrealism, which was to organise an Antí-Coloníal exhibition in 1931 to oppose the huge
Coloníal exhibition in Paris ofthat year, it's possible that Canníbale, for dada, had undertones of
siding with the colonised "other." If so, it may have been in the spirit of one of dada's immedi-
ate predecessors, Alfred Jarry, whose black humour was a particular stimulus for Duchamp and
for the surrealists. Jarry's short text of 1902, "Anthropophagy," is a sly critique ofthe intersection
of anthropology and colonisation.
Anthropophagy, a "neglected branch of anthropology,"S is practised, Jarry suggests, in two
ways: eating human beings, or being eaten by them. A recent "anthropophagic mission" to New
Guinea was wholly successful, Jarrywrites, according to the report in Patríe for 17 February 1902,
in that not one of its members returned. Before the anthropophagic missions, the science of
anthropophagy was in its infancy, because savages don't eat each other. But it would also be a
mistake to see the new practice as of purely culinary interest; it relates to one of the oldest and
noblest tendencies of the human spirit-assimilating what it finds good. (So, a heart would give
Francis Picabia Brouette Carrinho de mão [Wheelbarrow] coleção Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, Madri

243 Dadá e surrealismo Dawn Ades


courage, an eye, perspicacity, etc.) .The Papuans in eating the
N"I,1
white explorers entered into a "sort ofcommunion with their
civilisation." The only other way of not returning, for an anthro-
pophagic mission, would be uot to go in the firstplace.
ln a similar iconoclastic and antimissionary spirit, Leopoldo
391
Chariarse described in an article in the postwar surrealist review
Le surréalisme, même, "Les me1anges ínadmíssíble," the theological dif-
ficulties of a Catholic priest in the Amazon, when he was faced
with the problem of burying human remains which had been
made into sausages mixed with pig meato As with Jarry, "canni-
balism" is the ironic fruit of"civilisation"-as it was in Swift's
famous satire, The modest proposal, which offered cannibalism as
the solution to the problem offamine andoverpopulation.
"Eat your brains," Tzara rudely invited Breton and his fac-
tion at the mock trial ofMaurice Barres in 1923, as dada in Paris
collapsed.6 If "cannibalism" colours the subversive, self-devour-
ing and inevitably short-lived dada movement in various ways, in
surrealism it was aligned above all with sexuality and desire. u .$ólWlt ou u.tN'Tl
f',<J<....
Freud, mythology and natural history (above all in the figure of
the praying mantis) provided substantial ground among the sur-
realists for the metaphorical exploration of sexual and bodily
hunger, and it was in Dalí's work above all that these two urges . iii

were most intensively investigated.


However, Dalí's most prominent figuration of cannibalism
occurs in a specific historical contexto As Jarry said, anthropophagy can be practised in two ways :
either eating or being eaten. Dalí's Autumnal canníbalism allegorises the civil war in Spain as two
figures simultaneously devouring each other; the rending of a single body in his Soft constructíon
wíth boíled beans: premonítíon of civil war becomes in Autumnal canníbalism an even more terrifYing
scene of the mutual destruction of two figures symbiotically linked. The fact that one wears a red
shirt, the other a white, might symbolise the opposing left and right factions in the Spanish Civil
War. Dalí's notorious refusal to align himselfwith the Republican government, and his dogged
apoliticism was accompanied by a passionate sense ofthe tragedy, which he saw as " the whole
carnal desire ofthe civil war ofthat land ofSpain."7 However, he also incorporates these two fig-
ures into the cannibalistic drama of father and son which he had already explored through the
myth ofWilliam Tell. Deeply rooted in Dalí's personal history, the William Tell myth, in which
the Swiss patriot had been forced by the Austrian invaders to shoot an apple on his son's head,
was re-interpreted by Dalí in terms of parental threat and rivalry, in the full knowledge ofFreud's
construction ofthe Oedipal myth. Here, he places an apple on the head ofthe right-hand figure ,
although this seems to be the dominant, "paternal" one. This complex painting, in which the
flesh ofthe "son" softens and is squeezed like a maternal breast expresses the unnatural confu-
sion ofthe civil war in terms that recall, as does Soft constructíon, the engravings ofGoya.
Food and the human body have an uneasy totemic relationship in Dalí's paintings. The
presence offood-boiled beans, apple, the lamb chops poised on Gala's shoulder in the portrait
of 1933, are what Dalí called the "expiatory victims of abortive sacrifice."8 A photograph ofDalí
with a sea urchin balanced on his head evidently symbolised for him William Tell's apple "which
Francis Picabia Novia, au premier occupant 1917 ilustração da revista Cannibale [magazine illustration]

244 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


is the symbol of the passionate cannibalistic ambivalence which sooner or later ends with the
drawing of the atavistic and ritualistic fury of the bow of paternal vengeance that shoots the final
arrow of expiatory sacrifice-the eternal theme ofthe father sacrificing his son: Saturn devour-
ing his sons with his own jaws; God the Father sacrificing Jesus Christ; Abraham immolating
Isaac; Guzman el Bueno lending his son his own dagger; and William Tell.aiming his arrow at
the apple on the head ofhis own son."9 With the exception ofhis book, the Tragic myth ofMíllet's
Angelus, in which Dalí explored, through his analysis ofMillet's paintingTheAngelus, its maternal
variant, the paternal imago is dominant, with Lenin as one of many avatars. ln the huge painting
Of1933 The enigma ofWílliam Tell he balances a raw steak on Lenin's buttock to divert him (the
father), Dalí said, from the tiny figure of his lover Gala in a walnut shell by his foot. But the
totemic diversion is rendered more ambiguous in paintings like Anthropomorphic bread, which
portraya semishrouded phallic baguette, compounding fear and desire in a cannibalistic urge.
The appreciation ofthe flesh ofthe nu de body always has something cannibalistic about it,
especially when transformed into thick pinkish pigmento One of the most famous secret images
behind such major twentieth century icons as Duchamp's Etant Donnés: 1. Le gaz d'eclairgage 2. La
chute d'eau (1946-66) was Courbet's I.:origine du monde, a truncated nude, which was once famously
described in terms of a butcher's slab. Dalí's treatment ofbodily desires has little in common with
such frank sensuality. His depictions of nude flesh in his almost metallic surfaces have nothing of
this particular sensuous enjoyment, indeed seem to be warding off its very possibility, although
the theme of cannibalism is treated more openly by him than by any other surrealist painter.
Dalí had a profound sensual engagement with eating as the most immediate of sensations,
which he describes also in philosophical terms: "at the supreme moment of reaching the mar-
row of anything you discover the very taste of truth."10 At the heart ofDalí's metaphorical use of
the idea of cannibalism is the desire to endow feeling with the sarne power as the sensation of
eating. "Really to be able to eat the object of desire."11 Dalí's text for the surrealist journal Mino-
taure, "De la beauté, terrifiante et comestible de l'architecture modern style" uses the flowing
stone surfaces ofthe art nouveau buildings ofBarcelona as a springboard to explore this basic
human urge, and he carries its implications across a dizzying range of applications. The soft
columns recall for him imperialist aspirations, such as those ofNapoleon, and are as such "the
cannibalisms ofhistory."12 But above alI this architecture is the "realisation of solidified desires,":
a paradigm for the surrealist object, which would usher in a "new age of the cannibalism of
objects," and he ends this text by rephrasing Breton's famous surrealist dictum, "La beauté, sera
surréaliste ou ne sera pas," with his own "La beauté, sera comestible ou ne sera pas."13
DawnAdes

I. Richard Huelsenbeck, "En avant dada: a history of dadaism" final variant of"mangez du chocolat, lavez votre cerveau" [eat
(1920) in Robert Motherwell, Dada paínters and poets, NewYork, chocolate, wash your brains].
1951, p.28. 7. Salvador Dalí, The secret lífe ofSalvador Dal{, London, 1968,
2. Ibid., P.37. P·35 8 .
3. Idem. 8. Ibid., P.3I9.
4. Hugo Ball "Dada fragments I9I6-q" in Motherwell, op. 9. Idem.
cit., P.5I. 10. Ibid., p. 10.
5. Alfred Jarry, "Anthropophagie" (1902) in Jarry, La chandelle II. Salvador Dalí "De la beauté, terrifiante et comestible, de
verte, Paris, 1969, P.Q4. l'architecture modem' style," Mínotaure, n.3, Paris (1933), P.72.
6. Tristan Tzara, "Chanson dada." Tzara sang his "Dada song" 12. Ibid., P.72.
instead of giving evidence at the mock trial organised by 13. Ibid., P.76.
the dadaists of the French patriot Maurice Barre. It consisted
of groups of words rearranged in each verse; this line was a

245 Dadá e surrealismo Dawn Ades


Dadá e Surrealismo curadoria Dawn Ades e Didier Ottinger

Retrato da fêmea do louva-a-deus


como heroína sadiana DidierOttinger

"O canibalismo é feminino."


-André Masson

"Um obcecado!", assim André Breton julga Georges Bataille depois de tê-lo conhecido no café
Le Cyrano, em 1926. Esse dia, teria Bataille falado de Sade, cuja obra acabara de descobrire cuja
intemperança parecia se esforçar por atualizar.
Seu interesse pelo "Divino marquês" nada tem de original. Dele partilha a maioria dos
primeiros adeptos do surrealismo. Littérature, ainda dadaísta, no número de 18 de março de 1921
coloca Sade entre as referências maiores dos artistas e poetas reunidos pela revista em torno de
André Breton. E, em 1923, a revista que estabelece hierarquias e fontes para os futuros surrea-
Iistas encontra somente Lautréamont para colocar ao lado de Sade no topo de seu panteão. Na
época do surrealismo militante, correndo o risco de graves mal-entendidos com os simpati-
zantes comunistas de Clarté, Éluard se esforça por demonstrar "a inteligência revolucionária" do
"divino marquês". No número 8 de la réuo/ution surréa/iste, Éluard reincide, publicando desta vez
um "D.A.F. de Sade, escritor fantástico e revolucionário" que faz do autordeJustine o apóstolo
dajustiça e da liberdade. Na época do engajamento comunista dos surrealistas, o Sade revolu-
cionário teve precedência sobre o Sade imoralista.
Não teria o revolucionário da "seção de espadas" nenhum valor de uso erótico para os
su rreal istas?
À época em que o "obcecado" Georges Bataille transfere a maior parte de seus rendimen-
tos de bibliotecário às donas de bordel, André Breton, na "pesquisa da sexualidade" publicada
no número 11 de la Réuo/ution surréa/iste, de 15 de março de 1928, condena a homossexualidade,
assimilada a uma perversão sexual, prega um amor único, eletivo e, porfim, afirma não ser nem
"sádico nem masoquista".
Em 1928, duas obras dizem bastante daquilo que separa as concepções que Bataille e
Breton fazem do amor. Sob o pseudônimo de Lord Auch, Georges Bataille publica Histoire de /'rei/
[História do olho], que Michel Leiris mais tarde qualificará de "delírio sexual, (de) ímpeto blas-
fematório e (de) furor mortífero".1 O próprio Bataille presta contas dos sentimentos que lhe
inspiram o livro: "[ ... ] eu gostava só do que é classificado de 'sujo'. Não me satisfazia nem
mesmo a intemperança habitual; aliás, ao contrário, porque ela suja unicamente a intempe-
rança e deixa intacto, de uma maneira ou de outra, algo de elevado e perfeitamente puro". Algo
tão "perfeitamente puro" quanto, por exemplo, o amor descrito por André Breton no romance
Nadja, publicado esse mesmo ano de 1928. Nadja é a narrativa da paixão suscitada por um serde
cuja realidade material acabamos por duvidar. Um gênio, uma fada, uma criatura imaterial
inspira a Breton uma paixão cuja espiritualidade a liga à mais alta tradição do amor cortês.
Da musa Nadja à perversa Marcelle (a heroína de Histoire de /'rei/) se assinala o distanciamento
Acéphale Acéfalo [Acephalous] capa da revista [magazine cover] julho 1937

246 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


entre uma concepção cavalheiresca e idealista do amor e uma outra, vinculada aos impulsos
mais deliberadamente "baixos", que se avizinham da morte; um amor indissociável do erotismo
aprendido nas lições sadianas.
A primeira edição, de 1928, de Histoire de I'reil era enriquecida de oito litografias do pintor
André Masson.
Em 1924, Michel Leiris introduzira Bataille no círculo dos freqüentadores da rua Blomet,
onde se encontrava o ateliê do pintor. O interesse comum por Nietzsche e Dostoiévski os aproxi-
ma no mesmo instante. Bem depressa, Sade incorpora-se às suas referências comuns. Em 1928,
~asson empreende a ilustração daJustine de Sade.
Sua comunhão no altar profanatório do sadismo ocorre em 1931, quando Masson grava
uma série de pranchas para L'anus solaire [O ânus solar] de Bataille. Em 1936, é Bataille que com-
põe um texto para acompanhar as gravuras de SacrifIces [Sacrifícios].
O pintore o escritor jamais estiveram tão próximos. A partirde 1934, Bataille faz diversas
viagens a lossa de Mar, na Espanha, onde se instalara Masson. É lá que concebem a efígie do
personagem acéfalo, manifesto visual de uma revista posta sob a dupla tutela de Nietzsche e de
Sade. Bataille coloca o texto fundadorda revista sob um exergo sadiano. O primeiro número de
Acéphale publica um texto de Pierre Klossowski consagrado ao divino Marquês.
Seria o personagem acéfalo concebido por Masson o emblema definitivo do sadismo do
pintor? Há outra figura que, por suas ressonâncias simbólicas, por sua onomástica, condensa
as referências sadianas de que partilham André Masson e Georges Bataille. Essa figura, lúbrica e
terrificante, é a do louva-a-deus. Afêmea do louva-a-deus é o símbolo perfeito da erótica sadiana.
Desde sua instalação em lossa de Mar, em 1934, Masson se interessa pelo mundo dos insetos.
Evocando esse período, recorda: "Natu ral mente, esses insetos são h u man izados, antropomor-
fizados. Eu criava louva-a-deus, ficava olhando o que acontecia quando púnhamos vários deles
dentro de uma caixa para vero que ali sobraria. O efeito é
extraordinário. Uma vez, por exemplo, na caixa [... ] havia
um louva-a-deus morto, impressionante como uma está-
tua jacente; ao lado, restos. Sabíamos quem havia sido
vitorioso. Era um pouco cruel, confesso, mas a Espan ha
me incitava a isso". Em breve, os louva-a-deus invadem os
quadros de Masson. A lembrança deles o obseda mesmo
bem depois de sua estada na Espanha. Durante os primei-
ros anos da guerra, o inseto lhe inspira desenhos e escul-
turas. No transcurso dos anos trinta, Masson não está
sozinho no interesse pelo louva-a-deus. Uma carta que
endereça a Bataille, em novembro de 1937, nos faz saber
que ele destina a Roger Caillois alguns de seus desenhos
de louva-a-deus: "Você me prestaria um serviço se bem se
dispusesse a avisar Caillois de que os desenhos de louva-
a-deus se encontram em suas mãos".
Em sua quinta aparição, em maio de 1934, a revista
Minotaure traz efetivamente um estudo de RogerCaillois:
"La mante religieuse, de la biologie à la psychanalyse"
[O louva-a-deus, da biologia à psicanálise], em que o
autor fornece aos futu ros exegetas do an imal as chaves de

~tN çOWG~m!:.m!;!, "~T ~""~


liJ
sua interpretação sadiana. Um ano mais tarde, o artigo
N"
8frs
D I O N Y SOS
3 - 4- JUILLET
1937
. PAR G. BATAlLLI! • R. CAlLLOIS . P. KLOSSOWSKI ' A. MASSON . J. MONNEROT

247 Dadá e surrealismo Didier Ottinger


desenvolvido constituirá um capítulo da obra de Caillois
Le mythe et I'homme [O mito e o homem]. Se lhe aplicásse-
mos as apreciações típicas de André Breton, o louva-a-
deus pertenceria sem dúvida alguma à categoria dos
"obcecados". Caillois nos ensina que o inseto é um ma-
tador apenas por lubricidade. Cita o entomólogo Raphael
Dubois, de acordo com quem um acridídeo, se decapitado,
executa melhor e mais demoradamente os movimentos
reflexos e espasmódicos próprios da copula. Os biólogos F.
Goltz eH. Busquet, a partirdessa constatação, se indagam
se "a fêmea do louva-a-deus, ao decapitar o macho antes
do acasalamento, não teria porfinalidade obter, mediante
a ablação dos centros inibidores do cérebro, execução mais
prolongada e melhor dos movimentos espasmódicos do
coito, de tal forma que, em última análise, fosse o próprio
princípio do prazer que lhe ordenasse a morte do amante".2
Com o louva-a-deus, aparece uma figura que conden-
sa erotismo e morte, êxtase e sacrifício, e que Bataille se
põe a renovar esses valores, a partirde leituras de Nietzsche
e de Sade, interpretadas na perspectiva dos estudos socio-
antropológicos de Marcel Mauss. O louva-a-deus, segundo
o mito ao qual o associa a tribo africana dos khoi-khois,
-------~-~---~-~~--~._-----_ ~------' •. está ligado às figuras dos imolados mitológicos de que
Masson, em '933, acabara de gravar as efígies. Para os
khoi-khois, o louva-a-deUs associado à divindade superiorde seu panteão foi devorado e vomi-
tado completamente vivo por Kwai-Hemm, o deus devorador. Tal mitologia remete o mantódeo
aos "deuses que morrem", a Orfeus, Osíris, Jesus, Mitras, cuja "consumição" real ou simbólica
assegu ra renovação e salvação.
No texto que escreveu para acompanhar as gravuras de Sacriflces, Bataille associa a morte
do Deus ao êxtase amoroso. "A destruição rói fundo e assim purifica a própria autoridade supre-
ma. A pureza imperativa do tempo se opõe a Deus, cujo esqueleto se dissimula sob roupagens
douradas, sob uma tiara e sob uma máscara [.. .] Mas no amordivino se desvenda infinitamente
o clarão enregelante de um esqueleto sádico. A revolta-a face descomposta pelo êxtase
amoroso-, a Deus arranca a máscara de ingenuidade e assim a opressão desaba no estrépito
do tempo".3
O canibalismo amoroso da fêmea do louva-a-deus pertence de pleno direito à fantasmáti-
ca sadiana. Para o mundo erudito, informa-nos Caillois, "a palavra espectro designa ainda hoje
um gênero de ortópteros tão próximo dos louva-a-deus que o leigo ficaria em vão à procura do
princípio distintivo".4 Os espectros pertencem à mitologia dos antigos gregos. São esses espectros
enviados por Hécate, a divindade infernal mais sinistra. Caillois lembra as fábulas ligadas a
esses espectros que "gostam muito do amor, porém ainda mais da carne humana; (que) pela
voluptuosidade aliciam aqueles a quem querem devorar".5
O amor gourmand próprio desses espectros e da fêmea do louva-a-deus nada tem de extra-
ordinário. Novalis escreve que "o desejo sexual talvez não seja mais que disfarçado apetite por
carne humana".6 Caillois, por outro lado, informa que a "mordida de amor" já era "conhecida
André Masson Dionysos Dionísio ilustração da revista Acéphale [Acéphale magazine ilu stration] julho 1937

248 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


pelos poetas antigos e codificada pelos erotólogos orientais"J Apenas Sade e alguns poucos
japoneses sequiosos de carne holandesa transpõem a fronteira que separa a "mordida de amor"
da devoração bulímica. O psicólogo Kierman afirma que convém consideraro sadismo "como a
forma humana anormal de fenômenos que podemos encontrar no começo da vida animal,
como a sobrevivência ou o retorno atávico de um canibalismo sexual primitivo".8 A literatura de
Sade apresenta algumas figuras de fêmeas de louva-a-deus. ladyClairwil, em La nouvelleJustine
[A novaJustina], não hesita em praticar o canibalismo com seus amantes.
O canibalismo da fêmea do louva-a-deus pertence, como numerosas características do
animal, ao registro dos fenômenos transgressivos cujas ressonâncias sociais Georges Bataille
estuda. Para ele, o canibalismo constitui um dos sinais mais eloqüentes de comunhão com uma
ordem de forças superiores terríveis e inebriantes. Ritualizado, o canibalismo é para Bataille a
marca de uma sociedade que manifesta, ao mesmo tempo, assentimento e desprezo pela
morte. As sociedades pré-colombianas lhe parecem exprimirtais valores.
"Os números citados variam: não obstante, pode-se admitirque o montante anual de víti-
mas atingia, por baixo, vários milhares na cidade do México. O sacerdote ordenava que um
homem fosse sustentado de barriga para cima, arqueados os rins sobre uma espécie de baliza
grande, e lhe abria o tronco vibrando-lhe violentamente um golpe de faca de pedra refulgente.
Os ossos eram cortados, o coração agarrado plenamente com as- mãos pela abertura inundada
de sangue e arrancado violentamente com uma habilidade e uma presteza tais que essa massa
sangrenta continuava a palpitar organicamente durante alguns segundos por cima da brasa
rubra: em seguida, o cadáver abandonado despencava pesadamente até o pé da escadaria. Por
fim, caída a noite, esfolados, esquartejados e cozidos todos os cadáveres, os sacerdotes os vi-
nham comer."9 Bataille não se interessa unicamente pelas formas coletivas e ritualizadas da
antropofagia. Para ele, o autocanibalismo é igualmente expressão de uma ambição, de uma
religiosidade superior. O delírio da automutilação está sempre associado a um desejo de ele-
vação levado ao paroxismo e, muitas vezes, se confunde com a obstinação de contemplaro sol
diretamente. "Já se expressou mitologicamente o sol pela figura de um homem que se degola-
va a si mesmo [... ]"10 Bataille encontra um equivalente dessa automutilação no relato concer-
nente a Gaston F., a que se referem os annales médico-psicológicos: "Na manhã de 11 de dezembro,
passeava ele pelo bulevar de Ménilmontant. Ao chegar à altura do Pere lachaise, pôs-se a fitar
fixamente o sol e, tendo recebido de seus raios a ordem imperiosa de arrancar um dos próprios
dedos, sem hesitar, sem se ressenti r de dor algu ma, prendeu entre os dentes o ind icador esq uer-
do, seccionou sucessivamente a pele, os tendões flexores e os extensores, os ligamentos articu-
lares na altura da articulação falangeal, torceu com a mão direita a extremidade do indicador
esquerdo assim dilacerado e o arrancou completamente [... ]"11
Para André Masson, o estudo do louva-a-deus permite uma transferência de valores rituais
e sociais revelados na época em que colaborou com Bataille na revista Documents. Interrogado
sobre seu interesse pelo canibalismo da fêmea do louva-a-deus, responde o pintor: "Para dizer
a verdade, eu estava bastante informado sobre o canibalismo por não poucos amigos que fize-
ram viagens de exploração à África. Entre outros, meu amigo Michel leiris, que fez uma viagem
de dois anos e me dizia que as tribos canibais é que eram as mais civilizadas" .12
É impensável explorar a inquietude nascida da associação do erotismo com a figura do
louva-a-deus sem evocar o arquétipo desse terror que o fantasma da vagina dentata constitui.
Essa vagina dentada cuja mordida provoca a castração vê seu simbolismo juntar-se ao do louva-
a-deus. "É significativo que, tanto na Provença quanto na África austral, o louva-a-deus seja
associado aos dentes de modo tão particular", comenta Caillois13.

249 Dadá e surrealismo Didier Ottinger


Ao associar o erotismo à morte e à violência, a fêmea do louva-a-deus se dota do poder de
fazervirà tona as figuras de nossos medos e de nossas fobias. Ao reduzir Sade unicamente à sua
dimensão política, André Breton privou o surrealismo dessas figuras de angústia, desse imagi-
nário de terror e de tremores místicos. Em '930, Bataille lidera a primeira cisão séria no seio do
grupo surrealista. Sua revista Document publica o panfleto Un cadaure [Um cadáver], em que
Breton se vê, entre outras coisas, taxado de "leão capado". No quadro da polêmica que acaba
de iniciar abertamente com Breton, Bataille redige La ualeur d'usage de D.A.F. de Sade [O valor do
uso do D.A. F. de Sade], que leva o debate para o ponto mais crucial de suas divergências: Sade
e a interpretação que convém dar à sua obra. Evocando a leitura que os surrealistas haviam feito
de Sade, escr~ve Batail/e: "Hoje parece conveniente colocar seus escritos (e com eles o persona-
gem do autor) acima de tudo (de quase tudo) que seja possível lhes opor: mas não se trata de
lhes ceder o mínimo espaço, tanto na vida privada quanto na vida social, tanto na teoria quanto
na prática" . 14 Nadja contra Marcel/e, os bordéis contra os cafés literários, o uso existencial que
convém fazer das lições de Sade, eis os termos do contencioso que opõe Batail/e a Breton.
André Masson, refugiado em Marselha durante a guerra, tentou fazer com que os mem-
bros do surrealismo no e~ílio partilhassem de sua fascinação pela cruel fêmea do louva-a-deus.
Nessa época, todos passavam o tempo a "capturar tantos louva-a-deus quantos desejassem,
pelo espetáculo que oferecem de rivalidade e de amor [... ]" 15 A história não nos diz se Breton,
com esse espetáculo, obtinha tanto prazer quanto com aquele do elegante balé nupcial das
borboletas. Didier Ottinger. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. M.Leiris, "Du temps de Lord Auch", L'Arc, n-44. 10. G. Bataille, "Solei I pourri" , Documents n.3, P.173-174j CEuures
2. R.Caillois, Le mythe et I'homme, Coleção Essais, 1 a ed. 1938, completes, P.232.
Paris: Gallimard, 1996, P.54-55. 11. G.Bataille, "La mutilation sacrificielle et I'oreille de Vin-
3. G. Bataille, Saaifices, CEuures completes, vol. 1, P.95. cent van Gogh", Documents, n.8, 1930, p.10-20j CEuures completes,
4. Caillois, Le mythe et le monde, p.63. P·25 8 .
5. Ibid ., p.62. 12. A.Masson, "Discussion avecJean-C laud e Clebert", Mytho-
6. Citado em Caillois, Le mythe et I'homme, P.58. logie d'André Masson, Genebra: Pierre Caillet, 1971, P.46.
7· Ibidem, P·59· 13. Caillois, Le mythe et I'homme, P-46.
8. Ibidem, P.56. 14. G. Bataille, De la ualeur d'usage de D.A.F. de Sade , in CEuures
9. G. Bataille, "L'Amérique disparue", Cahier de la république des completes, vol. 2, P.56.
lettres, 1928, CEuures completes, P.157. 15. A. Breton, La def des champs.
Ernesto Neto O escultor e a Deusa [The sculptor and the Godess] 1995 100x80cm foto Murillo Meirelles cortesia Galeria
Camargo Vilaça
Dadá e Surrealismo curadoria Dawn Ades e Didier Ottinger

A portrait of the mantis as a


Sadian Heroine DidierOttinger

"Cannibalism is feminine."
-André Masson

"The man's obsessed!" Thus André Breton judges Georges Bataille after their first meeting, in
1926, at the café Le Cyrano. Might Bataille have spoken that day about Sade, whose works he had
just discovered, and whose notions of debauchery he seems bent on putting to practice?
There is nothing original, of course, in his sheer interest in the "Divine marquis;" most of
the first adepts of surrealism share it. The still-dadaist journal Líttérature, in its issue ofMarch 18,
1921, cites Sade as one of the major reference points for the artists and poets the review gathers
around André Breton. Later, in 1923, this magazine that establishes hierarchies and sources for
future surrealists considers no one but Lautréamont worthy of sitting with Sade at the summit of
its pantheon. ln surrealism's militant phase, to avoid any risk of serious misunderstandings with
the communist sympathizers of Clarté, Eluard is careful to emphasize the "evolutionary intelli-
gence" ofthe "divine marquis." ln issue 8 ofLa révolutíon surréalíste, Éluard commits a second
offense by publishing one "D.A.F. de Sade, fantastic and revolutionary writer," which makes the
author of]ustíne out to be an apostle ofliberty and justice. ln the period ofthe surrealists' com-
mitment to communism, Sade the revolutionary gained ascendancy ove r Sade the immoralist.
Did the revolutionary ofthe "lancer's division" have no erotic lessons to impart for the
surrealists?
At a time when the "obsessed" Georges Bataille is turning most ofhis librarian's earnings
ove r to the madames of various brothels, André Breton in his "research on sexuality," which La
Révolutíon surréalíste publishes in its is sue no. II of March IS, 1928, condemns homosexuality,
which he classes as a sexual perversion, and advocates love for one elective person, declaring
himself"neither sadist nor masochist."
ln 1928, two works neatly spell out Bataille and Breton's respective views on love. Under
the pseudonym Lord Auch, Georges Bataille publishes Hístoíre de l'reíl [The story of the eye] ,
which Michel Leiris willlater characterize as a work of"sexual madness, unbridled blasphemy,
and lethal frenzy."l Bataille has his own account ofthe feelings that inspired the book: "[ ... ] I
loved only that which is deemed 'filthy.' I wasn't even satisfied-quite the contrary-by cus-
tomary debauchery, since it sullies only the debauch itself and in one way or another leaves intact
something lofty and perfectly pure." Something as "perfectly pure," say, as the love described by
André Breton in his novel Nadja, also published in 1928. Nadja is the tale of a passion aroused bya
being whose actual physical existence one is never quite sure of. A genie, a fairy, an immaterial
creature inspires a passion in Breton the spirituality ofwhich links him with the loftiest tradition
of courtly love. The difference between the muse Nadja and the perverse Marcelle (heroine of
Hístoíre de l'reíl) is that between a chivalric, idealistic vision oflove, and one bound to the deliber-
ately "basest" of drives, verging on death; a love inseparable from the sort of eroticism Sade's
lessons taught.

251 Dadá e surrealismo Didier Ottinger .


And the first, 1928 edition ofHistoire de l'ceil contains eight lithographs by the painter André
Masson.
ln 1924, Michel Leiris had brought Bataille into the circle of regular visitors to rue Blomet,
where the painter has his studio. Their shared interest in Nietzsche and Dostoyevsky immedi-
ately binds them together. ln 1928, Masson illustrates Sade's]ustine.
They commune on the profanatory altar ofSadism in 1931, when Masson engraves a set of
plates for Bataille's L'anus solaire [The solar anus]. ln 1936 it is Bataille who composes a text to
accompany the engravings ofSacrifices.
The painter and writer were never to be closer. From 1934, Bataille stays a number oftimes
in Tossa de Mara, in Spain, where Masson had gone to live. It is there that they devise the figure
of the headless person, the visual manifesto for a magazine doubly inspired by Nietzsche and
Sade. Bataille chooses an inaugural text to start the magazine off on a distinctly Sadian note. The
first issue of Acéphale contains a text on the divine marquis by Pierre Klosowski.
Is the headless person devised by André Masson the definitive emblem of the painter's
sadism? There is another figure which, through its symbolic resonances, and its very name,
sums up the Sadian references Masson and Bataille share. This lustful and terrifYing figure is the
praying mantis. The mantis is the perfect symbol of Sadian erotics. Masson was drawn to the
world ofinsects from the moment he moved to Tossa de Mar, in 1934. He recalls ofthis period:
"These insects, of course, are humanized, anthropomorphized. I was raising praying mantises,
and would watch what happened when you put several together in a box, to see which will survive.
The effect is extraordinary. Once, for instance, in the box [. . .] there was a dead mantis, as
André Masson GerminationGerminação 1942 guache sobre papel [gouache on pape r] 51,3x66,5cm coleção e cortesia Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo

252 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


imposing as some recumbent funeral statue, alongside the remains. You knew then which of
them had won. It was aU a bit cruel, I admit, but Spain brought that out in me." Mantises soon
invade his canvases. The memory ofthem haunts him weU past the stay in Spain. During the first
years of the war, the insect inspires his drawings and sculptures. N or, in the thirties, is Masson
the only person interested in the mantis. A letter he writes to Bataille in November 1937 shows
us that he is sending some ofhis mantis drawings to Roger Caillois: "Would you do me afavor
and please teU Caillois thatyou're holding the praying mantis drawings."
And indeed, in its May 1934 issue, the magazine Mínotaure publishes a study by Roger Caillois
on "The praying mantis, from biology to psychoanalysis," in which the author offers future
exegetes of this creature the keys to its Sadian interpretation. The artide, in expanded form, will
later form a chapter of his work Le mythe et l'homme [Myth and mankind]. lf one were to apply
André Breton's judgments to it, the praying mantis would undoubtedly belong to the category of
the "obsessed." Caillois teUs us that the insect kills solely out oflust. He cites the entomologist
Raphael Dubois, who remarks that the locust or grasshopper can perform the spasmodic reflex
movements of copulation better and for a longer time when it's decapitated. The biologists F.
Goltz and H. Busquet, drawing on this statement, ask whether "the mantis, in decapitating the
male before coupling, might not aim to obtain, by removal ofthe brain's inhibitory centers, a
better and longer-Iasting execution ofthe spasmodic motions of coitus. Ultimately, then, it is the
pleasure principIe, apparently, that prompts her to murder her lover."2
ln the mantis we find a figure that condenses eroticism and death, ecstasy and sacrifice,
one that Bataille will use to tie together these values, from his readings ofNietzsche and Sade,
interpreted in light ofMarcel Mauss's socio-anthropological studies. The mantis, in the myth
the African tribe of the Khoi-Khoi attach to it, is linked with the mythological figures of sacrifice
whose images Masson first engraves in 1933. For the Khoi-Khoi, the mantis, whom they relate
to the higher divinity oftheir pantheon, was devoured and vomited out still alive by Kwai-Hemm,
the devouring godo This mythology links the mantis to the "dying gods," to Orpheus, Osiris,
Jesus, Mythra, whose real or symbolic "consummation" assures renewal and salvation.
ln the text he writes to accompany the prints ofSacrlfíces, Bataille relates the death ofGod
to ecstasy in love. "Destruction gnaws deeply, thus purifYing sovereignty itself. Time's com-
manding purity is opposed to God, whose skeleton is concealed in the golden drapery, under a
tiara, under a mask [... ] But divine love endlessly unveils the chilling glow of a Sadian skeleton.
Revolt-the face decomposing through love's ecstasy-tears the naive masks off God; thus
oppression collapses through the din oftime."3
The erotic cannibalism of the mantis rests squarely, then, in the Sadian fantasy world. For
the world of the learned, Caillois informs us, "the word empuse to this day denotes a genus of
orthopteron so dose to the mantis that the uninitiated would search in vain for some point of
distinction between them."4 The empusa is part of ancient Greek mythology. lt is a ghost sent by
Hecate, the most sinister of the gods of the underworld. Caillois recaUs the fables linked with
these empusas, who "are quite in love with love, but even more so with human flesh; who
through sensual pleasure lure those they wish to devour."5
The "rapacious" love typical of empusas and praying mantises isn't reaUy so extraordinary,
however. Novalis writes that "sexual desire may be nothing but a disguised appetite for human
flesh."6 Caillois, moreover, relates that the "love bite" is "known even to the ancient poets and cod-
ified by the erotologues ofthe Bast."7 Sade alone, and a few rare Japanese starved for Dutch flesh,
cross the border that divides the "love bite" from bulimic gobbling. The psychologist Kierman
specifies that it's best to consider Sadism "as the abnormal human form of what is found at the

253 Dadá e surrealismo Didier Ottinger


start ofhuman life, as the survival or atavistic return of a primitive sexual cannibalism."8 Sade's
oeuvre contains several "mantis" figures. Lady Clairwil, in The new]ustine, doesn't hesitate to
practice cannibalism on her lovers.
The mantis's cannibalism belongs, like a number ofthe animal's traits, among those trans-
gressive phenomena whose social resonances Georges Bataille studies. Cannibalism constitutes
for him one of the most eloquent signs of communion with an order of awesome, intoxicating
higher powers. Ritualized, cannibalism is the mark for Bataille of a society manifesting at once
assent of and contempt for death; and he finds such values particularly welI expressed in pre-
Columbian societies.
"The figures cited vary: however, it is safe to state that the number of annual victims
reached, at a conserva tive estimate, into the several thousands in Mexico City. The priest would
have a man held belIy-up, his back arched over a sort oflarge boundary stone, and he would slit
open his torso, violently thrusting into it a knife of gleaming stone. The bones were severed, the
heart seized with bare hands from the blood-drenched opening and violently torn out with such
skill and swiftness that this bleeding mass kept beating for some seconds over the live charcoals:
then the discarded corpse would topple heavily down the stairs. FinalIy, when evening had come,
alI the corpses were flayed, cut up and cooked, and the priests carne to eat."9 Bataille is not inter-
ested only in the colIective and ritualized forms of anthropophagy. For him, autocannibalism is
also the expression of an ambition, of a higher religiosity. The frenzy of self-mutilation is always
associated with a desire for the lofty pushed to its extreme, and often bound up with a stubborn
desire to stare directly into the sun. "The sun has been expressed mythologicalIy by a man slitting
his own throat [... ] "10 Bataille finds an equivalent for this self-mutilation in the story ofGaston
E, as told in the Annales médico-psychologiques: "He was out walking the morning ofDecember II,
on boulevard de Ménilmontant when, having reached the top ofpf~re Lachaise, he started staring
into the sun and, receiving from its rays the order to tear off a finger, without hesitation and
without feeling any pain, grasped his left index finger in his teeth, gradualIy prised open the
flesh, the flexor and extensor tendons, the articular ligaments at the leveI of the phalanx joint,
twisted the end ofthis torn index finger with his right hand and pulIed it off completely [. .. ] "11
For André Masson, the study of mantises alIows for a transfer ofthe ritual and social values
his colIaboration with Bataille at the time ofthe journal Documents initiated. Asked once about his
interest in the mantis's cannibalism, the painter replied: "Quite honestly, l was verywell informed
about cannibalism by a good number of friends who'd taken exploring trips to Africa. Among
them, my friend Michel Leiris, who traveled for two years there and told me it was the cannibal
tribes who were the most civilized."12
lt would be unthinkable to explore the disquiet aroused by relating eroticism and the figure
ofthe mantis, without mentioning the archetype ofterror stirred by the specter ofthe vagina den-
tata. This toothed vagina whose bite castrates, is linked in its symbolism to the praying mantis.
"lt is significant that both in Provence and in southern Africa, the mantis is associated with teeth
in a very particular way," comments Caillois.13
Linking eroticism to death and violence, the mantis has the power to summon up the figures
of our fears and phobias. ln relegating Sade to his politicaI dimension alone, André Breton
deprived surrealism of these figures of anxiety, this imagery of terror and shuddering, mystical
awe. ln I930 Bataille instigates the firstviolent schism within the surrealist group. His magazine
Document publishes the pamphlet Un cadavre [A corpse] , in which Breton is described, among
other ways, as a "castrated lion." Within the polemic he'lI openly wage with Breton, Bataille pub-
lishes La valeur d'usage de D.A.F. de Sade [The use value of de Sade] , which brings the debate to its

254 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibali smos


real crux: Sade and the correct interpretation ofhis works. Speaking ofthe surrealists' reading of
Sade, Bataille writes: "It has seemed correct these days to place his writings (and with them their
author's person) above all else (or almost all) that it's possible to counter them with: yet there's
no question oftheir giving them the least place either in private or sociallife, in theory or in prac-
tice."14 Nadja versus Marcelle, the brothels versus the literary cafés, the existential use to which
Sade's lessons should be put-these are the terms ofthe quarrel pitting Bataille againstBreton.
André Masson, a refugee in Marseilles during the war, tried to get exiled members of sur-
realism to share his fascination with the cruel mantis. They would all spend their time "capturing
as many praying mantises as they could for the spectacle of rivalry and love they offer [... ] "15
History doesn't tell us whether Breton enjoyed this spectacle as much as he did the elegant wed-
ding dance ofbutterflies. Didier Ottinger. Translatedfrom the Prench by David]acobson.

1. M. Leiris, "Du temps de Lord Auch," L'Arc, no. 44. 10. G.Bataille, "Saleil paurri," Documents n.3, PP.I73-4, CEuvres
2. R. Caillais, Le mythe et l'homme, Paris: Gallimard, coll. Essais completes, P.232.
199 6 , 1st ed., 193 8 , PP.S4-SS. II. G.Bataille, "La mutilatian sacrificielle et l'areille de Vin-

3. G.Bataille, Sacrifices, CEuvres completes, vaLI, P.9S. centvan Gogh," Documents, n.8, 1930, CEuvres completes, p.2S8.
4. Caillais, Le mythe et le monde, p.63. 12. A.Massan, "Discussan avec Jean Claude Clebert," Mytholo-
5. Ibid., p.62. gie d'André Masson, Geneva: Pierre Ceuillet, I97I, P.46.
6. Cited in Caillais, Le mythe et l'homme, p.S8. 13. Caillais, Le mythe et l'homme, P.46.
7· Ibid., P·S9. 14. G.Bataille, "De la valeur d'usage de D.A.F. de Sade," CEuvres
8. Ibid., p.S6. completes, vaI. 2, p.s6.
9. G.Bataille, "L'Amérique disparue," Cahier de la république des IS. A. Bretan, La def des champs.
lettres, 1928, CEuvres completes, P.IS7.
André Masson La mare enragée O charco enfurecido [The enraged marsh] 1936 desenho [drawing] 35x45,5cm coleção par-
ticular [private collection], Paris

255 Dadá e surrealismo Didier Ottinger


Jennifer Mundy

Canibalismo de outono
Em Autumnal cannibalism [Canibalismo de outono], dois seres estranhos, de aparência quase
rochosa, parecem comer um ao outro. Não há altercação ou brutalidade: o casal usa talheres
para fatiare comereducadamente, apoiados um no outro, num abraço lânguido e afetuoso. O
seio da mulher pende e se derrama, branco como o leite, numa tigela. Sua cabeça é sustentada
por uma muleta, e formigas rodeiam sua boca, presumivelmente para se alimentardos restos
de comida. O homem tem sobre a cabeça uma maçã e um pedaço de carne crua e flácida, e em
cima da mesa há ainda outros pedaços de carne, alguns feijões, uma maçã sem i-descascada e
um filão de pão seco. O casal se recosta em uma mesa, que se estende misteriosamente portrás
deles. Dalí estava em Londres, participando da International Surrealist Exhibition, quando eclo-
diu a Guerra Civil Espanhola. Muitos anos depois, o artista disse que os dois seres devorando-se
mutuamente em Autumnal cannibalism "correspondem ao pathos da guerra civil, visto como um
fenômeno puro da história natural". É interessante notar que Dalí expôs dois trabalhos afins na
exposição de Londres: A couple with their heads fu" of c/ouds [Casal com a cabeça cheia de nuvens]
e Morphological echo [Eco morfológico], sendo que este último apresenta uma mesa numa paisa-
gem árida, e é pintado em tons esmaecidos, similares aos de Autumnal cannibalism.
Dalí atribuía enorme importância à comida, de um ponto de vista estético e filosófico. Ali-
mentos gelatinosos e amorfos o enojavam e fascinavam, ao mesmo tempo em que lhe sugeriam
analogias com órgãos e fluídos do corpo humano. Em seus quadros, freqüentemente fazia com
que objetos rígidos tomassem formas inchadas ou derramadas. Seus famosos relógios moles,
por exemplo, foram inspirados pela visão de um queijo camembert amolecido. A transformação
de objetos reais em formas aparentemente comestíveis tinha o propósito de criar um efeito de
fantasia e trabalharas fortes desejos orais e sexuais de "consumir" os objetos em questão.
A utilização de formas "moles" permitia que ele criasse analogias múltiplas entre objetos
díspares, oferecendo assim a possibilidade de apontar correspondências "ocultas" entre esses
objetos. Em Autumnal cannibalism, as formas das cabeças das figuras não se distinguem da for-
mação rochosa ao fundo. Embora o significado dessas analogias não seja claro, sua presença
contribui para o mistério do quadro. Dalí via suas imagens de "formas moles" como uma decla-
ração de oposição àqueles que defendiam a importância capital, na arte, das qualidades for-
mais da linha ou da cor, ou da correção política do tema. Os filões de pão excessivamente
compridos que Dalí apresentava como formas fálicas, e não como símbolos da necessidade das
massas, eram tidos como particularmente exasperantes pelos críticos de esquerda, por exemplo.
O canibalismo, um dos grande tabus da socidade civilizada, surgiu pela primeira vez como
tema na obra de Dalí em 1932-3. O tema dominou a série de ilustrações para Les chants de Maldoror
[Os cantos de Maldoror], texto escandaloso escrito no século XIX e adorado pelo grupo surrea-
lista. Uma das ilustrações mostra um homem com cabeça grotescamente alongada e sustentada
por uma muleta, devorando a barriga de um bebê cuja cabeça está sendo furada por uma máqui-
na de costura. Em outra ilustração, um ser corta seu próprio peito e nádega com facas afiadas,
tendo a seus pés duas costeletas de carneiro e uma forma indeterminada, espetada num garfo.
Porque Dalí retomou o tema do canibalismo em 19367 Ao que parece, a resposta é que o artista
viu no tema uma metáfora para a luta fratricida em seu país.

256 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Can ibali smos
Na Espanha do período entre-guerras, as paixões e divisões políticas eram intensas. O
governo republicano, que substituiu a monarquia em 1931, teve que lidar com as demandas
conflitantes dos socialistas e anarquistas, de um lado, e das forças conservadoras dos proprie-
tários de terras e da Igreja, de outro, além dos apelos por autonomia política vindos das regiões
da Catalunha e do País Basco. Dalí estava em Barcelona quando recebeu a notícia do plano de
declaração de independência catalã. Com medo, certamente não infundado, de uma represália
militar, conseguiu fugir para a fronteira da França. No trajeto, seu motorista foi morto num
tiroteio. Tendo relatado este episódio em sua autobiografia, escrita em 1941, Dalí descreveu a si
própriocomo sendo intelectual e emocionalmente isento das paixões e eventos do período: "Eu
não era um homem histórico, definitivamente. Ao contrário, considerava-me um indivíduo essen-
cialmente anti-histórico e apolítico. A lembrança desagradável de ver dois espanhóis capazes de
se envolver naquele jogo imbecil enchia-me de vergonha. Eu sentia a chegada do grande cani-
balismo armado de nossa história, o da Guerra Civil que se aproximava".
A reação mais direta à guerra que se acercava foi o quadro 50ft construction with boiled beans
(premonition ofthe Civil War) [Construção mole com feijão cozido (Premonição da Guerra Civil)],
de 1936. Aqui Dalí mostrou, em suas próprias palavras, "um vasto corpo humano desmem-
brando-se em monstruosas excrescências de braços e pernas que se destruíam mutuamente
num delírio de auto-estrangulamento [... ] Enfeitei com feijão cozido aquela estrutura mole
da grande massa corporal envolvida na Guerra Civil, uma vez que não se conceberia engolir
toda aquela carne inconsciente sem a presença (embora desenxabida) de alguma leguminosa
farinhenta e melancólica".
Salvador Dalí Autumnal cannibalism Can ibal ismo de outono 1936 óleo sobre tela [oil on canvas) 65 ,1 x65 ,1 cm coleção Tate
Gallery, Londres

257 Canibalismo de outono Jennifer Mundy


Com a União Soviética apoiando as forças republicanas, e os governos fascistas da Alema-
nha e Itália oferecendo ao exército vitorioso do General Franco um apoio que surtiu importantes
efeitos, a Guerra Civil Espanhola foi vista largamente como uma disputa pela supremacia
empreendida por todas as forças comunistas e fascistas da Europa. Considerado cidadão espa-
nhol pelo público, Dalí foi muito pressionado para declarar sua lealdade a um ou ao outro lado.
Enquanto seus compatriotas Picasso e Miró se aliavam publicamente à causa republicana em
1937, Dalí estava determinado a resistir a qualquer pressão política: "O horror e a aversão por
todo e qualquer tipo de revolução assumiam uma forma quase patológica em mim. Tampouco
queria ser rotulado como reacionário. Isto eu não era [... ] eu simplesmente continuava a pen-
sar, e não queria ser chamado de nada mais além de Dai L Mas a hiena da opinião públicajá me
rondava, exigindo através da ávida ameaça de seus dentes famintos que eu tomasse uma
posição definitiva, que me declarasse stalinista ou hitlerista. Não! Não! Não! Mil vezes não!"
No final da década de 20 e início da de 30 sua filiação ao grupo surrealista-que tinha
mantido relações estreitas, ainda que problemáticas, com o Partido Comunista-pode ter sido
entendida como indicação de sua simpatia pela esquerda. Entretanto, não era este o caso. Para
Dalí, a liberdade que os surrealistas exigiam para explorar a mente humana e invadir áreas con-
vencionalmente tidas como sagradas ou tabus, não era compatível com a exigência de aderiràs
doutrinas partidárias, algo que os próprios surrealistas viriam a descobrir no decorrer da década
de 30. Além disso, Dalí pode ter adotado um distanciamento cínico de seus patronos, ao descre-
ver a aristocracia como uma classe em decadência, que precisava ser simbolicamente sustentada
por muletas em seus quadros. Mas ainda assim o artista cortejou com assiduidade os favores
dos ricos e bem-relacionados. Inevitavelmente, a postura política ambígua de Dalí, suas prefe-
rências sociais e ambições financeiras o separaram do grupo surrealista. Sua recusa em con-
denar Franco ou Hitlerfoi considerada uma atitude inaceitável por seus pares surrealistas, que
cortaram relações com ele.
Em fins de 1929, Dalí teve uma briga violenta com o pai. A causa aparente fora um trabalho
obsceno, no qual o artista havia escrito na silhueta do Sagrado Coração de Jesus: "Às vezes eu
cuspo no retrato de miriha mãe, por puro prazer". Outro fator para o desentendimento era que
o pai de Dalí não aceitava a relação deste com Gala, a mulherdo poeta surrealista Paul Éluard.
Dalí foi expulso da casa paterna, o que deu origem a uma rixa. Depois disto, retratou seu pai em
vários quadros como Guilherme Te II , figura severa e autoritária, e Gala,com uma costeleta de
carneiro ou uma maçã sobre si. Posteriormente, explicou que a carne era um tipo de sacrifício
expiatório oferecido ao pai devoradorem lugardo corpo de Gala, a qual figurava nessas pinturas
como um alter ego, enquanto a maçã precariamente equilibrada simbolizava a luta de Dalí para
conservar sua própria individualidade.
Se a figura masculina em Autumnal cannibalism pode ser interpretada como representante
de Dalí, então a criatura feminina vem a ser sua mulher, Gala. Em seus textos e pinturas-que
com freqüência assinava com os nomes dos dois-Dalí constantemente proclamava sua ado-
ração porGala e sua dependência dela: costumava dizer que ela o havia salvado da loucura, e a
aclamava como o esteio de sua existência.. No contexto de Autumnal cannibalism, pode ser signi-
ficativo o fato de terescrito em sua autobiografia, ao relembrar seu primeiro beijo em Gala, que
aliás aconteceu incidental mente no outono, "a fome libidinosa que nos fez querer morder e
comertudo até o fim"! Jennifer Mundy. Traduzido do inglês por Izabel Murat Burbridge.

Este texto é uma versão condensada do ensaio originalmente publicado em Dalí: Autumnal Cannibalism
Londres: Tate Gallery, 1996. N. do E.

258 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Jennifer Mundy

Autumnal cannibalism

ln Autumnal cannibalism, two strange, almost rock·like beings appear to eat each other. There is no
struggle or brutality: the couple use utensils to slice and spoon in the politest manner, and they
support one another in a languid and affectionate embrace. The female's breast droops and
flows, milky·white, into a bowl. A crutch supports her head, and ants gather around her mouth,
presumably to feed off remnants ofher food. On top of the male' s head sit an apple and a flaccid
piece of uncooked meat, and elsewhere on the table are other pie ces of meat, some beans, a half·
peeled apple and a dried·up loaf ofbread. The couple rest on a table which stretches out myste·
riously behind them. lt was while Dalí was in London for the lnternational Surrealist Exhibition
that the Spanish Civil War broke out. Many years late r Dalí said that the two beings eating each
other in Autumnal canníbalism, "correspond to the pathos of civil war considered as apure phe·
nomenon of natural history." lt is interesting to note that Dalí exhibited two related works in the
London exhibition: A couple wíth their heads full Df clouds and Morphologícal echo, which features a
table with a barren landscape and is painted in muted tones like Autumnal canníbalism.
Dalí attributed enormous importance to food from an aesthetic and philosophical point of
view. Amorphous, gelatinous foods both disgusted and fascinated him, and suggested to him
analogies with bodily organs and fluids. ln his paintings he often made hard objects take on a
swelling, oozing form: his famous soft watches, for example, were inspired by the sight of runny
Camembert cheese. Such transformation of real objects into edible·looking forms was meant to
create the effect of fantasy, and the working of strong oral or sexual desires to "consume" the
objects in questiono
Dalí's use of"soft" forms also allowed him to create multiple analogies between disparate
objects, opening up the possibility ofindicating "hidden" correspondences between the objects
in questiono ln Autumnal canníbalísm the shapes ofthe figures' heads are indistinguishable from
the rocky outcrop behind them. What the significance of these analogies might be is not clear,
but their presence adds to the painting's mystery. Dalí viewed his "soft form" imageryas a state·
ment of opposition to those who argued that what mattered in art were either formal qualities of
line or tone, or the politicaI correctness ofits subject matter. Dalí's extra long loaves ofbread,
presented as phallic forms and not as symbols of the needs of the masses, were particularly
enraging, for example, to left·wing critics.
Cannibalism, one of the great taboos of civilised society, first emerged as a theme in Dalí' s
work in I932-33. lt dominated his suite ofillustrations for Les chants de Maldoror, an outrageous
nineteenth·century text loved by the Surrealist group. ln one illustration a man with a grotesquely
extended head, supported by a crutch, gnaws at the stomach of an infant, whose head is being
punctured by a sewing machine. ln another, a being cuts into its own breast and buttock with
sharp knives; at its feet lie two lamb chops and an indeterminate form, skewered with a forle
Why did Dalí return to the theme of cannibalism in I936? The answer, it seems, was that he saw
it as a metaphor for the fratricidal strife in his home country.

259 Canibalismo de outono Jennifer Mundy


ln Spain politicaI passions and divisions ran deep in the interwar years. The republican
government, which replaced the monarchy in 1931, had to confrant the conflicting demands of
the socialists and anarchists on one hand and of the conservative forces of the land-owners and
the Church on the other, as well as calls for politicaI autonomy fram the Basque and Catalan
regions. Dalí was in Barcelona when he got news of the planned declaration of Catalan inde-
pendence. Rightly fearing a military reprisal, he managed to flee to the French border. At one
point on the journey his driver was killed in an exchange of gunfire. Having recounted this
episode in his autobiography, which he wrate in 1941, Dalí went on to describe himself as intel-
lectually and emotionally separate fram the passions and events of the period: "1 was definitely
not a historie mano On the contrary 1 felt myself essentially anti-historic and a-politicaI. The dis-
agreeable memory of having seen two Spaniards capable of indulging in that imbecilic game
filled me with shame. 1 sensed the approach ofthe great armed cannibalism of our history, that of
our coming Civil War."
Dalí's most direct response to the approaching war was Soft construction with boíled beans
(premonition ofthe Civil War), 1936. Here Dalí showed, in his own words, "a vast human body
breaking out into monstrous excrescences of arms and legs tearing at one another in a delirium of
autostrangulation [. . .] The soft structure of that great mass of flesh in civil war 1 embellished
with a few boiled beans, for one could not imagine swallowing all that unconscious meat without
the presence (however uninspiring) of some mealy and melancholy vegetable."
Salvador Oalí Homme d'une complexion malsaine écoutant le bruit de la mer (Ies deux balcons) Homem de um aspecto doentio
escutando o som do mar (os dois balcões) [Man of sickly complexion listening to the sound of the sea (the two balconies) 1929 óleo
sobre tela [oil on canvas] 23,5 x 34,5cm coleção Museus Raymundo Ottoni de Castro Maya, Rio de Janeiro

260 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


With the Soviet Union bacldng the republican forces and the fascist powers ofGermany
and Italy helping, to rather greater effect, the ultimately successful army ofGeneral Franco, the
Spanish Civil Warwas widely seen as a contest for supremacy between the forces ofCommunism
and Fascism in Europe as a whole. As a Spaniard in the public eye, Dalí was under intense pressure
to declare his alIegiance to one side or the other. While his compatriots Picasso and Miró allied
themselves publiclywith the republican cause by 1937, Dalí was determined to resist alI politicaI
pressure: "Horror and aversion for every kind of revolution assumed in me an almost pathological
formo Nor did I want to be calIed a reactionary. This I was not [... ] I simply continued to think,
and I did not want to be called anything but Dalí. But already the hyena of public opinion was
slinking around me, demanding of me with the drooling menace of its expectant teeth that I make
up my mind at last, that I become Stalinist or Hitlerite. No! No! No! and a thousand times no!"
During the late 1920S and early 1930S his affiliation with the Surrealist group-which had
had close, if problematic, connections with the Communist party-might have been assumed to
indicate that he remained left-wing in his sympathies. However, this was not the case. For him
the freedom claimed by the Surrealists to explore the human mind, and to trespass into areas
conventionally held to be taboo or sacred, was not readily compatible with the requirement to
toe the party line, something which the Surrealists were to discover themselves over the course
of the 1930s. Furthermore, Dalí may have retained a cynical detachment about his patrons,
describing the aristocracy as a decadent class, in need ofbeing propped up symbolicalIy by the
crutches in his paintings; but he assiduously courted the favour ofthe wealthy and well-connect-
ed. Inevitably, Dalí's ambiguous politicaI stance, his social preferences and his financial ambi-
tions separated him from the Surrealist group. From the Surrealists' point ofview, Dalí's refusal
to condemn Franco or Hitler put him beyond the pale, and they severed relations with him.
ln late 1929 Dalí had a furious row with his father. The ostensible cause of this was a scur-
rilous work in which Dalí had written on the silhouette of the Sacred Heart ofJesus. "Sometimes,
out of sheer pleasure, I spit on my mother's portrait." An additional factor, was that his father
could not accept his having taken up with Gala, the wife of the Surrealist poet Paul Éluard. Dalí
was banished from his father's house, and a feud folIowed. ln a number ofpaintings Dalí por-
trayed his father as William TelI, a stern authority figure, and Gala with a raw lamb chop or an
apple on her. He later explained that the meat was a kind of expiatory sacrifice, offered to the
devouring father in place ofthe flesh ofGala, who figured in such paintings as an alter ego, while
the precariously balanced apple symbolized his struggle to maintain his own individuality.
If the male figure in Autumnal cannibalísm can be interpreted as representing Dalí, then it
would folIow that the female creature is his wife Gala. ln his writings and his paintings-which
he often signed with their joint names-Dalí constantly proclaimed his adoration ofGala, and
his dependence on her: he said she had saved him from madness and he hailed her as the mainstay
of his existence. ln the context of Autumnal cannibalísm, it may be significant that when in his
autobiography Dalí recalIed his first kiss with Gala, which incidentalIy took place in autumn, he
wrote of"the libidinous famine that made us want to bite and eat everything to the last!"
Jennifer Mundy

This text is an abridged version ofthe essay originally publíshed in Dalí: Autumnal Cannibalism, London:
Tate Gallery, 1996. E.N.

261 Canibalismo de outono Jennifer Mundy


CE ii
Friandise cannibale. On sait que I'homme civilisé est caractérisé par I'acuité d'hor-
reurs souvent peu explicables. La crainte des insectes est sans doute une des plus
singulieres et des plus développées de ces horreurs parmi lesquelles on est surpris
de compter celle de I'oeil. II semble, en effet, impossible au sujet de I'oeil de
prononcer un autre mot que séduction, rien n'étant plus attrayant dans les corps
des animaux et des hommes. Mais la séduction extrême est probablement à la
limite de I'horreur.
A cet égard, I'oeil pourrait être rapproché du tranchant, dont I'aspect provoque
également des réactions aigues et contradictoires: c'est là ce qu'ont dO affreuse-
ment et obscurément éprouver les auteurs du Chien andalou lorsque aux premieres
images du film ils ont décidé des amours sanglantes de ces deux êtres. Qu'on
rasoirtranche à vifl'oeil éblouissant d'une femme jeune et charmante, c'est ce
qu'aurait admiré jusqu'à la céraison un jeune homme qu'un petit chat couché
regardait et qui tenant, par hasard, dans sa main, une cuiller à café, eut tout à
coup envie de prendre un oeil dans la cuiller.
Singuliere envie, évidemment, de la part d'un blanc, auquelles yeux des
boeufs, des agneaux et des porcs qu'il mange ont toujours été dérobés. Car I'oeil,
d'apres I'exquise expression de Stevenson, friandise cannibale, est de notre part
I'objet d'une telle inquiétude que nous ne le mordrons jamais. L'oeil occupe même
u n rang extrêmement élevé dans I'horreu r étant entre autres I'oeil de la conscience.
On connait suffisamment le poeme de Victor Hugo, I'oeil obsédant et lugubre, oeil
vivant et affreusement rêvé parGrandville au cours d'un cauchemar qui précéda
de peu sa mort: le criminel "rêve qu'il vient de frapper un homme dans un bois
sombre ... Le sang humain a été répandu et, suivant une expression qui présente à
I'esprit une féroce image, ii a fait suer un chene. En effet, ce n'est pas un homme
mais un tronc d'arbre .. . sanglant ... qui s'agite et se débat ... sous I'arme meur-
triere. Les mains de la victime sont levées suppliantes mais en vain. Le sang coule
toujours". C'est alors qu'apparart I'oeil énorme qui s'ouvre dans un ciel noir pour-
suivant le criminel à travers I'espace, jusqu'au fond des mers ou ille dévore apres
avoir pris la forme d'un poisson. D'innombrables yeux se multiplient: cependant
sous les flots.
Grandville écrit à ce sujet: "Serait-ce les mille yeux de la foule attirée par le
spectacle du supplice qui s'apprête?" Mais pourquoi ces yeux absurdes seraient-ils
attirés, ainsi qu'une muée de mouches, parquelque chose de répugnant? pourquoi
également en tête d'un hebdomadaire illustré, parfaitement sadique, paru à Paris
de '907 à '924, un oeil figure-t-il régulierement sur un fond rouge au-dessus de
spectacles sanglants? Pourquoi I'CEil de la police, semblable à I'oeil de lajustice
humaine dans le cauchemar de Grandville, n'est-il apres tout que I'expression
d'une aveugle soif de sang? Semblable encore à I'oeil de Crampon, condamné à
mort et, un instant avant le coup de tranchet sollicité par I'aumônier: ii évinça
I'aumônier mais ii s'énucléa et lui fit un cadeau jovial de I'oeil ainsi arraché, car
cet oeil était en uerre.

Extrait de Georges Bataille, "Friandise cannibal", CEil, CEuures completes, tome I,


Paris: Gallimard, '970, p.,87-,89.

262 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Olho
Iguaria canibal. Sabe-se que o homem civilizado se caracteriza pela intensidade de
horrores freqüentemente pouco explicáveis. O medo de insetos é sem dúvida um
dos mais singulares e desenvolvidos desses horrores entre os quais supreendente-
mente está o medo do olho. Parece de fato impossível, em se tratando do olho,
falar em outra coisa senão em sedução, já que nada é tão atraente nos corpos de
animais e homens. Mas a sedução extrema está provavelmente no limite do horror.
Nesse sentido, o olho poderia ser comparado à lâmina, cujo aspecto provoca
reações igualmente intensas e contraditórias: é isso que os autores do Chien andalou
[Cão andaluz] devem ter experimentado espantosa e obscuramente, quando nas
primeiras imagens do filme decidiram incluir o caso sangrento dos dois amantes.
Que uma gilete corte a sangue frio o olho resplandecente de uma mulher jovem e
charmosa é o que teria admirado, até à loucura, um jovem que um pequeno gato
deitado observava e que tendo por acaso nas mãos uma colher de café teve repenti-
namente vontade de pegar o olho com a colher.
Desejo singular, evidentemente, da parte de um branco, para quem os olhos
dos bois, das ovelhas e dos porcos que ele come foram sempre escondidos. Pois o
olho, segundo a refinada expressão de Stevenson, iguaria canibal, é de nossa parte
objeto de uma tal inquietude que nós jamais o mordemos. O olho ocupa um lugar
extremamente elevado no horror, sendo entre outros o olho da consciência. Conhe-
cemos suficientemente o poema de Victor Hugo, o olho obcecado e lúgubre, olho
vivo e espantosamente sonhado por Grandville durante um pesadelo que precedeu
de pouco sua morte: o criminoso "sonha que acabou de espancar um homem num
bosque escuro ... O sangue humano espirrou e, utilizando uma expressão que dá
ao espírito uma imagem feroz, ele fez suar um carvalho. Na verdade, não é um
homem mas um tronco de árvore sangrando ... que se agita e se debate ... sob a
arma assassina. As mãos da vítima se elevam em súplica porém em vão. O sangue
continua correndo". É então que aparece o olho enorme que se abre no céu negro
perseguindo o criminoso através do espaço, até o fundo dos mares onde ele o
devora depois de ter-se transformado num peixe. Olhos inumeráveis se multipli-
cam: no entanto sob as ondas.
Grandville escreveu sobre este assunto: "Seriam os mil olhos da multidão
atraídos pelo iminente espetáculo da tortura?" Mas por que esses olhos absurdos
seriam atraídos, como uma revoada de moscas, por algo tão repugnante? Por que
igualmente na capa de uma revista semanal ilustrada, totalmente sádica, publi-
cada em Paris de 1907 a 1924, um olho aparece com freqüência sobre um fundo
vermelho acima de espetáculos sangrentos? Por que o CEi! de Ia police, [Olho da
polícia] semelhante ao olho da justiça humana no pesadelo de Grandville, não é
afinal mais que a expressão de uma sede cega de sangue? Semelhante também ao
olho de Crampon, condenado à morte e chamado pelo sacerdote um instante antes
do golpe da lâmina: ele dispensa o sacerdote enucliando-se e oferecendo-lhe como
presente jovial seu olho, pois esse olho era de vidro.

Extraído de Georges Bataille, [Olho, Obras Completas, tomo I]. Traduzido do


francês por Valéria Piccoli.

263 Fragmento
curadoria Didier Ottinger

Do fio da faca ao fio da tesoura:


da estética canibal às colagens
de René Magritte
Para apreendermos a antropofagia poética de Oswald de Andrade, a leitura de Claude Lévi-
Strauss é de maior utilidade que a de Sigmund Freud. Não que na matéria a antropologia tenha
mais a nos ensinar que a psicologia; a razão dessa preeminência se prende ao fato de que a
compreensão de um apetite desse tipo não é tanto um caso de erudição, mas uma questão de
método. As análises de Freud são tributárias de uma lógica marcada pelo evolucionismo. Em
seus Trois essais sur la sexualité [Três ensaios sobre a sexualidade], Freud descreve "uma primeira
organização sexual pré-genital (que) é aquela que chamaremos de oral ou, se quiserem, cani-
bal".1 Partindo dessa anterioridade biológica do canibalismo, os antropólogos pronunciaram-se
prematuramente pelo arcaísmo das culturas que o praticam. A revolução operada pelas teses
defendidas por Claude Lévi-Strauss em sua obra Race et historie [Raça e história] é de natureza
verdadeiramente epistemológica. A cultura dos "primitivos" se vê emancipada das leis depre-
ciativas do evolucionismo. Cada civilização entrega-se ao ritmo que lhe é próprio; cada sistema
cultural, à sua autonomia. De conformidade com esse relativismo novo, em Tristes tropiques
[Tristes trópicos], Claude Lévi-Strauss libera o antropofagismo de sua historicidade.
"Ao estudá-los de fora, ficaríamos tentados a pôr em contraste dois tipos de sociedade: as
que praticam a antropofagia, isto é, que vêem na absorção de certos indivíduos detentores de
forças temíveis o único meio de neutralizá-Ias, e até de tirar proveito delas; e aquelas que, como
a nossa, adotam o que se poderia chamar de antropêmia (do grego émein, vomitar); colocadas
diante do mesmo problema, [estas] escolheram a solução inversa, que consiste na expulsão
desses seres temíveis para fora do corpo social, mantendo-os temporária ou definitivamente isola-
dos, sem cantata com a humanidade, em estabelecimentos destinados a esse fim. À maioria das
sociedades que chamamos de primitivas, esse costume inspiraria profundo horror; e, aos olhos
delas, nos estigmatizaria da mesma barbárie que estaríamos tentados a lhes imputar em razão
de seus costumes simétricos."2 A importância dessa (longa) citação tem a ver com a revolução
copernicana que ela opera.
O canibalismo já não é o estado primitivo de uma evolução inexorável, torna-se uma deter-
minação cultural atemporal. A civilização se divide entre antropófagos e "antropêmetos". No
Ocidente: cisão, exclusão, diferenciação; fora de sua zona de influência: fusão e assimilação. A
propensão da cultura ocidental a excluiros elementos que lhe são heterogêneos aplica-se igual-
mente à sua atividade conceituaI. Essa inclinação purificadora e uniformizadora é aquela da
racionalidade confundida com o gênio próprio do pensamento ocidental. Essa "antropêmia"
encontra na ciência o lugar natural de seu desabrochar.
Em L'oeil et I'esprit [O olho e o espírito], trabalho consagrado à obra de Paul Cézanne, Maurice
Merleau-Ponty opõe ciência e poesia. A ciência, analisa ele: "manipula as coisas e renuncia a

264 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


habitá-las"3, é "pensamento de sobrevôo, pensamento do objeto em geral"4. Sua paixão escari-
ficadora a distingue radicalmente da postura artística tal como encarnada na obra de Cézanne.
"A natureza está no interior"s, compraz-se em repetir o pintor. "Meu corpo está na quantidade
das coisas", comenta o filósofo para dar conta do desejo de fusão próprio à criação poética.
A partir do momento em que se oponham ciência e poesia, todo manifesto em favor da
criação artística pode apenas instruiro processo da cultura ocidental confundida com o pensa-
mento racional ista.
Quando o escritor Oswald de Andrade publica, em 1928, seu "Manifesto antropófago",
confunde em sua crítica o Ocidente com o positivismo lógico-"tratava-se de redescobrir uma
mentalidade pré-lógica, que salvaria não só o Brasil, mas todo o Ocidente, da catástrofe em que
o pensamento racionalista o precipitara", comenta Leyla Perrone-Moisés 6 • A partir de seu "Mani-
festo da poesia pau-brasil", publicado em 1924, Oswald de Andrade opõe "Os homens que sa-
biam tudo (que) se deformaram como babéis de borracha" aos "bárbaros, crédulos, pitorescos
e meigos". Essas figuras de caricatura assinalam a oposição de uma cultura erudita e científica
com a dos "poetas", que Andrade vê: "Sem reminiscências livrescas. sem comparações de apoio.
Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia."? [sic].
O canibalismo somente viria a ser argumento central da argumentação de Andrade com
seu segundo manifesto, publicado em 1928. Pela virulência e ironia, o "Manifesto antropófago"
é largamente devedor dos escritos dadaístas e surrealistas. De 1923 a 1925, várias foram as
estadas de Oswald de Andrade em Paris, onde se encontra com Satie, Cocteau, Picabia, Picasso
[... ], informa-se dos últimos desdobramentos de vanguarda na pintura e na literatura. Sem
dúvida alguma, Picabia lhe fala da publicação de sua revista Canniba/e, da qual publicara dois
números, em abril e maio de 1920. Para Picabia, assim como para todos os dadaístas, a luta
contra uma cultura que julgam obsoleta passa pela exaltação das forças vitais, da ingenuidade
infantil, da selvageria bárbara e "primitiva". "Eu estou com osjavaneses", reivindica Picabia,
Personnage méditant sur la folie Personagem meditando sobre a loucura [Character meditating on madness] 1928 óleo sobre tela
[oil on canvas] 54x73cm coleção Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas "

265 René Magritte Didier Ottinger


antes de assinar seus escritos de "rastaquere" [rastaqüera]. Sobre o plano da "selvageria", o
surrealismo se mostra digno herdeiro de dadá. Como estandarte do movimento figura o chama-
mento lançado por Raimbaud ao sangue bárbaro e gaulês que, correndo-lhe nas veias, o pre-
dispõe à pilhagem do edifício racionalista greco-Iatino. Fazendo eco ao apelo à insurreição con-
tra a razão e o espírito lógico, lançado por André Breton, Georges Bataille teoriza a vontade de
fusão indissociável do projeto poético surrealista. "Podemos definir [.. .] o poético, nisso aná-
logo ao místico de Cassirer, ao místico de Lévy-Bruhl, ao pueril de Piaget, por uma relação de
participação do sujeito e do objeto."8
Com o surrealismo, o canibalismo deixa de ser uma guloseima exótica para tornar-se o
próprio princípio da ação poética. Prova desse conluio de natureza, a "supressão da diferença
entre o sujeito e o objeto", que Bataille vê em ação no "desencadeamento" sadiano, encontra
tardio eco no cosmologismo místico de Yves Klein ao declarar ante um auditório perplexo: "Com
a permissão de vocês, eu queria agora-e peço a máxima atenção-lhes revelara fase de minha
arte que é possivelmente a mais importante, certamente a mais secreta, não sei se vão acreditar
ou não, mas é o canibalismo"9.
O antropofagismo de Oswald de Andrade é um manifesto pela arte e a poesia na era do
racionalismo técnico, a réplica de um gourmet dadaísta ao imperialismo de uma sociedade dita
de "consumo".

A colagem alinha entre as aplicações técnicas mais diretas do "antropofagismo estético". Seu
método é por essência aditivo e assimilacionista. Técnica de que os dadaístas eram afeiçoados,
a colagem é a arte dos apetites ferozes . Schwitters, com seu Merzbau, revela a natureza profun-
da da colagem, que visa fagocitar o mundo. A colagem é a forma perfeita da imagem canibal.
As simpatias de Oswald de Andrade pela estética da colagem dadaísta foram tais, que fizeram
pesar sobre ele uma suspeita de sectarismo. "Na transposição poética desse falar quotidiano,
ele muitas vezes fizera uso da colagem de materiais disparatados e do contra-senso como téc-
nica de humor, o que aproximava de certos processos dadaístas e surrealistas a construção dos
textos de Andrade. Eis por que ele e seus companheiros foram acusados de "francesismo" .10
A colagem, incontestavelmente, tem parte com o canibalismo. Tende a fundiras registros
formais e semânticos mais heterogêneos. Muitos pintores surrealistas a praticaram. Poucos
chegaram ao ponto de, como Magritte, "pintar colagens à mão" (para lembrar a definição que
Max Ernst dava às pi ntu ras de Magritte). A colagem está na origem de sua vocação de pi ntor su r-
realista. No período de '9'9 a '925, Magritte pintou lá o seu tanto de quadros "modernos", deriva-
dos das lições aprendidas do cubismo e do futurismo. Sua conversão a uma pintura do "mistério"
data de '923, quando descobriu o Chant d'amour [Canto de amor] de Giorgio de Chirico. A
estranha proximidade de um gesso antigo com um parde luvas de borracha lhe fez repentina-
mente entrever a existência de uma pintura ao mesmo tempo liberada da reprodução mimética
do real e das armadilhas da narração. Pouco depois dessa descoberta capital, Magritte pinta seu
primeiro quadro "surrealista": La fenêtre [Ajanela] . Ao redorde uma janela, cortinas encontram
poliedros, como que encurralando a beleza nascida do encontro sobre uma mesa de dissecção
de um guarda-chuva e uma máquina de costura. Um segundo acontecimento precipitaria
Magritte no surrealismo, desta vez definitivamente. Em '926, sua galeria de Bruxelas, Le cabinet
Moldoror, expõe o ciclo da história natural de Max Ernst. As colagens do pintor alemão são para
Magritte uma revelação. Sua entrada "em surrealismo" se coloca sob a égide dessa técnica nova
da cola e da tesoura. Durante o ano de '925, ela o ocupa tanto quanto a pintu ra. Doze colagens
figuram em sua primeira exposição individual na galeria Le centaure. Apresentam a particularidade

266 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibalismos


de haverem sido praticamente todas realizadas com partituras musicais, recortadas segundo for-
mas variadas. Há, nessa transposição do registro musical para o do visual, mais que um simples
achado estético. Essa fusão dos registros de expressão já anuncia aquela que virá um pouco mais
tarde com a introdução de palavras em sua pintura. Essas partituras, recortadas em forma de qui-
lhas ou de bojo de violino, trazem à luz a verdadeira vocação da colagem, qual seja, fundir não só
as formas, mas igualmente as formas emblemáticas da imagem, da música e da poesia. Esse valor
significativo da colagem para a arte de Magritte é provado pelo uso reiterado que ele (no início dos
anos 60) fez dela. De 1959, precisamente, até 1966, o artista belga volta a essa técnica iniciadora
de sua arte. Desta vez, seu recurso quase sistemático a formas recortadas de partituras musicais
vem afirmar que seu projeto artístico não é apenas pictórico, mas visa uma síntese mais ampla.
Se a colagem de Magritte segue efetivamente uma estética "canibal", no sentido que Lévi-
Strauss ou Andrade dão a esse termo, é porque ela visa a absorção, a fusão de categorias jul-
gadas heterogêneas ou contraditórias. Michel Foucault analisou detalhadamente a hibridação
originada, nos quadros de Magritte, da proximidade das palavras com as imagens. Os quadros
com palavras, introduzidos em 1927 com La def des songes [A chave dos sonhos] procedem também
da lógica da colagem.
Como a colagem justapõe formas incompatíveis segundo as leis da lógica, Magritte aproxi-
ma arbitrariamente palavras e imagens desprovidas de quaisquervínculos racionais. Na (Ief des
songes, uma sacola de mão está próxima da palavra ciel [céu]; uma folha, da palavra mesa. A
relação estabelecida entre palavras e imagens não se reduz à mera justaposição. O comentário
La découverte A descoberta [The discovery] 1927 óleo sobre tela [oil on canvas] 65x50cm coleção Musées royaux des
Beaux-Arts de Belg ique, Bruxelas

267 René Magritte Didier Ottinger


que Foucault faz da inscrição Ceci n'est pas une pipe [Isto não é um cachimbo] revela a existência
de um canibalismo recíproco das palavras e das imagens que encontra meio de se exprimir na
hibridação de seus caracteres respectivos. A letra se faz cursiva, se arredonda, se abranda até se
aproximardo desenho. A imagem, seguindo caminho inverso, torna-se abstrata até o ponto de
flertar com o ideograma. O caligrama, palavra tornada imagem, é a figura recorrente da análise
de Foucault para dar conta da contaminação dos registros da escritura e do icânico.
Outros efeitos de contaminação ocorrem nos quadros contemporâneos das primeiras cola-
gens de Magritte. As colagens de 1926 divertiam-se com a criação de pontes entre música e arte
visual, os quadros com palavras confundiam de propósito o texto e a imagem. Em Le toit du monde
[O teta do mundo], de 1926, o biológico se apodera do mineral. La découuerte [A descoberta], de
1927, mostra a imagem de uma hibridação do humano pelo vegetal. No primeiro caso, uma
montanha se cobre de uma rede sangüínea; no segundo, uma mulhervê sobre sua pele apare-
cerveios de madeira. Em Lesgrands uoyages [As grandes viagens] (1926), outro corpo de mulher
revela uma paisagem urbana; em Le seuil de la forêt [O limiarda floresta], do mesmo ano, é uma
árvore que se transforma numa alvenaria de tijolos. Essas metamorfoses desvendam a própria
essência de uma arte, consubstancial com uma prática, a colagem, cuja ambição é reatar com
um mundo mágico, aquele em que Dafne se transforma em loureiro e Jacinto em flor.
Como fará com a colagem, Magritte tardará a retomar essa afinidade de sua arte com o
espírito das metamorfoses. Em '950, pinta uma série de quadros dedicados à representação de
petrificações que afetam objetos, animais e personagens.
As metamorfoses pertencem a um mundo marcado por um princípio de continuidade
entre as coisas e os seres, entre os seres e o cosmos. Esse mundo é o dos gregos antigos, dos
pitagóricos para quem a metamorfose é apenas uma forma prematura de metempsicose. Étam-
bém o mundo dos índios iroqueses, para quem o aprendiz de feiticeiro, destinado a cantar para
os com ponentes de seu gru po, devia consu m ir os passari n hos novos, beber a água das cascatas
mais ruidosas, a fim de se apropriarde suas virtudes musicais.
O mundo das metamorfoses é o dos magos e dos feiticeiros. É o mundo dos poetas que
trocaram as facas dos antropófagos pelas tesouras necessárias a suas colagens.
Didier Ottinger. Traduzido do francês por Claudio Frederico da Silua Ramos.

1. Sigmund Freud, Trois essais sur la sexualité, Paris: Idées Galli- Correio da manhã (Rio de Janei ro, 18.3.1924), in Anthropophagies,
mard, P.95. Paris: Flammarion, 1982, P.263 .
2. C. Lévi-Strauss, Tristes tropiques, Paris: Plon, 1955. 8. G.Bataille, "lascaux", CEuvres completes, tomo IX, p.181.
3. M.Merleau-Ponty, l'oeil et I'esprit, Paris: Gallimard, 1964, P.9. 9. Yves Klein, apud R. Guidieri, "Mémoire d'Yves Klein", Yves
4. Ibid. , p.12. Klein, Paris: Musée National d'Art Moderne-Centre Georges
5. Ibid., citado na p.22. Pompidou, 1983, P.73.
6. L. Perrone-Moisés, "Anthropophagie", Magazine littéraire, 10. P. F. de Quierroz-Siquiera, "Un singulier manifeste", Nou-
n. 187 (setembro, 1982), PA7. velle revue de psychanalyse, n.6, le cannibalisme, P.274.
7. O. de Andrade, "Manifeste de la poésie bois-brésil",
à esquerda [Ieft] Perspective: le balcon de Manet III Perspectiva: o balcão de Manet III [Perspective: Manet's balcony III] 1949
óleo sobre tela [oil on canvas] 80x60cm coleção Museum van Hedendaagse Kunst, Gent foto Dirk Pauwe ls
acima [above] L'homme célebre 1926 óleo sobre tela [oil on canvas] 65x81cm coleção particular [private collection] , São Paulo

269 René Magritte Didier Ottinger


curadoria Did ier Ottinger

From the blade to the


scissors: from the cannibal
esthetic to the collages of
René Magritte

ln order to comprehend the poetic anthropophagy ofOswald de Andrade, a reading ofClaude


Lévi-Strauss is of greater utility to us than Freud. Not that anthropology has more to teach us on
the subject than psychology does. The reason for its predominance derives from the fact that
understanding such an appetite is less a matter ofknowledge than a question ofmethod. Freud's
analyses derive from a logic marked by evolutionism. ln his Three essays on the theory ofsexuality,
he describes a first "oral, or, as it might be called, cannibalistic, pregenital sexual organization."l
Anthropologists hastily inferred from this biological anteriority of cannibalism the archaic char-
acter of the cultures that practice it. The revolution brought about by the hypotheses Lévi-Strauss
defended in his work Race et histoire [Race and history] was of an epistemological nature. The cul-
ture of"primitives" was emancipated from the depreciatory laws of evolutionism. Each civilization
is returned to the tempo peculiar to it, each cultural system to its own autonomy. ln keeping with
this new relativism, in Tristes tropiques Lévi-Strauss liberated anthopophagism from its historicity:
"lf we studied societies from the outside, it would be tempting to distinguish two con-
trasting types, those that practice cannibalism [anthropophagie] , that is, those which regard the
absorption of certain individuaIs possessing dangerous powers as the only means of neutralizing
those powers, and even turning them to advantage; and those which, like our own society, adopt
what might be called "anthropoemy" (from the Greek emein, to vomit); faced with the sarne
problem, the latter type of society has chosen the opposite solution,
which consists of ejecting dangerous beings from the social body and
keeping them temporarily or permanently in isolation, away from all
contact with their fellows, in establishments specially intended for this
purpose. Most societies which we call primitive would regard this cus-
tom with profound horror; itwould make us, in their eyes, guilty ofthat
sarne barbarity of which we are inclined to accuse them because of their
symmetrically opposite behavior."2 The importance of this (long) cita-
tion is the Copernican revolution it effected.
Cannibalism is no longer the primitive stage of some inexorable
evolution; it now becomes something culturally determined but atem-
poral. Civilization is divided into "anthropophages" and "anthropo-
emes": Scission, exclusion and differentiation in the West, fusion and
assimilation in the zone beyond its influence. The propensity ofWestern
culture to exclude those elements heterogeneous to it also applies to its

270 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


conceptual activity. The inclination toward purification
and "making sausage" of everything of a rationality con-
founding itself with the genius peculiar to Western
thought. This "anthropoemia" finds in science a natural
locus for its flowering.
ln L'oeil et l'esprít [The eye and the spirit], the work
he devoted to the work ofPaul Cézanne, Maurice Merleau-
Ponty opposed science to poetry. ln his analysis, science
"manipulates things and renounces dwelling in them."3
Science is thought in overview, the thought ofthe object
in general."4 Its scarificational passion radically distin-
guishes it from the artistic attitude as embodied in
Cézanne. "Nature is within,"S the painter liked to say.
"My body is numbered among things" commented the
philosopher, to convey that desire for fusion peculiar to
poetic creation.
Whenever science is counter-posed to poetry, any
manifesto in favor of artistic creation can only be an
indictment of a western culture confounded with ratio-
nalist thought.
When the writer Oswald de Andrade published his
"Manifesto antropófago" in 1928, in his critique he con-
founded the West with logical positivismo"The point was
to recover a prelogical mentality that would save not
only Brazil, but the entire West, from the catastrophe into
which rationalist thought had precipitated it," Leyla Perrone-Moisés comments. 6 As early as his
"Manifesto of poetry pau-brasil," published iÍ1 1924, Andrade had counterpoised "men who knew
everything (and who) were as misshapen as an inflated bladder" and "credulous, picturesque,
and affable barbarians." These caricatured figures marked his opposition between a learned and
scientific culture to that ofthe "poets," whom Andrade saw as being "without bookish reminis-
cence, without the support of comparisons. Without etymological research. Without ontology."7
Cannibalism became a central argument for Andrade only in his second manifesto, pub-
lished in 1928. ln its virulence and irony, the "Manifesto antropófago" is greatly indebted to
dadaist and surrealist writings. Andrade visited Paris on several occasions between 1923 and
1925. He met Satie, Cocteau, Picabia, and Picasso [... ], and caught up on the latest developments
within the pictorial and literary avant-gardes. No doubt Picabia spoke to him about the publication
ofhis journal Canníbale, two is sues of which carne out in April and May, 1920. For Picabia, as for
all the dadaists, the struggle against a culture they judged obsolete was to be conducted through
the exaltation ofvital powers, childlike naiveté, and barbarous, "primitive" wildness. "I am from
the Javanese," claimed Picabia, and began signing his writings "rastaquere" [outlandish] . With
respect to the "savage," surrealism proved to be a worthy heir to dada. The keystone ofthe move-
ment was the appeallaunched by Rimbaud to the barbarian Gaul blood flowing in his veins
which predisposed him towards the sacking of the rationalist Greco-Roman edifice. Echoing the
Sans titre Sem título [Untitled ] 1926 papel de partitura, guache e aq uarela sobre pape l [partition paper, gouache and watercolor
on paper] 55x40cm coleção particular [private collection] cortesia Galerie Maurice Keitelman , Bruxe las
Le musée du roi O museu do rei [The king 's museum] 1966 óleo sobre tela [oi l on canvas] 130x89cm coleção Yokohama Museum
of Art, Yokohama

271 René Magritte Didier Ottinger


appeal to insurrection against reason and the logical mind launched by André Breton, Georges
Batailletheorized the will to fusion inseparable from the surrealist poetic projecto "We can
define [... ] poetics-similar in this to Cassirer's Mystik, Lévy-Bruhl's primitivity, and Piaget's
puerility-bya subject-object relationship (ofparticipatíon)."8
With surrealism, cannibalism ceased to be an exotic gluttony and became the very principIe
of poetic action. As proof of this collusion by its very nature, the "suppression of the difference
between the subject and the object" that Bataille sees at work in Sadean "release" (déchaínement)9
found a belated echo in the mystical cosmologism ofYves Klein, when he declared to a mesmer-
ized audience, "With your permission-and I ask for your closest attention-I would now like
to reveal to you the phase of my art that is perhaps the most important, and certainly the most
secret. I don'tknow whether you will believe it or not, but it is cannibalism."lO
The anthropophagism of Oswald de Andrade is a manifesto for art and poetry in the age
of rationalist technics, the riposte of a dada glutton to the imperialism of what we call a "con-
sumer" society.

The collage may be numbered among the most direct technical applications of"esthetic anthro-
pophagism." Its method is in essence additive and assimilationist. A technique beloved by the
dadaists, collage is the art of ferocious appetites. ln his Merzbau, Schwitters revealed its deepest
nature, which aims to phagocyte the world. Collage is the perfect form of the cannibal image.
Andrade's sympathies for the esthetic ofthe dadaist collage were so great that they drew upon
him suspicions that he was nothing more than a follower. "ln the poetic transposition of this
Sounenir de voyage Lembrança de viagem [Memory of a voyage] 1952 64x80cm óleo sobre tela [oil on canvas] coleção Patricia
Phelps de Cisneros, Caracas
La porte ouverte A porta aberta [The opened door] 1965 óleo sobre tela [oil on canvas] 53x65cm coleção Daniel C. e Noémi P.
Mattis , Salt Lake City, Estados Unidos

272 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibali smos


everyday speech, use was often made of a colIage of disparate materiaIs and of nonsense as a
humoraus technique, akin to the construction of texts in certain dadaist and surrealist prace-
dures. This is why Andrade and his cohorts were accused ofbeing "Frenchified."ll
There is no doubt of the link between colIage, which tends towards a fusion of the most
heterageneous formal and semantic registers, and cannibalism. Many ofthe surrealist painters
have practiced collage. Few have gane as far as Renê Magritte did in "painting colIages by hand,"
to go back to the definition ofMagritte's paintings given by Max Ernst. ColIage was at the source
ofhis vocation as a surrealist painter. Foryears, fram I9I9 to I925, he daubed his share of"mod-
ern" paintings, derivative ofthe lessons learned fram cubism and futurismo His conversion to a
painting of"mystery" dates fram his discovery, in I923, ofGiorgio de Chirico's Chant d'amour
[Song oflove]. The strange juxtaposing of an ancient bust and a pair of rubber gloves gave him
a glimpse of painting freed both fram the mimetic repraduction of the real and fram the traps of
narration. Soon after this capital discovery, Magritte painted his first surrealist painting, La fenêtre
[The wíndow] . Araund a window, curtains come upon polyhedrans, on the trail of that beauty
born of the encounter, on a dissection table, of an umbrelIa and a sewing machine. Another
event was to precipitate Magritte, this time definitively, into surrealismo ln I926 the Brussels
galIery Le Cabinet Maldorar exhibited Max Ernst's natural-history cycle. The German painter's
colIages were a revelation to Magritte. His entry into surrealism occurred under the aegis ofthis
new technique of scissors and paste, and during the course ofI925, it occupied his time as much
as painting. There were twelve colIages in his first one-man galIery shaw at Le Centaure. These
were peculiar in that they were alI executed using musical scores cut into various shapes. There
is more in this transposition fram the musical register to the visual one than a mere esthetic
findo This fusion of expressive registers prefigured another one he instituted a little later with the
introduction of words into the paintings. The scores, cut into the shape of turned-wood table
legs or the neck of a violin, braught to light the true calling of colIage, that is, to merge, not just
forms, but forms emblematic of the image, of music, and of poetry. This signifYing value of
colIage for Magritte' s art was later confirmed in his recourse to it again in the early '60S. Fram

273 René Magritte Didier Ottinger


1959, to be exact, until 1966, the artist reverted to this initiatory technique ofhis art-making.
Once again his almost systematic recourse to forms cut out of musical scores affirmed that his
artistic project was not only a pictorial one, but aimed for a broader synthesis.
IfMagritte's collages does indeed come out of a "cannibal" esthetic, in the sense that Lévi-
Strauss ar Andrade use the term, it is insofar as it aims for absorption, the fusion of categories
judged to be heterogeneous ar contradictory. Michel Foucault has analysed the hybridization
occasioned by the juxtaposition ofwords and images in Magritte's paintings. The word-paintings,
inaugurated in 1927 with La Clef des songes [The key to dreams], also operate according to the logic
ofcollage.
Since collage juxtaposes forms incompatible according to the laws oflogic, Magritte arbi-
trarily relates words and images devoid of any rational connection. ln The key to dreams, a handbag
abides near the word ciel [heaven], a leaf near the word table. Foucault's commentary on the Ceci
n'est pas une pipe [This is not a pipe] paintings reveals the existence of a reciprocaI cannibalism
between the words and the images that finds a means of expression in a hybridization of their
respective attributes. The letter becomes more flowing and rounded, almost like drawing.
The image goes in the opposite direction, becoming more abstract, verging on the ideogram.
The "calligram," word beco me image, is the
recurring figure used in Foucault's analysis in
order to elucidate this contamination of the
scriptorial and iconic registers.
Other contaminating effects occur in the
paintings contemporarywith Magritte's collages.
The collages from 1926 took pleasure in building
bridges between music and visual art; the word-
paintings deliberately blurred text and image. ln
Le toit du monde [The roof ofthe world] , painted in
1926, the mineral is overtaken by the animal; La
découverte [The discovery], from 1927, presents
the image ofthis hybridization ofthe human with
the vegetable. ln the former painting, a mountain
is covered bya bloody network; in the latter, a woman watches a veinage of wood-grain appear-
ing on her skin. ln Les grands voyages [The great voyages] (1926), the body of another woman
reveals an urban landscape, and in Leseuíl de laforêt [The threshold ofthe forest] , both from 1916,
a tree transforms into a brick wall. These metamorphoses lay bare the very essence, consub-
stantial with its practice, of collage, an art whose ambition is to recapture a world of magic,
where Daphne is transformed into a laurel and Hyacinth into a flower.
As he did with collage, Magritte later carne back to this affinity ofhis work to the spirit of
metamorphosis. ln 1950, he produced a series of paintings devoted to the petrifaction of objects,
animaIs, and humans .
Metamorphoses belong to a world marked by the principIe of a continuity between things
and beings and cosmos. That was the world of the ancient Greeks, Pythagoreans for whom
metamorphosis is only an abrupt form of metempsychosis. It is also that ofthe lroquois Indians,
for whom the sorcerer's apprentice, expected to sing for his group, was supposed to ingest
young birds and drink from the noisiest waterfalls in order to appropriate their musical virtues.
The world of metamorphosis is the world of mages and sorcerers. It is also the world of poets
who have bartered the knives ofthe anthropophages for the scissors needed for their collages.
Didier Ottinger. Translatedfrom the French by Warren Niesluchowskí.

I. Sigmund Freud, "Three essays on the theory of sexuality" da manhã (Rio de Janeiro, 18.3.I924), in Anthropophagie, Paris:
(1905), in Standard edition, the complete psychological works of Flammarion, 1982, P.263.
Sigmund Freud, London: The Hogarth Press and the Institute of 8. G.Bataille, La littérature et le mal [1957], "Baudelaire," in
Psycho-analysis, 1953-74, voI. VII, p.I25 . CEuvres completes, voI. IX, Paris: Gallimard, 1979, P.I96 [Litera-
2. C.Lévi-Strauss, Tristes tropiques (1955), trans. John and ture and evil ("Baudelaire"), trans. Alastair Hamilton, London
Doreen Weightman (1974), London and New York: penguin, and New York: Boyars, 1973-97, P.43] .
199 2 , P·3 87-8 . 9. Ibid., ("Sade"), PII5·
3. M.Merleau-Ponty, L'oeil et I'esprit, Paris: Gallimard, 1964, P.9. 10. Yves Klein, cited in R.Guidieri, "A memory ofYves Klein,"
4. Ibid., p.I2. Yves Klein, Paris : Musée National d'Art Moderne-Centre
5. Ibid., p.22. Georges Pompidou, I983, P.73 .
6. L. Perrone-Moisés, "Anthropophagie," Magazine littéraire, II. P.F. Queroz-Siquiera, "Un singulier manifeste," Nouvelle
n .I87 (September, 1982), P.47. revue de psychanalyse, n.6, Le cannibalisme, 1972, P.274.
7. o. de Andrade, "Manifeste de la poésie bois-brésil," Correio
à esquerda [Ieft] L'empire des lumieres O império das luzes [The empire of lights] 1954 óleo sobre tela [oil on canvas] 146x114cm
coleção particular [private collection] cortesia Musées royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas
acima [above] Le sens propre O sentido literal [The literal meaning] 1929 óleo sobre tela [oil on canvas] 54x73cm coleção
Galerie Maurice Keitelman, Bruxelas foto Speltdoorn

275 René Magritte Didier Ottinger


Alberto Giacometti curadoria Jean-Louis Prat

A esperança de uma obra nova


As cabeças tão altivamente erguidas de Femmes de Venise [Mulheres de Veneza] dizem muito
sobre a impossibilidade de se descrever uma realidade que se fez aparente durante toda a vida
de Alberto Giacometti. Cada vez mais irremediavelmente fora de nosso alcance, essas cabeças
tão pequenas em proporção a um corpo estirado, sempre amplificado, descarnado, do qual só
parece restar a estrutura frágil, enraizada no chão, revelam a porção essencial da existência.
L'homme qui marche [O homem que caminha], de Alberto Giacometti, simboliza, por si só, a
própria natureza deste século. Ele nos fala de toda a dificuldade de ser, da complexidade e da
unicidade da vida, da estranha e quase impossibilidade de ir ao encontro do Outro, da solidão
que povoa este milênio que chega ao fim, mas exprime também, neste espaço que roça o nada,
a dignidade de um homem diante de si mesmo, caminhando em direção a um novo destino, de
pé, em face da esperança.
Erigir uma escultura adquire pleno sentido com Alberto Giacometti, que segue uma diretriz
bastante lógica depois do período surrealista. A partir daquela época, ele tem em vista ídolos
que parecem originários de uma terra alheia à sua própria cultura e evoca, de modo visível, a
oferenda feita ao desconhecido. Ele fixa o absoluto no respeito sem fim por outra vida, outra civi-
lização, outra forma de cultura. Sentimos que, embora tão diferente da realidade, o artista se
impõe a tarefa de confrontar essa forma com o sonho.
Aquilo que, para outros, poderia parecer uma fonte de incompreensão, nele surge como a
Femme couchée qui rêve Mulher deitada que sonha [Lying woman dreaming] 1929 bronze 24x43x13,5cm coleção da futura
Fondation Alberto et Annette Giacometti, Paris foto Sabine Weiss, Paris
Objet désagréable à jeter Objeto desagradável a ser jogado [Disagreeable object to be thrown] 1931-32 bronze 12x47x14cm
coleção da futura Fondation Alberto et Annette Giacometti, Paris foto Sabine Weiss, Paris

276 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


etapa indispensável, primordial, de reflexão sobre a escultura. Marcado por outras influências,
Alberto Giacometti representa e faz existir obras recorrendo unicamente à reflexão e ao pen-
samento e, a partir disso, elas transitam pelo imaginário e pela força da matéria. Mas como
conduzir semelhante reflexão fugindo incessantemente da realidade, sem se subtrair, com os
anos, a lentas digressões que se repetem?
Nos anos 30, o escu Itor controla, unicamente por meio dos jogos do espírito, o espaço e as
formas orgânicas. São sujeições que traduzem a irrealidade, mas que conduzem necessariamente
a u ma outra fi nal idade.
Logo Alberto Giacometti retomará o inelutável estudo de um rosto, de uma realidade
abandonada, de uma interrogação sem fim sobre si mesmo. Surge uma obra nova, no limite do
visível; trabalhada ao infinito, ela se desloca, fremente, para definir novos contornos, lembrança
de uma matéria que poderia, por sua vez, conhecer todos os tormentos. Ela toca de leve na
supressão. Assim, esta obra apaixonada, vibrante, situa-se no limite da escultura. Ela nos fala
de momentos extremos, em que tudo pode desaparecer. Ela indica sempre o que poderia ser a
ruptura. Em sua busca apaixonada por descobrir um outro mundo, o escultor esquadrinha a
semelhança e a verdade do Outro, à procura de sua essência.
Em sua reconstrução e restruturação, Alberto Giacometti procura, de modo visível, cons-
truir um mundo no limite de sua dissolução, mas a caminho da ressurreição. Nada, porém, fala
de recordações e do passado, nessa desesperada tentativa de narrar o presente. A dignidade de
um gesto, a dignidade do homem, tudo indica a ressurgência, a insigne e fatal presença humana,
a perpétua continuidade. O artista já não mais existe. Éo homem, enquanto entidade, que erige
e esculpe a urgência de sua perturbadora presença. É a derradeira mensagem, sem dúvida à
moda dos primeiros homens, que não sabiam como exprimir sua enigmática existência, mas
ql;le a indicavam de maneira definitiva, quando desenhavam as marcas de sua passagem por
meio de uma representação exemplar. Eles ignoravam que essa representação seria por toda a
eternidade. Alberto Giacometti a transmuta no espaço com a emergente presença do homem,
numa obra cuja vida ele se esforça em captar. São momentos intensos, em que ele passa da repre-
sentação do modelo à representação de um homem, que se assemelha intuitiva e possivelmente
a um duplo. É uma constatação mais definitiva, em que tudo se identifica e se reconstrói na
busca unitária do ser, signo primitivo, mas signo imperativo, revelador de seu pensamento. A
esperança de uma obra nova.
Jean-Louis Prato Traduzido do francês por Carlos Eugênio Marcondes de Moura.

277 Alberto Giacometti Jean-Louis Pratt


Alberto Giacometti curadoria Jean-Louis Prat

The hope for a new work


The loftily perched heads ofFemmes de Venise [Women from Venice] saya lot about the inaccessi-
bility of describing a reality apparent throughoutAlberto Giacometti's life. These heads-hope-
lessly, increasinglyelusive, tiny in relation to the elongated, emaciated body, with only a seemingly
fragile structure anchored in the ground-reveal the essential part of existence. ,
Giacometti's rhomme qui marche [The walking man] in and of itself symbolizes the very
nature of this century; it expresses all the difficulty ofbeing, the complexity and uni city oflife,
the strange and almost impossible task of encountering the Other, the solitude that inhabits this
ending millennium, but it also expresses (in this space that borders on nothingness) the dignity
of a man facing himself, walking toward a new destiny, standing, facing hope.
To erect a sculpture meant something with Giacometti, who followed a very logical guiding
line starting with the Surrealist period. From this time on, he envisaged idols who seemed the
product of a foreign land, foreign to his own culture, and he evoked sacred offerings to the
unknown. He fixed his attention on the absolute, in endless respect for other lives, other civiliza-
tions, other forms of culture, which, in being so different from reality, could only be compared
to a dream.
What to others would appear a source ofincomprehension was for him an indispensable,
primordial stage of reflection on the sculpture. Marked by other influences, Giacometti repre-
sented works, caused them to exist, through reflection and thought that from now on took on
the imagination and strength ofthe material. But how can such reflection be conducted, while
ceaselessly fleeing reality? How can slow digressions, repetitions over the years, be avoided?
ln the thirties, the sculptor controlled space and organic forms through wit alone, con-
straints that conveyed unreality but led necessarily to another finality.
Soon, Giacometti would again take up the ineluctable study of a face, an abandoned reality,
an endless questioning ofhimself. A new oeuvre emerged, at the limit ofthe visible; worked to
infinity, itwas split, trembling, in order to define new contours, the memory of a material which
in turn could undergo every possible tormento It brushed up against erasure. Itwas a passionate,
vibrant oeuvre situated at the bounds of sculpture. It expressed moments of extreme [uncertainty]
when everything might disappear. It always pointed to possible rupture. ln his ardent search to
discover another world, the sculptor excavated the likeness and truth of the Other in the quest for
his essence.
ln his reconstructing and restructuring, Giacometti dearly sought to build a world on the
verge of dissolving, but on the way to resurrection. Yet nothing speaks of memory and the past
La femme cuiller A mulher colher [The spoon woman] 1926 bronze 145x51 x21cm coleção Fondation Maeght, Saint Paul de Vence
doação Marguerite e Aimé Maeght

278 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


in this desperate attempt to express the presento The dignity of a gesture, the dignity of man-
everything points to resurgence, remarkable and fatal human presence, perpetuaI continuity.
The artist no longer exists; it is the man, as an entity, who erects and sculpts the urgency ofhis
troubling presence. This is the ultimate message, no doubt similar to that ofthe first men who did
not know how to express their enigmatic existence but did so definitively when they drew traces
of their passage, in exemplary representation, not aware it would become eternal. Giacometti
transmuted [eternity] in space with the emerging human presence in an oeuvre whose life he
would strive to capture. ln these intense periods, he went from the representation ofthe mo dei
to the representation of a man, intuitively and possibly resembling a double, a more definitive
constant where everything was identified and reconstructed in the unitary search for being, a
primitive but impera tive sign, revealing his thought. The hope for a new work.
jean-Louis Prato Translatedfrom the Prench by jeannine Herman.

279 Alberto Giacometti Jean-Louis Pratt


Alberto Giacometti-o objeto, o
vazio e a morte do homem
Alain Cueff

L'objet inuisible [O objeto invisívelJ, também conhecida como Mains tenant le vide [Mãos segurando
o vazio], é a última obra surrealista de Alberto Giacometti 1 : provavelmente inspirada numa
escultura do Museu Etnográfico da Basiléia, uma delgada figura de mulher, ao mesmo tempo
em pé e sentada, parece segurar nas mãos um objeto "invisível". No texto que lhe dedicou 2 ,
André Breton quis ver nela "a emanação do desejo de amar e de ser amado à procura de seu ver-
dadeiro objeto humano e em sua dolorosa ignorância". Antes da descoberta de uma máscara,
feita na companhia de Giacometti, descoberta essa a que atribuía uma importância determi-
nante, Breton acreditava perceber a ausência "de uma certeza quanto à realidade, um ponto de
apoio no mundo dos objetos tangíveis". "Faltava", prossegue ele, "aquele termo de comparação,
mesmo longínquo, que confere bruscamente a certeza". Dito de outra maneira, uma obra não
teria como se sustentar por si mesma, numa total independência em relação ao mundo. E, em
sua preocupação de esquadrinhar o imaginário, Breton não só deixa de levar em conta os dois
títulos da escultura, mas persiste em considerar a posição das mãos como indicativa de um
objeto que falta. Sem o dizerdesta vez, ele naturalmente julga sonhar com um novo objeto, que
viria preencher esse vazio e esse inaceitável interstício. Para ele, o invisível pode e deve ser con-
vertido em ausência, e o vazio, em falta. Os objetos, encontrados ou sonhados, fantasmáticos e
analisados, têm essencialmente como tarefa garantir uma continuidade entre as percepções e
as realidades, isto é, interceder junto às potências mágicas do além .
No entanto, se as mãos parecem apropriar-se do vazio, se o objeto é invisível, é porque ele
já foi destruído, ou mais exatamente porque esta obra, de fundamental importância, constitui
uma tentativa decisiva de lhe fazercedero lugar-o lugar inteiro-à figura humana. Alguns anos
antes, Giacometti já havia começado a executar as premissas dessa destruição: a Femme egorgée
[Mulher degolada], de 1932, que se redescobrirá sob os traços da aranha descrita em 1946 em Le
rêve, le sphinx et la mort de T. [O sonho, a esfinge e a morte de T.], evidentemente deve mais aos
Buste de Diego 1954 bronze 50,3x9,5x 17cm coleção Fondation Maeg ht, Saint Pau l de Vence doação Aimé Maeght foto
Claude Germain
Femme de Venise Mul her de Veneza [Woman from Venice] 1956 bronze 120x17x35cm coleção da futura Fondation Alberto et
Annette Giacometti , Paris foto Sabine We iss, Paris

280 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofag ia e Hi stórias de Can ibali smos
escritos de Georges Bataille e às explorações da revista Documents do que às teorias surrealistas
ortodoxas. A ambivalência entre o animal e o humano, a associação do ato sexual ao assassinat0 3
testemunham com bastante evidência a violência que Giacometti exerce ao mesmo tempo sobre
o objeto de arte, de uma só vez contra suas formas historicizadas e contra o princípio realista.
Para ele, os objetos não assumirão mais a menor função de mediação entre os tempos e os
homens, da mesma forma que os sonhos perderão sua função de conjugar percepção e realidade.
E, se essa diferença irredutível entre os dois homens não era claramente delimitada, lembremo-
nos de que, apesar de sua insistência, Breton jamais obteve de Giacometti a materialização do
"cinzeiro Cinderela" com o qual havia sonhado e que queria tocar com as mãos 4 • Entrando num
espaço descontínuo, de onde são excluídos os rituais e os fetiches , onde as equivalências são
proscritas por sua própria vaidade, Giacometti ab re sua obra unicamente para a figura.
No final desse mesmo ano de 1934, tendo em vista a necessidade de sua ruptura progra-
mada e inevitável com Giacometti, Breton decide que sabe o que é uma cabeça. Ele sabe, ou-
o que é mais verossímil-não quer saber, considerando o fraco valo r de uso de uma simples
cabeça, que oporia seu mutismo à tagarelice dos vivos, que se esquivaria da comun icação e da
comunhão oculta dos pensamentos. O escultor tem todas as razões para pensar o contrário,
mesmo se, ou porque, "é um tanto anormal passaro tempo, em lugarde viver, tentando copiar
uma cabeça, imobilizar a mesma pessoa durante cinco anos numa cadeira, todas as noites, ten-
tar copiá-Ia sem sucesso" . Os diferentes escritos, anteriores ou póstumos,
colocam em cena a cabeça como um motivo obsessivo: das cabeças dos supli-
ciados de Géricault à cabeça que ele não consegue perceberem seu conjunto e
que joga na lata de lixo em 1920, passando pela morte alucinada de T., em cuja
boca desaparece uma mosca, ela continua sendo o obstáculo imprevisto de um
olhar incrédulo sobre um mundo no qual os mortos assumem inesperada-
mente o lugar dos vivos. A cabeça, que Giacometti distingue implicitamente
do rosto, e que ele havia apreendido sob a aparência do crânio, numa extraor-
dinária pintura de 1923, é menos o lugardo espírito e dos sentimentos do que
a parte do corpo onde osci Iam e se interpenetram a vida e a morte, em toda sua
brutalidade animal. Jamais procura ele desfazer-se desse fascínio, redistribuin-
do-o em qualquer outra parte. Ao contrário: "A forma", escreve Giacometti a
respeito de Jacques Callot, "está sempre na medida desta obsessão".
A cabeça não expri me a si ngu laridade do outro, não é seq uer a encarna-
ção do Outro. Não foi evidentemente por acaso q ue Diego, ao mesmo tem po
seu irmão e seu duplo, tornou-se o primeiro e também o mais constante
modelo desse empreendimento concreto e repetitivo. Dezenas de esculturas
têm como título o nome do irmão, que é o nome do próprio, fora de toda psi-
cologia, no lugardo nome do pai. Em uma nota de 1959, Giacometti refere-se
a um próximo retrato de Diego como se fosse a primeira vez que o executaria,
como se, longe de ter captado seus detalhes ao longo dos quinze anos ante-
riores, tudo ainda estivesse para ser descoberto. Os testemunhos de diferentes
modelos atestam a exigência do escultor, sua obstinação e sua resistência. Nos
anos trinta, bem como no fim da vida, Giacometti concentra a mesma energia
em intermináveis sessões de poses. Apesar do privilégio concedido a alguns
deles, os modelos parecem tornar-se intercambiáveis-"Diego, Annette, Caro-
line, outras esculturas, pinturas, desenhos"-e parecem dispor-se a integrar
um único modelo genérico.

28 1 Alberto Giacometti Alain Cueff


Copiar de novo, copiar outra vez. Mas copiar não consiste em abandonar-se a um mime-
tismo qualquer, visto que não existem cabeças como existem rostos, mas uma Cabeça. As apa-
rências são contingentes, e nem por isso está excluído que os detalhes particulares de um
modelo suscitam um estímulo renovado e necessário, como o mostra sua experiência com Isaku
Yanaihara. A questão da semelhança é deslocada para muito longe de sua acepção e de suas
exigências ordinárias. Ela não é um objetivo nem um fato mais ou menos consumado, que se
poderia medir, mas um processo, um movimento, uma metamorfose. Quanto a isso, a semelhan-
ça é um jogo, um trabalho que corresponde ao regime da imagem, tal como a concebia Georges
Bataille S , e que não obedece às regras da Idéia, mas que se esquiva da positividade das aparên-
cias plásticas. Jean Genet fez desse movimento a qualidade maior do trabalho de Giacometti. A
beleza dessas esculturas, escrevia ele, "parece-me que está nesse incessante e ininterrupto
vaivém da mais extrema distância à mais próxima familiaridade: esse vaivém não acaba e é deste
modo que se pode dizer que elas estão em movimento".6
Esse movimento não obedece a nenhuma lógica temporal? que tornaria Diego mais seme-
lhante a si mesmo ou mergulharia L'homme qui marche sous la pluie [O homem que anda debaixo
da chuva] no âmago do antes e do depois de uma estrutura narrativa. Tudo acontece "como se
o espaço tivesse tomado o lugar do tempo", um espaço vazio e descontínuo, "o grande vazio
escancarado no qual [os] personagens [de Jacques Callot] gesticulam, se exterminam, se
abolem". Nesse vazio aberto a todos os ventos, a permanência dos modelos não representa de
modo algum uma garantia de continuidade no tempo ou no espaço, que é, segundo a repre-
sentação que dele faz Giacometti em Le rêue, le sphinx e la mort de I, uma espécie de disco, isto é,
um plano sem meio, sem coerência, privado de todo princípio de síntese, cujas diferentes partes
são, ao contrário, separadas por linhas irredutíveis. Quando ele chega a dizer"não sei o que é o
espaço", não é que reconheça uma incapacidade em construí-lo, mas sim que toma nota desse
deslocamento dos parâmetros espaciais. As diferentes gaiolas-a de Le nez [Nariz], aquela que
contém uma cabeça e uma silhueta, na obra epônima de 1950, a de Figurine dans une bo/te entre
deux maisons [Figurino numa caixa entre duas casas] ou aquelas esboçadas na maior parte de
suas pinturas-não pretendem certamente reconstituiro espaço, dar-lhe uma forma efetiva. Os
lugares, como as gaiolas, não representam um teatro onde o imaginário poderia indicar as
cenas de uma ação psicológica ou de uma situação existencial. Eles são os pedestais de uma
segmentação, de uma fragmentação da consciência do corpo humano.
Le torse [O torso] (1925), a Pointe à I'oei! [Ponta no olho] (1932), La main [A mão] (1947), Le
nez [O nariz] (1947) ou ainda Lajambe [A perna] (1958) pontuam com estranha regularidade a
inquieta relação com a parte e com o todo, que Giacometti mantém e discute do início ao fim da
vida. "Não posso", diz ele, referindo-se a LaJambe, "ver simultaneamente os olhos, as mãos, os
pés de uma pessoa [... ] mas a única parte que eu olho desperta a sensação da existência do
todo." No sentido inverso, quando ele pretende reconstituir uma pessoa em sua inteireza ou,
em todo caso, dos pés à cabeça, Giacometti constata a impossibilidade de apreender o conjunto
dela. "Se eu o olharde frente, esqueço o perfil. Se olharo perfil, esqueço o rosto." Os personagens
filiformes parecem estar seguros de sua integridade, mas, por serem a conseqüência de uma
incapacidade de apreendero todo, nem por isso são íntegros, mas desproporcionalmente redu-
zidos. São o resultado de um empreendimento tão destrutivo quanto aquele que opera nos frag-
mentos, são, na realidade, como os membra disjecta de um único corpo fantasmático, do qual não
pode ou não quer apropriar-se.
Giacometti definitivamente não se conforma ao modelo mitológico de Pigmalião. Se a
semelhança é esse processo sempre descontínuo e inacabado e não um sistema de emparelha-

282 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


mento do inanimado com o vivo, é desnecessário dizerque ele não procura de modo algum sus-
citarou restituir a vida, pois pretende "unicamente" copiar esses "resíduos de visão" nos quais
a morte realiza sua tarefa, com obstinação e em segredo. Não há necessidade de solicitar por
demais seus próprios textos para que se dê a conhecer a dimensão canibal de seu pensamento
e de seu trabalho. É um canibalismo eqüidistante da experiência literal e da especulação meta-
fórica. "Erotismo-ramo da nutrição. Atração, amor, assassinato, antropofagia, etapas do mesmo
desejo", pode-se ler numa nota de 1944. Como diz ainda nessa mesma nota, esse canibalismo
é a procu ra de u ma síntese entre o mundo exterior e si mesmo. Por ser impossível e não se abri r
à coesão narrativa do sonho surrealista, essa tentativa de síntese alimenta a perpétua luta de
Giacometti com o humano-ele que se compreendia e sevia como sendo um cachorros, ou, em
todo caso, como um homem que jamais teria a certeza de pertencerde pleno direito à espécie hu-
mana. Eque, de resto, não reivindica nenhum dos direitos que o fato de pertencer lhe conferiria.
Endocanibal, Giacometti devora seus modelos para arrancá-los do espaço do túmulo e
não-já que a maior parte desses modelos pertence à sua família-para apropriar-se nova-
mente deles ou para captar seu ser. Já não se trata mais de assombrar o outro, ou de ser por ele
assombrado, conforme dizia Maurice Merleau-Ponty9. Ainda mais que, sendo petrificação do
ser, a fusão operada porGiacometti é muito mais intimamente primitiva e violenta do que pode
parecer. Enquanto tal, ela tanto deve ao exercício do olhar quanto ao das mãos que modelam,
que estrangulam a matéria. Então, não existe mais essa "duplicidade do sentir" que descrevia
ainda Merleau-Ponty, mas uma ruptura que remete ironicamente o espectador à insuficiência
de sua visão retínica. Eque o remete ao caráter ridiculamente estabelecido da distinção que se
pode fazer entre a vida e a morte.
O vocabulário fenomenológico favoreceu, a propósito de Giacometti, a dialética da ausência
e da presença. Mas aquilo com que nos confrontam essas cabeças e esses personagens feridos
é mais nossa incapacidade de assimilar o ser humano sob todas as suas formas fragmentárias.
Longe estamos-e o artista certamente não nos convida a isso-de assumir a posição de imitar
o canibalismo do artista, como pensava Michel Leiris, que via nas obras dos anos 20 "iguarias
de pedra, comidas de bronze maravilhosamente vivas".10 Nem culpados nem inocentes, somos
os espectadores de um assassinato que ocorre portoda a eternidade, cujas esculturas são como
relevos. É ainda nesse sentido que a relação de Giacometti com o primitivismo é mais funda-
mentai do que aquela que pode retranscrever uma história das formas. Ele não se entrega a
um exorcismo modernista-como o fez Picasso com Les demoiselles d'Auignon [As senhoritas de
Avignon] - nem su b-i nterpreta a arte pri mitiva, a exem pio de Matisse 11. Giacometti a com-
preende no imediatismo de um diálogo e se afasta a passos largos do idealismo dentro do qual
seus contemporâneos contêm a morte.
Alain Cueff. Traduzido do francês por Carlos Eugênio Marcondes de Moura.

1. Última, desde que se admita que Giacometti jamais foi sur- 5. Ver Georges Didi-Huberman, La ressemblance informe ou legai
realista, o que, a despeito das circunstâncias e da insistência sauoir uisuel selon Georges Bataille, Paris, 1995.
de certos comentários, está longe de ser indiscutível. 6. Jean Genet, L'atelier d'Alberto Giacometti, Décines, 1958-1963.
2. André Breton, "Equation de I'objet trouvé", 1934, ao qual o 7. "Nego o tempo", lê-se sobre um desenho de 1934-35,
autorvolta em L'amourfou, Paris, 1937. reproduzido nos Écrits.
3. "Objetivo do prazer do amor ao assassi nato", lê-se numa 8. Aliás, O cacnorro (1951) é, sem dúvida, seu único auto-retrato,
nota de 1944, publicada nos Ecrits, apresentados por Michel no sentido tradicional do termo, esculpido.
Leiris eJacques Dupin, Paris, 1990. 9. Maurice Merleau-ponty, L'oeil et I'esprit, Paris, 1964.
4. Ver Yves Bonnefoy, Giacometti, Paris, 1991. Por ocasião da 10. Michel Leiris, "Alberto Giacometti", Documents, Paris, 1929.
mesma visita feita ao mercado das pulgas, em 1934, ele encon- 11. Ver William Rubin, "Le primitivisme moderne, une intro-
trou ali seu equivalente. duction';, Le primitiuisme dans I'art du XXe. siec/e, Nova York, 1984.

283 Alberto Giacometti Alain Cueff


Alberto Giacometti-the object,
the void, and the death of man
Alain Cueff

L'objet ínvísíble [The invisible object], also known as Maíns tenant le víde [Hands holding the void] ,
is the last surrealist work of Alberto Giacometti: 1 probably inspired bya sculpture in the ethno-
graphical museum in Basel, it is a narrow female figure, standing and seated at the sarne time,
which seems to be holding an "invisible" object in its hands. ln the text he devoted to it, 2 André
Breton wanted to see it as "the emanation of the desíre to love and to be loved in quest of its true
human object, which is painfully unknown." Before he discovered a mask in Giacometti's com-
pany, a discovery to which he attached a determining importance, Breton thought he saw the
lack "of an assurance about reality, an anchor point in the world oftangible objects." He added:
"There was a lack of any point of comparison, even a distant one, that might abruptly confer cer-
tainty." ln other words, a work cannot stand by itself, totally independent from the world. And
in his concern to impose a grid on the imaginary order, not only does Breton fai! to take into
account either ofthe two titles ofthe sculpture, but he persists in considering the position ofthe
hands as indicating a míssín.g objecto And he naturally sets to dreaming, without saying so this
time, of a new object that would come to fill up this void and this unacceptable interstice. For
Breton, the invisible can and must be converted into an absence, the void into a lack: objects,
found or dreamt of, fantasized or analyzed, essentially have the task of ensuring a continuity
between perceptions and realities, that is, ofinterceding with the magicaI powers of the beyond.
And yet, ifthe hands seem to be grasping the void, ifthe object is invisible, it is because it
is already destroyed, or more exactly, because this most important of art works constitutes a
decisive effort to make the object cede its place-all place-to the human figure. A few years
earlier, Giacometti had already set forth the premises ofthat destruction: Femme e.gor.gée [Woman
with her throat cut] (1932)" which reappears as the spider described in La rêve, le sphínx et la mort
de T. [The dream, the sphinx, and the death ofT.] (1946), is obviously much more indebted to the
writings ofGeorges Bataille and the explorations ofthe journal Documents than to orthodox surre-
alist theories. The ambivalence between the animal and the human, the link between the sexual
act and murder, 3 adequately attest to the violence Giacometti was perpetrating at the sarne time
on the art object, both against its historicized forms and against the principIe of realismo For
him, objects no longer performed the slightest function of mediation between time or between
human beings, just as dreams had lost their function to join perception and reality. And, if that
irreducible difference between the two men were not significant enough, remember that, in
spite ofhis insistence, Breton never obtained from Giacometti the materialization ofthe "Cin-
derella ashtray" (cendríer Cendríllon) he had dreamed of and which he wanted to touch with his
own hands. 4 Entering a discontinuous space where rituaIs and fetishes are excluded and where
equivalences are proscribed because of their very futility, Giacometti now allowed only the figure
into his works.
At the end Of1934, for the needs ofhis programmed and inevitable breakwith Giacometti,
Breton decided he knew what a head was. He knew or, more likely, he did not want to know,
considering the little use value of a mere head, which stands mute opposite the chattering ofthe

284 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


living, and shies away fram communication and the occult com-
munion of thoughts. The sculptor Giacometti had every reason to
believe the opposite, even though, ar because, "it is somewhat
abnormal to spend one's time, not in living, but in trying to copy a
head, to immobilize the sarne person for five years on a chair every
night, to try to copy it but without success." Various writings by
Giacometti, published before ar after his death, present the head
as an obsessional motif: fram Géricault's heads oftorture victims,
to the hallucinated death ofT., into whose mouth a fly vanishes, to
the head he does not manage to seize as a whole and which he
thraws into the trash in I920, the head remains the stumbling block
for an incredulous gaze on a world where the dead unexpectedly
take the place ofthe living. The head, which Giacometti implicidy
distinguishes fram the face, and which he grasped in the form of a
skull in an extraordinary I923 painting, is less the site of the mind
and of feelings than the part of the body where life and death oscil-
late and interpenetrate in all their animal brutality. He never seeks to
rid himself of that fascination by reallocating it elsewhere. On the
contrary, he writes ofJacques Callot: "The form is always adequate to that obsession."
The head does not express the uniqueness of the other, nor is it even the incarnation of the
Other. It is clearly not by chance that Diego, both Giacometti's brather and his double, becomes
the first but also the most constant model in that concrete and repetitive undertaking. Dozens
of sculptures have his brather's name as their tide; it is the name ofthe sarne, apart fram all psy-
chology, rather than the name ofthe father. ln a I959 note, Giacometti speaks of a forthcoming
portrait ofDiego as ifitwere the first time he was undertaking it, as if, far fram having captured
the details over the previous fifteen years, everything still remained to be discovered. Accounts
fram various models attest to the sculptor's demanding ways, his obstinacy and resistance.
Whether in the I930S ar at the end ofhis life, Giacometti concentrated the sarne energy in endless
posing sessions. And, in spite ofthe privilege granted to one model ar another, they seem to have
become interchangeable-"Diego, Annette, Caraline, other sculptures, paintings, drawings"-
and to have fallen into line with a single, generic mode!.
To copy again and again. But to copy is not simply to indulge in some sort of mimesis, since
there are no heads as faces but only one Head. Appearances are contingent, a fact that does not
rule out the possibility that the particular details of a model may serve as a new and necessary stim-
ulus, as his experiment with lsaku Yanaihara shows. The question of resemblance is transported
far fram its ordinary sense and requirements: resemblance is not a goal, not a more ar less accom-
plished fact that could be assessed, but a pracess, a movement, a metamorphosis. ln that sense,
it is a game, a labor that corresponds to the reign of the image as Georges Bataille conceived it,5
and which does not obey the rules of the ldea, but rather slips away fram the positivity of plastic
appearances. Jean Genet made this movement the foremost quality ofGiacometti's work. The
beauty ofthese sculptures, he wrate, "seems to me to lie in that incessant, uninterrupted shuflling
back and forth between extreme distance and the most intimate familiarity: this shuffling back
and forth is never-ending, and it is in that sense one can say [these works] are in movement."6
This movement does not obey any temporallogic, 7 which would make Diego better resemble
Femme egorgée Mulher degolada [Woman with her throat cut] 1932 bronze 20,3 x 87,5x63,5cm coleção Peggy Guggenheim,
Fondazione Solomon R. Guggenheim, Veneza

285 Alberto Giacometti Alain Cueff


himself over time or would attribute to L'homme qui marche sous la pluie [Man walking in the rain] a
"before" and an "after" in a narrative structure. No, it is "as if space had taken the place oftime"-
an empty and discontinuous space, "the great gaping void in which [the] characters [ofJacques
Callot] gesticulate, exterminate one another, and abolish one another." ln this void exposed to
the elements, the permanence of the models is in no way a guarantee of continuity in time or
space, which, according to Giacometti's depiction ofit in La rêve, le sphinx et la mort de T., is a sort
of disk, that is, a plane without a middle, without coherence, devoid of every principIe of syn-
thesis, whose different parts are, on the contrary, separated by irreducible lines. When he is
prompted to say, "I don't know what space is," it is not that he is recognizing an incapacity within
himselfto construct space, but rather that he is noting the dislocation of spatial parameters. The
different cages-the cage that contains a head and a silhouette in the eponymous work of 1950,
the cage in Le nez [The nose], Figurine dans une boíte entre deux maisons [Small figure in a box
between two houses], or the cages sketched in most ofhis paintings-certainly do not aim to
reconstitute space or to give it an effective formo Like the cages, squares do not depict a theater
where the imaginary could identifY the scenes from a psychological action or existential situation:
they are pedestaIs for a segmentation, a fragmentation ofthe human body's consciousness.
Le torse [The torso] (1925), Pointe à l'oeil [Point to the eye] (1932), La main [The hand] (1947),
Le nez [The nose] (1947), and Lajambe [The leg] (1958) punctuate with a strange regularity the
uneasy relation to the part and to the whole that Giacometti maintained and discussed from
the beginning to the end ofhis life. Regarding Lajambe, he says, "I cannot simultaneously see the
eyes, the hands, the feet of a person [...] but the single part I look at conveys the sensation of
the existence ofthe whole." ln contrast, when he undertakes to restore a person in its entirety,
or, in any case, from head to toe, he notes the impossibility of grasping it as a whole. "IfI look at
the front of you, I forget the profile. IfI look at the profile, I forget the front view." His spindly
figures seem sure of their integrity. But, because they result from an incapacity to grasp the total-
ity, they are notwhole but immeasurably reduced in size: they are the result of an undertaking as
destructive as that at work in the fragments; in reality, they are like the membra disjecta of a single
fantasized body, which Giacometti cannot or will not grasp.
Femme Mulher [Woman] 1927 bronze 55,5x32,7x7,5cm coleção da futura Fondation Alberto et Annette Giacometti, Paris foto
Sabine Weiss, Paris
Femme Mulher [Woman] 1928 bronze 39,5x16,8x7,9cm coleção da futura Fondation Alberto et Annette Giacometti, Paris foto
Sabine Weiss, Paris

286 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Giacometti sets himself definitively apart from the mythological model ofPygmalion. If
resemblance is an always discontinuous and incomplete process and not a system for pairing the
inanimate with the living, it goes without saying that resemblance in no way seeks to produce or
restore life, since it intends "only" to copy these "residues ofvision" where death is secretlyand
obstinately at work. We do not have to scour his texts for long to find the cannibalistic dimension
ofhis thinking and ofhis practice, a cannibalism at equal distance from literal experience and
metaphorical speculation. "Eraticísm-a branch af nutrítian. Attraction, love, murder, anthro-
pophagy, phases of the sarne desire," one reads in a 1944 note. As he says in the sarne note, this
cannibalism is the search for a synthesis between the external world and oneself. Because it is
impossible and will not lend itself to the narrative cohesion of the surrealist dream, that attempt
at synthesis feeds Giacometti's perpetuaI struggle with the human-Giacometti, who understood
himself and saw himself as a dog, 8 or in any case as a man who would never be certain ofhis full
right of membership in the human race. And who, in fact, demanded none of the rights that
such membership would have conferred on him.
The endocannibalistic Giacometti devoured his models in order to extract them from the
space of the tomb, and not to reappropriate them or to capture their being-since most of them
were part ofhis family. He was no more haunting the other than he was haunted by the other,
as Maurice Merleau-Ponty claimed. 9 Especially since, as a petrification of being, the fusion
Giacometti accomplished is much more intimately primitive and violent than it may seem and,
as such, it owes as much to the gaze as to the hands that model, that strangle, matter. The
"duplicity of sensing," also described by Merleau-ponty, has no existence either; there is onlya
rupture that ironically reminds the viewer of the inadequacy ofhis retinal vision, that reminds
him of the ridiculously tenuous character of the distinction made between life and death.
When referring to Giacometti, the phenomenological vocabulary favored the dialectic of
absence and presence. But what these heads and ravaged figures confront us with is rather our
incapacity to assimilate the human being in all its fragmentary forms. We are hardly in a position
to mimic the artist's cannibalism, and the artist certainly does not invite us to do soo Yet that is
what Michel Leiris believed, he who saw the works of the 1920S as "meals of stone, food of
bronze, marvelously a1ive."10 Neither guilty nor innocent, we are witnesses to a murder that
takes place from time immemorial, and for which the sculptures serve as something like reliefs.
It is also in tpat sense that Giacometti's relation to primitivism is more fundamental than a his-
tory of forms can reconstruct: he does not indulge in modernist exorcism-as Picasso did with
Les demaiselIes d'Avignan-nor does he underinterpret primitive art, as Matisse did. l l He under-
stands it in the immediacy of a dialogue and quickly distances himself from the idealism within
which his contemporaries contained death.
Alain Cue§. Translatedfram the Prench by Jane Marie Tadd.

1. The last, that is, ifwe concede that Giacometti ever was a 6. Jean Genet, ratelier d~lberto Giacometti, Décines, 1958-63.
surrealist, which, in spite of the circumstances and the insis- 7. "I negate time," one reads on a drawing from 1934-35,
tence of certain critics, is far from indisputable. reproduced in Écrits.
2. André Breton, "Equation de l'objet trouvé," 1934, reprinted 8. ln fact, The dog (1951) is undoubtedly his only sculpted self-
in ramourfou, Paris, 1937. portrait, in the traditional sense of the word.
3. "Goal ofthe pleasure oflove in murder," one reads in a 1944 9. Maurice Merleau-Ponty, roei! et l'esprit, Paris, 1964.
note, published in Ecrits, edited by Michel Leiris and Jacques 10. Michel Leiris, "Alberto Giacometti," Documents, Paris, 1929.
Dupin, Paris, 1990. II. See William Rubin, "Modernist prirnitivism: an introduc-
4. See Yves Bonnefoy, Giacometti, Paris, 1991. He found its tion," "Primitivism" in twentieth-century art: alfinity of the tribal
equivalent during the sarne 1934 visit to the flea market. and the modem, New York, 1984.
5. See Georges Didi-Huberman, La ressemblance informe ou legai
savoir visuel selon Georges Bataílle, Paris, 1995.

287 Alberto Giacometti Alain Cueff


curadoria Katia Canton

Mari M rti mulher rd


sua s r
Maria menina mineira, filha de ministro, educada no colé-
gio Sion, em Petrópolis. Maria pianista, mãe e esposa.
Maria mulher de embaixador e cidadã do mundo. Maria
escultora que encantou o meio artístico europeu e o norte-
americano dos anos 40. Maria, musa do surrealismo de
Breton e Duchamp. Maria promotora de arte, que ajudou
na criação da primeira Bienal de São Paulo e na inaugu-
ração do MAM do Rio deJaneiro. Maria, escritora e mulher
madura, que registrou sua vivência internacional em livros
e textos jornalísticos.
São de fato várias as Marias que se desdobram como
em um jogo de peças de montar, que finalmente, neste final
de século XX, se unem e revelam uma artista de extrema
originalidade, coragem e talento.

Nasceu Maria de lourdes Alves, em 1894, na cidade de


Campanha, sul de Minas Gerais, e preparou-se para uma
vida típica de família tradicional e abastada: estudou
piano, casou-se com o historiadore crítico literário Otávio
Tarquínio de Souza e teve uma filha. Tornou-se Maria
Martins ao se casar pela segunda vez, com o embaixador
brasileiro Carlos Martins, com quem, a partir de 1926,
viveu em Quito, Paris, Tóquio, Copenhague, Bruxelas e
Washington. Ficou conhecida simplesmente como Maria,
quando, em 1939, mudou-se para Washington para acom-
pan har o marido, em baixador na capital norte-americana
até 1948. Foi assim, apenas Maria, que a artista passou a
assinar obras, que ganhavam notoriedade pelas formas
sensuais e pela exuberância com que retratavam um Brasil
longínquo e exótico.
Maria Martins iniciou uma próspera carreira nos Esta-
dos Unidos, em 1941, data de sua primeira exposição indi-
viduai, na galeria Corcoran, em Washington. Nesse mesmo

288 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


ano, depois de freqüentar o ateliê do escultor belga Oscar Jesper, em Bruxelas, passou a estudar
com Jacques Lipchitz e Stanley William Hayterem Nova York, onde alugou um apartamento.
É a partir desse contato com o mundo artístico nova-iorquino, povoado então por nomes
fundamentais da vanguarda européia que emigravam para os Estados Unidos durante a Segun-
da Guerra, que a obra de Maria assume novos contornos e conteúdos, incorporando elementos
su rreal istas.
Durante sua segunda exposição, na galeria Valentine, de Nova York, em '942, Maria conhece
André Breton, que naquele mesmo ano a apresenta a um círculo de artistas europeus ligados ao
surrealismo, como Michel Tapie, André Masson, Yves Tanguy, Max Ernst e Marcel Duch amp 1.
"[ ... ] não era nada menos que o Amazonas, que cantava nas suas obras, que tive a felici-
dade de tanto admirar, em Nova York, em '943. Cantava com todas as suas vozes imemoriais a
paixão do homem, do nascimento até a morte, tal como souberam condensá-Ia em símbolos mais
envolventes que todos os outros [... ] Maria soube captar, como ninguém, na fonte primitiva, de
onde ela emana, asas e flores, sem nada dever à escultura do passado ou do presente [... ]"2.
O texto, de André Breton para uma exposição da artista em Nova York, é emblemático do
encantamento que a obra de Maria produz dentro de uma estética surrealista dos anos 40, nos
Estados Unidos.
A produção de Maria Martins, a partir de '942, marca justamente a diferença cultural da
artista em relação a seus colegas europeus e norte-americanos, sublinhada em títulos pessoais,
como é o caso da obra Não te esqueças nunca que eu uenho dos trópicos, ou apresentando ícones da
tradição popular narrativa e religiosa do país, em obras como Yemanjá, Boiuna, Cobra grande e Yara,
expostas na mostra Amazonia, que a artista realizou na galeria Valentine, em '943.
As obras dessa fase tecem a imagem de uma "brasilidade" cênica. Materializam a atitude
nostálgica de uma exuberância e sensualidade primitivas, que alimentam o imaginário europeu.
Carregam, desde então, a marca da inquietude trazida pela somatória entre o Brasil de origem,
país vivido de fato, e o Brasil primitivo e imaginário, repositório de lendas amazônicas e imagens
de uma natureza selvagem, simbólica do desejo.
De fato, a liberdade com que mergulha e emerge de universos estéticos e culturais diver-
sos, constantemente carimbados com uma marca narrativa extremamente pessoal, intuitiva e
emocional, faz com que Maria Martins seja desde o início identificada com o surrealismo. Maria
Martins participa, a partir dos anos 40, das principais exposições ligadas ao movimento, como
a grande mostra Le surréalisme, organizada por Breton e realizada na Galerie Maeght, em Paris,
em '947, e é incluída em publicações de autoria dele. 3
Nos Estados Unidos, as vanguardas européia e norte-americana, alimentadas pelos projetos
abstratos e surrealistas, convivem com naturalidade. Em '942, Marcel Duchamp e André Breton,
juntos, organizam a exposição First papers of surrealism [Primeiros papéis do surrealismo], em
Nova York, ao mesmo tempo que freqüentam a recém-inaugurada galeria de Peggy Guggenheim,
Art ofthis Century, onde, pela primeira vez, são expostas obras do norte-americano que, anos
mais tarde, seria um dos pivôs do expressionismo abstrato: Jackson Pol/ock. Um dos exemplos
dessa convivência de linguagens artísticas toma corpo na própria temporada de '943, na galeria
Valentine, quando Amazonia, de Maria Martins, é exposta juntamente com pinturas de Piet
Mondrian. Ao lado das narrativas e dramáticas Cobra grande, Yemanjá e Boiuna, o artista holandês,
que passa a viver em Nova York a partir de 1940, exibe telas da série New York, utilizando apenas
cores primárias e formas geométricas, transformadas em pulsações de luz, cor e movimento. 4
La femme a perdu son ombre A mulher perdeu sua sombra [The woman has lost her shadow] 1946 bronze 128x27,5x23cm coleção
Geneviêve e Jean Boghici, Rio de Janeiro

289 Maria Martins Katia Canton


Nossa Senhora dos desejos
Entre as histórias que perpassam a obra e sobretudo a vida de Maria Martins está o envolvimento
com Marcel Duchamp. Maria e o artista francês compartilhavam, além da vida social e artística,
um intenso relacionamento amoroso. Duchamp conheceu a artista logo que chegou a Nova
York, em 1942, e, desde então, seus encontros com Maria foram assíduos. Duas conhecidas
obras de autoria de Duchamp foram inspiradas e dedicadas à sua "noiva impossível": paisage
fautif[Paisagem faltosa], de 1946, e Étant donnés, uma de suas obras referenciais, realizada, em
segredo, durante cerca de vinte anos, de 1944 a '966. A matéria e o significado de Paisage fautif,
com um desenho em relevo, feito em material fluido, sobre veludo negro, sempre foi um mis-
tério para críticos e pesquisadores. Até que em '989, por conta de uma exposição em Houston,
no Texas, descobriu-se que se tratava de esperma, provavelmente do próprio Duchamp. paisage
fautifé, portanto, uma homenagem viva para a mulherque o artista amava, mas que não podia
desposar, já que Maria preferiu permanecer casada com o embaixador Carlos Martins. Quanto
à instalação Étant donnés, sabe-se por desenhos de estudos iniciais que a obra se intitulava ini-
cialmente Étant donnés: Maria, a queda d'água e o gás de iluminação. A obra mostra uma mulher
deitada, nua, numa posição de abandono, com as pernas abertas. Nos anos 50, foi modificada.
,0
O título passou a ser Étant donnés: a queda d'água, 2° o gás de iluminação. Os cabelos da mulher,
anônima, que eram negros como os de Maria, têm sua cor modificada para o dourado, mais
próximos aos de Teeny, com quem Duchamp se casou em '954.
Em uma das muitas cartas que costumava enviar à artista, Duchamp referiu-se a Maria
como notre-dame des désirs [nossa senhora dos desejosp. Na verdade, em Maria Martins, o desejo
ultrapassa cartas e outros limites da vida pessoal para infiltrar toda a sua obra.
A artista cria um amálgama surpreendente, em que homens e mulheres, animais, florestas
e pântanos parecem ecoar carnalidade. Manipula imagens, injetando-Ihes desejos, violências e
lirismos, atribuindo-lhes a condição de mitos. O bronze, que recebe tratamentos específicos, cria
nuances com autonomia para replicar organicidades, texturas e porosidades que se aproximam
da pele humana ou das seivas da natureza.
Cada uma de suas obras, na maioria marcadas por títulos que lhes atribuem um caráter
narrativo, épico e autobiográfico, articula um discurso sobre o erótico e o feminino. O desenho
de suas esculturas são metonímias do desejo.
Boiuna, por exemplo, tem seu corpo coberto por detalhes que se repetem, lembrando bocas
ou vulvas. A própria Maria descreve sua obra, personagem fêmea, cobra-monstro e gênio do mal:
"É Boiuna, em suas rondas proféticas, matando homens-Boiuna com suas bocas inume-
ráveis, chupando o sangue deles, secando sua força. Boiuna, o espectro de cada gozo proibido,
de cada êxtase roubado. A vingança dos deuses!"6
A obra Cobra grande, da mesma série, apresenta uma forma ainda mais ornamental, com a
deusa-cobra sustentada, enroscando-se e dependurando-se entre dois pedestais orgânicos, que
lembram plantas, árvores e raízes submersas. Assim, Maria Martins descreve a personagem:
"[ ... ] é a rainha de todas as deusas da Amazonia. É a deusa que manda a noite para o
mundo, para que a luz do dia não machuque seus olhos quando ela for visitar seu reino, a
imensa e desconhecida Amazonia. Ela tem a crueldade de um monstro e a docilidade de uma
fruta silvestre."
Ao contrapor crueldade e doci lidade, Maria Marti ns parece comentar sua própria personali-
dade. Poderfeminino e erotismo parecem somar-se na obra com a temática da solidão intrínseca
do ser humano, resultante de um desejo constantemente insatisfeito e a impossibilidade de con-
cretização de uma fusão real dos corpos. Nesse universo estão esculturas que exibem "abraços

290 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


vazios". São obras como, por exemplo, Sem eco, de
'943 e Saudade, de '944, em que braços se arre-
dondam e se transformam em espirais tortas,
enroscando-se numa desesperada tentativa de
abraçar alguém. Nesses labirintos ocos do desejo,
os braços permanecem sós.

Como em toda a obra de Maria, em que cada forma


apresenta uma miríade de conteúdos, Sem eco e Sau-
dade também aludem a membros do corpo humano,
em busca de uma completude inatingida. As formas
longas, arredondadas e entrelaçadas, presentes nas
obras, lembram órgãos internos do corpo, como
intestinos, vísceras.
Na escultura Não te esqueças nunca que eu venho
dos trópicos, de '942, braços femininos-a marca do
gênero aparece apenas por meio de um par de pro-
tuberâncias que lembram seios-também se apre-
sentam estendidos e vazios. De seu ventre, brotam
cinco formas alongadas, que parecem chamas de
fogo. Elas podem ai udi r à história de vida da artista,
que teve cinco filhas, duas delas mortas ao nascer.
De um universo de obras que comentam a
impossibilidade de uma fusão plena entre os seres,
Impossível é uma das mais representativas. A obra,
em suas diferentes versões-com ou sem braços-,
contrapõe dois seres, um macho, outro fêmea, cuja
aproximação é detida por formas que lembram ten-
táculos pontiagudos, chifres ou espinhos, que bro-
tam de suas cabeças. Os personagens são estranhos, inclassificáveis, mas o sentido da cena não
deixa dúvidas: trata-se de um comentário chocante sobre a impossibilidade de união.
Na evolução do trabalho de Maria Martins, animais como aranhas e, particularmente,
cobras saem do universo das lendas amazônicas para penetrara mundo simbólico do desejo.
A cobra, em obras como La femme a perdu san ombre [A mulher perdeu sua sombra], de '946, e
However [No entanto], de '944, torna-se um símbolo recorrente em suas esculturas, carregado
de múltiplos significados, como sabedoria, liberdade, sexualidade e vínculo com a realidade.
La femme exibe um corpo longilíneo de mulher. De sua cabeça saem duas serpentes. A ima-
gem da mulhercuja liberdade passou dos limites-sua sombra, ligação com o chão, desapa-
rece-é simbolizada por duas serpentes que saem de sua cabeça, provavelmente aludindo a
seus pensamentos libidinosos.
Howeuer exibe a cobra, serpente do desejo, aprisionando um corpo de mulher, enrolando-se
a ele e comprimindo-o. Em sua versão mais monumental, de '947, que recebe no título dois
pontos de exclamação, However !l, a cobra agarra as pernas de mulher em direção ao chão,
enquanto, de sua cabeça, saem duas asas. A obra confronta duas forças opostas: a liberdade da
imaginação pelas asas e a vida mundana, que a limita e aprisiona, pregando-a ao chão.
However Entretanto 1944 bronze 130x24x32,5cm coleção Dalal Achcar, Rio de Janeiro

291 Maria Martins Katia Canton


Na mesma linhade apropriação de imagens de animais que se materializam em espectros
do desejo humano está a pequena obra Aranha, de 1946. Com suas patas entrelaçadas e protu-
berantes, a Aranha de Maria Martins apresenta formas que lembram uma fusão de membros
humanos. Espelha também a natureza canibal associada ao próprio animal, cujas fêmeas devo-
ram seus machos depois da cópula.
Com o passar do tempo, sobretudo a partir de 1950, coincidindo com a volta de Maria
Martins ao Brasil e com o florescimento da influência construtiva no país, certas obras da artista
parecem caminharem direção à abstração. Apesardisso, numa aparente negociação de opostos,
a artista continua manipulando uma forte carga simbólica e narrativa, que transforma cada
uma de sua obras em mitos que comentam a história humana.
A obra A soma dos nossos dias, de 1954-55, é um exemplo desta fase, em que a escultura se
torna o totem de um ritual misterioso sobre o tempo e a feminilidade. A obra apresenta um
enorme esqueleto que desemboca, em seu topo, numa pequenina "cabeça", com uma forma
que lembra um botão de flor ou uma vulva. Aqui, no contraste entre a solidez implacável do
esqueleto abaixo e a delicadeza da forma acima, estruturada em camadas de contornos, Maria
tece um poético comentário sobre a sexualidade feminina, a criação da vida e o tempo que passa.
Impossível [Impossible] 1944 bronze 79x80x47cm coleção Museu de Arte Modern a do Rio de Janeiro

292 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Marginalidade e escritura feminina
Enquanto nos Estados Unidos dos anos 40 Maria Martins havia experimentado reconhecimento
e cumplicidade do meio artístico, particularmente pelos artistas ligados ao circuito surreaiista,
em sua volta ao Brasil, nos anos 50, a artista passa a sofrer uma certa hostilidade.
Diferentemente de uma artista como Tarsila do Amaral que, nos anos 20, volta da França,
estimulada por um movimento coletivo para a construção de um pensamento artístico, capaz de
compreender e reapresentar de forma inovadora a dinâmica de valores culturais brasileiros,
Maria Martins, em seu retorno ao país, não possui ou compartilha de compromissos para a
criação de um discurso que capte uma renovada identidade brasileira.
A marginalização de Maria Martins deve-se ao fato de que, nos anos 50, a artista criava
formas brotadas de um impulso emocional, anti-racionalista, alheias a um compromisso com
a representação de uma paisagem "brasileira. Sua liberdade e vocação para talhar narrativas de
cunho pessoal dentro de um universo mítico e mágico chocaram-se com um contexto em que,
partindo de influências internacionais, sobretudo trazidas pela I Bienal de Arte de São Paulo, em
1951, o Brasil engendra um enorme interesse pela arte abstrata e construtiva.
Na verdade, Maria Martins foi uma das personalidades que ajudaram a pensar e concre-
tizar a I Bienal. Em sua primeira edição, Maria participou da mostra como artista brasileira
convidada-única mulher-ao lado de Bruno Giorgi, Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall,
Livio Abramo, Goeldi e Victor Brecheret. Na segunda, recebeu o segundo prêmio da Bienal e, na
terceira, em 1955, o primeiro prêmio de Melhor Escultora Brasileira. Na mostra de 1955, ao lado
de Maria expõem artistas diretamente ligados à arte concreta, que já se estabelecera consisten-
temente no país, como Lygia Clark, Lygia Pape, Luiz Sacilotto, Maurício Nogueira Lima, Geraldo
de Barros, WaldemarCordeiro, Fiaminghi eJudith Lauand.
Em 1956, por ocasião de sua exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pre-
vendo a severidade de uma crítica modernista em relação a seu trabalho, Maria Martins escreve
em seu catálogo:
"Pouco importa essa ou aquela forma de expressão desde que o artista transmita a men-
sagem que é a sua e em seu idioma próprio, e não use essa espécie de 'modismo', muitas vezes
responsável pela grande pobreza de artistas de real valor. Para melhor me explicar diria que,
para mim, quando em uma pintura ou escultura ressalta à primeira vista a escola ou o movi-
mento a que se pretende filiar o seu autor, sem que tal escultura ou tal pintura desperte maior
interesse de admiração ou mesmo de repulsa, essa obra não passa de 'modismo' e morrerá,
ainda que conheça sucesso momentâneo."
Mário Pedrosa, em 27 de abril de 1957, publica no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, uma
crítica intitulada "Maria, a escultora", descrevendo seu trabalho:
"Os volumes na sua escultura, em bronze, metal polido ou madeira, não têm consistência,
articulação ou hierarquia de planos. Tendem a igualar-se uns aos outros, tratados como se
fossem apenas uma superfície escorrida ou uma superfície porosa [... ] Em fases posteriores,
os volumes maciços esvaziam-se, abrem-se brechas neles e o espaço circundante tende a
penetrá-los."
Contrariamente à crítica, as construções de Maria Martins não seguem comprometimentos
formais. Nascem, ao contrário, de uma necessidade íntima de dar corpo a narrativas pessoais
sobre a natureza da vida humana.
A arte de Maria Martins parte de uma sensibilidade marcadamente feminina. Manipulando
universos culturais e estéticos híbridos, a artista empresta e rearranja elementos distintos, como
a exuberância nativa de um Brasil imaginário, a atitude onírica e dramática do surrealismo

293 Maria Martins Katia Canton


europeu, e o gosto pelo ornamentalismo, oriundo de países pelos quais mantém um interesse
particular, como a índia e o Tibete?
Suas formas desafiam os limites entre figurativo e abstrato, situando-se em um limiar,
hoje manejado com naturalidade pela arte contemporânea. Cada obra torna-se matéria bruta,
moldada numa miríade de conteúdos, apropriando-se de símbolosjá repletos de um pré-signi-
ficado-como cobras, retiradas de uma mitologia da floresta amazônica-para transformá-los
em sinistros e atraentes comentários sobre a condição humana.
No amálgama entre o humano, o animal e o vegetal, Maria Martins constrói uma reserva
biológica própria, capaz de, em sua si mbiose metamórfica, captar e si ntetizar aspectos da vida,
em sua carnalidade, dor, solidão, erotismo e evanescência.
A artista lida com sua arte como discurso, infiltrando-a de textos, poemas e títulos, que a
imbuem com uma literalidade emblemática da arte contemporânea deste final de século. Nesse
sentido, tal como aconteceu recentemente com Louise Bourgeois 8 , é preciso realinhar Maria
Martins dentro da história da arte ocidental, que praticamente a ignorou. Para isso seria
necessário, no entanto, revere redefinir os próprios cânones dessa mesma história.
I<atia Canton

1. Nesse momento, concretiza-se a mudança na arte de Maria Duchamp: a biography, de Calvin Tomkins, Nova York: Henry
Martins. Enquanto sua primeira exposição, na Corcoran de Holt, 1996, capítulo 15, e no artigo "The bachelor's quest", de
Washington, exibia esculturas puramente figurativas, feitas Francis M. Nauman, publicado na revista Art in America, de
em materiais diversos-gesso, madeira, terracota e bronze- setembro de 1993.
com temas retirados de um Brasil nativo-Vara, Samba-, 6. A obra Boiuna, inicialmente pertencente à coleção pessoal
além de temas bíblicos-Cristo, Sa/omé-e outros, retirados de Nelson Rockefeller, tinha destino desconhecido (ver catá-
de sua vida pessoal, as mostras nova-iorquinas na Valentine, logo da mostra Maria Martins, realizada na galeria André
a partir de 1942, apresentam formas oníricas, de inspiração Emmerich Gallery, de Nova York, em março de 1998). Apenas
surreal, consistentemente realizadas em bronze. com a presente pesquisa, preparatória para a XXIV Bienal, é
2. Retirado do texto de apresentação que Breton escreveu que a obra foi localizada. Boiuna (1942) pertence hoje ao acer-
para o catálogo da exposição de Maria na galeriaJulien Lévy, vo do Museu das Américas, de Washington, que até então
em Nova York, em 1947. tinha a obra catalogada como Sem título. Nessa descoberta,
3. Maria Martins foi incluída na mostra de 1947, Le surréalisme, devo agradecer a ajuda preciosa de Nair Kremer e o apoio de
é citada no livro de Breton, Le surréalisme et la peinture, Paris: André Corrêa do Lago.
Gallimard, 1965, que também escreveu textos de apresen- 7. Por ocasião de Amazonia, um crítico norte-americano apon-
tação em catálogos de exposições da artista. tou na obra da artista a influência do ornamentalismo indiano,
4. Enquanto Amazonia, de Maria Martins, foi um sucesso co- somado à escola de Lipchitz (ver texto de Francis M. Nauman
merciai, nenhuma das obras de Mondrian foi vendida. No para o catálogo da exposição Maria Martins, realizada na
final da mostra, Maria comprou a tela Broadway boogie-woogie galeria André Emmerich Gallery).
por 800 dólares. Sua intenção era doá-Ia imediatamente ao 8. Louise Bourgeois compartilha várias características com
MoMA de Nova York, mas Alfred Barr Jr. inicialmente não Maria Martins. Ambas vão viver nos Estados Unidos na mesma
aceitou a doação. Foi com a aj uda de Nelson Rockefeller que época e se relacionam com o meio artístico nova-iorquino.
a doação foi finalmente realizada. Hoje é uma das obras mais Ambas constroem imagens míticas a partirde questões auto-
populares do acervo do museu. biográficas ligadas ao desejo e à condição feminina, utilizan-
5. Mais informações sobre o relacionamento entre Maria do, inclusive, uma iconografia coincidente, como é o caso das
Martins e Marcel Duchamp podem ser encontradas no livro aranhas.

294 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


curadoria Katia Canton

Maria Martins: the woman has


lost her shadow
Maria, the girl from Minas Gerais, the daughter of a minister, schooled in the Colégio Sion;
Maria, the pianist, the mother and wife; Maria, an ambassador's spouse and a citizen ofthe world;
Maria, the sculptor who in the 1940S dazzled the European and American art world; Maria, the
muse ofBreton's and Duchamp's surrealism; Maria, the art promoter who contributed to the
creation ofthe first Bienal de São Paulo and the Museum ofModern Art in Rio de Janeiro; Maria,
the writer and mature woman who left the trace ofher cosmopolitan life in her books and articles.
It is not one, but many Marias who, like the scattered pieces of a puzzle ultimately con-
verge, at the end of this twentieth century, to reveal an artist of uncommon originality, boldness
and talento
Maria de Lourdes Alves was born in 1894 in Campanha, a town in the south of Minas
Gerais, where she was raised for a traditional family-life role: she studied piano, married the his-
torian and literary critic Otávio Tarquínio de Souza and had a daughter. She changed her name
to Maria Martins when she married again, this time to the Brazilian ambassador Carlos Martins,
with whom she lived, starting in 1926, in Quito, Paris, Tokyo, Copenhagen, Brussels and Wash-
ington. She became known as Maria onlywhen she moved to Washington in 1939, to follow her
husband on his appointment as ambassador to the United States until 1948. And it was then that
she began to simply sign as "Maria" while her works earned a reputation for their sensuous
forms and for the exuberance with which they evoked a distant and exotic Brazil.
Maria Martins began a fruitful career in the United States with her first solo shaw at the
Corcoran Gallery in Washington in 1941. That sarne year, after pursuing training with the Belgian
sculptor Oscar Jespers in Brussels, she went on to study with Jacques Lipchitz and Stanley William
Hayter in New York, where she rented an apartment.
The art world in New Yorkat the time was populated by key artists ofthe European avant-
garde who had emigrated to the United States during the Second World War. Itwas through con-
tact with these artists that Maria's work assumed a new shape and content, incorporating
surrealist elements.
During her second exhibit at the Valentine Gallery in New York in 1942, Maria met André
Breton. That sarne year, Breton introduced her to a group of artists connected with surrealismo
The group included artists such as Michel Tapie, André Masson, Yves Tanguy, Max Ernst and
Marcel Duchamp.l
"[ ... ] it was the Amazon itself which sang in her work that I had the joy to admire in N ew
York in 1943. With all its voices from time immemorial, it sang of the passion of man, from birth

295 Maria Martins Katia Canton


until death, condensed as it were, in symbols more all-encompassing than all others [... ] Maria
better than no one, was able to tap into the primitive source ofher origin, and draw forth wings
and flowers, owing nothing to sculpture, past or present[ ... ]"2 Breton's text, written for one of
Maria' s shows in New York, is emblematic of the charm that her work exercised on the surrealist
aesthetic ofthe 1940S in the United States.
Maria Martins's artistic praduction from 1942 on marks precisely her cultural difference
vis-à-vis her Eurapean and American colleagues. This difference is clearly outlined in the per-
sonal character of some titles ofher works such as Não te esqueças nunca que eu venho dos trópicos
[Don't ever forget that 1 am from the tropics], as well as in the use of icons fram the Brazilian
religious and narrative popular traditions, in works such as Yemanjá, Boiuna, Cobra grande, and
Yara which were shown at the artist's Amazonía exhibit in the Valentine Gallery in 1943.
The works fram that period weave the image of a staged "Brazilianness." They embody the
nostalgia for a primeval exuberance and sensualitywhich took hold ofthe European imagination.
They also carry the mark of discomfort brought about by the conjunction ofthe image ofBrazil,
her country of origin, as a land experienced in reallife, and the primitive and imaginary Brazil of
the Amazon legends, a depository ofimages of wildlife symbolizing desire.
And indeed the freedom with which she delves into and emerges fram diverse aesthetic and
cultural worlds, marked bya deeply personal, intuitive and emotional narrative imprint, identifY
Maria's work with surrealism fram the very beginning. Fram the 1940S on, Maria took part in the
main exhibits connected with the movement. For instance, she exhibited at the major show Le
surréalísme, organized by Breton at the Maeght Gallery in Paris in 1947, and she was included in
several Breton's texts. 3
ln the United States, the European and the American avant-garde, nurtured by surrealist
and abstract trends, interacted in a natural way. ln 1942, Marcel Duchamp and André Breton
organized the show Fírst papers of surrealísm, in New York. Concurrently, they frequented Peggy
Guggenheim's newly-opened gallery, Art ofthis Century, where, for the first time is exhibited
the work of]ackson Pollock, an artist who would become one ofthe pivotal forces of abstract
expressionismo Another example of the interaction of artistic languages took shape that sarne
season in 1943, when the Valentine Gallery showed Maria Martin's Amazonia, side by side the
paintings ofPiet Mondrian. Next to dramatic and narrative works such as Cobra grande, Yemanjá
and Boíuna, the Dutch artistwho had moved to NewYork in 1940 showed the paintings fram his
New York series, which use only primary colors and geometrical shapes transformed into pulses
oflight, color and movement. 4

Our Lady 01 desires


Among the stories that traverse the work and, above all, the life of Maria Martins is her involve-
ment with Marcel Duchamp. Aside fram their social and artistic interaction, Maria and Duchamp
had an intense love relationship. Duchamp met the artist upon his arrival in New York in 1942,
and since then his encounters with Maria were frequento Two well-known works by Duchamp
were inspired byand dedicated to his "impossible bride": Paísagefautlf[Faulty landscape] fram 1946
and Étant donnés, one ofhis referential works executed secretly thraughout a period of twenty years
fram 1944 to 1966. The matter and the meaning ofpaísagefautlf, a raised drawing, made on a
fluid material over black velvet, was always a mystery to critics and researchers, until, in 1989, as
a result of an exhibit in Houston, Texas, it was discovered that the material used was sperm,
prabably Duchamp's own. Paisagefautlf, was therefore an homage to the woman that the artist
loved but whom he could not marry, because she had chosen to remain as the wife of the Ambas-

296 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


sador Carlos Martins. The installation Étant donnés, was originally called Étant donnés: Maria, the
watetfall and the gas oflightíng, as can be inferred from the initial studies and drawings. The work
shows a female nude, lying with splayed legs in a state of abandonment. ln the '50s the work was
modified. The tide was changed to Étant donnés: 1St the watetfalI, 2nd thegas oflightíng. The color
of the anonymous woman's hair, which originally was black like Maria's, was changed to
blonde, closer to that ofTeeny's hair, whom Duchamp married in 1954.
ln one of the many letters that he used to send to the artist, Duchamp would refer to Maria
as notre-dame des désírs [our lady of desires]. 5 ln fact, in Maria Martins, desire goes beyond letters
and other limits of personallife, to permeate her entire work.
The artist created a remarkable amalgam, where men and women, animaIs, forests and
swamps appear to echo sensuality. She manipulates images, imbuing them with desire, violence
and Iyricism and in so doing, ascribing to them a mythical condition. ln particular, bronze is
treated in such a way that through autonomous nuances, it replicates the organic nature, the tex-
tures and porosity ofthe human skin and ofnaturaI sapo
Sem eco [Without an eco] 1943 bronze 64x53x33cm coleção Geneviêve e Jean Boghici, Rio de Janeiro

297 Maria Martins Katia Canton


Bach one ofher works, most ofwhich are marked by titles that confer them a narrative, epic
ar autobiographical character, articulates a discourse on the eratic and the feminine. The design
ofher sculptures are metonymies of desire.
Boíuna, for example, has its body covered by recurring details reminiscent of mouths ar vul-
vas. Maria herself describes her work as a female character, a cobra-monster and an evil spirit:
"Boiuna in her praphetic raunds, killing men-Boiuna with her countless mouths, sucking
their blood, draining out their strength. Boiuna, the specter of every secret pleasure, of every
stolen ecstasy. The revenge ofthe godS!"6
The piece Cobra grande, fram the sarne series, presents an even more ornamental image: the
cobra-goddess supported by, wrapped araund and hanging fram two organic pedestaIs, which
evoke plants, trees and raots plunged in the soil. This is how Maria describes the character:
"[ ... ] she is the queen of all the Amazon goddesses. She is the goddess that summons
night to the world, in arder to stop the light of day fram harming her eyes whenever she visits her
realm, in the immense and unknown region of the Amazon. She has the cruelty of a monster and
the tenderness of a wild fruit."
By counteracting cruelty against tenderness, Maria Martins appears to be commenting on
her own personality. Feminine power and eraticism seem to converge in a work whose theme is
the intrinsic solitude ofthe human being, resulting fram a permanently dissatisfied desire and
Não te esqueças nunca que eu venho dos trópicos [Don't ever forget that I come from the tropics] 1942 bronze 95x120x70cm
coleção Sergio Fadei , Rio de Janeiro

298 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


the impossibility of consummating the fusion of two bodies. Sculptures that exhibit "empty
embraces" are in that realm. ln works such as Sem eco [Without an echo] , Of1943, and Saudade
[Longing], of1944, arms encircle space, transforming themselves into twisted spirals, wrapped
araund a desperate desire to embrace someone. ln those hollow labyrinths of desire, the arms
remain alone.
As in all ofMaria's works, where every shape unlocks a myriad ofmeanings, Sem eco and
Saudade also allude to parts of the human body in search of unattainable completion. The elongat-
ed, intertwined and raund shapes in these works are reminiscent of intestines and other bodily
organs.
ln the sculpture, Não te esqueças nunca que eu venho dos trópicos, of 1942, feminine arms-the
imprint of gender appearing barely thraugh a pair of pratrusions that mimic breasts-also appear
to be reaching out emptily. Five elongated shapes project fram its bosom, recalling flames of
fire. They could be references to the artist's life, who gave birth to five girls, two of which were
born dead.
ln a universe ofworks that comment on the impossibility of a complete fusion between two
beings, Impossível [lmpossible] is one ofthe most representative ones. This work, in its two ver-
sions-one with arms, the other without-,sets two beings in contrast with each other. One is
male, the other female and their contact is barred by forms reminiscent of pointed tentacles,
nails or thorns which jut out of their heads. The figures are bizarre, unclassifiable but the mean-
ing of the scene is unequivocal: it is an appalling comment on the impossibility of a union.
ln the evolution of Maria Martins's work, animaIs such as spiders and, in particular,
cobras, depart fram the universe ofthe Amazon legends to penetrate the symbolic world of desire.
The cobra, in works such as Lafemme a perdue son ombre [The woman has lost her shadow] of
1946, and However, of 1944, becomes a recurring symbol in her sculpture, charged with multiple
meanings, such as wisdom, freedom, sexuality and the link with reality.
Lafemme, shows the elongated body of a woman. Two snakes emerge fram her head. lt is
the image of a woman whose freedom went beyond the limits. The shadow that links her to the
graund disappears and her head is crawned by the images of the two snakes, prabable allusions
to her lustful thoughts.
However shows a cobra, the snake of desire, choking the body of a woman, wrapping itself
araund her and strangling her. ln its monumental version fram 1947, two exclamation points are
added to the title, However !!, and the cobra seizes the legs ofthe woman dragging them to the
graund, while a pair of wings spring fram her head. This piece sets in contrast two opposed
forces: the liberation of the mind and the imagination symbolized by the wings, and worldly life,
which limits and restricts it, nailing it down to the graund.
The small piece Aranha [Spider], of 1946, follows the sarne line of image appropriation,
where animaIs embody specters ofhuman desire. With legs intertwined and prajected outwards,
Aranha exhibits forms reminiscent ofhuman limbs. lt also mirrars the cannibal nature associated
with these insects, whose females devour the males after copulation.
With the passage oftime, and particularly fram 1950 on, Maria Martins's work appears to
head toward abstraction. This coincides with her return to Brazil and with constructive influences
in the country. ln spite of this, and in an apparent negotiation of opposites, Maria continues to
manipulate a heavy dose of narrative and symbolism, which transforms each one ofher works
into myths that comment on human history.
The work A Soma dos nossos dias [The sum of our days] Of1954-55, is an example ofthis
phase in which sculpture becomes the totem of a mysterious ritual about time and femininity.

299 Maria Martins Katia Canton


This work shows an enormous skeleton which ends in a tiny "head" in the shape of a flower bud
or a vulva. Here, in the between contrast the relentless thickness of the skeleton below and the
delicately layered structure of the form above, Maria weaves a poetic commentary on female sexu~
ality, the creation oflife and the passage of time.

Marginality and feminine écriture


Although in the United States during the 1940s, Maria Martins had enjoyed the recognition and
acceptance ofthe artworld, especiallyfrom artists connected with surrealism, when she returned
to Brazil in the 1950S she confronted a certain degree ofhostility.
ln contrast to an artist such as Tarsila do Amaral, who in the '20S returned from France
stimulated bya collective movement which aimed at the construction of an artistic discourse, a
discourse capable of understanding and representing Brazilian cultural values in an innovative
fashion, Maria Martins, upon her return to Brazil, did not share the sarne commitment to the
creation of a modern discourse which would embrace a renewed Brazilian identity.
Maria Martins's marginalization was due to the fact that, in the 1950s, the artist created
forms which sprang from an emotional, anti~rationalist impulse, and which were foreign to any
commitment to represent the Brazilian landscape. Her freedom and her vocation to sculpt nar~
ratives with her personal signature within a mythical and magicaI universe, clashed with a milieu
in which, based on international influence, especially the influence brought by the I Bienal de
Arte de São Paulo in 1951, a great interest in abstract and constructivist art was sparked in Brazil.
Maria Martins, was in fact, one of the main thrusts behind the concept and realization of
the I Bienal. ln its first edition, Maria took part in the show as guest artist from Brazil. She was
the onlywoman to show there, next to Bruno Giorgi, Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Livio
Abramo, Goeldi and Victor Brecheret. The second time, she received the second prize of the
Bienal and, the third time, in 1955, she was awarded "Best Brazilian Sculptor." ln that show,
Maria shared the floor with artists such as Lygia Clark, Lygia Pape, Luiz Sacilotto, Maurício
Nogueira Lima, Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Fiaminghi, Flexor and Judith Lauand,
all ofwhom were directly linked to concrete art.
ln 1956, on the occasion ofher show at the Museum ofModern Art in Rio de Janeiro, and
anticipating the harshness ofthe critics vis~à~vis herwork, Maria wrote in her catalog:
"lt doesn' t matter which form of expression an artist uses, as long as the artist successfully
transmits a message ofhis or her own, expressed in his or her own language, refraining from the
use of'fad.' These 'fads' are often responsible for the impoverishment of artists of great value.
ln other words, for me, whenever a painting or a sculpture draws immediate attention to the
school or movement to which the author claims to belong, while not awakening any further
interest, be it of surprise or disgust, that work is nothing more than a 'fad' and it will perish,
even ifit meets with momentary success."
The 27th of April 1957, Mário Pedrosa published in the Jornal do Brasil, in Rio de Janeiro, a
review describing Maria's work entitled "Maria, the sculptor":
"The volumes in her sculpture, in bronze, polished metal or wood, have no consistency,
articulation or hierarchy of planes. They tend to leveI each other out, treated only as if they were
a mere flowing surface or a porous surface [. .. ] ln later phases, the solid volumes are hollowed
out; cracks appear in them, and the surrounding space tends to penetrate them."
ln reality, contrary to what critics say, Maria Martins's constructions do not follow formal
commitments. Theyare born rather out of an intimate need to embody personal narratives about
the nature ofhuman life.

300 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


The art ofMaria Martins springs fram a distinctly feminine sensitivity. Manipulating hybrid
cultural and aesthetic realms, the artist borrows and rearranges diverse elements, such as the
native exuberance of an imaginary Brazil, the oneiric and dramatic stance ofBurapean surrealism
and a liking for ornamentation, typical of countries such as lndia or Tibet, in which she has and
maintains a particular interest. 7
Her forms defY the limits of the figura tive and the abstract, positioning themselves on a
threshold which contemporary art now handles in a skillful way. Bach work becomes raw mate·
rial, molded with a myriad of contents, apprapriates the symbols charged with a previous mean·
ing-such as cobras, drawn fram the mythology of the Amazon rainforest-and transforms
them into sinister and beckoning commentaries on the human condition.
ln the amalgam between humans, plants and animaIs, Maria Martins builds a biological
preserve ofher own, which, in its metamorphic symbiosis, is capable of capturing and synthe·
sizing the aspects oflife in its sensuality, pain, solitude, eraticism and evanescence.
The artist confrants her art as a discourse, permeating it with texts, poems and titles which
imbue it with a literariness emblematic of contemporary art at this turn of the century. ln that
sense, as recently occurred in the case ofLouise Bourgeois, 8 it is necessary to realign the position
ofMaria Martins in the history ofWestern art, which practically ignored her. For this purpose, a
revision and redefinition ofthe canons of art history would be indispensable.
Katía Canton. Translatedfrom the Portuguese by Odíle Císneros.

I. This moment marks a change in the art of Maria Martins. biography, New York: Henry Holt, 1996, chapter IS, and in the
While during her first exhibit at the Corcoran Gallery in article "The bachelor's quest," by Francis M. Nauman, pub-
Washington, she was showing exclusively figurative sculp- lished in Art in America, September 1993.
tures, ma de of different materiaIs such as plaster, wood, 6. The whereabouts ofthe piece entitled Boíuna, initially part
terra-cotta and bronze, and dealingwith themes from a native of Nelson Rockefeller's personal collection, was unknown
Brazil (Yara, Samba) as well as Biblical themes (Chríst, Salome) until recently (see the catalog of Maria Martins's show that
and themes from her personallife, the New York shows at the took place at the André Emmerich Gallery in New York in
Valentine from 1942 on, present oneiric forms of surrealist March 1998). It was only through recent research done in
inspiration, consistently executed in bronze. preparation for the XXIV Bienal, that the piece was located.
2. From the text written by Breton for the catalog ofMaria's Boiuna (1942) belongs today to the Museum ofthe Americas in
exhibition at the Julien Lévy Gallery in New York in 1947. Washington, and had recently been cataloguedas "Untitled."
3. Maria Martins was included in the 1947 show entitled Le This finding was possible thanks to the invaluable help of
surréalísme, and is quoted in Breton's book, Le surréalísme et la Nair Kremer and the support of André Corrêa do Lago.
pínture, Paris: Gallimard, 1965. Breton also wrote texts for sev- 7. On the occasion ofAmazonía, an American critic pointed out
eral catalogs ofher exhibits. the influence ofHindu ornamentalism and the school ofLip-
4. While Maria Martin's Amazonía was a commercial success, chitz in the work ofMaria Martins (see Francis M. Nauman's
none ofMondrian's works were soldo At the end ofthe show text for the catalog ofMaria Martins's exhibition at the André
Maria bought Broadway boogíe-woogíe for 800 dollars. Her inten- Emmerich Gallery).
tion was to donate it immediately to MoMA in New York, but 8. Louise Bourgeois and Maria Martins share several common
Alfred Barr Jr. initially did not accept the donation. It was traits: they both lived in the United States at the sarne time
thanks to the help ofNelson Rockefeller that the donation and they both interacted with the New York art world and they
was finally accepted. Today, it is one of the most popular both created mythical images based on autobiographical
pieces in the Museum's collection. material and the female condition, making use of a similar
S. More details about the relationship of Maria Martins and iconography, as in the case of spiders.
Marcel Duchamp can be found in Calvin Tomkins' Duchamp: a

301 Maria Martins Katia Canton


curadoria Justo Pastor Mellado

Matta: mal-estar da origem;


origem do mal-estar

Na composição de minha ficção brasileira, a Semana de Arte Moderna, a Rebelião dos Tenentes
e a fundação do Partido Comunista formam o triângulo paradigmático de uma modernidade
cuja constituição é regida pelo "witz" [piada] trotskista, segundo o qual a história segue um
desenvolvimento combinado e desigual. As desigualdades combinam-se para dar lugar a um
complexo estruturado de relações sociais, em que a arte pode fazer o papel de sintoma, seja o
de registrar, seja o de desfalecer, podendo garantir a continuidade ou permitir a irrupção da
descontinuidade de uma formação simbólica determinada.
No ano de 1922, em São Paulo, acontece a Semana de Arte Moderna. Existe aqui um gesto
de inscrição da classe dominante. A arte sanciona a vaidade estabelecida dos setores ascen-
dentes. No Chile, no ano de 1927, acontece a ditadura do generallbanez. Há historiadores que
atribuem a esse governo uma época de violência modernizadora essencial para a organização
do estado chileno até o catastrófico embate de forças em 1973. No plano da pintura e da escul-
tura, essa ditadura teria efeitos organizacionais de grande porte. Existe aqui um gesto enfraque-
cedor. Os setores ascendentes punem a vaidade constituinte da arte.
Influenciado por um ministro que ocupava dois ministérios-Fazenda e Educação-,
o generallbanez fechou a Academia de Pintura e enviou uma delegação de estudantes e profes-
sores dos cursos terminais à Europa, para que estudassem 7 matérias ligadas às artes aplicadas.
O plano consistia em que, ao voltarem, estes artistas aplicados estabeleceriam as práticas
adequadas para desenvolver a indústria gráfica e as artes decorativas. Na conjuntura chilena do
iníciodo século, a classe política e o empresariado manifestam uma fobia em relação às Belas-
Artes, o que'coincide perfeitamente com uma política social e econômica de caráter marcada-
mente antioligárquico. Se até esse momento, a Academia de Pintura atendera-mais mal do que
bem-aos interesses de representação do interiorismo da oligarquia, o projeto da ditadura de
Ibanez procurava destruir tais efeitos e direcioná-Ios à organização interna da classe média
ascendente. A ditadura se mantém até 1931.
No ano de 1932, a Universidade do Chile incorpora os despojos da Academia de Pintura em
sua instituição, constituindo a Faculdade de Belas-Artes. É muito difícil pensarem um referencial
de modernidade neste contexto. Se em São Paulo, a Semana de Arte Moderna significa um
avanço-já no ano de 22-no Chile, o fechamento da Academia de Pintura foi um recuo. A
recém-criada Faculdade-uma década mais tarde-devia recolocar, em pé, a Academia, sob a
bandeira de uma arte modernista tardia, cujos efeitos de transferência só começam a aparecer
após os anos 50.
Roberto Matta fez seus estudos de arquitetura na Pontifícia Universidade Católica do Chile,
durante o período da ditadura de Ibanez. Sobressaiu-se como estudante ao apresentar, no ano

302 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


\

.- ------".-- -

de 1932, uma tese de graduação-la liga de las religiones [A liga das religiões]. Não há cópia
desse docu mento nos arq uivos da Universidade, tornando-se con hecida por meio do teste-
munho de amigos íntimos 1 •
São poucas as informações confiáveis sobre os anos universitários de Matta. Menciona-se
o fato de que teve aulas de pintura com um "pintor cubista" chileno, Hernán Gazmuri, que
estivera na França e praticava um "cubismo" que consistia em geometrizar os temas clássicos.
Segundo a opinião de alguns, esse teria sido o único vínculo de Matta com o ensino das artes
plásticas, o que não é verdade. No Chile, o ensino de arquitetura inclui o ensino de artes plásticas.
Era preciso reconstruir o ambiente de artes plásticas no qual Matta se desenvolvia, pois isso
daria indícios de sua primeira relação com o desenho. Mas, sobretudo, há de se mencionar sua
amizade temporã com o arquiteto Sergio Larraín García-Moreno, um dos fundadores do moder-
nismo arquitetônico chileno, que introduziu as idéias da Bauhaus nos currículos de estudo de
arquitetura, a partirda reforma liderada porele mesmo, desde o início da década de 50.
É necessário evidenciar a importância de sua amizade com Sergio Larraín García-Moreno:
esse arquiteto fez seus estudos secundários na França e na Suíça. Em Paris, conheceu Vicente
Huidobro, que o apresentou socialmente a alguns artistas de seu círculo, o que representa um
contato referencial propício a seu regresso ao Chile, em 1924, quando ingressa na Faculdade de
Arquitetura. Em vista de sua educação e eminente posição de sua família, lhe é permitido com-
pletaro curso em três anos e meio. Forma-se em 1927, ano em que Matta ingressa na mesma
Escola. No ano de 1929, Larraín torna-se professore provavelmente acompanha muito de perto a
Hate commanded by love Ódio governado pelo amor 1943 grafite e crayon colorido sobre papel [graphite and colored crayon
on pape r] 56x71cm coleção particular [private collection] cortesia Latin American Masters, Beverly Hills

303 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


elaboração da tese de Matta em 1933. Creio que Matta,
por sua vez, conhece a tese de Larraín, um projeto para
uma estação ferroviária, em que concebe-por exemplo
-uma sala de estar de 34 metros de comprimento e 75
de altura. Não existiam, no Chile, edificações como
essa, com exceção da cúpula do Museo de Sellas Artes,
de desenho absolutamente "beauxartiano", mas incor-
porando elementos da arquitetura metálica francesa. A
cúpula do projeto de Matta teria esses antecedentes. E
as relações com Larraín devem ter sido uma influência
cultural, porque Larraín era uma das poucas personali-
dades da vida cultural de Santiago com uma perspectiva
próxima à modernidade artística, que deve ter refo rçado
o desejo de Matta de deixar o Chile e desprezar uma
bem-sucedida carreira de arquiteto.
Por meio do testemunho de amigos íntimos, sabe-
se que, nesse momento, Matta teria montado uma loja
de móveis e que ele mesmo desenhava a mobília. Seu
irmão, Mario Matta, se tornará um dos grandes nomes
na área de móveis e antiquários na reforma modernista
do interiorismo no Chile. É provável que Matta tenha
trabalhado para seu irmão, fornecendo-lhe desenhos.
De fato, é nessa loja de móveis que fabrica, em madeira, a maquete do projeto de sua tese. É
importante mencionar que Matta é reconhecido como decorador de sucesso; isso cria um
impasse, em se tratando do filho de uma oligarquia em crise, que tem para si a incumbência de
remodelar internamente as condições habitáveis de uma facção social que substitui sua classe no
poder. Seu irmão, decorador e antiquário, negocia objetos de origem francesa e inglesa, chegados
ao país na segunda metade do século XIX incorporados ao comércio de antiguidades, em conse-
qüência do progressivo desmoronamento de um modelo de vida que prevalecera até então.
No ano de 1933, Matta embarca para a Europa. A agressão da ditadura de Ibanez contra a
oligarquia criou uma sensação de desarraigamento nas próprias famílias que historicamente
eram referenciais na organização do poder, salvo aquelas que sabem reciclar suas habilidades e
substituem a ruralidade pelas finanças e os novos investimentos na indústria. Nem a crítica
européia nem a norte-americana sabem que, apenas em 1939, foi possível elaborar, no Chile,
um projeto de desenvolvimento industrial consistente, que permitiu configurar uma estrutura
estatal que funcionou até a crise de 1973. Em conseqüência, as transformações das classes
sociais chilenas, na primeira metade deste século, são simbolicamente decisivas para com-
preender as modificações no campo das artes plásticas.
O simbólico modelo chileno devida de uma família de origem hispano-vasco-francesa
entrava em crise 2 • A partida de Matta é um sintoma terminal dessa inquietação. Matta de ixa no
Chile seu círculo familiar, para regressar a sua origem. O arquiteto Larraín o informa a respeito
de um modernismo arquitetônico e plástico, que Matta associa aLe Corbusier. Não é por acaso
que, chegando a Paris, começa a trabalharem seu ateliê.
A oligarquia chilena empreende a montagem de um enclave social e político, assegu rada
Here, Sir Fire, eat! Aqui , Senhor Fogo, coma! 1942 óleo sobre tela [oil on canvas] 142,3 x 112cm coleção The Museum of Modern
Art, Nova York legado de [bequest.of] James Thrall Soby

304 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


por uma referência que está sempre fora, numa origem suficientemente próxima para que possa
resolver sua angústia de filiação. No fim do século, a França fora instituída como referência de
origem. No entanto, é sintomático o fato de que em sua tese de graduação Matta exponha os
termos de outro conflito. Finalmente, ao racionalismo de Le Corbusiere Gropius, Matta opõe o
construtivismo orgânico do corpo feminino, fazendo a analogia da pose com a planta 3 • Esse ato
representa uma rebeldia contra uma arquitetura autopunitiva, da qual Matta manterá distân-
cia, por meio de um modelo de desenho que buscará seus antecedentes na relação entre corpo e
molde, atribuindo à mobília a função de uma moldura que não é uma negação, mas um suporte
de contenção. Na ausência de uma casa-nem o Chile nem a França-, aparece o móvel como a
imagem do futuro-casa 4 • Uma espécie de mobiliarização da corporalidade.
Em 1938, Breton envia, do México, um telegrama à revista Minotaure, recomendando Matta.
No número 11, Matta publica seu texto "Mathématique sensible-architecture du temps".
Trata-se de um texto que reproduz a intensidade da intenção de sua tese de graduação de 1932.
Se, na tese, a zona de conflito se localizava nos planos de planta, no artigo situa-se na curvatu-
ra dos corpos. Mas a mesma ferramenta intervém nas duas zonas: o desenho. Ou seja: o traço
que reproduz o diagrama de um combate pelo futuro-casa do corpo, duplicado pelo futuro-
corpo da casa: o traço como cicatriz de um movimentoS.
Matta leva do Chile apenas a expressão manifesta de uma percepção do mundo natural;
deixa-como lastro-uma percepção do mundo social como um mal-estar que faz parte de sua
viagem. Esse mundo social o reprime em três dimensões: familiar, religiosa e política. Essa
primeira percepção estará na base de um sintoma antropófago invertido.
Alain Jouffroy, no texto do catálogo da retrospectiva no Centro Georges Pompidou (1985),
formula uma hipótese-chave a respeito do tipo de relação que Matta estabelecerá com o Chile,
com sua partida. Matta diz que "est chilien" [é chileno]. Ou seja, um artista que "chie les
liens"6 [defeca os laços]. Ou seja, que expulsa [defeca] as relações. Mas esta expulsão é uma
afirmação de pertinência por anteposição. De tanto expulsar, o que faz é engolir, devorar tudo
aquilo que lhe foi negado. Ou melhor: tal assimilação estabelece uma conexão entre o sujeito e
a terra, sem que exista mediação das relações sociais. Isso implica a negação do sujeito, numa
primeira instância. Porque se alguém confia nas declarações de Matta, há de purificar os
trechos ruins da soma de informações que saturam e retocam as representações de si mesmo,
sobre sua posição na história da arte. Quando ele fala de suas pri mei ras morfologias e dos
títulos de suas obras dos anos 40, faz referência à negação do sujeito no mesmo instante em
que publicamente o afirma. É preciso estabelecer a noção de sujeito que o mantém. Não se trata
de negação afirmativa mediante o devorar o outro. Na medida em que existe apenas natureza,
não existe Outro, o que resulta ser uma boa robinsoneada. A natureza segundo o Roberto Matta
dos primeiros tempos é um suporte de intervenção direta no qual se reconhece como penetrante-
exalado? Assim, o que faz é reproduziro ímpeto colonizadorde sua raça. Sintoma de seu desfa-
lecimento, o artista Matta é a imagem de seu retorno à origem da força penetrante, que deve irem
busca da força perdida. A "genitalidade" de seus propósitos é capaz de exorcizar o fantasma da
fraqueza. O Chile é um país cujo território é representado, no mapa, como uma dupla
ambigüidade entre rasgadura (fissura) e ereção.
No Chile, aimagética vulcânica é um lugar comum cultural. A visível vertebralidade da
cordilheira é o suporte de um universo de ilusões poéticas, nas quais o magma e as cristaliza-
ções são de praxe. Essa imagética é o substrato para outros sonhos conceituais que se interligam
com a recuperação do papel do primitivismo na arte contemporânea. O Chile não teria grandes
exemplos etnográficos a oferecer; mas tem uma teluricidade antropomorfizante que permitiria

305 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


falar, especificamente, de subjetivação do mundo natural. Nesse sentido, Matta não negaria o
sujeito, antes, o afirmaria naturalizando-o. Mas seria uma naturalização profunda, na qual
Matta proveria a figuração alucinatória do universo, mediante sua remissão intracósmica 8 •
O motivo explícito de sua saída do Chile, em 1933, é de caráter social. Matta deseja aban-
donar as condições de mal-estar político e familiar, cristalizadas na encenação de uma queda
social. Refiro-me à "queda" da oligarquia. Eleva a figura do fim-de-raça que não se conforma com
a "queda" do referencial paterno e viaja para tornar-se, ele mesmo, um referencial paterno feito à
sua medida. Daí a exacerbação cromática da seminalidade incisiva de sua pintura. Sêmen azedo.
Fantasma de umagenitália água-fortista que corrói a matriz do suporte para engendrara figura.
Assim, pode-se afirmar que em Matta a seminalidade incandescente carrega consigo uma
antropofagia invertida, que reproduz os termos simétricos de uma dinâmica de primeiro comer
e depois vomitar.
Na época em que Matta chegou a Paris, já havia um certo número de artistas chilenos,
que, embora estivessem ligados a alguns membros das vanguardas históricas, faziam-no por
questões particulares e não em termos formais. Existe uma história que considera as relações
sociais entre artistas como plataformas de influência, questão que não é verdadeira. Matta é o
único que mantém relações de razoável hostilidade com os membros do grupo surrealista,jus-
tamente porque eles o reconhecem como irredutível. De fato, a experiência nova-iorquina do
exílio surrealista durante a Segunda Guerra será o cenário de um afrontamento entre Breton e
Matta. Nesse terreno, se Matta teve de suportaro desejo de canibalização dos surrealistas, nos
Estados Unidos experimentou o contrário-foi rechaçado, devolvido e expulso-pela crítica.
A leitura do texto de William Rubin para o catálogo da exposição de Matta, no Musée National
d'Art Modern-Centre Georges Pompidou, é bastante ilustrativa a respeito. Em 1985, Rubin
escreve sobre a situação de 1939, considerando relativo o peso que a crítica fora dos Estados
Unidos atribui a Matta como inspirador e guia dos expressionistas abstratos. No mesmo catálo-
go, Octavio Paz assinala abertamente que, desde sua chegada a Nova York, Matta se encontra
com os jovens pintores americanos e se transforma de imediato em seu guia e inspirador. William
Rubin é cuidadoso demais ao relativizar essa situação e ao rebaixara importância de Matta como
referência para a pintura americana do pós-guerra. Para tanto, trata-o como um eminente mar-
ginai que tem a coragem de ircontra a corrente; que resiste à arremetida orgânica do expres-
sionismo abstrato. Acaba elogiando a iniciativa desta exposição de 1985, que finalmente
permitirá ao público francês conhecer a Matta. Mas, sobretudo, em sua opinião, permitirá aos
artistas jovens descobrir novamente "uma arte que seria uma espécie de comentário simbólico
ilustrado de nossas vidas interiores e das relações interpessoais". Com isso somente repete o
mesmo lugar comum do junguianismo revisado.
Écurioso constatar as hostilidades francesa e norte-americana sobre a autonomia de Matta.
Mas, de qualquer maneira, é este quem estabelece a ponte entre os surrealistas e os pintores
americanos mais jovens. Tendo chegado antes de Breton a Nova York, encarregou-se de montar
sua própria rede de registros. No entanto, o exílio histórico provocara um ressentimento comum
nos meios americanos. Na medida em que não podia ircontra os "históricos" (Léger, Mondrian,
Chagall, Max Ernst ou Dalí), Matta proporcionava um prato mais apetitoso, já que colocava o
corpo no centro da polêmica das transferências. Mais ainda, e é o que incomoda a Rubin, quando
se tenta reconstruir o papel que Matta teve na difusão da técnica do automatismo. O argumento
de Rubin é extremamente eficaz: reivindicação emergente de uma "pintura-poesia" que impres-
siona pela frescura de seu automatismo, para logo estabelecer a condenação, a partir de dois
problemas que o separam definitivamente dos jovens americanos: o ilusionismo espacial e as

306 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


personagens antropomorfas que o conduzem posteriormente rumo a temas de caráter propria-
mente político. Éo que se chama cozinhar uma história à medida dos mitos autofundadores da
cultura plástica norte-americana: cena de antropofagia institucional que, curiosamente, mani-
festa com a antropofagia individual de Matta uma homogeneidade no terreno da inversão;
quer dizer, da devolução (do vômito). O corpo não tolera essa comida. Para os intelectuais não-
marxistizados, a chegada do exílio europeu na conjuntura política e artística americana durante
a Segunda Guerra é uma situação de hostilidade que deve ser sublimada como situação de hospitali-
dade, até o momento em que o aparelho de assimilação de tal corporalidade cultural separe o
joio do trigo. Para o corpo de uma cultura como a norte-americana, o alimento Matta produz os
efeitos de um purgante. Rubin encarrega-se de prescrever-post festum-o regime alimentício
dajovem pintura americana dessa época, a submetendo a um regime brando. A seu ve r, a relação
entre Matta e os jovens pintores explica-se como uma convergência fortuita de itinerários dife-
rentes. Haveria de reconstruir-e como?-a suposta lucidez americana sobre o itinerário a
seguir nesses momentos.
Matta deixa os Estados Unidos em 1948. Terá resistido quase uma década. Para a corporal i-
dade surrealista, o alimento proveniente desse autor havia sido tolerado com a desconfiança
semelhante à do médico em relação ao curandeiro. Isso não podia durar. Por outro lado, a comida
surrealista lhe dava prisão de ventre. Quando Breton escreve La perle est gatée ames yeux . . .em
1944, pretende que Matta participe da tal prisão de ventre. Breton fala das ágatas como conden-
sação de sêmen convertida em pedra simples. Querdizer, matéria vulcânica seca ou água du ra.
As ágatas pendem dos quadros, depositam-se caindo lentamente, recortando sua velocidade
sobre um fundo opaco. O que faz Matta para resisti r a tal canibalização? Dilui a pintura po r
Foeu Foeu 1941 óleo sob re tela [oil on canvas] 55,6 x75,2cm coleção Herta e Pau l Amir, Los Angeles cortesia Latin American
Masters, Beverly Hills

307 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


meio da linha do desenho. É a razão pela qual os desenhos dos anos 40 apresentam o caráter
dissolvente que indica o regresso às águas profundas; mais do que isso, aos núcleos do fogo.
Enquanto Breton o congela (pedra), Matta se vulcaniza (cinzas e lava incandescente).
Roberto Matta não se subtrairá totalmente às determinações esotéricas do surrealismo
deflacionário do fim dos anos 40. Talvez isso se deva a uma relação mais rigorosa com a prática
analítica. Breton sempre se tratou com uma bateria teórica freudiana insuficiente, confundindo o
conteúdo manifesto na escritura automática com o conteúdo latente dos sonhos. Matta tinha
um humor poderoso. De alguma maneira, controlava seu esoterismo mediante um trabalho de
desintegração regulada da linguagem verbal e de uma estratégia gráfica que se consolida na
tensão criada entre o biomorfismo e os rudimentos de perspectiva linear9 • Ou seja, arma dispo-
sitivos de ancoragem que permitem apoiar a multiplicidade de pontos de vista que concorrem
num mesmo quadro. Curiosa medievalização de uma narrativa que foi facilmente posta a
serviço de uma ilustração de processos interiores. Isso nos diz algo mais sobre a candura da
crítica, que sucumbe aos efeitos da incompreensão de Breton para com a psicanálise. Ou
melhor, de sua sujeição inconsciente a um junguianismo que, no mais, dominava o cenário
artístico e para-artístico de Nova York naquele momento.
Na curadoria da presença de Matta na XXIV Bienal de São Paulo, sublinho o interesse de
reconstruir algumas hipótese polêmicas sobre a origem. Por essa razão insisti em escolher e
apresentar, grosso modo, obras entre 1938 e 1945, apesar de ser provável a presença de obras
realizadas em 1996 e 1997, na medida em que algumas delas recuperam a tomada de partido
geral, das obras anteriormente assinaladas 10 •
la novela dei origem [A história da origem] em Matta está ligada a um regresso: seu regresso
à terra-natal (França-Espanha). Não se trata de um "latino-americano" que se hibridiza, mas de
um informante estrutural de um "mediterranismo" pan-naturalista que inverterá suas condi-
ções de digestividade, deixando-se canibalizar parcialmente como um primitivo de procedência
distante. Na verdade, era um exótico que regressava. Só a partir de sua posição eminente no
núcleo familiar-Chile-pode estabelecer um olhar concupiscente que possibilita seu futuro-
boca e ser duplicado por seu futuro-orelha e ser disseminado por seu futuro-sêmen. Boca e orelha
são órgãos de consumo (no sentido de apropriação) do alimento e do Verbo. O sêmen, poroutro
lado, é um veículo de consumo (no sentido de dispêndio). A única maneira de reter a dispendio-
sidade seminal dos verbos reside na crista~ização forçada do núcleo fecundante. Só um flm-de-raça
pode sintomatizare converterem obra plástica o horror da queda. Em sua estadia em Nova York,
suas telas, rapidamente desenhadas, improvisadas, com suas "éclaboussures" de pintura,
foram as que mais interessaram aos jovens pintores americanos. Alguns deles chegaram a
sustentar que se interessavam mais por seus desenhos do que pelas pinturas. Isso se presta a
interpretações que valorizam seu papel na transmissão do automatismo, não como "técnica",
mas como gesto intelectual. O inconsciente não é representável. Apenas verbalizável. A menos
que, como na sempre nascente psicanálise das crianças, os desenhos e diagramas gráficos
sejam tomados como substitutos da fala. Por essa via, então, é possível reivindicar o caráter
pré-sintático do grafismo mattian0 11 , disposto a postular-se como o desejo irrepresentável da
filiação denegada: CHI (E) LlEN. Justo Pastor Mel/ado. Traduzido do espanhol por lilia Astiz.

308 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. "Estudei arquitetura na Universidade Católica. Em meu Corbusier. Em uma viagem recente a Caracas, Matta foi levado
primeiro ano lá, Matta estava trabalhando em seu projeto de por Luis Pérez aramas para "identificar" desenhos de sua
graduação, do qual me lembro muito bem: O templo das reli- autoria na coleção de Patricia Phelps de Cisneros. Uma des-
giões. Sua idéia era de unir cristãos, muçulmanos, judeus e coberta agradável e surpreendente de desenhos feitos em
maometanos em seus próprios templos radiais, que conver- 1938 e por volta desse período, especialmente os que se refe-
giam num templo em comum com uma grande cúpula e um rem à morte de García Lorca. Matta associou-os aos desenhos
pináculo central altíssimo" (Nemesio Antúnez, "Matta", expo- de sua tese de graduação e comentou detalhamente sobre
sição Matta uni verso, Museo Nacional de Bellas Artes de Santi- como Le Corbusier ficou perturbado com seus desenhos de
ago/Museo Nacional de BellasArtes de Caracas, 1991). Inclui a plantas inspirados em desenhos de nus femininos.
descrição do próprio Matta em Entretiens morphologiques ... , 4. "Ce serait un mobilier qui dechargait le corps de tout son
Notebook N 1/41, 1936-1944, Londres: Sistan Limited, 1987, passé, angle droit de fauteuil, qui delaissant I'origine du style
editado porGermana Ferrari: "L'architecture de I'assamblée de ses prédécesseurs, s'ouvrirait au coude, la nuque, épous-
etaiten forme de demi-cercle (colonnade Sainte Pierre) et une sant des mouvements infinis selon I'organe rendre conscient
esplanade était réservée en face pour completer le cercle des- el I'i ntensité de vie", Matta, Entretiens morphologiques ... , P.35.
tiné aux religions du futuro Pour la résidence des délegations 5. "O traço é o que resta do processo de recalcamento. Se
je proposais une ville dans le style des années trente, Le Cor- consideramos o processo de recalcamento como um movi-
busier, Gropius; chacune comportait un lieu de culte genre mento para delimitar fronteiras, o qual instaura uma geo-
église, tem pie, mosquée, etc. Pour donner un interét archi- grafia do suportável, seria preciso talvez pensar esses traços
tectural aux plans de ces résidences, je les avais tirés d'une como postos de fronteira, ou seja, como algo que lembraria
série de designs que j'avais fait au cours "Iibre avec nu" de sempre a operação de um contorno, de uma delimitação",
I'Ecole de Beaux Arts". Presumimos que os desenhos apre- Edson Luiz André de Souza, "Tempo e repetição: intersecções
sentados na edição de Entretiens não correspondem ao projeto entre a poesia e a psicanálise", Cem anos da psicanálise, Porto
original, mas sim a uma reconstrução feita posteriormente Alegre: Artes Médicas, 1996, p.281.
por Matta. Na verdade, minha hipótese foi confirmada com 6. "Poderíamos pensaresse trabalho de rima como uma con-
base em recentes conversas com o reitor da Faculdade de seqüência direta do processo de recalcamento. Assim, a rima
Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica, o arquiteto seria inscrita numa certa "formação de compromisso", pois
Fernando Pérez Oyarzún, que tem feito um importante estu- ocuparia essa função de dizer pela metade a verdade do recal-
do sobre a influência de Le Corbusier na América Latina. A cado. Ela revela e esconde ao mesmo tempo. Situa-se num
partirde contatos formais com Sergio Larraín García Moreno, lugar que exige uma leitura e mesmo uma interpretação. A
ele relata o seguinte "incidente": Durante uma de suas via- rima funcionaria, por conseguinte, numa lógica do recalque",
gens em 1960, Matta criticou a proximidade que um amigo Edson Luz And ré de Souza, op. cito , P.284.
apresentava com a Igreja Católica, a que Sergio Larraín res- 7. É preciso estabelecer uma relação entre esta atitude inte-
pondeu que não tinha nenhuma objeção, pois ele mesmo, lectual de Matta, a poesia chilena e "o cheiro úmido dos sul-
Matta, com sua tese de graduação, de 1932, fora um dos cos", Gabriela Mistral.
primeiros ecumenicalistas. Matta ficou muito impressionado 8. Matta canibaliza a ausência do primitivo chileno por meio
com esta lembrança e passou muitos dias reconstruindo os da antropomorfização das forças da terra, segundo o princípio
desenhos de sua tese de graduação. Sergio Larraín guardou de que tudo que cospe (frio) finalmente floresce (quente).
um destes desenhos. 9. Concordo com a hipótese de Romy Golan em seu estudo
2. "Nasci em meio à diáspora basca do Chile, o que significa "Matta, Duchamp et le mythe: un noveau paradigme pour la
dizerque nasci no fim do mundo. Lá, as pessoas não sabem derniere phase du surrealisme", Matta, Musée National d'art
ao certo em que se agarrarem para obter esta consciência a Moderne-Centre Georges Pompidou, 1985. Éa proximidade
que me referi. Esta sociedade existia apenas dentro de uma com Duchamp que salva Matta do canibalismo de Breton.
sociedade aristocracia basca que vivia recol hido em si mesma." 10. "Felix Guattari: Você pode explicar o que significa essa
("EI 'Oestrus', conversa entre Roberto Matta e Felix Guattari", série que você pintou em fundo preto? Aquelas luzes, luzes
Revista de estudios públicos, n.44 (dezembro 1991), Santiago, vermelhas, formas que nos fazem lembrarfilamentos, figuras
P· 28 7· sobre as quais não se pode dizerse são humanas, animais ou
3. Ver reproduções em Entretiens morphologiques ... , P.30-31. biológicas, uma vez que se baseiam no próprio campo?
Vejo algumas palavras sobre a materialidade gráfica desta Roberto Matta: Havia muito tempo, comecei a falar de luz
construção. Não se trata simplesmente de um discurso didá- negra. Isso remonta às primeiras coisas que fiz e denominei
tico editorial que procura demonstrar o ajuste perfeito da 'morphologies psychologiques'. No momento, estou fazendo mor-
planta no modelo da pose desenhada em papel. Em vez disso, fologias costuradas a partirda realidade. Vejo isso como um
trata-se do talento gráfico do arquiteto, para quem o papel tipo de erupção. Estas coisas simplesmente aparecem diante
velino é uma superfície de trabalho cotidiana. O carátersemi- de mim! Éepifânico! Estas imagens poderiam ser associadas
transparente do papel velino permite associações literais com a fetos. Estamos em tal profundidade conceituai que se torna
o esbatimento na pintura. necessário retornar à sua origem, à sua primeiríssima pulsão
Em carta recente de Luis Pérez aramas para Paulo Herkenhoff, de identidade", Guattari-Matta, op. cit., P.279.
sobre a estrutura de nosso trabalho conjunto de curadoria 11. Jaq ues Bauffel, "Su r q uelq ues aspects de I'oeuvre graph iq ue
desta seção do Núcleo Histórico, ele assinalou a insistência de Victor Brauner", Victor Brauner, Musée d'Art Moderne Saint-
de Matta sobre a importância de seus contatos iniciais com Le Etienne, 1992.

309 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


curadoria Justo Pastor Mellado

Matta: malaise of origin; origin


of the malaise
ln my Brazilian fiction, the Week ofModern Art, the Rebellion ofthe Lieutenants and the Found-
ing of the Communist Party make up the paradigmatic triangle of a brand of modernity governed
by the Trotskyist wítz, according to which history has a mixed and irregular development. Com-
bined inequalities give rise to a complex structure based on social relations where the arts can
symptomize social inscription or languishment, ensuring the continuity or demise of a given
structure of symbols.
The Week ofModern Art, São Paulo, 1922, is a gesture ofinscription by Brazil's ruling class.
ln this case, art sanctioned the institutional vanity of the emerging classes. Chile, 1927, the
dictatorshipofGeneral lbafiez. Some historians consider this period as a time ofmodernizing
violence, essential for the structuring of the Chilean state as it existed until the catastrophic
show of forces of 1973. ln the particular cases of painting and sculpture, this dictatorship had a
considerable institutional impacto ln this case, we have a gesture oflanguishment. The emerging
class punishes the institutionalizing vanity of art.
lnfluenced bya minister who headed two ministries-Finances and Education-General
lbafiez closed down the Painting Academy and sent a delegation of students and teachers from
the final courses on a tour ofEurope to study matters associated with applied arts. The idea was
that, upon returning, these advanced students would prov:ide the basis for the adequate devel-
opment ofthe graphic and decorative arts industries.In Chile, at the turn ofthe century, the
politicaI class and business sector had a phobia for Fine Arts that coincided exactly with the
application of markedly anti-oligarchic social and economic policies. Up until then, the Painting
Academy had satisfied-for worse rather than for better-the desire for representation that
. characterized the interior decoration ofChilean oligarchy. lbafiez's new politicaI project sought
to dismantle these desires and divert them toward the or&anization of the interior decoration of
the emerging classes. The dictatorship lasted until 193I.
ln 1932, the University ofChile incorporates into its institutional framework the remains of
the Painting Academy, forming the new College ofFine Arts. lt is difficult at this point to think
of a reference of modernity. ln São Paulo" 1922, Modern Art Week is aleap forward. ln Chile, the
closing of the painting Academy was a leap backward. The new college-created a decade
later-was intended to reorganize the academy under the ideology of a late modernist art. The
impact ofthis cultural transfer became noticeable only after the fifties.
Roberto Matta studied architecture at the Pontifical Catholic University ofChile during the
lbafiez dictatorship. ln 1932, he already stood out from the rest ofhis classmates when he pre-
sented his graduation thesis titled La liga de las religíones [The league of religions]. The college's
archives have no copy of this thesis. What we know is from hearsay only, from the testimony of
old friends. 1

310 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


There is very little reliable information about Matta's university years. It is said that he
studied painting at the studio of a Chilean "cubist painter," Hernán Gazmuri, who had been to
France and practiced a form of"cubism" that consisted of a geometrization of classical themes.
ln any case, some say that this was Matta's only formal art education, which is not altogether
true. ln Chile, architecture is implicitly taught as a form of visual arts. To understand this, one
must reconstruct the artistic environment in which Matta operated at the time, which would give
us clues about his primary relationship with drawing. But, most important, one must keep in
mind his early friendship with the architect Sergio LarraÍn García-Moreno, one ofthe initiators
of architectural modernism in Chile and an articulate importer ofBauhaus ideas into architecture
study programs, based on the reforms to these programs that he himselfled as ofthe early '50S.
His friendship with the architect Sergio LarraÍn García-Moreno is important because LarraÍn
received his secondary education in France and Switzerland. ln Europe he met Vicente Huidobro,
who introduced him to some artists in his own social circle in Paris. This reference would be of
use to him upon his return to Chile in 1924, where he began his architecture studies. Because of
his educational background and the eminent position ofhis family, he was allowed to complete
his education in only three and a halfyears, graduating in 1927, the year in which Matta entered
the sarne school. ln 1929, LarraÍn was appointed teacher and probably had very close contact
with the development ofMatta's graduation thesis in 1933. What Iam suggesting here is that, at
the sarne time, Matta was aware ofLarraÍn's own thesis: a project for a railway station with a hall
34 meters long and 75 meters high. There were no such buildings in Chile at the time, with the
Composition in magenta: the end of everything Composição em magenta: o fim de tudo 1942 óleo sobre tela [oil on canvas]
71x92cm coleção University of Essex Collection of Latin Ameri can Art cortesia Sr. and Sra. Michael Naify

311 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


exception ofthe dome ofthe Museo de Bellas Artes, which was of a totally "beaux arts" design,
while incorporating elements ofFrench metallic architecture. The dome in Matta's project had
these antecedents, and the relationship between LarraÍn and Matta must have been culturally
influential too, because LarraÍn was one ofthe few people in Santiago's cultural scene who had
a frame of mind that was closer to artistic modernity and who supported Matta' s plans to leave
Chile, leaving behind him the promise of a successful career as an architect.
From testimonies of close friends we know that in this period Matta opened a furniture
shop and designed his own furniture. The fact is that his brother, Mario Matta, would become
one of the great furniture designers and a leading antique dealer during the period when interior
decoration was being reformed in Chile. Most likely, Matta worked for his brother, supplying
him with designs. ln fact, it was in this furniture shop that he built the maquette of the wooden
inner structure ofhis thesis projecto One must remember that Matta gained social recognition as
a successful interior decorator, a fact that was problematic for him, being a young scion of an
oligarchy in crisis who had-moreover-Ied the change in the interior decoration standards
of the emerging social class that was replacing his own class in power. Working as an interior
decorator and antique salesman, his brother Mario bought and sold the French and English
objects that had arrived in Chile during the second half ofthe nineteenth century only to beco me
part ofthe antiquities market that emerged as a result of a progressive dismantling of a model of
life that had been dominant up until then.
ln 1933, Matta sailed for Europe. The anti-oligarchy assault of the Ibafiez dictatorship
instilled a feeling of rootlessness in the very sarne families that in the past had provided the
historical model ofreference in the power structure. The families thatwere saved were those that
recycled their talents, replacing agriculturally based economies for financial concerns and the
new industrial investments. European and American critics are generally unaware of the fact that
it is only after 1939 that consistent development programs can be applied in Chile, allowing for
Edulis Ed ulis 1942 óleo sobre tela [oil on canvas] 137,2x167,6cm coleção Museo de Monterrey, México

312 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


the creation of the institutional structure of the state that subsisted until the I973 crisis. The
class transformations experienced by Chilean society in the first half of this century are symbol-
ically decisive to understand the changes that occurred in the field of arte
The symbolic structure ofthe Chilean way oflife of a family ofSpanish-Basque-French
origin was in crisis. 2 Matta's departure is but a terminal symptom of this malady. Matta left
behind his family connections in order to return to his origins. Sergio LarraÍn had opened his
mind to architectonic and visual-arts modernismo Matta's contribution to this dialogue is Le
Corbusier. lt is not by chance that upon arriving in Paris, he went to work at his office.
Chilean oligarchy erected a social and politicaI enclave whose references are always outside,
in an origin that is close enough in time to satisfY its anguish of affiliation. At the tum of the
century the outside, that is to say, the point of reference in relation to family roots, is France. Yet,
the fact that in his graduation thesis Matta set down the terms of another conflict is symptom
enough ofthe changes going on. Finally, to the rationalism ofGropius and Le Corbusier, Matta
opposes theorganic structure of the female body, making an analogy between pose and floor
plan. 3 There is here a rebellion against a self-:punishing architecture from which Matta will
distance himself via a model of drawing whose antecedents lay in the relationship between body
and mold, assigning furniture the function of a mold that is not exactly a negative of form but
rather a sUlface of contention. ln the absence of a home-in Chile or in France-furniture becomes-
home, 4 in a kind offumiturizinB of corporealíty.
ln I938, from Mexico, Breton sent a telegram to the magazine Minotaure recommending
Matta. ln Number II, Matta published "Mathematique sensible-architecture du temps." This
text reproduces the intensity of purpose ofhis I932 graduation thesis. lfin his thesis the conflict
lay in the anatomical floor plans, in Minotaure the conflict lay in the curvature of the body. The
tool used here and there is the sarne: drawing. That is to say, the line that reproduces the layout
ofthe struggle in the body's becominB-home, replicated by the becominB-body ofthe house: like a
line left behind by the scar of movement. 5
What Matta takes with him when he leaves Chile is a perception of the natural world; what he
leaves behind-as ballast-is a perception ofthe social world as a malady associated with traveI.
His social circle constrains him in three aspects: family, religion and politics. This primary
perception would be the basis of a symptom of inverted anthropophagy.
Alain Jouffroy, in the text he wrote for the catalog for the retrospective at the Centre
Georges Pompidou (I985) establishes a key hypothesis with respect to Matta's relationship with
Chile upon his departure. He says Matta est chílíen [Matta is Chilean]. That is, an artist that chie les
liens, 6 an artist that expels (defecates) relationships. But this very act of expulsion is also, by
anteposition, a statement of belonging. His vomiting, what he ingests, is also to swallow, to
devour all that has been denied to him. Or rather; all things whose assimilation establishes a
connection between man and territory without the mediation of social relations. This implies
a primary denial of the individual because, if one goes by Matta's statements, one must weed
out the cumulus ofinformation that saturates and retouches representations ofhimself, ofhis
position in the history of arte When he discusses his first morphologies and the titles he gave
his work in the '40S, he refers to a denial ofthe individual while at the sarne time he reaffirms
individuality. What must be established here is his own notion of the individual. And this is not
merelya case of affirmative denial via the devouring of the Other. lf there is only nature, there is
no Other. At this point, this is quite a Robinsonesque (Crusoe) point ofview. Nature-at least in
the early Matta-is a working surface for direct intervention in which he views himself as
an exhaled-penetrator.7 He reproduces the colonizing impetus ofhis ancestry. A symptom ofits

313 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


decline, the artist Matta is the figure ofhis own return to the origins of the erstwhile penetratíng
force that must now journey to regain the lost energy. The "genitality" ofhis purpose cannot but
conjure the ghost of flaccidity. Chile is a country whose territory has been represented on maps
in a double ambiguity between ripping (indenting) and erection.
ln Chile, volcanic imagery is culturally commonplace. The visible vertebrae of the cordillera
uphold a universe of politicaI dreams, where magma and crystallization are de rigeur. This
imagery is the substratum for conceptual dreams connected with a recovery of the role of prim-
itivism in contemporary art. Chile does not have many ethnographic examples to offer, but it
does have an anthropomorphosizing telluricity that allows us to speak of a subjectivation ofthe
natural world. ln this sense, Matta does not deny individuality, he reaffirms it by naturalizing
it. But this is an in-depth naturalization where Matta provides the hallucinatory form ofthe
universe via its intraseismic temission. 8
The explicit reason f<i>r leaving Chile in 1933 is social. Matta wanted tó put behind him
conditions of politicaI and family malady that had crystallized into a reality of social decline. I
am referring here to the "fall" ofChilean oligarchy. Matta represents an end-of-the-race. Unhappy
with the "fall" ofhis familiar references, he traveIs in search of an ancestry made to measure.
This is what lies behind the penetrating seminality of color in his work. Acid semen, the ghost
of an eaufortegenítalía that eats away at the matrix, giving birth to formo
lt is based on this that I declare that Matta's incandescent seminality carries with it a sense
of inverted anthropophagy that reproduces in symmetric terms the dynamics of eat first and
then vomito
At the time Matta arrives in Paris, there was already a certain number of Chilean artists
residing there. Although well connected with artists ofthe historical avant-garde, their relations
are personal and not formal. There is a historical background here that considers social relations
between artists as platforms of influence, something that is not true. Matta is the only one to
maintain relations of reasonable hostility with members of the surrealist group, precisely
because they see in him someone who will not be conquered. ln fact, the New York exile ofthe
surrealists during the Second World War became the scenario of a confrontation between Breton
and Matta. ln this scenario, Matta, even though he had to resist the onslaught of the surrealist
desire for cannibalization, in the United States he experienced the contrary-rejection, restitu-
tion, expulsion by the critics. The text written by William Rubin for the catalog ofthe Matta
exhibition at the Musée Nationale d'Art Moderne-Centre Georges Pompidiu is significantly
illustrative ofthis. ln 1985 he wrote about the situation of1939 in terms that relativize the weight
attributed by the critics in the United States ofMatta as a source ofinspiration and as a guiding fig-
ure for the young abstract expressionists. ln that sarne catalog, Octavio Paz openly says that since
his arrival in New York, Matta met with the young American painters and immediately became
their guide and source of inspiration. William Rubin takes considerable care to relativize this
situation, minimizing Matta's importance as a reference source for postwar American painting.
Thus, he treats him as an eminent and yet marginal personage with the courage to swim against
the current, that is, to prevail in face of the organic advance of abstract expressionismo He ends by
saluting the initiative ofthis 1985 exhibition, which would finally allow the French public to get to
know Matta. But, above all-in his opinion-it will allow young artists to rediscover an "art that
will become an illustrated symbolic comment on our inner lives and interpersonal relationships."
With this he merely reproduces the sarne commonplace point ofview ofrevisited Jungianism.
lt is very strange to see this French and American hostility against Matta' s independence.
And yet it was precisely Matta who established a bridge between the surrealists and the young

314 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


American painters. Having arrived in New York before Breton, he established his own network
of contacts, but historical surrealist exiles had created the usual resentment in the American
media. Because you couldn't speak against the "historical" surrealists (Léger, Mondrian, Chagall,
Max Ernst or Dali), it was Matta who provided a much more appetizing flank, having placed the
body in the midst of the polemics of transference, which is what bothers Rubin when attempting
to reconstruct Matta's role in the dissemination of the technique of automation. Rubin's argu·
ment is extremely effective: first, reclaim a brand of"painting·poetry" that was impressive due
to the freshness of its automation, only to condemn it later on the basis of two aspects that set
him apart from the young Americans: the illusion of space and anthropomorphic characters that
lead to politicaI subject matter. This is what one could call cookíng up a tale made to measure for
the myths of self·founding that prevail in North American visual·arts culture: a scenario of cul·
tural anthropophagy that, funnily enough, is analogous to Matta's own individual anthropophagy
in the field of inverted anthropophagYi that is to say, of vomito The body does not tolerate that
food. For non·Marxistintellectuals, in the politicaI and artistic scenario ofthe Second World War,
the arrival of the European exiles is a sítuatíon ofhostílíty that must be sublimated as a sítuatíon
ofhospítalíty until that time in which the assimilation device of that cultural body had managed
to sort the grain from the chaff. For a body of culture such as the North American culture, the
nourishment provided by Matta acts like a laxative. Rubin is in charge of prescribing post festum
the alimentary diet of the young American painting of that period, imposing a soft díet. ln his
opinion, the relationship between Matta and the young painters can be explained as a fortu·
itous convergence of different itineraries. It would be necessary to rebuild-and how?-the
alleged American clarity of vision regarding the itinerary to be followed at that time.
Matta leaves the United States in I948. He had resisted for almost a decade. For the surre·
alist body, the nourishment contributed by Matta had been tolerated with a mistrust analogous
Pecador justificado [Justified sinner] 1952 óleo sobre tela [oil on canvas 116,6x177,3cm coleção Museo de Arte Contemporaneo
International Rufino Tamayo- IBNA-CNCA

315 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


to that of a doctor with respect to a healer. This could not last. For Matta, on the other hand, sur-
realist nourishment constipated him. When Breton writes in I944 La perle est gatée ames yeux . ..
[The pearl is damaging to myeyes] he tries to have Matta participate in this constipation. Breton
speaks of agates as condensed semen turned into stone. That is, into dry volcanic matter or hard
water. Agates hang from his paintings, theyare deposited there and slowly fall, cutting the route
of their speed over an opaque background. What does Matta do to resist this cannibalization? He
dilutes painting via the line of drawing. This is why the drawings of the '40S have this solvent
nature that indicates a return to deeper waters; more than that, to the nuclei of magma. While
Breton freezes him (stone), Matta becomes a volcano (ashes and incandescentlava).
Matta did not distance himself completely from the esoteric conclusions of the deflationary
surrealism ofthe late forties. Perhaps this was due to a more rigorous relationship with analytical
practice. Breton always kept an insufficient array ofFreudian weapons, confusing in automatic
writing the manifest content and the latent content of dreams. Matta is gifted with a meaningful
sense ofhumor. Somehow, he kept his esoteric nature in check via a process of regulated disin-
tegration ofverballanguage and a graphic strategy based on the tension that he creates between
biomorphism and the rudiments oflinear perspective. 9 That is, he erects anchoring devices that
allow him to support the multiple points of view that concur in one and the sarne painting. A
curious medievalization of a narrative that is easily put at the service of the illustration of an
inner processo This teUs us more about the candid nature ofthe critics, who succumb to the effects
ofBreton's lack of comprehension of psychoanalysis. Or rather, ofits unconscious anchoring to
a Jungianism that was dominant in the artistic and para-artistic New York scene at the time.
ln the curatorship ofMatta's presence in the XXIV Bienal de São Paulo, l have accented the
interest in reconstructing some conflictive hypotheses about the origino This is why l have insisted
on selecting and presenting works dated roughly between I938 and I945, although it is very likely
that there will be works done in I996 and I997 inasmuch as they recover the general standing of
the other works mentioned. 10
ln Matta, La novela del origem [The novel of the origin] has to do with a return: the return of
Matta to his homeland (France-Spain). He is not a hybridized Latin American. lnstead, he is the
structural informant of a pan-naturalist "Mediterraneanism" thatwill invert his conditions of
digestivity by being partially cannibalized as a primitive from far away. ln fact, he was an exotic
character that was returning. Only from his eminent position in the familiar enclave-Chile-
can he establish a gaze of desire that permits his becomíng mouth to be replicated by his becomíng
ear and then be disseminated by his becoming semen. Mouth and ears are organs of consumption
(in the sense of appropriation) of food and Verbo Semen, on the other hand, is a vehicle of con-
sumption (in the sense of squandering). The only way to maintain the seminal squandering of
verbs is the forced crystallization of the fecundating nucleus. Only an end of the race may symp-
tomize and convert the fear ofthe fall into a work of art. During his stay in New York, Matta's can-
vases, rapidly drawn, executed with improvisation, with his "éclaboussures" of paint were the
ones that most interested the young American painters. Some of them even said that they were
more interested in his drawings than his paintings. This favors those interpretations that assign
a greater value to his role in the transmission of automatism not as a "technique" but rather as
an intellectual gesture. Unconsciousness cannot be represented. lt can only be spoken. Unless, as in
the always emerging child psychoanalysis, the drawings and graphic diagrams are interpreted as
substituting speech. This way it is possible to uphold the presyntactic nature ofMatta's drawing,ll
willing to become the unrepresentable desire of denied affiliation: CHI(E)LIEN.
Justo Pastor Mellado. Translatedfrom the Spanish by Paul Beuchat and Aílsa F. Shaw.

316 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


r. "I studied architecture at the Catholic University. ln my first ing discovery of drawings done in 1938 and around that peri-
year there, Matta was busy working on his graduation project od, especially those referring to the death of García Lorca.
I remember the subject matter very well: The Temple ofReli- Matta associated them with the drawings in his graduation
gions. His idea was to unite Christians, Moslems, Jews and thesis and commented in detail on how troubled Le Corbusier
Muhammadans in their own radial temples, converging onto was by his drawings of fioor plans based on drawings of
a shared temple with a large dome and a very high central nee- female nudes.
dle" (Nemesio Antúnez, "Matta," Exhibition Matta uni verso, 4. "Ce serait un mobilier qui dechargait le corps de tout son
Museo Nacional de Bellas Artes de Santiago/Museo Nacional passé, angle droit de fauteuil, qui delaissant l'origine du style
de Bellas Artes de Caracas, 1991). I have included Matta's own de ses prédécesseurs, s'ouvrirait au coude, la nuque, épous-
description in Entretiens morphologiques ... , Notebook N 1/4 I, sant des mouvements infinis selon l'organe rendre conscient
1936-1944, London: Sistan Limited, 1987, edited by Germana ell'intensité de vie" (Matta, Entretiens morphologiques ... , P.35).
Ferrari: "L'architecture de l'assamblée etait en forme de demi- 5. "O traço é o que resta do processo de recalcamento. Se con-
cercle (colonnade Sainte Pierre) et une esplanade était réservée sideramos o processo de recalcamento como um movimento
en face pour completer le cercle destiné aux religions du futuro para delimitar fronteiras, o qual instaura uma geografia do
Pour la résidence des délegations je proposais une ville dans le suportável, seria preciso tal vez pensar esses traços como pos-
style des années trente, Le Corbusier, Gropius; chacune com- tos de fronteira, ou seja como algo que lembraria sempre a
portait un lieu de culte genre église, temple, mosquée, etc. operação de um contorno, de uma delimitação," Edson Luiz
Pour donner un interét architectural aux plans de ces rési- André de Souza, "Tempo e repetição: intersecções entre a
dences, je les avais tirés d'une série de designs que j'avais fait poesia e a psicanálise," Cem anos da psicanálise, Porto Alegre:
au cours 'libre avec nu' de l'Ecole de Beaux-Arts." The draw- Artes Médicas, 1996, p.281.
ings that appear in the edition of the Entretiens, we presume, 6. "Poderíamos pensar esse trabalho de rima como uma con-
are not from the original project but a reconstruction, done at seqüência direta do processo de recalcamento. Assim, a rima
a later date by Matta. ln fact, based on recent conversations seria inscrita numa certa 'formação de compromisso,' pois
with the dean of the College of Architecture of the Pontifical ocuparia essa função de dizer pela metade a verdade do recal-
Catholic University, the architect Fernando Pérez Oyarzún, cado. Ela revela e esconde ao mesmo tempo. Situa-se num
who has done important work studying the infiuence of Le lugar que exige uma leitura e mesmo uma interpretação. A
Corbusier in Latin America, this assumption of mine has been rima funcionaria, por conseguinte, numa lógica do recalque,"
confirmed. From his formal contacts with Sergio Larraín Gar- Edson Luz André de Souza, op. cit., P.284.
da Moreno, he reports the following "incident": During one 7. One must associate this intellectual attitude ofMatta with
ofhis traveIs, in 1960, Matta criticized his friend's closeness Chilean poetry and the "damp exhaling of the furrows,"
with the Catholic Church, to which Sergio Larraín replied that Gabriela Mistral.
he should have nothing to say to him, because with his grad- 8. Matta cannibalizes the absence of the Chilean primitive
uation thesis in 1932, he had been one ofthe first ecumeni- by anthropomorphosizing the forces ofthe earth, following
calists. Matta was vividly impressed by this memory and spent the principIe that whatever spits (cold) eventually fiowers
several days reconstructing the drawings of his graduation (warmth).
thesis. Sergio Larraín kept one ofthese drawings. 9. I agre e with Romy Golan's hypothesis as set forth in his
2. "I was born in the midst ofChile's Basque diaspora, which study "Matta, Duchamp et le mythe: un noveau paradigme
is like saying that I was born in the end of the world. Over pour la derniere phase du surrealisme," Matta, Musée Natio-
there, people are not quite sure what they must grasp to gain nal d'Art Moderne-Centre Georges Pompidou, 1985. It is
this awareness I was mentioning before. This society existed Duchamp's closeness that saves Matta from Breton's canni-
only within the Basque aristocracy that lived retrenched upon balism.
itself," "EI 'Oestrus,' conversation Roberto Matta and Felix 10. Felix Guattari: Can you tell me what does this series you
Guattari," Revista de estudios públicos, n-44 (December 1991), have painted over a black background means? Those lights,
Santiago, P.287. red lights, shapes that remind us of filaments, figures about
3. See reproductions in Entretiens morphologiques ... , p. 30-31. I which one cannot say whether they are human, animal or bio-
can say a few words about the graphic materialness of this logical because theyare based on the field itself?
construction. This is not simply a didactic editorial discourse Roberto Matta: A long time ago I started to talk about black
seeking to demonstrate the perfect fit of the fioor plan on the light. This goes back to the first things I did and which I
model of the pose drawn on paper. Instead, this is a graphic called "morphologies psychologiques." Right now I am doing
cleverness of the architect, for whom vellum paper is an every- morphologies sown from reality. I see this as a kind of erup-
day working surface. The semitransparent quality of vellum tion. These things simply appear before me! It is epiphanic!
paper allows for literal associations with glazing in painting. These images could be associated with fetuses. We are in such
ln a recent letter sent by Luis Pérez Oramas to Paulo Herken- a conceptual hole that it is necessary that everything return to
hoffin the framework of our work together on the curatorship its origin, to its very first heartbeat of identity," Guattari-
of the historical section, he pointed out Matta's insistence on Matta, op. cit., P.279.
the importance of his initial relations with Le Corbusier. On II. Jaques Bauffel, "Sur quelques aspects de l'oeuvre graphique

occasion of a recent trip by Matta to Caracas, he was taken by de Victor Brauner," Victor Brauner, Musée d'Art Moderne Saint-
Luis Pérez Gramas to "identifY" drawings by him in the col- Etienne, 1992.
lection ofPatricia Phelps de Cisneros. A pleasant and surpris-

317 Roberto Matta Justo Pastor Mellado


David Alfaro Siqueiros curadoria Mari Carmen Ramírez

Utopias regressivas?
(radicalismo vanguardista em
Siqueiros e Oswald)
No contexto de uma Bienal dedicada à noção de antropofagia aventada porOswald de Andrade
(1890-1954), ter-se pensado numa exibição de David Alfaro Siqueiros (1896-1974) só pode ter
sentido como um tributo tardio, embora oportuno ainda, sobre a compatibilidade de visão,
propósito e engajamento que une esse iconoclasta mexicano a seu parceiro brasileiro. Muito
além de questionáveis acasos biográficos" a afinidade desses dois notáveis representantes da
arte e da literatura latino-americanas espalha-se porvárias esferas. O seu papel pioneiro, tanto
teórico quanto de expoentes radicais do modernismo no nosso continente, ao longo das
décadas de 20 e 30, serve como ponto de partida para ponderar devidamente suas semelhanças.
Nessa posição, Siqueiros e Oswald não só deitaram os alicerces para uma sensibilidade em
plena sintonia com a transformação da prática artística gerada pela vanguarda histórica, mas
também assentaram um projeto político de emancipação cultural para as nossas sociedades.
Com efeito, a idéia oswaldiana de antropofagia encontra um equivalente naquela bizarra refor-
mulação da tradición que Siqueiros propõe para o âmbito do Novo Mundo. Contudo, em cada caso
específico, a proposta estética expressava um empreendimento político igualmente radical que
consumia ambas as vidas, pondo em perigo amiúde as suas irreverentes carreiras. Eesse projeto
não era senão a construção de uma nova sociedade onde a arte, libertajá do jugo do capitalismo,
pudesse atingir uma verdadeira autonomia. A inesgotável fé que punham nesse escopo político-
artístico-a última utopia vanguardista-levou-os a assumir a responsabilidade dessa atitude
anti status-quo, que salientava a "contradição" como uma estratégia política permanente 2 •
Portanto, seja para o escritor brasileiro, seja para o pintor mexicano, desde o começo o político é
fato r determinante, em torno do qual giram as contradições das suas pessoas, tanto artísticas
quanto intelectuais. Esse fato viria explicar o seu radicalismo militante, ora no anarquismo
(Oswald), ora no comunismo internacionalista (Siqueiros). À medida que essas posições foram
ficando conflitantes, a marginalização dos circuitos canônicos e institucionais, de que ambos
também foram objeto, é fácil de ser entendida. Por conseguinte, o ensejo deste texto é recobrar
a sua polêmica contribuição nessa novíssima "tradição" instaurada na América Latina pela van-
guarda. Uma contribuição que, sem dúvida, é ainda pertinente no meio deste nosso presente
tão conflitante.
De fato, é o grau de afinidade existencial e intelectual entre Siqueiros e Oswald o que
me levou a escolhero primeiro como amostragem ideal para ilustrar a pertinência do modelo
antropófago, não somente para o Brasil, mas para o continente como um todo. Essa tarefa precisa
se afastar o máximo possível das caracterizações feitas a respeito do artista, que o pintam "exclu-
sivamente" nos termos da sua relação com a gênese do muralismo mexicano. Em vez disso, terei

318 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


cuidado em visara produção artístico-intelectual de Siqueiros a partirda perspectiva crucial que
ele teve perante a ocorrência de u ma vanguarda lati no-americana de caráter exlcêntrico 3 , até
assumir um papel-chave nela. Além do mais, Siqueiros e Oswald são só dois de um seleto grupo
de artistas no nosso continente Uoaquín Torres-García e Hélio Oiticica poderiam também ser
incluídos nele) que foram capazes de enxergar, inclusive teorizando com excepcional clareza, o
papel crítico que a vanguarda devia desempenhar na nossa sociedade. Esse não foi o caso dos
outros dois "grandes" do muralismo mexicano, os oficialmente sancionados Diego Rivera eJosé
Clemente Orozco, que ficaram sendo meros expoentes pragmáticos desta tendência. A despeito
de seus dispersos escritos sobre a arte "vanguardista", no bojo dos problemas do México, a con-
tribuição teórica ao tema feita por Rivera e Orozco é de pouca monta para nossa apreciação do
modernismo na América Latina4 • Muito pelo contrário, o impulso utópico de Siqueiros e Oswald
pertence a um projeto mais amplo, que motivou as suas palavras de ordem por meio de mani-
festos. Querdizer, aquele projeto de legitimação da arte e da cultura latino-americanas nos seus
próprios termos. Afinal, sendo o resultado da inversão tanto "do local" quanto "do hegemônico",
a falta de reconhecimento universal, assim como devalidade desse modelo híbrido, é um estigma
vivo que marca ainda hoje a arte e a cultura no nosso continente. O cotejo entre as contribuições
teórico-artísticas destes últimos criadores, nesta área específica, pode ser muito proveitoso
agora para aqueles artistas nossos que se debatem contra as tão difundidas contradições da
atualidade global, aparentemente sem fronteiras e, no fim das contas, impalpável. Portanto, no
desenrolar do texto, procurarei mostrar os traços principais que Siqueiros e Oswald partilham
no seu âmago.
As afinidades conceituais e ideológicas entre ambos os artistas advêm de dois espíritos
paradoxais que ficaram sincronizados com a sua era sob o pressuposto de serem contra (ou não).
Nestes termos, eles entenderam cedo o valortanto da contradição quando da negação-o estí-
mulo primai da vanguarda histórica européia-para o feitio de uma práxis cultural de cunho
crítico. No ensejo de consolidar uma vanguarda na América Latina, a sua contribuição é impor-
tante justamente por terem procu rado repeti r aq uele impu Iso negativo eu ropeu no nosso su b-
misso contexto. Isso se torna evidente nos seus primeiros manifestos. Os "Tres lIamamientos
de orientación actual a los pintores y escultores de la nueva generación americana" ["Três
chamamentos de orientação atual para os pintores e' escultores da nova geração continental"]
de Siqueiros (Barcelona, 1921)5 e o "Manifesto pau-brasil" (São Paulo, 1924)6 condensam as
preocupações tanto artísticas quanto ideológicas que os uniram e, concomitantemente, estabe-
lecem bons antecedentes para as suas contraditórias considerações sobre uma vanguarda latino-
americana? Curiosamente, ambos os textos representam uma convocação aos artistas e
escritores do México e do Brasil, para abandonarem o academicismo enferrujado do passado
e, em seu lugar, "fazendo uso do raciocínio devemos acolher todas as inquietudes espirituais de
renouação nascidas de Pau I Cézan ne até nossos dias". 8 Portanto, eles estão no encalço de um
duplo escopo que é ambíguo: por um lado, o de estimularo desenvolvimento de "novos meios"
para a literatura e as artes visuais, com a incorporação dos princípios vanguardistas; pelo outro,
a promoção daquela perspectiva verdadeiramente autônoma baseada na recuperação das
tradições indígenas.
Tanto os "Tres lIamamientos" quanto o "Manifesto pau-brasil" são de grande interesse
para elucidar as fontes vanguardistas de que ambos os artistas partilharam. Além de Cézanne,
cuja arte eles consideram como o fundamento da nova sensibilidade, torna-se evidente que
Siqueiros e Oswald aderiram ao rappel-à-I'ordre que escorava as tendências neo-clássicas daque-
la vanguarda, principalmente na França e na Itália (Cendrars, Léger, de Chirico, Carrà, etc.). Eé

319 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


aqui que subjaz, sem dúvida, o aspecto regressivo das suas utopias
progressistas. Isto é particularmente surpreendente em Oswald,
cuja obra-prima modernista, Memórias sentimentais deJoão Miramar
(1917-1925) ,tinha-se inspirado diretamente na montagem cubo-
futurista. Em "pau-brasil", no entanto, o seu elã dadaísta cedeu
lugar à exaltação, ora da síntese, ora do equilíbrio, numa posição
que o coloca bem mais próximo do pólo neo-classicista de
Siqueiros 9 • Segundo argumentei em outro ensai0 10 , a propensão
do pintor mexicano para o classicismo não é senão um extremo da
sua constante oscilação entre o dinamismo (um conceito original-
mente cunhado pelo futurismo) e a racional volta-à-ordem. Essa
ambivalência marcou toda a sua obra. Contudo, a metáfora do
artista enquanto "engenheiro" ou "construtor" de uma nova era
está presente nesses dois textos 11 . Desse modo, ali onde Siqueiros
frisa "a preponderância do espírito construtivo sobre o espírito
decorativo ou ainda analítico", a linguagem dos "cubos, cones,
esferas, cilindros e pirâmides" como sendo "o esqueleto de toda
arquitetura plástica", e propõe a realização da obra "dentro das
leis invioláveis do equilíbrio estético", é ali mesmo que, dentre "as
leis nascidas do próprio rotamento dinâmico", Oswald enumera
"a síntese", "o equlíbrio", como sendo os elementos-chave no
"espírito construtivo" dessa nova estética herdada da vanguar-
da 12
• Além do mais, eles intercedem a favor de uma nova perspectiva e de uma nova escala, no bojo
de cujo dinamismo haveria chão para novas formas de expressão 13 • É a ênfase no "dinamismo" que
nos permite observar o vínculo de Siqueiros e Oswald com o futurismo. Sem dúvida alguma, este
movimento-seja na sua forma original, seja na sua reencarnação via cubo-futurismo-
exerceu um enorme fascínio sobre ambos. Foi um magnetismo paradoxal já que, devido à asso-
ciação do futurismo com o fascismo, eles resistiram a aceitá-lo em público, sem que o movimento
tenha, no entanto, deixado de ter uma influência muito produtiva em suas obras. Com efeito,
isso se torna evidente na celebração que eles fazem da vida moderna e da tecnologia, dois temas
que percorrem esses manifestos. Siqueiros, por exemplo, declarava de modo entusiasmado:
"Vivamos a nossa maravilhos!, época dinâmica! Amemos a mecânica moderna que nos coloca em
contato com emoções plásticas imprevistas, os aspectos contemporâneos do cotidiano, nossas
cidades em processo de construção [... ] ". Oswald, por sua vez, deliciava-se com "as novas for-
mas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros. Rails".14 A consciência absoluta
do potencial tanto artístico quanto político da moderna mitologia tecnológica, portanto, agia
neles como fato r gerador de teoria e de práxis.
O propósito do credo artístico-ideológico aventado ora pelos "Tres Ilamamientos" ora pelo
"pau-brasil" não tinha somente o ensejo de atualizarformas de expressão no México e no Brasil.
Era, ao mesmo tempo, a base para um projeto radical de cultura no nosso continente, proposto
por meio daquela vanguarda. Ambos os manifestos anunciavam já o ímpeto transgressor, pelo
qual eles procuravam desafiar a autoridade da idéia de cultura eurocêntrica. Esse tipo de trans-
gressão, contudo, estava enraizada em uma paradoxal recuperação de dois elementos díspares :
as nossas civilizações indígenas no Novo Mundo e os meios tecnológicos desencadeados pela
Etnografía [Ethnography] 1939 esmalte sobre madeira prensada [enamel on composition board] 122x82,2cm coleção The Museum
of Modern Art, NovaYork

320 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Can ibalismos


modernização. As múltiplas referências de Oswald à "raça crédula e dualista" e, logo após, aos
índios tupi, do mesmo jeito que a admiração de Siqueiros pelas sociedades pré-colombianas
(principalmente a maia e a asteca), assinalam a crença em uma Idade de Ouro, cujo grau de
civilização, segundo eles cismavam, igualava ou ultrapassava na sua época a de seus contem-
porâneos 15 . Ficava claro para Oswald que, depois de realizada a etapa inicial do modernismo
brasileiro, a tarefa a seguirera outra: "Ser regional e puro em sua época".16 Já para o mexicano,
a meta a ser focalizada no futuro era, também, a de "nos propor uma aproximação com as obras
dos antigos habitantes dos nossos vales, os pintores e escultores indígenas (maias, astecas,
incas, etc.)" cuja obra vigorava ainda em todos os princípios de síntese e equilíbrio que a arte
contemporânea procurava emular. De modo concomitante, Siqueiros rejeitava os falsos "nacio-
nalismos", ou ainda os "arqueologismos", em favor do direito dos mexicanos e latino-americanos
de se expressarem por si próprios, muito embora dentro dos parâmetros internacionais. De acor-
do com isso, ele aconselhava os artistas do continente a entenderem que o fato de "ser moder-
nos e internacionais, primeiro e antes de mais nada", não poderia desviá-los da meta básica: "É
preciso a contribuição de valores artísticos saídos de nós mesmos para uma estética mundial".1?
Poder-se-ia argumentar que a tensão gerada entre o passado indígena e o futuro dominado
pela tecnologia, no âmago do seu projeto radical, achava sua expressão genuína naquela noção
chocante da utopia regressiva. Com essa forma de utopia, Siqueiros e Oswald exemplificam o
recurso da contradição como sendo uma estratégia político-ideológica bastante produtiva. A
tensão gerada entre o passado pré-cabralino/pré-colombiano-livre ainda da dominação
européia-e a sociedade tecnocrata do futuro é a força motriz que estimula a necessidade deles,
ora de escrever, ora de teorizar sobre a arte. Essa mesma tensão levou-os à ponderação simul-
tânea da sua visão utópica do presente face à realidade do seu momento histórico. Da tensão
decorrente do mítico e do histórico é que surge, então, uma nova visão crítica, teórica e criativa
da arte para o nosso continente. Nesses parâmetros, o projeto deles insinuava um paralelismo
total com o de Mário de Andrade, seu contemporâneo. Segundo Mário afirmava, "somos os primi-
tivos de uma futura perfeição" .18 Da perspectiva proposta, o desafio então era o de aviartanto a
produção quanto a exportação de produtos culturais genuínos. As artes no México e no Brasil
deixariam de ser periféricas para virar uma força produtiva riquíssima e uma matéria-prima
"exportável". Dessa maneira, o papel que a tecnologia estava fadada a desempenhar seria o de
propiciar novas formas de intercâmbio entre as sociedades do Velho e do Novo Mundo. Como
resultado dessa troca, "a universalidade da época deixaria de ser excêntrica para tornar-se con-
cêntrica; o mundo se regionalizara e o regional continha o universal" .19
Os paralelismos destes modelos de vanguarda são constantes. No entanto, eles vêm se
acentuando mais nos escritos do fim da década de 20 e início dos anos 30, particularmente no
"Manifesto antropófago" (1928) e no prólogo a Serafim Ponte Grande (1933) de Oswald, se compa-
rados com "Rectificaciones sobre las artes plásticas en México" [Novos pensamentos nas artes
plásticas do México] (1932). As suas afinidades estão relacionadas ao jeito com que ambos
procuram assimilar (pro domo sua) o legado artístico e cultural de Ocidente; e isto é feito sob
uma profunda confiança na herança cultural recebida, assim como num certo otimismo no fu-
turo. No "Manifesto antropófago" oswaldiano, a recuperação das culturas vernáculas, iniciada
antes no "pau-brasil", é elevada, mesmo por meio do exercício simbólico do canibalismo, a uma
inquestionável prática cultural. De forma artística, Oswald propunha a "devoração" radical dos
modelos existentes na literatura, na filosofia e nas artes como antecedente fulcral para a cons-
tituição de um movimento alicerçado hum ethos regional específico. No caso de Siqueiros, o tipo
de assimilação da proposta oswaldiana funcionaria, seja por meio da noção de mestiçagem, seja pelo

321 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramirez


estatuto aparentemente absurdo de uma uangucirda apoiada na tradición. Bem no começo,
Siqueiros acreditava numa arte que pudesse entroncar os aspectos menos estereotipados da
nossa herança continental racial e cultural. Desse jeito, tanto nos "Tres lIamamientos" quanto
nos escritos das décadas de 20 e 30, ele postulava uma redefinição de tradición, representando
uma total inversão do que foram as suas funções no bojo do modelo eurocêntrico. Evitando refe-
rências a sistemas culturais rançosos (sociedades do tipo ancien régime), a tradición para Siqueiros
era "o acúmulo de experiências" advindas dos movimentos artísticos da Europa e da América
que servissem como alicerce para a obra do artista latino-americano. Entendida nesses termos;
a tradición foi sendo associada à idéia de um vasto receptáculo ilimitado para a arte do Novo
Mund0 20 . Em ambos os modelos, o resultado assinalava uma noção híbrida de vanguarda,
na arte e na cultura, que repudiaua a cópia em favor da apropriação simultânea tanto das fontes
européias quanto das indígenas.
Além disso, ambos os criadores deram ênfase ao espírito construtivo da vanguarda deste
Novo Mundo, colocando-o como um agente do esprit nouueau no início desse movimento artístico,
fincado num paradigma menos unilateral de identidade cultural. No caso oswaldiano, todavia,
a identidade não era um tópico para ser representado; muito pelo contrário, era o direito de gru-
pos elou indivíduos para exercerem livremente a sua autodeterminação. Antropofagia era, nesses
termos, nada além do exercício da identidade; quer dizer, o potencial que as pessoas possuem para
se legitimarem, elas próprias, em relação (ou oposição, inclusive) à Outridade hegemônica.
Sendo escorada portais valores, a antropofagia oswaldiana era uma bofetada contra todas as for-
mas de colonialismo, sendo também um novo começo e a emancipação por meio da arte. Mesmo
que não houvesse dúvida quanto ao fato de o paradigma antropófago sero seu território, impli-
cando isso uma breve volta às raízes dadaístas, devo sublinhar que Siqueiros concebia também
a identidade como um assu nto de autenticação e não como um mero motivo de representação.
No balizamento da cultura moderna, a síntese implícita na tradición é uma condenação tanto
contra as formas alienistas ou internas de dominação política quanto uma estratégia visando à
afirmação dos valores indígenas ignorados ao longo dos séculos. Segundo o próprio Siqueiros
exprimiu: "Sou da opinião de que um conjunto de circunstâncias (tradição, geografia, raça e
condições sociais) nos têm dado a possibilidade de atingir alguma coisa que pudesse ser uma
contribuição real à beleza universal, e ainda ser alheia ao esnobismo tão característico da cultura
européia de hoje".21 A dominação, então, converteu-se para ambos os artistas no Sacro Inimigo.
Apesarde haver uma ênfase divergente colocada nos valores "do novo" porcada um deles
(Oswald mais inclinado para o dadá, Siqueiros ficando mais na linhagem do neo-classicismo),
a literatura do primeiro assim como a produção mural e de cavalete deste último, naquela época,
"deglutiram" um grande número de influências (técnicas, processos, materiais) que foram
transformados por eles em ferramentas propícias para a contradiçã0 22 . Fazendo isso, eles produ-
ziram inovadores paradigmas, ora para a literatura, ora para as artes visuais na América Latina, os
quais, na verdade, insinuam-se inarticuláveis no seu sincretismo de elementos antinômicos. Essa
convergência entre a visão emancipadora e os seus propósitos torna-se mais evidente na axiolo-
gia que eles deram, depois de 1933, aos nouos meios de reprodução mecânica (fotografia e cinema)
para a sua concepção de prática vanguardista. Nesses anos de exílio em Los Angeles e Buenos
Aires, Siqueiros começou a gestar a idéia do mural cinematográfico, que culmina com o grandioso
Retrato de la burguesia (escadaria do Sindicato Mexicano dos Eletricistas, Cidade do México,
1938-1940)23. Esse conceito do pintor encontra um equivalente assombroso no romance mural con-
cebido por Oswald e exemplificado por sua obra inacabada Marco zero (1933-1945). Esse épico
progressivo, em três volumes, era considerada pelo próprio escritor como o desafio-colage mais

322 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


importante de sua carreira. No caso de Siqueiros, o mural cinematográfico representava "a união da
pintura monumental com o cinema [... ]" Desse jeito, era a síntese tanto de seus notáveis experi-
mentos com novas tecnologias e materiais (fotos, câmara cinematográfica, aerógrafo, bonecos,
brocha mecânica, etc.) quanto da sua assimilação da teoria e da prática futuristas processadas
durante longo tempo. De modo concomitante, esse romance mural, nas palavras de Oswald, "par-
ticipava da pintura, do cinema e do debate público", com uma tendência pronunciada para "a
frase social". O elemento estrutural destes textos era a "prosa cinematográfica"; um recurso
presente já em seus primeiros escritos e que foram caracterizados por Antônio Cândido pelo
fato de consistirem tanto em "continuidade cênica" quanto em "tentativa de simultaneidade". 24
Mesmo existindo as diferenças culturais e geográficas que os separavam, a similitude de
respostas destes dois criadores ao dilema esboçado pela sua época não é só altamente reve-
lador, mas propõe, ainda, algumas perguntas incontornáveis: a) Quais os fatores que levaram
ambos ao desenvolvimento de tão semelhantes enfoques vanguardistas ligados ora à pintura
mural, ora à narrativa tradicional? b) O que quer dizer essa coincidência acerca do papel e do
estatuto da prática vanguardista no nosso contexto exlcêntrico? Evidentemente, o recurso da
montagem cinematográfica, como o mais criativo princípio da sua obra nos anos 30, foi o resulta-
do da época, nas suas vidas, em que o fator político primou como força criativa que os impulsio-
nava. No caso oswaldiano, a crise tinha sido provocada pelo desastre econômico da "Terça-Feira
Negra" de 1929 que afetou seriamente a economia brasileira, baseada na cafeicultura. O café
lone Robinson 1931 óleo sobre tela [oil on canvas] 87x58cm coleção Museo de Arte Moderno, INBA, Cidade do México

323 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


--,,*
sustentou, durante muito tempo, os interesses econômicos da família de O~wald. Pouco tempo
depois, ele renegou do fato de ter sido membro da vanguarda antropófaga para se juntar ao Par-
tido Comunista. No caso do mexicano, a um período de prisão domiciliar em Taxco (1930-32)
seguiu-se quase uma década de exílio em Los Angeles, Montevidéu, Buenos Aires, Nova York, e
ainda Espanha, conflagrada pela Guerra Civil. Nela, houve a marca indelével do ativismo político
em favor da causa antifascista. As lutas sociopolíticas, às quais ficaram eles atrelados nessa
época, trouxeram uma consciência similar perante os problemas-chave que afetavam o seu
tempo. Dentre eles, poderiam mencionar-se dois: a ascensão do fascismo e o desafio que os meios
de comunicação de massa traziam para as formas tradicionais da arte (pintura e escultura). Da
mesma forma q ue nos anos 20, eles foram sagazes para enxergar e teorizar ai nda sobre o papel
que a arte devia ter nessa enorme crise mundial. Assim, no começo dos anos 30, Siqueiros e
Oswald-bem antes de Walter Benjamin (1934), o contemporâneo deles na Alemanha-foram
capazes de prever o papel que esses fatores iriam ter na estruturação do futuro e, além do mais,
o papel do cinema nesse processo todo. Ainda porcima, eles estavam muito cientes da ascensão
das massas como receptoras principais desse novo tipo de experiência artística caracterizada
pela "perda da aura" .24 Éóbvio dizê-lo, mas muito poucos dos seus pares na América Latina par-
tilharam dessas mesmas preocupações ou estiveram em condições de esboçar a sua equação.
Quando aplicado à parede ou inserido no romance, o princípio da montagem cinematográfica
providenciou a chave para u ma arte em cond ições de juntar as preocu pações da vanguarda coril
a obra de arte "não-orgânica" e a necessidade de se fazer uma arte ao alcance das massas
na sua luta contra o fascismo. Segundo foi praticado pelos principais movimentos e tendências
da vanguarda européia, entre 1919 e 1942, esse princípio ilustrativo consistiu na justaposição de
elementos variegados (originários de diversos contex-
tos visuais e semânticos) numa mesma composição.
A fusão dessas imagens num mesmo plano ou sen-
tença não somente contradiz a natureza orgânica da
obra de arte tradicional, mas, simultaneamente, vem
destacar o seu estatuto enq uanto construção artificial.
A montagem pressupõe o estilhaçamento da reali-
dade e a sua impossibilidade de síntese na obra de arte
não-orgânica. Tal impossibilidade seria experimenta-
da como um "choque" pelo espectador ou leitor, que
é chamado a partici par ativamente no processo des-
encadeador do sign ificado da obra. Tanto Siq uei ros
quanto Oswald valeram-se desse recurso e devem ser
vistos hoje à luz das contradições colocadas pela
própria prática revolucionária daqueles meados dos
anos 3026. Com efeito, do mesmo jeito que Benjamin,
o pintor mexicano e o poeta paulista coincidiram no
fato de perceber que os logros da vanguarda radical
da década anterior foram insuficientes para contra-
atacar o devastador oponente: o fascismo. O modelo
antropófago mesmo perdia o gume ao ser confrontado
com esse fenômeno, parecendo, nas palavras de
Oswald, "um surto de sarampo".27 À luz desses para-
doxos, a aplicação da técnica da montagem, ora no

(
mural, ora no romance, representou o modo de produzir uma forma de "autêntico realismo",
capaz de competircom o impacto psicológico ("o choque", segundo a análise de Benjamin) no
cinema. De fato, o seu enfoque de montagem se diferencia de maneira substancial das versões
popularizadas dessa técnica, tais como as representadas pelas bastante difundidas montagens
políticas de John Heartfield. No seu trabalho dos anos 30 e 40, Siqueiros e Oswald procuraram
fazer um tipo de montagem baseada numa totalidade narrativa. Strictu sensu, a ênfase numa
obra de arte que incorporasse qualquer idéia de totalidade ia ao encontro da crença na frag-
mentação que caracterizava a prática vanguardista 28 ; contudo, isso permitia-lhes a docu-
mentação de aspectos da nossa realidade sociopolítica de modo conflitante, muito embora
notável.
Nesse contexto dos anos 30, tanto o mural cinematográfico de Siqueiros quanto o romance
mural oswaldiano representaram versões atualizadas da "utopia regressiva" daquela época. De
acordo com este último conceito, eles procuraram unirelementos contraditórios numa estraté-
gia política cujos frutos eram prioridade para ambos. Siqueiros e Oswald representaram alguma
coisa de genuína (pode-se dizer, até, respostas exfcêntricas) perante o beco sem saída da pintura e
da literatura de vanguarda européias, durante os anos críticos de 30, com as manifestações do
realismo socialista na frente. Ao mesmo tempo, o intento paradoxal de criar a ilusão de movi-
mento, seja na parede, seja na página-valendo-se essencialmente dos recursos da linguagem
e da pintura-, era coerente com as inatingíveis contradições dos modelos vanguardistas feitas
por Siqueiros e Oswald dez anos antes, e para as quais cunhei o termo de utopias regressivas. Em
ambos os casos, em vez de abandonarem o meio pictórico ou literário em favor da ilusão espá-
cio-temporal do cinema, eles apostaram na idéia de "re-ativar" ora a pintura, ora a literatura,
via o instrumental técnico que o cinema fornecia. Sinceramente preocupados com o futuro da
arte, eles se colocaram em aberto antagonismo contra o efeito des-humanizador que os meios
de comunicação de massas provocaram em gêneros tão tradicionais como a pintura mural e a
narrativa romanesca. Mais uma vez, o espírito de contradição era a força que guiava suas ações.
A utopia regressiva em Siqueiros e Oswald representa uma resposta modelardesses pioneiros
do nosso modernismo continental às contradições que vêm se colocar entre a persistência do
nosso passado indígena e o impulso modernizadorda primeira vanguarda; isto acontecendo no
contexto exfcêntrico da América Lati na. Am bos os artistas com preenderam a vanguarda, mas não
enquanto problema de estilo, senão como sendo um agente ativo na construção de uma nova
forma identitária para as nossas sociedades. Dentro desse marco, "o novo" virava ocadinho sin-
crético de elementos seletos das culturas I,ocal e universal. Siqueiros e Oswald trabalharam com
afinco para articularem uma praxis emancipatória e revolucionária, que agisse como espaço críti-
co de mediação para as suas preocupações regionais e hegemônicas. Tendo assumido a
natureza sintética e conflitante das nossas sociedades, enquanto "devoravam" os elementos
escolhidos daquela "Sacra Outridade", a vanguarda converteu-se para eles num agente provo-
cadorde câmbio social. É nesse contexto que a contradição deve ser lida como um desejo persis-
tente de equilíbrio; de modo igual, o caráter regressivo deverá ser entendido como a única opção
"progressiva" num mundo abalado pelo absurdo.
Mari Carmen Ramírez. Traduzido do inglês por Héctor Olea.
EI diablo en la iglesia O diabo na igreja [The devil in the church] 1947 piroxilina sobre celotex [pyroxylin on celotex] 1947 219x
1Çi6cm coleção Museo de Arte Moderno, INBA, Cidade do México

325 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


1. Levando-se em conta a documentação disponível, é muito volumes no espaço' [... ]", Siqueiros, "Tres lIamamientos",
difícil estabelecer se Oswald e Siqueiros se encontraram em 1990, P.242j "Um quadro são linhas e cores. A estatuária são
algum momento ou mesmo se conheciam o trabalho um do volumes sob a luz.", Oswald de Andrade, "palo-del-brasil",
outro. Sabe-se que Siqueiros passou cerca de 48 horas em São 1981, p.6.
Paulo e no Rio dejaneiro, de passagem para Montevidéu, em 14. Siqueiros, "Tres lIamamientos", 1990, 241. Em negrito e
1933. No entanto, dados os assombrosos paralelismos entre itálico no originalj Oswald de Andrade, "palo-del-brasil",
as suas formulações teóricas e artísticas, estabelecer esse tipo (1981), p.6.
de aproximação causal é irrelevante no estudo comparativo 15. "A gente encontrará, mesmo, na obra dos índios da nossa
dos seus escopos tanto artísticos quanto intelectuais. °
América, complemento metafísico inerente a todas as gran-
2. Quase no fim do "Manifesto antropófago" (1928), Oswald des obras do mundo e do tempo.", Siqueiros, "Rectificaciones
sublinha "a luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatu- sobre las artes plásticas en México", palestra ministrada no
ra-ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu fechamento da exibição feita na Galeria do Casino Espanol da
Tabu". (grifos meus) Oswald de Andrade, "Manifiesto antro- Cidade do México, 18 de fevereiro de 1932, Raquel Tibol,
pófago", Obra escogida, org. Haroldo de Campos, Caracas: "Documentación sobre el arte mexicano," México: Fondo de
Biblioteca Ayacucho, 1981, trad. HéctorOlea, p.62-72j P.72. Cultura Económica, 1974, P.37-52j republicado em Art & reu-
3. Aqui, o "ex!cêntrico" não implica "extravagância" nem olution, trad. Sylvia Calles, Londres: Lawrence and Wishart,
"esquisitice". Refere-se, no entanto, àquelas condições que 1975, p.26-37j P·3 1-3 2.
fogem aos parâmetros reconhecidos dos modelos hegemôni- 16. Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", 1981 , P.7.
cos nos países centrais. No relativo ao uso do termo e sua 17. David A. Siqueiros, "Rectificaciones ... ", 1975, P.33.
aplicabilidade ao modelo proposto por Siqueirosj cf. Mari 18. Apud Benedito Nunes, "Antropofagia e vanguarda-
Carmen Ramírez, "EI clasicismo-dinámico de David Alfaro acerca do canibalismo literário", Oswald canibal, São Paulo:
Siqueiros. Paradojas de un modelo ex-céntrico de vanguar- Perspectiva, 1979, P.25. Na verdade, Nunes cita "Prefácio°
dia", Otras rutas hacia Siqueiros, org. Olivier Debroise, México, Interessantíssimo", de Pau/icéia desuairada (1922), em que Mário
DF: MUNALlCURARE, 1996, P.125-46j p.126-27. de Andrade diz: "Somos na realidade os primitivos de uma
4. Para uma discussão aprofundada sobre a matéria, Mari nova era".
Carmen Ramírez, The ideology and politics of the Mexican mural 19. Nunes, "Antropofagia ao alcance de todos", Obras completas
mouement, 1920-1925, tese de doutorado, University ofChica- de Oswald de Andrade, VI, Do pau-brasil à antropofagia e às utopias,
go, 1989, capítulos III-V. 2a. ed., Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.xxiii.
5. David Alfaro Siqueiros, "Tres Ilamamientos de orientación 20. Siqueiros, "Towards a transformation ofthe plastic arts:
actual a los pintores y escultores de la nueva generación ame- plans for a manifesto," Nova York, junho de 1934, republicado
ricana", Modernidade: uanguardas artísticas na América latina, org. em Art & reuolution (1975), P.45.
Ana Maria Belluzzo, São Paulo: Memorial da América Latina! 21. Siqueiros, "Rectificaciones", Tibol, P.46j Art & reuolution,
Unesp, 1990, P.240. Foi publicado pela primeira vez em Vida P·33·
americana, Barcelona, n.l, (maio 1921). 22. Héctor Olea, "La contradicción permanente (Oswald de
6. Oswald de Andrade, "Manifiesto de poesía 'palo-del- Andrade)", Negatiuidad y poéticas: lo oculto y lo manifiesto dei culto
brasil'," trad. Héctor Olea, 1981, P.2-7. Originalmente foi manifestista, tese de doutorado, The University of Texas at
publicado no Correio da manhã, Rio de janeiro, 18 de março de Austin, Ann Arbor: UMI, 1992, P.351-367.
1924, s.p. 23. Sobre a gênese e evolução deste conceito na obra de
7. Oportu namente, Héctor Olea identificou os paradoxos do Siqueiros, Mari Carmen Ramírez, "Las masas son la matriz:
manifesto pioneiro de Siqueiros (1921) em relação aos outros teoría y práctica de la plástica dei movimiento en Siqueiros",
manifestos da época. Cf. "EI pre-estridentismo: Siqueiros, un Retrato de una década: Dauid Alfaro Siqueiros, 1930-1940, México,
anti-héroe en el cierne dei anti-sistema manifestario", Otras DF: Museo Nacional de Arte, INBA, 1996, p.68-95.
rutas hacia Siqueiros, org Olivier Debroise, (1996), P.91-123. No 24. Antônio Cândido, "Literatura e cultura, de 1900 a 1945",
que diz respeito aos pontos de contato entre o manifesto de literatura e sociedade, 1965, 5a ed., São Paulo: Companhia Edi-
Barcelona e os oswaldianos, "pau-brasil" e "antropófago", cf. tora Nacional, 1976, P.131. Segundoassinala Haroldo de Cam-
"Cópia origi nal" e "Construtivismo cézan neano", p.115-116. pos no seu prólogo à obra oswaldiana, (1981), xvii, a noção de
8. Siqueiros, "Tr:es lIamamientos", 1990, P.240. Em negrito e "prosa cinematográfica" já aparece na obra temprana de
itálico no original. Oswald de Andrade conhecida como Trilogia do exílio (Os con-
9. Benedito Nunes, "Antropofagia e vanguarda-Acerca do denados) feita entre 1917 e 1921.
canibalismo literário," Oswald canibal, São Paulo: Editoria Pers- 25. Walter Benjamin, "Theworkofart in the age ofmechanical
°
pectiva, 1979, P.7-38j P.29. Observe que autor emprega o reproduction", 1934, IlIuminations, org. Hannah Arendt, trad.
termo no seu uso corriqueiro. Harry Zohn, Nova York: Shocken Books, 1969, p.217-251j
10. Ramírez, "EI clasicismo-dinámico... ", 1996, P.125-146. P·234-35·
11. "Engenheiros em vez de jurisconsultos," de Andrade, 26. Ramírez, "Las masas son la matriz ... ",1996, p.87-94.
"palo-del-brasil"', 1981, P.4j "[Vivamos] os aspectos atuais 27. Oswald de Andrade, "Prólogo a Serafim Ponte Grande,"
do cotidiano, da vida nas nossas cidades em construção, Obra escogida, org. Haroldo de Campos, trad. Márgara Rusotto,
a engenharia sóbria e prática", Siqueiros, "Tres lIamamien- 1981 , P·75· .
tos", 1990, P.241. 28. A aplicação que Siqueiros fez da montagem ao trabalho
12David A. Siqueiros, "Tres lIamamientos", 1990, 241-242j mural-exemplificado pelo extraordinário "Retrato da bur-
Oswald de Andrade, "palo-del-brasil", 1981 , P.5. guesia" antes mencionado-beneficiou-se da sua colabo-
13. "[... ] a base da obra de arte é a magnífica geometria ração com o pintor espanhol josep Renau, cujas montagens
estrutural da forma junto com a concepção, engrenagem e foram favorecidas por um tipo de "narrativa" mais propícia
materialização arquitetônica dos volumes e a perspectiva dos para a ilustração do "movimento" na parede. Ramírez, "Las
mesmos que, no conjunto, criam uma profundidade: 'criar masas son la matriz ... ",1996, p.87-94.

326 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


David Alfaro Siqueiros curadoria Mari Carmen Ramírez

Regressive utopias?
(avant-garde radicalism in
Siqueiros and Oswald)

An exhibition ofDavid Alfaro Siqueiros (1896-1974) in the context of a Bienal dedicated to Oswald
de Andrade's (1890-1954) notion of antropofagia can only make sense as a belated, yet timely, trib-
ute to the compatibility ofvision, purpose and commitment that united this Mexican iconoclast
with his Brazilian counterpart. Beyond the questionable causalities ofbiographical accounts, l
the affinities between these two outstanding representatives ofLatin American art and literature
extend to many areas. Their pioneering roles as both theoreticians and exponents of a radical
avant-garde art in our continent during the 1920S and 1930S serve as a starting point to duly
assess their similarities. ln these capacities, Siqueiros and Oswald not only laid the foundations
for a sensibility fully attuned to the transformation of artistic practice brought about by the his-
torical Avant-Garde, but also set forth a politicaI project of cultural emancipation for our societies.
Oswald's idea of antropofagia found an equivalent in Siqueiros's peculiar reformulation oftradición
to fit the New World contexto ln each case, however, their aesthetic proposal was the expression
of an equally radical politicaI endeavor that consumed their lives, frequently jeopardizing their
iconoclastic careers. Such a project was none other than the construction of a new society where
art, liberated from the yoke of capitalism, could achieve true autonomy. Their unrelenting faith
in this politico-artistic goal-the ultimate avant-garde utopia-Ied them to assume an aggressive
anti-status-quo attitude that established "contradiction" as a permanent politicaI strategy. 2 Thus,
in both the Brazilian writer and the Mexican painter, the politicaI was, from the very beginning; a
determining factor around which the contradictions of their intellectual and artistic personae
will revolve. This fact explains their militant radicalism on behalf of Anarchism (Oswald) and
International Communism (Siqueiros). As conflictive as both oftheir postures were in the long
run, this also explains their marginalization from institutional and canonical circuits. This text
is therefore an attempt to retrieve their polemical contribution to the new tradition ofthe first
Latin American avant-garde, a contribution that is still pertinent for our conflictive presento
It is precisely the degree of intellectual and existential affinity between Siqueiros and
Oswald that has led me to select the former as ideally suited to illustrate the pertinence of the'
anthropophagous model, not just for Brazil, but for our continent as a whole. Such a task entails
departing from traditional characterizations of this artist that portray him exclusively in terms
ofhis relationship to the genesis ofMexican muralism. Instead, I will approach Siqueiros' intel-
lectual and artistic production from the point ofview ofthe crucial role he played vis-à-vis the

327 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramirez


emergence of an exlcentric 3 avant-garde in Latin America. lndeed, Siqueiros and Oswald are two
of only a handful of artists in our continent (Joaquín Torres-GarcÍa and Hélio Oiticica could also
be mentioned here) who were able to visualize and even theorize, with exceptional clarity, the
criticaI role which avant-garde art was called upon to play in our societies. This was not the case
ofthe other two officially-sanctioned "grandes" ofMexican muralism, Diego Rivera and José
Clemente Orozco, who remained pragmatic exponents ofthis. Despite their scattered writings
on "vanguardist" art within the specific context ofMexico, their theoretical contribution to this
issue is irrelevant for our present view of the Latin American avant-garde. 4 ln contrast, Siqueiros' s
and Oswald's utopian endeavors belong to a broader project which motivated their call-to-arms
through manifestoes. That is, the legitimation of Latin American art and culture on its own
terms. The lack of universal acceptance and validation of such a hybrid model-the result of the
inversion of the "local" and the "hegemonic"-is a vivid stigma that continues to plague Latin
American art and culture today. A comparison ofSiqueiros's and Oswald's theoretical and artistic
contribution in this are a can thus prove useful to contemporary Latin American artists strug-
glingwith the widespread contradictions of our presumably borderless, ultimately ungraspable,
global presento
The conceptual and ideological affinities between them are the result of two extraordinary
spirits who became synchronized to their period from the standpoint ofbeing against it (or not).
ln this sense, both understood early on the value of contradiction and negation-the chief stimuli
of the historical Avant-Garde in Europe-for the elaboration of a criticaI cultural practice. Their
contribution to the consolidation of a Latin American avant-garde lies precisely in having attempt-
ed to replicate that negative impulse in our submissive contexto This is evident in two of their
eady manifestoes. Siqueiros's "Tres llamamientos de orientación actual a los pintores y escultores
de la nueva generación americana" ["Three appeals of timely orientation to the new generation
of American painters and sculptors"] (Barcelona, 1921)5 and Oswald's "Manifesto pau-brasil"
(São Paulo, 1924)6 condense the artistic and ideological concerns that united them, as well as
establish important precedents for their paradoxical conceptions of the Latin American avant-
garde. 7 Curiously, both texts represent a call to Mexican and Brazilian artists/writers to abandon
the stale academicism of the past and in its lieu "extend a rational welcome to every source of
spiritual renewal from Paul Cézanne onwards."8 Thus, they pursue an antinomic double objective:
on one hand, encouraging the development of "new means" for literature and the visual arts
through the incorporation of avant-garde principIes; on the other, the promotion oftruly inde-
pendent perspectives based on the recovery ofindigenous traditions.
"Tres llamamientos" and "pau-brasil" also elucidate the common avant-garde sources they
shared. ln addition to Cézanne, whose art they considered the foundation for a new sensibility,
it is evident that these artists subscribed to the rappel-a-l'ordre that informed postwar avant-garde
neo-classicist tendencies, mainly in France and ltaly (B. Cendrars, F. Léger, G. de Chirico, C. Carrà,
etc.). Undoubtedly, here lies the regressive aspect oftheir progressive utopias.This is particularly
surprising in Oswald, whose earlier avant-garde masterpiece, Memorias sentimentais deJoão Mira-
mar [Sentimental memories ofJoão Miramar] (1917-1925) had been clearly inspired by cubo-
futurist montage. ln "pau-brasil," however, the dadaist impulse has given way to the exaltation
of synthesis and equilibrium, a stance that brought him closer to Siqueiros's own neoclassicist
pole. 9 As l have argued elsewhere,lO the Mexican painter's inclination towards classicism is but
one end of the constant oscillation between dynamism (a concept originally coined by futurism)
and the rational return-to-order, whose ambivalence characterized his entire oeuvre. lndeed, the
metaphor of the artist as "engineer" or "constructor" of a new age is present in both texts. l l

328 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Thus, where Siqueiros called for "the preponderance of the
constructive spirit over the decorative or analytical," the lan-
guage of "cones, spheres, cylinders and pyramids" as "the
scaffold of all plastic architecture," and subjection to the "invi-
olable laws of aesthetic equilibrium," Oswald listed "synthesis,"
"equilibrium," and "the constructive spirit," as the keyelements
of the new avant-garde aesthetic. 12 Moreover, both called for a
new perspectíve, a new scale, and dynamísm as the basis for the
new forms of expression.13 The emphasis on dynamísm serves
to establish Siqueiros's and Oswald's links to futurismo Futur-
ism-both in its original form as well as in its postwar hybrid
incarnation of "cubo-futurism"-fascinated both artists,
however, the fascist affiliation of the movement inhibited
them from publicly acknowledging its influence upon their
work. This is particularly evident in the celebration of modern
life and technology that informs these manifestoes. Siqueiros,
for instance, enthusiastically declared, "We must líve our mar-
velous dynamíc age! Love the modern machine, dispenser of
unexpected plastic emotions, the contemporary aspects of our
daily life, our cities in the process of construction[ .. .]" Oswald,
in turn, reveled in the "new forms of industry, transportation, aviation. Electric posts. Gas sta-
tions. Railroad tracks."14 The full awareness of the artistic and mythical potential of modern
mythical technology was, thus, an operative factor in their theory and practice.
The purpose of the artistic and ideological credo set forth in "Tres llamamientos" and
"pau-brasil" was not only Mexican and Brazilian forms of expression, but to serve as the basis
for the radical cultural project of this avant-garde in our continent. Both manifestoes already
announced the transgressíve ímpetus through which both artists sought to challenge the authority
of the Eurocentric idea of culture. This mo de of transgression was rooted in their paradoxical
recovery oftwo incongruous elements: our indigenous NewWorld civilizations and the techno-
logical means unleashed by modernization. De Andrade's multiple references to the "credulous
and dualist race" and later to the Tupi, as well as Siqueiros's admiration for pre-Columbian
societies (particularly the Aztec and Maya) , point to their beliefin a Golden Age whose degree
of civilization, in their minds, equaled or surpassed in their time that of their contempo-
raries. iS For Oswald, it was clear that, after the initial achievements of the Brazilian avant-garde,
the task at hand lay in "Being local and pure in his region and time."16 For the Mexican, too, the
main objective ofthe future was to "come closer to the work ofthe ancient settlers of our valleys,
the Indian painters and sculptors (Mayas, Aztecs, Incas, etc.)" whose work embodied all the
principIes of synthesis and equilibrium that contemporary art struggled to -emulate. At the
sarne time, Siqueiros rejected false "nationalisms" or "archaeologisms" in favor ofthe right
of Mexicans and Latin Americans to express themselves at a universal leveI. Accordingly, he
strongly advised that the search "to be modern and international first and foremost" should not
detract Latin American artists from the essential goal: "We must contribute artistic values 'of our
own to world aesthetics."17
It could be argued that the tension between the indigenous past and the technologically-
dominated future found expression in the shocking notion of a regressíve utopía at the core of their
María dei Carmen Portela 1933 óleo sobre tela [oi l on canvas] 85,5x65,5cm coleção Natal ia e Maurício Kohen, Buenos Aires

329 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


radical projecto This form of utopia exemplifies Siqueiros's and Oswald's resort to contradiction
as a productive politicaI and ideological strategy. The tension between the pre-Cabralian/pre-
Columbian past-still free ofEuropean domination-and the technocratic society ofthe future,
is the motivating force that stimulates their need to write and theorize about art. That sarne ten-
sion drove them to simultaneously ponde r their utopian vision of the present vis à vis the histor-
ical reality of their time. From the tension between the mythical and the historical, there thus
emerged a new criticaI, theoretical, and creative vision for the art of our continent. ln this respect,
their project closely paralleled that oftheir contemporary Mário de Andrade, who declared: "We
are the aborigines of a future perfection."18 From their point ofview, the challenge was to assume
the right to both produce and export original cultural products. Brazilian and Mexican art would
thus cease being peripheral, becoming a rich productive force and an "exportable" raw material.
The role oftechnology, then, woÚld be to facilitate a new form of exchange between the Old and
New World societies. As a result ofthis exchange "the universality ofthe epoch would cease to be
ex-centric in arder to become concentric; the world would become regionalized and the regional
would thus contain the universal."19
Continuous parallelisms between their avant-garde models became even more accentuated
in writings ofthe late I920S and I930S, particularly de Andrade's "Manifesto Antropófago" (r928),
the Prologue to Serafim Ponte Grande (I933), and Siqueiros's "Rectificaciones sobre las artes plás-
Siqueiros com [with] Antonio Pujol, Luis Arenal, Miguel Prieto, Antonio Rodrigues Luna e Josep Renau Retrato de la burguesia
jPortrait of theburgeoisie] detalhe 1939-40 mural Sindicato Mexicano de Eletricistas coleção Tabacalera, Cidade do México

330 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


ticas en México" [New thoughts on the plastic arts in Mexico] (I932). Their affinities related to
the way in which-fully confident oftheir cultural heritage and optimistic about the future-
they proposed to assimílate (to their own ends) the artistic and culturallegacy ofthe West. ln
Oswald's "Manifesto antropófago," the recovery of native cultures initiated in "pau-brasil" is
thus elevated, through the symbolic exercise of cannibalism, to a cultural practice. This model
implied the absorption of"the Other's" values ("the Sacred Foe") to construct one's own. Thus,
antropofagia represented a process ofblending of other cultures (African, lndian, Portuguese) in
the formation ofBrazilian culture. Artistically, it posited the radical devouring of existing literary,
philosophical or artistic mhdels as a means of constructing a new movement founded on a spe-
cific regional ethos. ln Siqueiros's case, the type of cultural and artistic assímílation proposed by
de Andrade worked both through the notion of mestízaje as well as the seemingly absurd notion
of an avant-garde based on tradícíón. From the very beginning, Siqueiros believed in an art that
would merge the best of our continents' racial and cultural heritage. Thus, in the "Three appeals"
(as well as in his writings ofthe I920S and I930S), Siqueiros posited a new definition oftradítíon
that represented an inversion of its function within the Eurocentric model. Shedding its refer-
ences to stale cultural systems (ancíen régime societies), tradícíón was "the accumulation of expe-
riences" derived from American and European artistic movements which should serve as the
foundation for the Latin American artist's work. Thus understood, tradicíón, became associated
with the idea of an unlimited reservoir for New World art. 20 ln both models, the result was a
hybrid notion of avant-garde art and culture that dísmíssed the copy in favor of a simultaneous
appropriation ofboth European and indigenous sources.
Additionally, they duly emphasized the constructive spirit ofthis New World avant-garde
which saw itself as an agent of the esprit nouveau for building an artistic movement grounded on a
less unilateral paradigm of cultural identity. ln de Andrade's case, however, identity was not a
topic to be represented but, rather, the right ofboth individuaIs or groups to freely exercise their
self-determination. Antropofagia was, thus, nothing less than the exercíse ofídentíty, Le. the poten-
tial of individuaIs to legitimize themselves in relation or opposition to hegemonic Otherness.
Supported by these values, Oswald's antropofagia was a slap against all forms of colonialism, a new
beginning, an emancipation through art. While there is no doubt that the anthropophagous par-
adigm was his terrain, I must underscore that Siqueiros also conceived of identity as a function
of legitimation and not an issue of representation. ln terms of modern culture, the synthesis
implicit in tradícíón is a condemnation ofboth foreign and internal forms of politicaI domination
as well as a strategy for the assertion of indigenous values ignored for centuries. As he himself
explained, "1 believe that a set of circumstances (tradition, geography, race and social condi-
tions) have given us the possibility of accomplishing something which would be a real contribu-
tion to universal beauty, and yet be alien to the snobbism sá characteristic ofEuropean culture
today."21 Dominance, then, became for both the "sacred foe."
Despite the divergent emphasis which each artist placed on the value of "the new" (de
Andrade leaning more towards dadaism while Siqueiros remained more in line with neoclassi-
cism), Oswald's literature and Siqueiros's mural and easel production ofthat time "devoured" a
number ofkey influences (techniques, processes, materiaIs) transforming them into tools for
contradiction. 22 By doing so, they produced novel paradigms for both Latin American literature
and the visual arts which are really ungraspable in their syncretism of antinomic elements. This
convergence of emancipatory vision and purpose is nowhere more evident than in the value they
accorded to the new means oftechnical reproductíon (photography and cinema) in their conception
of an avant-garde practice after I933. Siqueiros's notion of a cínematographic mural-which he

331 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramirez


began to elaborate in Los Angeles and Buenos Aires and which culminated in the monumental
Retrato de la burguesia [Portrait of the Bourgeoisie] (Mexican Electricians Union, Mexico City,
1938- 40)23- finds an astounding equivalent in Oswald's conception ofthe mural noveI exempli-
fied by his work-in-progress: Marco zero (1933-1945), an unfinished epic in three volumes which
de Andrade considered the most important collage-challenge ofhis career. For Siqueiros, the cine-
matographic mural represented "the union of monumental painting with cinematography [... ]."
As such, it synthesized both his well-known experiments with new technologies and materiaIs
(photography, cinematographic camera, airbrush, stencils, mechanical brush, etc.) as well as
his long-time absorption offuturist theory and practice. Simultaneously, Oswald's mural noveI,
"participate[d] of painting, cinema and public debate," tending towards "social phrasing."
The structuring element ofthis novel was the "cinematographic prose," a resource present since
his early writings, which Antônio Cândido has characterized as consisting of"scenic disconti-
nuity" and the "attempt at simultaneity." 24
Despite the geographic and cultural differences that separated them, the similarity of
response ofthe two creators to the dilemma oftheir epoch is not only highly revealing but poses
some mandatory questions: a) What factors drove both artists to develop such similar avant-garde
approaches to the ancient media of mural painting and to traditional narrative? b) What does this
coincidence have to say about the status and role of avant-garde practice in our exfcentric context?
Clearly, the resort to cinematographic montage as the most important creative principIe of their
work in the 1930S was the result ofa period in each oftheir lives when the politicaI factor took
ove r as the driving creative impulse. For Oswald, this crisis was the result of the economic disas-
ter of 1929 ("Black Tuesday") which severely affected the Brazilian coffee-based economy. The
latter had, for a long time, supported his family's economic interests. Shortly afterwards, de
Andrade rejected his previous position as member ofthe São Paulo avant-garde to join the Com-
munistParty. ln Siqueiros's case, a two-year period ofimprisonmentin Taxco (1930 - 32) was fol-
lowed by almost a decade of exile (Los Angeles, Montevideo, Buenos Aires, New York, Spain
(during the Civil War) marked by staunch politicaI activism on behalf ofthe antifascist cause.
The socio-political struggles to which they were committed during this time brought about a
similar awareness ofthe key politicaI and artistic is sues affecting their era: the ascent offascism
and the challenge that mass media brought upon traditional forms of art (painting and sculpture).
As in the 1920S, they were quick to visualize and theorize about the criticaI role avant-garde art
should play in this monumental world crisis. Thus, in the early 1930S, Siqueiros and Oswald-
even before their German contemporary Walter Benjamin (1934)-:-were able to foresee the role
which both ofthese factors would play in structuring the future as well as the role of cinema in this
processo Above all, theywere keenly aware ofthe ascent ofthe masses as the principal receptors of
a new type of artistic experience characterized by "the lack of aura."25 Needless to say, very few of
their contemporaries in Latin America shared in these concerns or even suggested their equation.
Whether applied to a wall or to a novel, the principIe of cinematographic montage provided the
key for an art that would merge their avant-garde concerns with the nonorganic work of art with
the ideological need to make art accessible to the masses in their struggle against fascismo As prac-
ticed by the principal movements and tendencies ofthe European avant-garde between 1919-1942,
this illustrative principIe consisted in the juxtaposition of disparate elements (originating in
diverse semantic or visual contexts) in onesame composition. The fusion ofthese images in a
single plane or sentence not only contradicts the organic nature of the traditional work of art, but
simultaneously underscores its status as an artificial construct. Montage presupposes the frag-
mentation of reality and its impossiblity ofsynthesis in the nonorganic work of art. Such an impos-

332 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


sibility is experienced as "shock" by the viewer or reader who is called upon to actively participate
in the process of completing the work's meaning. The use of this resource by Siqueiros and
Oswald, must be seen in light of the contradictions posed by revolutionary practice itself in the
mid-I930S.26 ln fact, like Benjamin, Siqueiros and de Andrade both felt that the radical avant-
garde achievements of the previous de cad e were insufficient to counteract the overwhelming
enemy: fascismo Even the anthropophagous modellost its edge when confronted with this phe-
nomenon, which, in Oswald's own words, resembled a "burst of smallpox."27 ln light ofthese
contradictions, the application ofthe montage technique to the mural or novel represented a way
of producing a form of "authentic realism" capable of competing in psychological impact
("shock" as an~lyzed by Benjamin) with cinema. lndeed, their approach to montage differs sub-
stantially from popularized versions of this technique, such as those represented by the well-
Siqueiros com [with ] Antonio Pujol , Lui s Arenal, Miguel Prieto, Antonio Rodrigues Lun a e Josep Renau Retrato de la burguesia
[Portrait of the burgeoisie] detalhe 1939-40 mural Sindicato Mexicano de Eletricistas coleção Tabacalera, Cidade do México

333 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


known politicaI montages of John Heartfield. ln their work of
the 30S and 40s, rather than emphasize the complete disconti-
nuity of fragments, Siqueiros and Oswald tended towards a
type of montage based on narrative totalíty. While in strict
terms, the emphasis on the work of art as embodying any kind
oftotality ran counter to the beliefin fragrnentation that charac-
terized avant-garde practice,28 it nevertheless allowed them to
document aspects of our socio-political reality in conflictive
but outstanding ways.
ln this context, Siqueiros's cínematographic mural and
Oswald's mural noveI ofthe 1930S represent updated versions of
the regressive utopia ofthat decade. As in the latter concept, they
sought to rnerge contradictory elernents into a productive polit-
icaI strategy which was a priority for both. Both represent orig-
inal (let us say, exlcentric) responses to the blind alley of
avant-garde European painting and literature during the criticaI
rnanifestations of the 1930S, mainly socialist realismo At the
sarne time, the paradoxical attempt to re-create the illusion of
movement on a wall or a page-using the essentially static
resources of language or painting-was coherent with the
ungraspable contradictions of the avant-garde models elabo-
rated by Siqueiros and Oswald ten years before, for which I
have coined the terrn regressive utopia. ln both cases, instead of
abandoning the pictoric or literary medium in favor ofthe spa-
tio-temporal illusion of the cinematic rnedium, they gambled
on the idea of "re-activating" both painting and literature
through the technical means provided by cinema. Genuinely
concerned with the future of art, they were openly antagonistic
to the de-humanizing effect that mass-media provoked on the
age-old genres of mural painting and the nove!. Once again, a
spirit of contradiction was the guiding force of their actions.
Siqueiros's and Oswald's regressive utopia represents an exemplary response ofthese avant-
garde pioneers to the contradictions between the persistence of our indigenous past and the
modernizing impulse ofthe avant-garde in the exlcentric context ofLatin America. Both artists
understood the avant-garde not as a problem of style, but as an active agent in the construction
of a new cultural identity for our societies. ln this framework, "the new" consisted ofthe syn-
cretic blending of the selected elements oflocal and universal cultures. Siqueiros and Oswald
worked hard to articulate an emancipatory, revolutionary praxis, as a criticaI space that would
mediate regional and hegemonic concerns. By creatively assuming the syncretic and conflictive
nature of our societies, while "devouring" chosen elements of"Sacred Otherness," the avant-garde
became an active agent of social change. ln such a context, contradiction must be read as a persis-
tent desire for equilibrium; while regressive must be understood as being the only "progresive"
option in a world shaken byabsurdity. Mari Carmen RamÍrez
EI sollozo o choro [The sob] 1939 esmalte sobre madeira prensada [enamel on compos ition board] 123,2x62,9cm coleção The
Museum of Modern Art, NovaYork

334 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. On the basis of available documentation, it is difficult to "Tres llamamientos," 1990, P.242; "Um quadro são linhas e
establish whether or not Siqueiros and Oswald ever met or cores. A estatuária são volumes sob a luz.," Oswald de
whether or not theywere aware of each other's work. We know Andrade, "palo-del-brasil," 1981, p.6.
that Siqueiros spent approximately 48 hours in São Paulo and 14. Siqueiros, "Tres llamamientos," 1990, P.241; Oswald de
Rio de Janeiro on his way to Montevideo in 1933. However, Andrade, "palo-del-brasil," 1981, p.6.
given the astounding parallelisms between their theoretical IS. "We shall also find in the work ofthe American Indians
and artistic formulations, establishing this type of causal rela- the metaphysical complement inherent to the masterpieces of
tion is ultimately not relevant to a comparative study of their all the world and all the ages," Siqueiros, "Rectificaciones
artistic and intellectual objectives. sobre las artes plásticas en México," lecture delivered at clo-
2. Towards the end ofthe "Manifesto antropófago" (1928), sure of exhibition in the Casino Espanol Gallery, Mexico City,
Oswald underscored the struggle between the "not-yet-created Feb. 18, 1932, Raquel Tibol, "Documentación sobre el arte
[Incriado] and the enlightened creature [Criatura] on account mexicano," México: Fondo de Cultura Económica, 1974,
of the permanent contradiction between man and his Taboo." PP.37-S2; reprinted in "New thoughts on the plastic arts in
Oswald de Andrade, "Manifiesto antropófago," in Obra esco- Mexico," in Art & revolution, Sylvia Calles, trans., London:
gida, Haroldo de Campos, ed., Caracas: Biblioteca Ayacucho, Lawrence and Wishart, 1975, pp.26-37; 31-32.
Héctor Olea, trans. 1981, pp.62-72; 72. 16. Oswald de Andrade, "palo-del-brasil," 1981, P.7.
3. "Ex/centric" here does not imply "bizarre" or "exotic." It 17. Siqueiros, "Rectificaciones," in Tibol, 4S; Art & revolution,
refers, rather, to those conditions that escape the parameters 1975, P·33·
of central hegemonic models. For a discussion of this term 18. Cited in Benedito Nunes, "Antropofagia ao alcance de
and its applicability to Siqueiros's model; see Mari Carmen todos," in Oswald de Andrade, Obras completas VI, Do pau-brasil
Ramírez, "EI clasicismo-dinámico de David Alfaro Siqueiros. à antropofagia e as utopias, 2nd. ed., Rio de Janeiro: Civilização
Paradojas de un modelo ex-céntrico de vanguardia," Otras rutas Brasileira, 1972, xxiiL
hacía Siqueíros, Olivier Debroise, ed., Mexico, DF: Munali Curare, 19. Benedito Nunes, in ibid.
199 6 , PP.12S-46; 126-27. 20. Siqueiros, "Towards a transformation ofthe plastic arts:
4. For an in-depth discussion of this issue see Ramírez, The plans for a manifesto," Art & revolution, New York, June 1934,
ideology and politics ofthe mexican mural movement, 1920-1925, P-4S·
Ph.d. diss., University ofChicago, 1989, chaps. III-V. 21. Siqueiros, "Rectificaciones ... ," in Tibol, 46; Art & revolu-
S. David Alfaro Siqueiros, "Tres llamamientos de orientación tion, P.33.
actual a los pintores y escultores de la nueva generación ameri- 22. See Héctor Olea, "La contradicción permanente (Oswald
cana," Modernidade: vanguardas artísticas na América Latina, Ana de Andrade)," Negatividad y poéticas: lo oculto y lo manifiesto dei
Maria Belluzzo, ed. São Paulo: Memorial da América Latina: culto manlfestista, Ph.D. diss., The University ofTexas atAustin,
Unesp, 1990, P.240. Originally published in Vida americana, AnnArbor: UMI, 1992, PP.3S1-67.
Barcelona, n.l (May 1921), n.p. 23. For an in-depth discussion ofthe genesis and evolution of
6. De Andrade, "Manifiesto de poesía 'palo-del-brasil,'" in this concept in Siqueiros's oeuvre, see Mari Carmen Ramírez,
Obra escogida, Haroldo de Campos, ed., Héctor Olea, trans., "Las mas as son la matriz: teoría y práctica de la plástica deI
2-7. First published in Correio da manhã [Rio de Janeiro], 18 movimiento en Siqueiros," Retrato de una década: David Alfaro
March 1924, n. p. Siqueiros, 1930-1940, Mexico City: Museo Nacional de Arte,
7. Héctor Olea has identified the paradoxes ofSiqueiros pio- INBA, 1996, PP.68-9S.
neering manifesto of 1921 in relation to other manifestoes of 24. Antônio Cândido, "Literatura e cultura, de 1900 a 1945,"
its time. See "EI pre-estridentismo: Siqueiros un anti-héroe en in Literatura e sociedade, 1965, sth ed. (São Paulo: Companhia
el cierne del anti-sistema manifestario," Otras rutas hacia Editora Nacional, 1976, P.131. As Haroldo de Campos stress-
Siqueiros, Olivier Debroise, ed., 1996, PP.91-123. For the spe- es in his prologue to Oswald's works (1981), xvii, "the notion
cific points of contact between this manifesto and Oswald's of cinematographic prose," already appears in Oswald de
"pau-brasil," see "Copia original" and "Constructivismo Andrade's early work Trilogia do eXl1io (Os condenados) written
Cézanneano," p.IIS-II6. between 1917-1921
8. Siqueiros, "Tres llamamientos," 1990, P.240. 2S. Walter Benjamin, "The work of art in the age of mechani-
9. See Benedito Nunes, "Antropofagia e vanguarda-Acerca do cal reproduction," 1934, Illuminations, Hannah Arendt, ed.,
canibalismo literário," in Oswald canibal, São Paulo: Editoria Harry Zohn, trans., NewYork: Shocken Books, 1969, pp.217-
Perspectiva, 1979, P.7-38; 29. Please note thatNunes refers to 2S1; 234-3S.
the conventional use ofthe term "ex-centric." 26. See Ramírez, "Las masas son la matriz ... ," 1996, pp.87-
10. See Ramírez, "EI clasicismo-dinámico," PP.12S-46. 94·
II. "Ingenieros en vez de jurisconsultos," de Andrade, "palo- 27. Oswald de Andrade, "Prologue to Serafim Ponte Grande,"
del-brasil," 1981, P.4; "According to our dynamic or static in Obra escogida, Haroldo de Campos, ed., Márgara Rusotto,
objectivity, let us be constructors first and foremost," trans., 1981, P.7S.
Siqueiros, "Tres llamamientos," 1990, P.24I. 28. Siqueiros's application of montage to mural work-as
12. Siqueiros, "Tres llamamientos," PP.241-42; de Andrade, exemplified by the extraordinary Portrait of the bourgeoisie-
"palo-del-brasil," P.S. benefited from his collaboration with Spanish montage artist
13. "[... ] the fundamental basis of a work of art is the mag- Josep Renau who favored a form of "narrative" montage
nificent geometrical structure of form and the concept of more suited for the illustration of"movement" on a wall. See
the interplay of volume and perspective which combine to Ramírez, "Las mas as son la matriz ... ," pp.87-94.
create depth; 'to create spatial volumes [... ],''' Siqueiros,

335 David Alfaro Siqueiros Mari Carmen Ramírez


curadoria Paulo Herkenhoff

A cor no modernismo brasileiro-


a navegação com muitas bússolas

A cor na obra de Anita Malfatti explode fulgurante em Nova York (1915-1917) para esmaecer no
Brasil. Aqui sua pintura mingua a vibração cromática expressionista. Tropical, sua primeira pin-
tura importante feita no Brasil, beira o retrocesso. Transforma a alegria tropical em lament01.
Retoma o desenho como guia seguro, repõe a relação figura/fundo e perde luminosidade. Parece
lançar-se à disputa renascentista disegno versus colore. Não há mais as ousadias de O homem ama-
relo. Paradoxalmente, morre a cor nos trópicos. Tudo volta ao bom comportamento acadêmico,
como protestava Mário de Andrade. Frente à pintura de Malfatti, o escritor Monteiro Lobato for-
mulou sua perplexidade, que arrasou emocionalmente a artista: "paranóia ou mistificação?"2 É a
dúvida da voz patriarcal: sendo isto obra de uma mulher, é comparável a qual responsabilidade
civil limitada: à arte dos loucos ou à arte inconseqüente das crianças? Reagindo às pressões do
meio, Malfatti desconfirmaria suas observações de fenômenos cromáticos. Tanto seria a mártir
involuntária do modernismo quanto uma espécie de índice da impossibilidade de ser moderna
em sua terra.
Pouco antes da Semana de Arte Moderna, Graça Aranha, um de seus promotores, publica
Estética da uida, apontando a falta de comunhão da alma brasileira com a natureza, porque as "três
raças" formadoras do Brasil atuavam por um artificialismo cultural. A melancolia portuguesa,
a "infantilidade africana" (ilusionista frente à realidade natural, produzindo "terror cósmico")
e a "metafísica do terror" dos índios (enchendo de fantasmas os espaços entre o espírito humano
e a natureza)3. Urgia transformar sensações em paisagem-cor, linha, planos, massas-em
arte. "A cultura brasileira deverá se constituir a partir de uma nova relação com a natureza
brasileira", observa Eduardo Jardim de Moraes, avaliando o peso inicial de Graça Aranha sobre
o modernism04 • Para Benedito Nunes, Oswald de Andrade operou "uma inversão parodística da
filosofia de Graça Aranha": a metafísica bárbara é recuperada em antropofagias.
Vicente do Rego Monteiro inaugura o projeto modernista de cor. Estudou e desenhou obje-
tos da arqueologia amazônica no Museu Nacional do Rio de Janeiro (1920) e no Musée de
I'Homme de Paris (1923). Leu Barbosa Rodrigues e Couto Magalhães 6 • Debret o inspira em O ati-
rador de arco (1925). Seus desenhos sobre lendas indígenas 7 exibidos no Rio de Janeiro em 1921
são um marco inicial do processo de formulação da brasilidade e revogam o modelo de índio de
Chateaubriand. A obra de Rego Monteiro incorporou valores plásticos amazônicos como paleta,
volume, forma e redução da figura. As cores evocam terra cozida e a pintura em engobe. Suas
figuras têm uma vontade de volumetria como relevos de cerâmica. É mesmo possível retraçar a
relação entre peças de cerâmica específicas copiadas e a reelaboração formal em sua pintura.
Nas telas Menino sentado (1923) e Madona e menino (1924), a criança sai de uma cerâmica Santarém

336 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


de base lunar. Cabeça, orelha, seios e pernas dobradas em paralelo dessa madona seguem os
padrões das urnas ossuárias Tapajós-Trombetas de Miracangueira, como nas peças (lnv. 9702 e
8628) do museu carioca. As urnas funerárias com figura sobre tartaruga de Maracá (Amapá),
desenhadas no museu parisiense, semelhantes às do Museu Nacional (lnv. 5445), são a fonte
direta para a tela O menino e a tartaruga (1924). As cabeças dos seus personagens na série reli-
giosa (1922-1925) de A crucifixão, Fuga para o Egito, A descida da cruz, A adoração dos reis magos e A
santa ceia inspiram-se nas tampas em forma de cabeça das urnas Maracá, copiadas no Rio de
Janeiro. Embora sem a mesma elaboração teórica, Rego Monteiro precede a Torres-García na
incorporação dos aspectos simbólicos das culturas nativas da América. Torres-García elaborará
parcialmente um modelo de dimensão continental, porque o território uruguaio não é uma
província arqueológica marcante. A cerâmica mais complexa no Brasil é proveniente da Amazô-
nia s . Analisando a crise da idéia de história, afirma Gianni Vattimo que "filósofos do Iluminismo,
Hegel, Marx, positivistas, historicistas de todo tipo pensavam, mais ou menos todos eles do
mesmo modo, que o sentido da história era a realização da civilização, quer dizer, da forma do
homem europeu moderno" .9Insistimos em que, se para Hegel a selva era espaço fora da história,
para os artistas brasileiros seria a única possibilidade para afirmar uma história autóctone,
anterior à colonização, no projeto político moderno de emancipação cultural.
Nos anos 40, o escultorVictor Brecheret gravou seis pedras incisas 10 , inscrevendo símbolos
arcaicos amazônicos na forma natural da pedra rolada pela água. Éo caso Luta de onça e índia e o
peixe. Um precedente é a escultura de Max Ernst, Oual bird [Pássaro oval] (1934), cujo provável
paralelo para William Rubin seria o objeto Bird-Man [Pássaro-Homem] da Ilha de Páscoa (British
Museum). Ernst esculpe na pedra rolada. Brecheret grava a superfície com uma interferência
Vicente do Rego Monteiro Mani Oca (O nascimento de Mani) [Mani Oca (The birth of Mani)] 1921 aquarela e nanquim sobre papel
[watercolor and ink on pape r] 28x36,5cm coleção e cortesía Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo foto
Fernando Chaves

337 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


econômica, para fixar cosmogonias e identidade. A
história é escritura a ser decifrada.
O hedonismo de Di Cavalcanti se inscreve como
auto-representação da arte de mestiçagem . Sua pin-
tura Samba, como o carnaval carioca, é a "festa da
raça" do "Manifesto pau-brasil" ('924), de Oswald
de Andrade. Luis Martins diz que dos quadros de
Di "exala um cheiro forte, penetrante e lúbrico de
mulatas despidas".11 Hans Nobauer, do círculo de
Guignard, pinta o primeiro desfile da Mangueira,
que seria depois o território antropofágico de Hélio
Oiticica. Na cartografia do carnaval, Tarsila vai ao
subúrbio carioca de Madureira, terra das escolas de
samba Portela e Império Serrano, cercanias do morro
da Serri n ha, Iugar de jongo. AI i encontra a torre Eiffel
na decoração da folia. Numa década em que é neces-
sário ir à Europa, a pintura RiofParis de Ismael Néri é
outra alegoria do significado da cultura francesa para
o modernismo brasileiro.
"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e
filho do medo da noite", anuncia Mário de Andrade. A natureza na brasilidade modernista é
simbolizada na selva. "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade", anotou Oswald de Andrade no "Manifesto antropófago". Muito antes, Mário de
Andrade havia convocado Tarsila a retornar às raízes nacionais, que era aquele mesmo mato:
"volta para dentro de ti mesma. [ ... ] Abandona Paris! Tarsila! Vem para a mata-virgem".12
Tarsila veio e inventa um Brasil em pintura mod erna 13.
É em Paris que Tarsila descobre o Brasil. Viajara com Oswald de Andrade e estuda com
Lhote, Gleizes e Léger. Éem Paris que descobrem um outro olhar sobre o negro, cultura desau-
torizada no Brasil na ideologia remanescente da tradição escravocrata brasileira e ausente na
pintura acadêmica brasileira-quase excluído na pintura de AlmeidaJúniore presença contro-
vertida na obra de Modesto Brocos.
A negra é obra episódica do ano de '923. Nesse ano, Tarsila e Oswald conhecem Blaise
Cendrars, que os apresenta a Brancusi. Cendrars sempre teve afinidade com a cultura africana.
Sua Antnologie negre era conhecida de Oswald. O casal convive com outros brasileiros que elabo-
ravam em Paris seus projetos de brasilidade. Villa-Lobos avançara com sua música de fusão de
heranças européias, indígenas e africanas. Rego Monteiro já dera clareza a seu projeto de arca-
ísmo indigenista. Tarsila pinta A negra. Em sua conferência sobre o Brasil em '923, Oswald afirma
sentirem Paris "a presença sugestiva do tambor negro e do canto do índio. Estas forças étnicas
estão em plena modernidade". Concluindo, menciona Rego Monteiro "que se lançou de maneira
particular na estilização de nossos motivos indígenas [... ] Tarsila do Amaral que alia os assuntos
do campo brasileiro aos processos mais avançados da pintura atual".14
A monumentalidade de A negra, Abaporu e Antropofagia tem sua gênese. Em '923, o mura-
lismo mexicano apenas engatinha. O Traité du paysage de Lhote oferece pistas, inseguras porque
sua primeira edição data de '939. Lhote afirma que "EXAGERAR, DIMINUIR, SUPRIMIR são as
Urna funerária antropomorfa-fase Maracá [Funerary anthropomorphic urn -Maracá phase) s.d. coleção Museu Nacional Quinta
da Boa Vista, Amapá foto Vicente de Mello

338 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


três operações que o artista deve constantemente praticar. Trate-se de linhas, valores, cores ou
superfícies" .15 É necessário entender o que pensava e pintava Léger por volta de 1923, quando
Tarsila freqüenta seu ateliê 16 . Num artigo afirma que "a exposição dos volumes, das linhas e das
cores exige uma orq uestração e u ma ordem absol utas", concl uindo sobre o "o estado de inten-
sidade plástica organizada" diz que "por isso aplico a lei dos contrastes, que é eterna como
meio de equivalência à vida".17 Léger, em textos como "À propos de I'élement méchanique" [A
propósito do elemento mecânico], preocupava-se com a mecanização da pintura. "Vivemos em
um mundo geométrico, é inegável, e também em um estado freqüentemente de contrastes."18
O Rio e São Paulo de Tarsila são bucólicos frente à agitação da cidade européia do futurismo
e do cubismo.
A obra de Tarsila nada tem de cubista-só se considerarmos seus exercícios no ateliê de
Lhote e Gleizes como arte amadurecida. Seu pretenso "pós-cubismo" apenas reflete, portabela,
uma etapa do desenvolvimento da obra de Léger. Toda a pintura de Tarsila esteve sempre aquém
da complexidade da lógica cubista, que ela jamais compreendeu plenamente. Isto não detrata
Tarsila nem seu papel fundante do "projeto construtivo" brasileiro. Os três estudos preparató-
rios e a pintura final de A negra indicam que Tarsila partiu do tema, sem ter realizado nenhum
exercício de "contrastes da forma" ou de qualquer outra relação sintética ou analítica do cubis-
mo. Trabalhou apenas a figura temática da mulher com a folha. O fundo geometrizado não
articula a lógica construtiva ou cubista, parecendo apenas aposto para preenchimento do
fundo. Esse problema de A negra já surgira em 1923 com Natureza morta e La tasse [A xícara]. É um
geometrismo canhestro que não integra figura e fundo como Légerfaria em sua pintura, como
Le remorqueur [O rebocador]. Tarsila nunca reduziu o espaço à dimensão planar ou à noção de
superfície; com boa vontade veríamos isto na arquitetura das casas. No período pau-brasil
recorreu a diagonais (Morro da fauela, O mamoeiro), horizontes (O uendedor de frutas), sobreposição
de acidentes geográficos (Palmeiras) ou construções (São Paulo, E.F.C.S.) para projetar profundi-
dade tridimensional, perspectiva clássica de descrição do espaço. Note-se que Tarsila absorve
várias soluções de Léger. Os vegetais são volumes sólidos (como na folha de A negra e nas árvores
com copas esféricas, e não simplesmente circulares, como em São Paulo, entre outras), replicando
a solução formal de Léger em desenhos e pinturas como Paysage animé [Paisagem animada]
(1921), em que os volumes não surgem por sombras cinzas, mas por tons verdes em dégradé.
Em Paysage auec frgures [Paisagem com figuras] (1921), de Léger, os morros curvos são povoados
por árvores com copas modeladas como sól idos; tudo contrasta com a geometria angu losa das
casas. "Oponho as curvas às retas/ângulos, as superfícies planas às formas modeladas"19, diz
Léger, o que Tarsila realiza em A negra. A estrutura piramidal da paisagem, acumulando
elementos, passa de Léger a Tarsila. Há alguns anos, Légerestava marcado por fatores básicos do
Purismo de Ozefant e Jeanneret: standardização e repetiçã0 20 . Tarsila retomou seus recursos de
Paysage auecfrgures: a cabeça dos personagens estiliza-se como esfera, uma ponte de ferro funciona
como desenho gráfico modular21 , que Tarsila apresenta nas variantes de balaustradas e pontes
de passagem de nível no período pau-brasil. Léger prega opor "os tons locais puros aos cinzas
cheios de nuance". Tarsila define uma cordo Brasil.
A cor caipira, do período pau-brasil, sintetiza o gosto visual das cidades coloniais barrocas
de Minas Gerais, dos subúrbios das grandes cidades e do universo rural. Celebra a ingenuidade
do vernáculo. Nas cenas urbanas, Tarsila ,não aponta choques entre natureza e modernidade. O
rural se sobrepõe freqüentemente ao mundo urbano, cujo maior símbolo continuará sendo o
fenômeno oitocentista do trem. Tarsila desenvolveu uma paleta brasileira, que não totalizando
o país, demarca sua teoria de cor. Era (, desejo de "pintarem brasileiro".22

339 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


A cor na obra de Tarsila será depois telúrica. A natureza-água, vegetação, seres, noite-
tem força cósmica. Abaporu (1926) é o divisor de águas da modernidade no Brasil. Antecede o
"Manifesto antropófago" de Oswald de Andrade, que criou o título da pintura composto por
vocábulos guaranis: aba (homem) e poru (que come). A forma fálica de Abaporu remete à Princess X
[Princesa X], de Brancusi, com sua matriz na arte Papua da Nova Guiné, e ao tratamento simi-
lar de um seio e mão. Muitas figuras e volumes na obra de Tarsila têm precedente na escultura
de Brancusi 23 • A beiçola de A negra e o casal de Antropofagia estão sintetizados em Adão e Eua
(1916-1921), de Brancusi.
O olho existe em estado selvagem, afirmou André Breton. A antropofagia é uma espécie de
subjetivação desse olho na paradoxal construção do moderno. O olho escuta, afirma Paul
Claudel, e a pintura antropofágica de Tarsila é marcada pelo silêncio, por noturnos e pelo sono.
O mesmo silêncio de Urutu, lago, estará nas gravuras de Goeldi para Cobra Norato. Os jogos de
arquitetura e sombra de O sapo induzem ao confronto com a pintura metafísica de De Chirico,
artista colecionado porTarsila com a tela O enigma de um dia (1914). "Houve um momento em que
o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uiraricoera, que a índia tapanhuna pariu
uma criança feia"-é como nasce Macunaíma ...
A brasilidade de Tarsila é um mundo sem conflitos, como uma sociologia de conciliação,
própria à ideologia da origem social da artista vinculada ao capital agrário. Sua pauta social
emergirá quando Tarsila se filia ao Partido Comunista. Estará refletida na tela Operários (1933),
Vicente do Rego Monteiro
Cacique sentado em tartaruga com cabeça humana [Chieftain seated on a human headed turtle] da série Les dieux en pierre Os
deuses em pedra [The gods in stone] 1923 coleção particu lar [private collection] , Paris
O menino e a tartaruga [The boy and the turtle] 1924 óleo sobre tela [oil on canvas] 45x38cm
à direita [right] Dois estudos de cerâmica indígena [Two studies of indian ceramics] c.1920 coleção particu lar [private coll ection],
Paris

340 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


denotação da pluralidade étnica da formação brasileira do século XX. O Brasil já não era o tripé
etnográfico de portugueses, africanos e índios.
Quando Lasar Segall imigra em 1924, o impacto da cor tropical resulta na mais violenta
re lação cromática de sua trajetória. É uma dupla relação de estranhamento e aproximação. "Vi-
me transportado sob a fulgência de um sol tropical cujos raios iluminavam a gente e as cousas
em seus recantos mais remotos e recônditos emprestando até ao que estava na sombra uma
espécie de resplandecência", descreve Segall esta fase em que a "vista se deixou fascinar pela
beleza exótica da natureza e submersa num deslumbramento de cores e formas ornamentais",
momento que Mário de Andrade denominou de "quase perdição".24
Segall representou o negro brasileiro com "a secreta nostalgia das raças exiladas",2s como
seres despregados das estilizações da então dita "arte negra", expressão do bom selvagem 26 .
Segall desloca a questão da arte negra para a condição social e os processos políticos da mesti-
çagem, a ponto de se auto-representar como mulato na pintura Encontro (1924), em que trata de
seu divórcio e da decisão de permanecer no Brasil 27 . A visão arcádica sempre foi problemática
em terras brasileiras, das primeiras paisagens pintadas no Brasil por Frans Post à poesia setecen-
tista em Minas Gerais. O bosque de Virgílio era uma ingenuidade-afinal o Brasiljá conhecia a
felicidade antes dos portugueses, argumenta o "Manifesto antropófago" . As paisagens
brasileiras elaboradas por Segall, confrontando o expressionismo alemão com a luz tropical, reve-
lam a descoberta da paisagem social. A síntese simbólica da temperatura cromática surge em
obras como Paisagem brasileira (1925) e Morro uermelho (1926). Uma compara-
ção entre a pintura Bananal (1927), de Segall, e Floresta tropical (1914), de Emil
Nolde, indicará o lado paradisíaco da imagem deste, enquanto que,mesmo
mantendo a vegetação luxuriante, a paisagem de Segall é claramente natu-
reza cultivada. O bananal, trópico ordenado, é um atributo do negro traba- )
lhador, da mesma maneira que Albert Eckhout denota a domesticidade da
índia tupi (1641) com a paisagem de fazenda como índice de sua adaptação
ao processo de colonização. Com Segall, a paisagem social será sempre
moral, marcada por uma ética do trabalho.
Guignard se perfila numa história da luz na arte brasileira. A intro-
dução da pintura en plein aircom Vinet, aluno de Corot, e Grimm traumatizou
o ambiente cultural do país. O impressionismo de Castagneto, concentrado
nos fenômenos de luz da baía de Guanabara, foi outra revelação. Certamente
Guignard viu o verde tropical luxuriante das luminosas paisagens de Baptista
da Costa. Quando chega ao Brasil, depois de longa permanência na Europa,
Guignard traz uma pintura espessa, às vezes sombria, marcada por satu-
rações cromáticas e pelo desenho conclusivo. Reestrutura sua pintura em seu <~ ->'~,;;

período no Rio de Janeiro (1929-1944). A topografia carioca leva à adoção da \


perspectiva vertical semelhante à perspectiva chinesa 28 . Em Itatiaia encontra
a rarefação da matéria nas brumas como transiência do tempo e evanescên-
cia do mundo-o sublime nos trópicos. A pintura pastosa se tornará trans-
parente como uma aquarela. Nossa atmosfera será como um fenômeno
atmosférico úmido e em suspensão. Suas brumas perderão a espessura da
pasta comparada com Castagneto. O arabesco em seu desenho, mal com-
parado a Dufy, tem a modulação delicada, a firmeza e precisão inaparentes
de um traço de Matisse. O vocabulário de brinquedos ou a paisagem entre
capriccio, com igrejas barrocas e cidades presépios, já estavam em As gêmeas.

341 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


A cor surge da decoração dos oratórios barrocos mineiros e é intermediada pela luz noturna e
brumosa. Se Guignard chega quase pronto a Minas Gerais, em Ouro Preto sua obra ganha modu-
lações. O desenho passa a ter função alusiva às figuras que dão coesão ao espaço, para que
deixe ele de ser vastidão informe. Seria a paisagem de Minas o próprio céu? E suas estrelas
balões? Em seu mundo amorosamente idealizado, a vida conecta a terra ao firmamento em con-
tínuo. O quadro é um momento de passagem nesse trânsito do olhar. E isto éjustamente função
do monumento barroco durante a Contra-reforma: conectar o templo ao céu para reconfirmar a
função mediadora da Igreja com a humanidade 29 • O "perder de vista": é vertical; já não é pers-
péctico como nos românticos, que Guignard devia conhecer bem do período vivido na Alemanha.
O clima ameno da cor caipira chapada de Tarsila encontrou o estado de evanescência. Também
em Minas incorpora novo pathos. A devoção ao Coração de Jesus, firmada na América colonial,
está presente em Os noiuos (1927). A paixão de Cristo e a execução de Tiradentes compõem seu
martirológio. A figura do Cristo açoitado na coluna, tradição dos artistas coloniais, do Aleija-
dinho ao Cabra-e sendo muitos mulatos-, apresenta aquele sofrimento do Cristo como
metáfora sublimante do escravo punido no pelourinho da praça central das cidades brasileiras.
Guignard e Goeldi, despreparados para os programas oficiais e para a banda de músicas
da vanguarda ruidosa, foram marginais no modernismo brasileiro. Goeldi, com suas afinidades
com o expressionismo alemão, jamais poderia ser confundido com um artista europeu. Nem
Munch nem qualquerexpressionista alemão desenvolveu um método de construção da cor que
pudesse ser comparado ao seu.
Para Oswald Goeldi, Cobra Norato, de Raul Bopp, marca seu discreto contágio pela antro-
pofagia. A obra faria parte da Bibliotequinha antropofágica a ser apresentada no Congresso Mundial
de Antropofagia em Vitória (1929). Goeldi dedica sua edição a Tarsila. Formigas trafegam pelo
texto. Essa inesperada intromissão foi inspirada nas ilustrações de Pierre Pinsard para Petits contes
negres pour les enfants des blancs [Pequenos contos negros para os filhos dos brancospo, de Blaise
Cendrars, que em 1937, ano da edição de Cobra Norato, ofereceu um exemplar a Beatrix Reynal,
com quem Goeldi vivia 31 • O corte de Pinsard é amaneirado, enquanto a formiga de Goeldi surge
de talhos vigorosos. Os animais no livro europeu respeitam o território do texto, enquanto as
formigas de Goeldi invadem a escrita como construção e curso da linguagem.
Goeldi desenvolveu singulares processos constitutivos da cor. A xi logravura de Goeldi é
pintura. O artista criou uma complexa arquitetura da cor, delimitada inicialmente pelo corte. O
entintamento da matriz é decisivo, já calculado na escavação da madeira até a fase da admi-
nistração da quantidade e qualidade da tinta na mesma matriz. Recorre a transparências e super-
posições de impressões. A matriz também pode recebertinta preta para ser retirada, porém resí-
duos devem permanecer para a produção de sombra na própria cor. Inventa possibilidades,
como colocar um papel colorido (podendo ser pintado pelo artista ou não) para que sua cor se
filtrasse através da transparência do papel japonês, cujas fibras também têm valor plástico. Esse
suporte secundário, sendo laranja, filtra-se em ocre ou salmão claro, quebrando o branco agudo
do papel. Cada cópia será, pois, uma experiência única. Goeldi constrói fisicamente a cor para
real izar seus fi ns morais.
A percepção afiada de Goeldi gera uma experiência fenomenológica da luz. Ferir a madeira
é iluminação. O temário goeldiano é velhice, abandono, espera, solidão, frio, trabalho, fan-
tasias noturnas. Instaura çontrastes entre a temperatura sangüínea e fria, entre sangue e gelo
ou entre o vermelho e verde. A densidade de temperatura se obtém na relação com as áreas
abertas negras e brancas. É possível pensar numa melancolia solar na obra de Goeldi, que não
trata da floresta, da cidade soturna, da chuva, do mar bravio e dos interiores. É o caso de Sereia

342 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias,de Canibalismos


do mar e Guarás. Para Goeldi, a luz cegante, sofrida, excessiva, mínima, submetida à opacidade,
filtrada pela umidade era a experiência fundamental, constitutiva do olhar como hipótese de
apreensão do mundo. Carlos Drummond de Andrade cantou serGoeldi o pesquisadorda noite
moral sob a noite física. É nesse mesmo país que João Cabral de Melo Neto escreve um poema
chamado "Sol negro": "re-serem tal escuridão é como navegar sem bússola".
A posição de Goeldi sobre o primitivismo aproximava-o dos expressionistas austríacos,
como Kokoshka ("Eu não sou um selvagem. Eu teria que viver como eles para que a minha imi-
tação fosse genuína."). Isso também explica sua longa amizade com Kubin. Não foi por se ver
integrado com alguma cultura tribal, mas por perceber a distância do ambiente europeu, que
Goeldi declarou que se sentia como Gauguin na ilha quando retornou ao Brasil em 1918, vindo
da Suíça. Gauguin, diz Kirk Varnedoe, reflete a passagem da arte tribal do domínio das "ciên-
cias naturais", marcadas por Darwin, para o mundo dos valores estéticos ocidentais. O pai de
Goeldi, um cientista, reorganizou a Sociedade Filomática de Belém (atual Museu Goeldi) como
instituição científica, introduzindo o darwinismo nos estudos da Amazônia. Vivendo nos trópicos,
Goeldi não teve, como outros expressionistas, a relação utopista com as sociedades "primitivas".
A infância em Belém e a figura paterna definem a impossibilidade de se seduzir pelo exótico.
No espaço da utopia, Goeldi encontrou melancolia, fosse na selva ou na cidade.
Emi liano di Cavalcanti Samba 1925 óleo sobre tela colada em cartão [oi l on canvas mounted on cardboard] 175x155cm coleção
Geneviéve e Jean Boghici , Rio de Janeiro

343 Modernismo brasileiro Pau lo Herkenhoff


A transgressão permanente no modernismo foi desempenhada pela antropofagia polissê-
mica e translingüística de Flávio de Carvalho. Enfrentando os fantasmas da sociedade patriarcal,
sua peça Bailado do deus morto trata da morte da figura castradora de deus. Éseu banquete canibal.
Inventa títu los provocativos para sua pi ntu ra, em q ue a cor se su bmete a operações de um núcleo
fantasmático. A inferioridade de deus celebra a possibilidade de apropriação do modelo paternal.
É necessário transformar o tabu em totem. Em '93', Flávio de Carval ho percorreu u ma procissão
de Corpus Christi no sentido oposto e portando chapéu. Para alguns, o dogma da transubs-
tanciação eucarística ofereceria uma espécie de prática de um canibalismo simbólico. Sua tela
Nossa Senhora do Desejo atrita tabus de sublimação, fantasmas de castração pela mãe e perda do
objeto do desejo. Registra em sete desenhos a agonia de sua mãe. Reincorpora, na arte, a perda
anunciada. Talvez tivesse sido sua experiência extrema da melancolia.
Nosso modernismo oscila no pêndulo incorporação/transgressão. Rego Monteiro, Tarsila,
Di, Guignard, Goeldi, Mário de Andrade e Villa-Lobos atuam por meio de estratégias afirmativas
da tradição incorporadora para proceder à renovação. Malfatti, sendo existencialmente tradição,
incidirá involuntária como transgressão. A infantaria da transgressão se forma com Oswald de
Emiliano di Cavalcanti Moça de Guaratinguetá [Young woman from Guaratinguetá] 1929 óleo sobre tela [oil on canvas] 81x65cm
coleção particular [private collection] . Rio de janeiro foto Pedro Alves de Souza

344 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Andrade e Flávio de Carvalho. Incorpora a beligerância radical dos modelos de vanguarda con-
flitiva à linguagem de ruptura. A iconoclastia cultural seria a forma de desafio da autoridade
patriarcal na cultura. A linguagem nasce da transgressão e nesta operação encontra seu sentido.
Deve-se afirmar a irredutibilidade do Brasil a um único sistema de cor. Rego Monteiro
elaborou a dimensão arcaica no primeiro projeto para uma cordo Brasil. O carnaval tem outra
pauta cromática, bem como o barroco remete a um pathos próprio. É Guignard quem realiza a
fala de Tarsila sobre o barroco inscrito na superfície difusa. A cor caipira, mesmo não dando
conta do país, ao idealizar uma mescla envolvendo interior paulista, cidades mineiras e subúr-
bios paulistanos e cariocas, certifica a existência de uma cor viva do Brasil. O Brasil é, pois, um
leque de cores para além disso. A melancolia de Goeldi, a simplicidade de Guignard e a solidez de
Segall constituem a paisagem moral do Brasil e o fundo artístico mais espesso do nosso moder-
nismo, em que a cor encontra um repouso inquietante em sua navegação com muitas bússolas.
Paulo Herkenhoff

1. Aqui parafraseamos Graça Aranha em Estética da vida (1921). as versões de Le mécanicien (1918 e 1920) e faz breve referência
2. Monteiro Lobato, "A propósito da Exposição Malfatti", Arte a Paysage animé, de Léger. A sensualidade de A negra está no
e Artistas, O estado de S. Paulo, 20.12.1917, in Mário da Silva espírito da Composition aux deux femmes (1923) de Légere a sen-
Brito, História do modernismo brasileiro, Rio de Janeiro: Civiliza- sual disponibilidade sexual tem seu precedente em A carioca
ção Brasileira, 6a ed., 1997, P.46-50. (1882) de Pedro Américo, que causou grande escândalo na
3. "Estética da Vida" (1921), Obras completas, Rio de Janeiro: época em que foi apresentada na Exposição Geral.
INL, 1968, p.620-621. Devemos fazer referência à obra de 17. "Notes sur la vie plastique actueI/e" (1923), Fonctions de la
Eduardo Jardim de Moraes, A brasilidade modernista: sua dimen- peinture, Paris: Gal/imard, 1997, p.62-3.
são filosófica, Rio de Janeiro: Graal, 1978. 18.1923, Ibid., p.84.
4. Op. cit., nota anterior supra, P-43. 19· 1bid .
5. Prefácio, Obras completas de Oswald de Andrade, vol. VI, Rio de 20. Christopher Green, "Léger et I'esprit nouveau", Léger and
Janeiro: Civilização Brasileira, p.XXXII. purist Paris, Londres: Tate Gal/ery, 1971, p.61.
6. Walter Zanini, Vicente do Rego Monteiro, artista e poeta, São 21. Sônia Salzstein, op. cit., nota 13 supra, p.12, trata da "orde-
Paulo: Marigo, 1998. nação modular, quase lúdica, da superfície pictórica".
7. Vários, como Mani Oca, ilustrariam Légendes, croyances ettalis- 22. Autoranônimo, apud Aracy Amaral, op. cit., nota 13 supra,
mans des indiens de l'Amazone, Paris: Tolmer, 1923; adaptação de vol.l, 1975, p.118.
P. LDuchartre. 23. A relação de Tarsila com a obra de Brancusi foi tratada
8. Paulo Herkenhoff, "Thejungle in Brazilian modern design", pelo autor em uma conferência na Pinacoteca do Estado em
Thejournal of decoratiue and propaganda art, n.21 (1995), P.239-58. 1991. Tarsila possuía duas esculturas de Brancusi: Tête d'enfant
9. Gianni Vattimo et aI/ii, "Postmodernidad: una sociedad e Prometeu.
transparente?", En torno a la postmodernidad, Barcelona: Edito- 24. Mário de Andrade, "Minhas recordações" (c.1950), Lasar
rial Anthropos, 1991, p.11. Sega/l. Textos, depoimentos e exposições, São Paulo: Museu Lasar
10. Carta de Sandra Brecheret Pel/egrino ao autor em 18 de Segal/, 2a. ed., 1993, P.15.
janeiro de 1994. 25. Pierre Guéguen, "Lasar Segal/, pintor do Brasil", Revista
11. Luis Martins, Emiliano di Caualcanti, São Paulo: Museu de noua, p.212.
Arte, 1953, P.15. 26. Stephanie d'Alessandro, "The absorption ofspectacular,
12. Carta de 15 de novembro de 1923, apud Amaral e Salzstein unedited things: Brazil in the work ofLasar Segal/", Still more
(op. cit., nota 13 infra, P.145). distantjourneys: the artistic emigrations of Lasar Segall, Chicago:
13. A artista foi exaustivamente estudada por Aracy Amaral Smart Museum of Art, 1997, p.127.
em seus livros: Tarsila, sua obra e seu tempo, 2 vols., São Paulo: 27. Credito a Marcelo Mattos Araújo a indicação de vários
Perspectiva, 1975; Tarsila, São Paulo: Finanbrás, 1998 e no dados sobre Segal/ e a cor.
catálogo Tarsila anos 20, por Aracy Amaral e Sônia Salzstein, 28. Carlos Zílio, A modernidade de Guignard, Rio deJaneiro: PUC,
São Paulo: Sesi, 1997. Remetemos ainda ao artigo de Salzstein 1982 .
sobre Tarsila e à introdução do autor ao Núcleo Histórico da 29. Giulio Cario Argan, The baroque age, Nova York: Rizzoli,
XXIV Bienal de São Paulo neste livro. 1989.
14. Apud Aracy Amaral, ibid. p.88-89. 30. Blaise Cendrars, Petits contes negres pour les enfants des blancs,
15. Utilizamos aqui a quarta edição. Paris: Librairie Floury, Paris: Au sens pareil, 1929.
1948, P·5 0. 31. O exemplar encontra-se na Biblioteca Nacional, Rio de
16. Vinicius Dantas, no texto "Que negra é esta?", catálogo Janeiro.
citado na nota 13 supra, compara extensivamente A negra com

345 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


curadoria Paulo Herkenhoff

Colar in Brazilian modernism-


navigating with many compasses
The brilliant explosion of color of Anita Malfatti's New York work (191S-1917) faded upon her
arrival in Brazil. Itwas here that the chromatic vibration ofher paintingwaned. Tropical, the first
major work Malfatti completed in Brazil, bordered on regression, transforming tropical joy into
a lament. 1 She retook drawing as her main guide, replacing the figure/ground relationship and
forgoing luminosity. She seemed to reawaken the old Renaissance dispute of disegno versus colore.
Gone was the boldness of O homem amarelo [The yellow man]. Paradoxically, it was in the tropics
that colo r died. All went back to good academic manners, as Mário de Andrade complained. Vis-
à-vis Malfatti's work, the writer Monteiro Lobato expressed a state of perplexity that emotionally
devastated the artist: "paranoia or mystification?"2 It is a patriarchal voice of doubt: ifthis is the
work of a woman, to what entity oflimited responsibility can it be compared: the art ofthe men-
tally disturbed or that of children? Reacting to pressures from her environment, Malfatti dis-
continued her observations of chromatic phenomena. She was as much an involuntary martyr of
modernism, as a sort ofindex of the impossibility to be modern in her own country.
Shortly before the Semana de Arte Moderna [Week of Modern Art] , Graça Aranha, one of
her promoters, published Estética da vida [An aesthetics of life]. ln that piece, Graça Aranha
pointed out that the Brazilian soul had little communion with nature because the "three races"
that formed Brazil behaved according to a cultural artificiality: Portuguese melancholy, "African
childishness" (illusionistic before natural reality, creating a "cosmic terror"), and the Indians'
"metaphysics ofterror" (filling with ghosts the spaces between the human spirit and nature).3
There was an urge to turn sensations into landscapes-color, line, planes, masses-into art.
"Brazilian culture should be constituted from a new relationship with Brazilian nature," according
to Eduardo Jardim de Moraes, who confirmed the contribution ofGraça Aranha to modernism. 4
According to Benedito Nunes, Oswald de Andrade effected "a parodic inversion ofGraçaAranha's
philosophy": barbaric metaphysics was rescued as anthropophagy.5
Vicente do Rego Monteiro inaugurated the modernist color projecto He studied and drew
artifacts from Amazonian archaeology at the Museu Nacional in Rio de Janeiro in 1920 and at the
Musée de I'Homme in Paris in 1923. He read Barbosa Rodrigues and Couto Magalhães. 6 His O
atirador de arco [The archer] (r92S) was inspired by Debret. His drawings based on indigenous
legends 7 which were exhibited in Rio de Janeiro in 1921, laid the framework for the formulation
ofBrazilianness and revoked Chateaubriand's mo deI ofthe Indian. Rego Monteiro's work incor-
porated certain artistic values from the Amazon, such as color, volume, form and the reduction of
the figure. The colors are reminiscent of terracotta. His figures seem to jut out like a ceramic bass
relief. It is even possible to trace some ofhis paintings to specific ceramic pieces he elaborately
copied. The child in Menino sentado [Seated boy] (r923) and Madona e menino [Madonna and child]
(r924) was taken from a moon-shaped ceramic piece from Santarém. The head, ears, breasts, and

346 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


legs folded in parallel ofthe madonna follow the shape offunerary urns ofthe Tapajós-Trombetas
from Miracangueira, as in the pieces (Inv. 9702 and 8628) of the Rio de Janeiro museum. The
funerary urns with turtle designs from Maracá (Amapá), drawn by Rego Monteiro at the Musée de
l'Homme and which resemble the piece 5445 at the Museu Nacional in Rio, are the direct source
ofthe painting O menino ea tartaruga [The boy and the turtle] (1924). The heads ofthe figures in the
religious series from 1922-25, including A crucifixão [The crucifixion], Fuga para o Egito [The flight
to Egyp t] , A descida da cruz [The descent from the cross] , A adoração dos reis magos [The adoration
of the magi] , and A santa ceia [The last supper], were inspired by the head-shaped Maracá um cov-
ers copied by Rego Monteiro in Rio de Janeiro. Although lacking the sarne theoretical framework,
Rego Monteiro preceded Torres-García in the incorporation of native South American symbolism
into art. Torres-García carne up with a model of continental dimensions only partially, because
Uruguay did not constitute a distinctive archaeological region. The most complex ceramics in
Ismael Néri Auto-retrato [Self-portrait] 1927 óleo sobre tela [oil on canvas ] 130,7x86,3cm coleção Domingos Giobbi, São Paulo
foto Fernando Chaves

347 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


Brazil carne from the Amazon region. 8 Analyzing the crisis of the idea ofhistory, Gianni Vattimo
stated that "the Enlightenment philosophers, Hegel, Marx, positivist and historicist thinkers of
all kinds jointIy thought that the meaning ofhistory was to be found in the achievement of civi-
lization by the modern European man."9 We'd like to stress that iffor Hegel the jungle was the
space outside ofhistory, for Brazilian artists it was the only way to affirm an autochtonous his-
tory, prior to colonization, in their modern politicaI project of cultural emancipation.
ln the 194os, the sculptor Victor Brecheret engraved archaic symbols from the Amazon into
six stones 10 that had been naturally hewn by water. This is the case of works such as Luta de onça
[Jaguar fight] and Índia e o peixe [lndian woman and the fish]. Max Ernst's Oval bird (1934) estab-
lished a precedent for this type of work. According to William Rubin, the Easter lsland Bird-Man
artifact at the British Museum is a probable parallel to Ernst's work. Ernst sculpted on a naturally
hewn stone. Brecheret engraved the stone surface only with minor interference, in an effort to
establish cosmogonies and identities. History becomes a kind ofwriting that must be deciphered.
Alberto da Veiga Guignard Léa e Maura s.d. óleo sobre madeira [oil on wood] 110 x130cm coleção Museu Nacional de Belas
Artes, Rio de Janeiro foto Fausto Fleury

348 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofag ia e Histórias de Canibalismos


Di Cavalcanti's hedonism can be viewed as a self-representation ofthe art ofmiscegena-
tion. His painting Samba, similarly to the Rio carnival, is the "celebration of race" ofOswald de
Andrade's "Manifesto pau-brasil" from I924. Luis Martins says that Di Cavalcanti's paintings
"exude the strong, penetrating and lascivious scent of naked mulatto women."11 Hans Nobauer,
from Guignard's circle, painted the firstversion ofthe Mangueira carnival parade, which would
later become Hélio Oiticica's anthropophagic territory. ln carnival cartography, the painter
Tarsila do Amaral explored Madureira, the Rio suburb which housed the Portela and Império
Serrano samba schools, located in the vicinity ofthe hill ofSerrinha. There she found an image
ofthe Eiffel Tower in part ofthe decoration ofthe festivities. Ismael Néri's painting Rio/Paris is
another allegory of the significance ofFrench culture for Brazilian modernism in a decade where
traveI to Europe was fundamental for most artists.
"ln the midst of the virgin forest, Macunaíma, the hero of our people, was born. He was
pitch black and was the child ofthe fear ofthe night," proclaimed Mário de Andrade. Nature in
Brazilian modernism was symbolized by the forest. "Before the Portuguese discovered Brazil,
Brazil had discovered happiness," Oswald de Andrade wrote in his "Manifesto antropófago"
[Anthropophagite manifesto]. Long before that, Mário de Andrade had summoned Tarsila to
return to their national roots, which were to be found in that very forest: "go back to your inner
self [... ] Abandon Paris! Tarsila! Come to the virgin forest."12 Tarsila returned and she invented
another Brazil in modern painting. 13
But it was in Paris that Tarsila discovered Brazil. She traveled with Oswald de Andrade and
studied with Lhote, Gleizes and Léger. lt was in Paris that they discovered the negro in a different
light. African culture until then had been a disenfranchised culture in Brazil, a remainder of the
Brazilian tradition of slavery. lt was also notoriously absent from Brazilian academic painting-
almost completely excluded from Almeida Junior's painting and controversially portrayed in the
work ofModesto Brocos.
A negra [The negress] is an episodic work form I923. ln that year Tarsila and Oswald met
Blaise Cendrars who introduced them to Brancusi. Cendrars had always had an interest in
African culture. His Anthologie negre was well known to Oswald. The couple had contact with
other Brazilians in Paris who were all engaged in projects connected to Brazilianness. Villa-Lobos
was making headway with his music, which combined European, African and lndian elements.
Rego Monteiro had already given coherence to his project involving indigenous archaism. Tarsila
painted A negra. During a conference in Paris in I923, Oswald affirmed having felt, in Paris, "the
suggestive presence ofthe Negro drum and ofIndian songs. These ethnic forces are in the midst
of modernity." ln closing, Oswald made reference to Rego Monteiro "who, in a personal way,
stylized our indigenous motifs [... ] Tarsila do Amaral, who allied the subject-matter ofthe Brazil-
ian field to the most avant-garde processes of contemporary painting."14
Monumental works such as A negra, Abaporu and Antropofagia, were thus born. ln I923
Mexican muralism was just beginning. Lhote's Traité du paysage offers certain clues that can be
somewhat misleading, since the first edition only appeared in I939. Lhote maintained that the
artist should continuously "EXAGGERATE, DIMINISH, SUPPRESS whether it be lines, values,
colors or surfaces."15 lt is necessary to know what Léger was thinking and painting around I923
when Tarsila frequented his studio. 16 ln an article Léger states that "the exhibition ofvolumes,
!ines and colors, demands absolute order and orchestration." Furthermore, he concludes that "for
the state of organized plastic intensity [... ] I use the law of contrasts, which is eternal as a means
of equivalence to life."17 ln texts such as "A propos de l'élement méchanique" [On the mechanical
element], Léger was concerned with mechanization in painting: "We live in a geometrical world,

349 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


this is an undeniable fact and as such, in a frequently contras tive state."18 Tarsila's Rio de Janeiro
and São Paulo seem bucolic vis-à-vis the bustle ofEuropean futurist and cubist cities.
Tarsila's work is far from being cubist, unless we consider her sketches at Lhote's and
Gleize's studio as mature work. Her so-called "postcubism" merely reflects, by contrast, a period
of development in Léger' s work. All ofTarsila' s work was devoid of the complex cubist logic,
which she never fully understood. This does not detract Tarsila nor her founding role in the
Brazilian "constructive project." The three preliminary sketches and the final version of A negra
show that Tarsila based her work directly on the subject matter, without any previous preparation
work byway of"shape contrasts" or any other analytic or synthetic cubist procedure. She worked
only with the figure of the woman and the leaf. The geometrical background does not articulate
constructivist or cubist logic, seeming a mere means to fill out the background. That sarne prob-
lem ofA negra was already evident in 1923 in Natureza morta [Stilllife] and La tasse [The mug]. She
used a clumsy geometry that does not integrate figure and ground, as Léger had done in his
painting, such as in Le remorqueur [Towing man]. Tarsila never reduced space into its planar
dimension or to the notion of surface. This could if implicitly be seen in the architecture of her
houses. During her pau-brasil period, she madeuse of diagonaIs as in Morro dafavela [Shanty-
town hill] and Mamoeiro [Papaya tree]; horizons as seen in O vendedor defrutas [The fruit seller];
superimposed geographical accidents as in Palmeiras [Palm trees]; or constructions like São
Paulo, E.F.C.B. All ofthese techniques were used to create a sense ofthree-dimensional depth, a
classical perspective of the description of space. It is worth noting that Tarsila absorbed several
ofLéger's solutions. Her plant shapes are solid volumes as in the leafin A negra and the cone-
shaped instead ofmerely circular tree tops in São Paulo. This replicates Léger's formal solutions
in drawings and paintings as in Paysage animé [Animated landscape] from 1921. ln this piece vol-
umes are not created by gray shadows, but rather by gradual changes in the tonality ofthe greens.
ln Léger's Paysage avecfigures [Landscape with figures], from 1921, the round-shaped hills are
covered by trees with solid-shaped tops. All this contrasts with the angular geometry of the
houses. Léger stated, "I place curves in contrast to straight lines/angles, flat surfaces to modeled
shapes;"19 this is what Tarsila did in A negra. The pyramidal structure ofthe landscape, with an
accumulation of elements, goes from Léger to Tarsila. For some years, Léger had been influenced
by some basic elements ofOzefant's and Jeanneret's Purism: standardization and repetition. 20
Tarsila adopted certain elements from Paysage avec figures: the heads of the figures are stylized
into spheres, an iron bridge becomes a modulated graphic design,21 that Tarsila reproduces in
different railings and bridges in her pau-brasil period. Léger taught that "local pure tones"
should be placed in contrast to shades of gray. And thus Tarsila defined a color ofBrazil.
The peasant color [cor caipira] in the pau-brasil period brings together the visual taste ofthe
baroque colonial towns ofMinas Gerais, the suburbs ofthe big cities and the rural universe. It
celebrates the naiveté of the vernacular. ln her urban scenes, Tarsila does not depict the clash of
nature and modernity. The rural is frequently superimposed on the urban world, maintaining as
its greatest symbol the phenomenon of the 1800s train engine. Tarsila developed a Brazilian
palette that, while not embracing the entire country, demarcates her theory of coloro It was her
desire to "paint in Brazilian."22
Color in Tarsila's laterwork acquired rich earth tones. The natural world-water, plantlife,
beings, night-all embodied cosmic strength. Abaporu (1926) is the watershed of modernity in
Brazil. It carne before Oswald de Andrade's "Manifesto antropófago," and itwas he that coined
the title ofthe painting by combining two Guarani words: aba (man) and poru (that eats). The
phallic form in Abaporu is reminiscent ofBrancusi's Princess X, which in turn goes back to the

350 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


native art ofPapua New Guinea. The sarne holds
for the treatment of the breast and the hand.
There is a precedent for much ofTarsila's work in
Brancusi's sculpture. 23 The thick lips of A negra
and the couple in Antropofagia are summarized in
Brancusi's Adam and Eve (I9I6-I92I) .
Breton stated that the eye existed in a savage
state. Anthrapophagy was a kind of subjectivation
of the eye in the paradoxical constructions of the
moderno According to Paul Claudel, the eye can
hear, and Tarsila's anthrapophagic painting is
marked by silence, by nocturnals and by sleep.
The sarne silence that is present in Urutu and Lago
[Lake], appears in Goeldi's etchings for Cobra
Norato. The interplay of architectural detail and shadow in O sapo [The toad] suggest a parallel to
De Chirico's metaphysical painting. Tarsila collected De Chirico's work, as is seen by The enigma
of a day (I9I4). "There was a moment when silence fell in such a way that, when listening to the
murmur ofthe Uiraricoera, the Tapanhuna lndian woman gave birth to an ugly child"-that is
how Macunaíma was born . ..
Tarsila's Brazilianness was free of conflict, similar to a conciliatory sociology, as was fitting
for the ideology ofthe artist's social origin linked to agrarian capital. Tarsila's social concerns
began when she joined the Communist Party. These concerns are evident in paintings such as
Operários [Workers] fram I933, which reflects the ethnic plurality that gave rise to Brazilian society
in the XX century. Brazil was no longer the Portuguese, African and lndian ethnographic tripod.
When Lasar Segall emigrated to Brazil in I924, the impact oftrapical colar gave rise to the
most violent colar relationship in the artist's career. lt is a double relationship of estrangement
and approximation: "1 saw myself transported under the brilliance of a tropical sun whose rays
illuminated people and things in their most remate and hidden places, even granting a kind of
glare to objects that were in the shade," he writes. He describes this phase in which the "vision
was fascinated by the exotic beauty of nature caught under the dazzling spell of calor and deco-
rative forms. This was termed by Mário de Andrade as "dose to damnation."24
Segall's representations ofblack Brazilians had "the secret nostalgia of exiled races"25 and
depicted beings that were devoid of the stylization typical of the so-called "black art," which was
also the expression ofthe noble savage. 26 Segall shifted the focus ofblack art to the social con-
dition and the politicaI processes of miscegenation, to the point of portraying himself as a
mulatto in Encontro [Meeting] (I924). ln this piece he also dealt with the problem ofhis divorce
and his decision to stay in Brazil. 27 From the first landscapes painted by Frans Post to the sev-
enteenth-century poetry of Minas Gerais, the vision of Arcadia in Brazil always constituted a
problematic issue. ltwas nalve to depict Virgil's forestif, after all, Brazil already knew happiness
before the Portuguese arrived, as the "Manifesto antropófago" argues. Lasar Segall's Brazilian
landscapes joined German expressionism with trapicallight, thus revealing the discovery of
sociallandscape. The symbolic synthesis of colar temperature is depicted in works such as Pais-
agem brasileira [Brazilian landscape] (I925) and Morro vermelho [Red hill] (r926). A comparison
between Segall's Bananal [Banana field] and Emil Nolde's Tropicalforest reveals the paradisiac side
ofNolde's image, while Segall's landscape, although maintaining a luxuriant vegetation, is
Oswaldo Goeldi Céu vermelho [Red sky] 1950 xi logravura a cores [color woodcut] 22x30cm

351 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


clearly the image of cultivated nature. This orderly tropical banana plantation is an attribute of
the black worker. This is also the case in Albert Eckhout's Índia Tupi [Tupi lndian woman] from
1641, where domesticity is portrayed by using the plantation landscape as an index ofher adap-
tation to the colonization processo ln SegaU, sociallandscapes always exhibit moral overtones,
clearly marked by a work ethic.
Guignard is another element in the history oflight in Brazilian art. The introduction of plein
air painting by Vinet, a disciple of Corot, and by Grimm, created a commotion in the cultural
environment ofBrazil. Castagneto's impressionism, concentrated on the light phenomena in the
Bay ofGuanabara, also carne as a revelation. It is certain that Guignard saw the luscious tropical
greens ofBaptista da Costa's luminous landscapes. When he arrived in Brazil after a long stay in
Europe, Guignard brought with him a thick and somewhat somber painting technique, marked
by color saturation and bywell-defined designo During his period in Rio de Janeiro (1929-1944),
he restructured his painting technique. The topography ofRio led him to adopt a vertical per-
spective similar to Chinese perspective. 28 ln Itatiaia he encounteFed the rarefaction of matter in
the mists as the transience oftime and the evanescence ofthe world-the sublime in the tropics.
The thickness of the paint becomes almost as transparent as in a water-color. The air turns humid
and light. The mists lose the thickness of Castagneto's painting. The arabesques, misleadingly
compared to Duf)r, are delicately modulated with the sarne subtle firmness and precision of a
Matisse drawing. ln As Bêmeas [Twin sisters], he had already introduced a vocabulary oftoys and
whimsical baroque churches reminiscent of manger scenes. The color of these paintings origi-
nates in the baroque altars from Minas Gerais, mediated by nocturnal and misty light. lfGuignard
was alreadya skilled artist when he arrived in Minas Gerais, in Ouro Preto his work acquired new
modulations. Drawing carne to exert an allusive function in regards to the figures that give the
space cohesion, thereby diminishing irregular vastness of space. Would the landscape ofMinas
be the sky itself? And its balloon stars? ln Guignard's lovingly idealized world, life connects
earth to a continuous firmamento The painting is a passing moment in this shift of the gaze.
That is precisely the function ofthe baroque monument during the Counter-Reformation: to
connect the temple to the sky in order to reconfirm the role of the Church as the mediator of
humanity.29 The "loss of sight" is vertical and no longer perspective as with the romantics, with
whom Guignard was well acquainted from his period in Germany. The pleasant color of the
countryside, tinted by Tarsila's vision, became evanescent in Guignard. ln Minas, Guignard also
incorporated a new pathos. The devotion to the Sacred Heart ofJesus, firmly established during
colonial times, appears in Os noivos [The engaged couple] (r927). Guignard's iconography of
martyrs includes the passion of Christ and the execution ofTiradentes. The figure of Christ
being flogged at the column is a tradition of colonial artists from Aleijadinho to Cabra. Since
many ofthem were Mulatto, the suffering ofChrist became a sublimating metaphor for the pun-
ishment of slaves in the central squares ofBrazilian towns.
Guignard and Goeldi who were ill-prepared for official programs and the buzz of the
noisy avant-garde, remained marginal figures in Brazilian modernismo ln spite ofhis affinities
with German expressionism, Goeldi could never be mistaken for a European artist. Neither
Munch or any other German expressionist ever developed a method of color construction that
could compare to his.
Cobra Norato by Raul Bopp marked Oswald Goeldi's discreet incursion into anthropophagy.
This work was to be part of the Bibliotequinha antropofáBica [Little anthropophagic library] and was
to be presented at the World Congress on Anthropophagy in Vitória in 1929. Goeldi dedicated
that edition to Tarsila. Ants that unexpectedly crawl on the text were inspired by Pierre Pinsard' s

352 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


illustrations of Blaise Cendrars's Petits contes negres
pour les enfants des blancs 30 [Little black stories for the
children ofthe white] . ln I937, the year Cobra Norato
was published, Cendrars himself gave a copy of the
Petits contes ... to Beatrix Reynal, with whom Goeldi
lived. 31 Pinsard's cut is somewhat mannieristic while
Goeldi's ants are shaped byvigorous cuts. ln Pinsard's
European version, the animaIs respect the text's terri-
tory, whereas the ants in Goeldi' s version take over the
text, becoming part of the course and construction
oflanguage.
Goeldi developed certain particular procedures
related to the constitution of coloro Goeldi's woodcut is
painting. The artist created a complex architecture of
colo r, initially set offby the cut. They way color will be
applied to the matrix is decisive, and must be taken into account from the moment the wood is
cut to when the paint is applied on the sarne matrix. Prints are superimposed, and occasionally
only the traces ofblack ink are left, after the paint has been applied, in order to produce an effect
of shading on the actual coloroGoeldi invented other possibilities such as placing colored paper
(colored or not by the artist) for its color to be filtered through the transparency ofJapanese
paper, whose fibers also possess a plastic vaI ue. An orange background, for instance, would
filter as an ochre or salmon pink, breaking the sharp paleness of the paper. Each new print
then is a unique experience. Goeldi physically composed color to execute his moral deeds.
Goeldi's sharp perception generates a phenomenological experience oflight where lace r-
ating the wood is a form ofillumination. Goeldi portrays themes such as old age, abandonment,
expectation, solitude, coldness, work and nocturnal fantasies. He introduces contrasts between
body and cold temperature, blood and ice or red and green. The densityof temperature is pro-
duced in the relation with black and white open areas. Goeldi's solar melancholy does not deal
with the rain forest, the somber city, the rain, the open sea and interior scenes. This is the case
in Sereia do mar [Mermaid] and Guarás. For Goeldi, the blinding, excruciating, excessive and mini-
mallight, subject to opacity, filtered by humidity, was the fundamental experience constitutive
of the gaze as a hypothesis to apprehend the world. The poet Carlos Drummond de Andrade
sang of Goeldi as the explorer of the moral night under the physical night. ln the sarne country
João Cabral de Melo Neto wrote a poem entitled "Sol negro" [Black sun]: "to be anew in such dark-
ness is like sailing without a compass."
Goeldi's stance regarding primitivism drew them dose to the Austrian expressionists such
as Kokoshka. ("I am not a savage. For my imitation to be genuine, I would have to live as they
do .") That also explains his long-Iasting friendship with Kubin. When Goeldi returned to Brazil
from Switzerland in I9I8, he stated that he felt as Gauguin on his island; this was not because he
had integrated into a tribal culture, but because he sensed the distance ofthe European-environ-
ment. According to Kirk Varnedoe, Gauguin reflects the passage of tribal art belonging to the
domain of"natural sciences" marked by Darwin, to the world ofWestern aesthetic values. Goel-
di's father, a scientist, reorganized the Sociedade Filomática ofBelém (now the Goeldi Museum)
as a scientific institution, introducing Darwinism in the studies ofthe Amazon. Goeldi's life in
Oswaldo Goeldi Velhice [Oldness] s.d. xilogravura [wood cut] 26x30cm coleção Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro foto Vicente
de Melio

353 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhotl


the tropics prevented him from having a utopian relation with the "primitive" societies as was
the case with other expressionists. His childhood in Belém and the father figure defined the
impossibility for him to be seduced by the exotic. Goeldi found melancholy rather than utopia
whether in the rain forest ar in the city.
Flávio de Carvalho effected a permanent transgression in modernism through his polysemic
and translinguistic anthropophagy. Confronting the ghosts of patriarchal society, his work Baila-
do do deus morto [Dance of the dead god] , deals with the death of the castrating figure of godo This
constitutes his cannibal banquet. The tides ofhis works are provocative and colar is subjected to
the workings of a phantasmagoric nucleus. A iriferioridade de deus [God's inferiority] celebrates
the possibility to appropriate the role ofthe father. It is necessary to transform taboo into totem.
ln I93I, Flávio de Carvalho took part in a Corpus Christ procession walking in the opposite direc-
tion and wearing a hat. For some, the dogma of eucharistic transubstantiation could be taken as a
type of practice of a symbolic cannibalism. His canvas Nossa Senhora do Desejo [Our Lady ofDesire]
raises a certain friction on taboos of sublimation, maternal castration ghosts and the loss of the
object of desire. ln a series of seven drawings he registers the agony ofthe mother, recuperating
in art the loss foretold. This was perhaps his most profound expression of melancholy.
Brazilian modernism oscillates between incorporation and transgression. Rego Monteiro,
Tarsila, Di Cavalcanti, Guignard, Goeldi, Mário de Andrade and Villa-Lobos all worked with strate-
gies that affirmed a tradition ofincorporation in arder to proceed towards renewal. Malfatti's
existentialist tradition turns her into an involuntary transgressor. The infantry of transgression
is created by Oswald de Andrade and Flávio de Carvalho. It incorporates the radical belligerence
Flávio de Carvalho A inferioridade de deus [God 's inferiority] 1931 óleo sobre tela [oil on canvas] 54,5x73cm coleção
Gilberto Chateaubriand, Rio de Janeiro

354 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


of the conflictive avant-garde models to a language of rupture. As cultural iconoclasts they defied
the patriarchal authority of culture. Language is born from transgression and finds its meaning in
this operation.
It is important to stress that Brazil cannot be reduced to a single colar system. Rego Monteiro
elaborated the archaic dimension on the first project to create a Brazilian colar. Carnival has a
different chromatic framework as much as the baroque has its own pathos. It was Guignard who
carried forth Tarsila's statements about the baroque inscribed in a diffuse surface. Even if peasant
calor could not account for the whole country since it idealized a medley that included the interior
ofSão Paulo, cities ofMinas Gerais, suburbs ofthe cities ofSão Paulo and Rio de Janeiro, it still
guaranteed the existence of a living colar ofBrazil. Brazil is thus constituted bya far wider range
of colors. Goeldi's melancholy, Guignard's simplicity and Segall's solidity make up Brazil's
morallandscape and the most substantial artistic ground of our modernism, where colar finds
a restless resting place in its navigation with many compasses.
Paulo Herkenholf. Translatedfrom the Portuguese by adite Císneros.

I. Paraphrasing Graça Aranha in Estética da vida, 1921. the versions ofLe mécanicíen (1918 and 1920) and makes a brief
2. Monteiro Lobato, "A propósito da Exposição Malfatti," Arte reference to Paysage animé by Léger. The sensuality ofA negra is
e Artistas, O estado de S. Paulo, 20.12.1917, in Mário da Silva in the sarne line as Composition aux deux femmes (1923) by Léger
Brito, História do modernismo brasileiro, Rio de Janeiro: Civiliza- and the sensuality ofits sexual availability finds a precedent in
ção Brasileira, 6th ed., 1997, PP.46-so. A carioca (1882) by Pedro Américo which caused great scandal
3. "Estética da vida" (1921), Obras completas, Rio de Janeiro: when it was displayed at the Exposição Geral.
INL, 1968, pp.620-2I. We must refer to the work ofEduardo 17. "Notes sur la vie pIas tique actuelle" (1923), Fonctions de la
Jardim de Moraes, A brasilidade modernista: sua dimensão filosófi- peinture, Paris: Gallimard, 1997, pp. 62-63.
ca, Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978. 18. Ibid., p.84.
4· Ibid., P·43· 19. Ibid.
5. Preface to the Obras completas de Oswald de Andrade, voI. VI, 20. Christopher Green, ,ILéger et l'esprit nouveau," Léger and
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p.xxxn. purist Paris, London: Tate Gallery, 1971, p.6I.
6. Walter Zanini, Vicente do Rego Moneiro, artista e poeta, São 21. Sônia Salzstein, op. cito note 13 above, p.I2, deals with the
Paulo: Marigo, 1998. "modular and almost playful ordering ofthe pictorial surface."
7. Several ofthem such as Mani Oca illustrated Légendes, croyances 22. Anonymous author, cited in Aracy Amaral, op. cito note 13
et talismans des indiens de l'Amazone, Paris: Tolmer, 1923; P.L. above, voI. I, 1975, p.1I8.
Duchartre's adaptation. 23. The relationship ofTarsila to Brancusi's work was dis-
8. Paulo Herkenhoff, "The jungle in Brazilian modern de- cussed by the author at a lecture held at the Pinacoteca do
sign," The journal of decorative and propaganda art, n.21 (1995), Estado in 1991. Tarsila owned two sculptures by Brancusi: Tête
PP·239- 58. d'enfant and Prometheus.
9. Gianni Vattimo et allii, "Postmodernidad: una sociedad 24. Mário de Andrade, "Minhas recordações" (c. 1950), Lasar
transparente?," En torno a la postmodernidad, Barcelona: Edito- Segall. Textos, depoimentos e exposições, São Paulo: Museu Lasar
rial Anthropos, 1991, p.lI. Segall, 2nd edition, 1993, p.Is.
!O. Letter from Sandra Brecheret Pellegrino to the author, 25. Pierre Guéguen, "Lasar Segall, pintor do Brasil," Revista
dated January 18, 1994. Nova, p.2I2.
II. Luis Martins, Emiliano di Cavalcanti, São Paulo: Museu de 26. Stephanie d'Alessandro, "The absorption of spectacular,
Arte, 1953, p.ls. unedited things: Brazil in the work ofLasar Segall," Stíll more
12. Letter dated November IS, 1923, cited in Amaral and distant journeys: the artistic emigrations ofLasar Segall, Chicago:
Salzstein (op. cito note 13 below, p. 145). Smart Museum of Art, 1997, p.I27.
13. Tarsila's workwas exhaustively studied by Aracy Amaral in 27. I have relied on Marcelo Mattos Araújo for the indication
her books: Tarsila, sua obra e seu tempo, 2 vols., São Paulo: Pers- of several facts about Segall's use of coloro
pectiva, 1975; Tarsila, São Paulo: Finanbrás, 1998 and in the 28. Carlos Zílio, A modernidade de Guignard, Rio de Janeiro:
catalogTarsila dos anos 20, by Aracy Amaral and Sônia Salzstein, PUC,I982.
São Paulo: Sesi, 1997. We would also like to refer to Salzstein's 29. Giulio Carlo Argan, The baroque age, New York: Rizzoli,
article on Tarsila and to the author's introduction to the Núcleo 19 8 9.
Histórico of the XXIV Bienal de São Paulo in this boole 30. Blaise Cendrars, Petits contes negres pour les erifants des blanes,
14. Cited in Aracy Amaral, ibid., pp.88-89. Paris: Au sens pareil, 1929.
IS. Here we make use ofthe fourth edition, Paris: Librairie 31. This copy is now at the National Library in Rio de Janeiro.
Floury, 1948, p.So.
16. Vinicius Dantas, in the text "Que negra é esta?," in the cat-
alog cited on note 13 above, extensively compares A negra with

355 Modernismo brasileiro Paulo Herkenhoff


curadoria Sônia Salzstein

A audácia de Tarsila

Uma inadvertida operação antropofágica estava presente já em A negra, trabalho-chave de Tarsila


do Amaral realizado em 1923, destacando-se em meio à série de estudos que haviam absorvido a
artista naquele ano, exercícios ortodoxos seguindo mais ou menos à risca a cartilha cubista.
Pintada em Paris, era uma das raras pinturas plenamente modernas que haviam surgido até
então no ambiente cultural brasileiro, e antecipava idéias do "Manifesto antropófago" escrito
porOswald de Andrade em 1928, para não mencionar a própria produção da artista do período
de 1928 a c.1929, justamente conhecida como "antropofágica". Com uma ponta de maldade, A
negra trazia uma iconografia irreverente, primitiva e localista, mas Tarsila, ciosa da disciplina
cubista, comprimia tal iconografia num espaço ultra-raso-já quase uma abstração geométri-
ca-como que ostensivamente incitando à denúncia de sua fonte européia. Ou como que colo-
cando à prova a resistência da matriz formal européia para assimilar, em seu funcionamento
mais interno, a injunção heterodoxa de uma particularidade nativa.
Ao contrário do que poderia sugeriro aprendizado de redução formal que a artista cumpria
no mesmo ano de 1923 no ateliê de Léger, Lhote e Gleizes, naquela pintura ela de modo algum
abdicara da expressividade de sua personagem, e assim a caracterizava mediante claros distin-
tivos étnicos e sexuais, que se projetavam de maneira tão suave quanto impositiva (e mesmo
desafiadora) na su perfície da tela. A negra, afinal, revelava algo da ameaçadora vulgaridade da
Olympia de Manet1, só que extravagantemente transposta para a luxúria inculta da mata
brasileira. A superfície, por sua vez, surgia como uma estrutura diagramática de planos de cor,
sustentando a figura-também bastante resumida-sem qualquer esforço melodramático ou
recurso metafórico. De resto, Tarsila dispunha o "fundo" com maliciosa ambigüidade, de maneira
que seria possível percebê-lo ora como um desdobramento analítico de planos, ora como o signo
cifrado de uma paisagem particular-assinalada, para que não se tivesse quaisquer dúvidas,
por gigantesca folha de bananeira. Importa dizerque nesse trabalho a artista manipulava com
involuntária ironia antropofágica tanto o critério "formal", universalista, evidente no arrojo cons-
trutivo dos elementos pictóricos (o espaço planar e estrutural da pintura moderna), quanto o
critério "local", afetivo e particularista, do "tema" regional.
Tal combinação inusitada e aparentemente incongruente (pois a singularidade teimava o
tempo todo em saltar para a superfície do quadro, contradizendo a premissa moderna da uni-
versalidade das formas) iria radicalizar-se e desembocar cinco anos mais tarde no referido
"período antropofágico". Era a culminação das experiências que a artista realizara nos anos de
1924 e 1925, em sua primeira tentativa sistemática-é verdade que às vezes quase didática e
excessivamente sentimental-de aclimatação da racionalidade anônima e abstrata do espaço
cubista ao ambiente brasileiro, o chamado "período pau-brasil" çle sua pintura. Em todo caso,
pode-se dizer que também a pintura "pau-brasil" de Tarsila retratava de modo precursor o
A negra [The negress] 1923 óleo sobre tela [oil on canvas] 100x80cm coleção e cortesia Museu de Arte Coritemporânea da
Universidade de São Paulo

356 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


sentido essencial de um procedimento antropofágico, pois os trabalhos desse momento reve-
lavam a mesma dimensão metalinguística de A negra, sinalizando deliberadamente, por meio
das tensões entre o arranjo formal e o iconográfico, um processo de apropriação do modelo
"externo", convertido assim a um ponto de vista regional, brasileiro.
Em face desse corpo-a-corpo com a dinâmica da cópia e do modelo, dinâmica que o "Mani-
festo antropófago" não tematizaria senão alguns anos mais tarde, parece-me injusto tomar a
obra de Tarsila para ilustrar algo da plataforma antropofágica. A artista não apenas a anteviu em
sua produção de 1924-1925, como aventurou-se depois a extrair-lhe ao máximo as possibilidades
emancipatórias Ce a explorar-lhe as contradições) no campo objetivo da forma, vale dizer, no
embate implacável com a circunstância histórica e cultural brasileira Ca pintura "antropofágica"
de 1928 a c.1929). E, tendo esgotado esse projeto pictórico no limiarda década de 30, Tarsila pode
não ter criado um corpo de pinturas substancial ao longo de sua vida, mas acabou porconsumar
uma reflexão crucial sobre a questão da heteronomia na arte brasileira.
Do mesmo modo, seria improcedente suporque a pintura "pau-brasil", que se pode mu ito
bem considerar a primeira incursão sistemática da arte brasileira numa forma moderna, dialeti-
camente empenhada na superação do histórico estigma nacional da imitação, apenas repercutia
as idéias do "Manifesto da poesia pau-brasil", que Oswald publicara em 1924. É que A negra fora
produzida no ano anteriore, acima de tudo, cabe considerar que Tarsila confrontava essas ques-
tões, como se disse, enredada no campo objetivo da forma, estava arrebatada pela idéia de olha r
com frescor e sem preconceitos a realidade brasileira, e muito pouco mobilizada por formu -
lações teóricas ou especulações intelectuais.2
Sua pintura, enfim, discerniu a antropofagia-antes mesmo que ela fosse nomeada,
conforme se viu-como um procedimento poético, que parecia instaurar a própria condição de
possibilidade de uma arte moderna brasileira. Mas antes de ser possível praticar a antropofagia
com desenvoltura e senso estratégico, o que só se passaria nos últimos anos da década, teria de
ocorrer uma reforma visual radical na arte brasileira, seria preciso retirá-Ia do bovarisme dezeno-
vista e confrontá-Ia imediatamente com o simbolismo tecnológico e mecanicista da forma
moderna. Daí o giro conceituai substantivo realizado pela arte brasileira na obra "pau-brasil"
de Tarsila. De fato, foi mérito desta obra ter-nos arremessado abruptamente a uma posição de
sincronia em relação à cultura metropolitana hegemônica, e
com isto parecia querer desrecalcar o atávico sentimento
de atraso que atravessou o pensamento brasileiro desde o
primeiro momento em que ele aspirou à condição moderna.
Não haveria, entretanto, como esconder certa candura
nessas pinturas do período pau-brasil, que em última ins-
tância confiavam no pulso civilizatório daquela reforma
estética e no desencadeamento iminente de um processo
de racionalização da paisagem brasileira 3 • Éclaro que esse
otimismo explodia com certa insolência na sem-cerimônia
com que Tarsila "amestiçava" o código culto, insolência que
era, aliás, o que conferia graça e uma liberdade que nada
tinha de doutrinária ou programática à abordagem da
artista. Mas mesmo esse otimismo relativizado pela apro-
priação "bárbara" da forma tecnológica se exprimiria nas
pinturas de uma maneira ingenuamente demonstrativa,
como se a artista se empenhasse em mostrar-a um olhar

357 Tarsila do Amaral Sônia Salzstein


culto-que a paisagem brasileira era, sim, capaz de assimilar as premissas construtivas do
cubismo, como se ela se regozijasse, perante esse olhar, com a descoberta de um estranho ponto
de convergência entre uma ordem construtiva clássica e a natureza brasileira dotada de formas
puras e clarividentes, não corrompidas sob o peso de uma "envelhecida cultura européia".
Ao período "pau-brasil" seguiram-se dois anos de relativo refluxo produtivo, contraba-
lançados pelas estadias prolongadas da artista em Paris, por uma exposição individual na Galérie
Percier, que exigiu dela toda uma seqüência de preparativos e, como já vinha ocorrendo desde
o princípio da década, pela intensa circulação do casal Tarsila e Oswald pelo mundo artístico e
intelectual parisiense. As telas desse período (por exemplo: A boneca e Manacá, ambas de 1927)
não escondem o esgotamento do projeto anterior e o advento de algo novo, mais pessoal, mais
livre do didatismo que marcara sua obra dos anos de 1924 a 1925, embora nesse momento de
transição se manifestassem tentativas ainda bastante incipientes de elaboração de uma nova
síntese iconográfica e formal. Eram pinturas que passavam a trabalhar com formas moles, que
vinham dissolvero célebre pressuposto da grade cubista. Com elas, Tarsila começava a solapar
a ordem construtiva, cujo aprendizado lhe custara tantos esforços e que bem ou mal lhe ensi-
nara a acomodaro punhado de contradições inerentes a tal façanha cultu ral4, e parecia retomar
fôlego para encetar com plenitude a operação antropofágica.
A pintura Abaporu, como se sabe, inauguraria o segmento antropofágico da obra da artista,
em 1928. A mitigada obscenidade de A negra reapareceria agora num enredo dinâmico de formas
naturais, atravessado por referências fálicas, apelos tácteis e hibridismos envolvendo a combi-
nação marota de elementos antropomórficos e vegetais. O essencialismo linearda ordem cons-
trutiva se via substituído por um desconcertante empirismo da forma, e a pedagogia da forma
cu bista, dom i nante no gru po anterior de pi ntu ras, dava Iugar a u ma poética de amad u reci mento
e eclosão de espécies de frutos sexuais, que sagazmente ostentavam um caráter dúbio, entre o
natural e o artificial. Por outro lado, com essa nova síntese do arranjo formal e de exigências de
uma iconografia de forte apelo localista, Tarsila parecia ter superado as contradições do "período
pau-brasil", no qual a racionalidade do espaço cubista era incessantemente flanqueada pela
dimensão afetiva e particularista em que a artista mergulhava a paisagem brasileira.
Muitos tenderam a assinalar o caráter onírico e fantástico dos trabalhos do período
antropofágico, numa interpretação fundamentalmente psicologizada das estripulias formais de
Tarsila, interpretação que freqüentemente, aliás, acabaria por alinhá-Ia à escola do imaginário
fantástico, a uma Frida Khalo, por exemplo, quando não aos cenários primitivos do douanier
Rousseau. Entretanto, as formas naturais na pintura da artista brasileira eram essencialmente
paródicas, é como se resultassem desse hibridismo quase metódico entre formas naturais e arti-
ficiais, de sorte que a relativa dose de ironia e inteligên-
cia construtiva requerida em tal procedimento deveria
desaconselhar que se interpretasse essa pintura como
reservatório das metáforas de um inconsciente individual.
Mas o aspecto mais importante do período antro-
pofágico de Tarsila reside, como já foi mencionado, no
processo de desarticulação da forma construtiva que a
pintora emp reendeu nesse momento, não sem uma pita-
da de auto-ironia e secreto regozijo pelo exercício da
própria potência camaleônica-essa desenvoltura que
permitiu a ela se apropriar, enfim , da ordem moderna e
submetê-Ia a uma nova dinâmica cultural. É claro, então,
que Tarsila empreenderia tal desarticulação sem prescindir de um estrito domínio do espaço
moderno, pois permaneceria sob a égide do plano e de uma redução quase abstrata dos elemen-
tos que estruturam a superfície pictórica. Parece-me que foi nesse momento que Tarsila realizou
de fato a operação antropofágica, que dessublimou afinal a racionalidade construtiva para a
cultura brasileira, pois é como se tivesse ressubmergido a forma em sua materialidade cultural,
e a reencontrado totalmente relativizada pela particularidade da paisagem local.
No princípio da década de 30, surpreendentemente, a obra começaria a degringolar, deba-
tendo-se doravante num sem-número de hesitações estilísticas, ensaiando uma "fase social" à
moda do realismo socialista, tangenciando uma arte narre até mesmo lançando-se a uma impa-
gável fase neo-"pau-brasil". De certo modo, cabe supor que não era apenas a obra que degrin-
galava. O craque de 1929 selara a ruína de um estilo aristocrático de vida e com este dos serões
boêmios e intelectuais imantados porTarsila. Poroutro lado, a face solare utópica com que sua
pintura experimentara o sentido do moderno via-se abruptamente superada por um programa
autoritário de reforma em larga escala da vida social brasileira (1930-194s)-a célebre Revolução
de 30, capitaneada por um aguerrido líder de espírito caudilho: Getúlio Vargas. O "moderno"
assumia doravante ares de plataforma oficial no país e fazia envelhecer subitamente o projeto
utópico de um presente inesgotável e experimental da arte brasileira; sob retudo, vinha desau-
torizara espírito individualista, especulativo e aristocrático dos jovens modernistas de São Paulo.
Em arquitetura, curiosamente, a plataforma surtiria efeitos. Pois é preciso admitir, de pas-
sagem, que sob o beneplácito estatal conquistávamos as bases de uma extraordinária "arqui-
tetura moderna brasileira", que emergia como a verdadeira síntese poética entre o internaciona-
lismo modernista e a tradição do passado colonial, síntese tão perseguida na pintura "pau-brasil"
de Tarsila. Entretanto, se é possível conjeturarque, num país historicamente cultivado nos proble-
mas da dependência, como o Brasil, não teria despontado uma admirável arquitetura moderna
Rio de Janeiro 1923 óleo sobre tela [oil on canvas] 33x40,8cm coleção Fundação Cu ltural Ema Gordon Klabin, São Paulo
São Paulo 1924 óleo sobre tela [oil on canvas] 67x90cm coleção Pinacoteca do Estado de São Pau lo

359 Tarsila do Amaral Sônia Salzstein


sem o braço forte-mas nesse caso ilustrado e reformista-do Estado, a coisa se passaria de
modo totalmente diverso na esfera da arte, prática mais isolada, intimista e sempre dotada da
prerrogativa de manter-se relativamente à margem dos negócios públicos.
De fato, certa parte da pintura "modernista" surgida nessa década enrijeceria sob o patro-
cínio direto ou oblíquo do nacionalismo modernista oficial. Ela se desenvolvia cada vez mais
isenta da natureza processual e voltada ao risco que a antropofagia havia prometido à arte
brasileira, e a léguas de distância do experimentalismo que estamos acostumados a associar
historicamente ao termo "moderno" ,pelo menos desde Baudelaire. Simetricamente, enredava-
se cada vez mais em soluções de compromisso com o velho modelo das "belas-artes" que her-
dáramos da academia francesa, embora o cenário em superfície freqüentemente fosse de tipo
pós-cubista. Éclaro que ao lado dessa floração oficial do moderno brotavam extraordinárias tra-
jetórias individuais, como as de Oswaldo Goeldi e Alberto da Veiga Guignard-,masjustamente
eram obras solitárias, que escapavam ao sufocante cerco da ideologia modernista, a essa altura
convertida em causa nacional. De qualquer maneira, veríamos que daí em diante, e até pelo
menos a década de 50, o sentido do moderno se acresceria de uma matéria problemática para a
arte brasileira, mesmo no caso das trajetórias mais produtivas e emancipadas, como seria a do
próprio Guignard, cuja obra extraordinária não avançaria sem o contraponto de certas vaci-
lações e pusilanimidades formais.
Os impasses que aturdiriam a obra de Tarsila a partir dos anos 30 não seriam, então, pro-
priamente da obra, mas de toda a arte brasileira subseqüente, em sua problemática e arrastada
experiência de ingresso na modernidade do século XX, cheia de recuos e inconsistências estilís-
ticas que fariam com que fosse prorrogada até a década de 50. A ruptura contundente viria com
a reflexão neoconcreta. Esta fazia o diagnóstico implacável do conservadorismo cultural arraiga-
do no país, e tentava pensar a arte brasileira na crista de uma nova e iminente síntese histórica
do moderno (por precária e experimental que devesse ser tal síntese), de sorte que era preciso
superarde uma vez por todas as velhas e paralisantes polaridades ideológicas que haviam pro-
tagonizado o debate artístico nacional desde os anos 30: local/externo; nacional/internacional;
figurativo/abstrato; popular/colonizado. Ainda que os textos que se conhece de Hélio Oiticica,
Lygia Clark ou Ferreira Gullar não mencionem diretamente a poética da antropofagia, não se
pode recusar o fato de que a obra e a reflexão deles e dos artistas ligados ao movimento neo-
concreto enfatizaram ininterruptamente a mesma fenomenologia do presente exaltada nos
manifestos de Oswald de Andrade e na obra de Tarsila.
Sem uma tradição moderna local, os neoconcretos iam buscar os vínculos inatos que
ligariam a arte brasileira ao mais radical sentido do moderno na arte européia de extração
construtiva das décadas de 10 e 20: no construtivismo russo e no neoplasticismo holandês,
percebidos como instâncias máximas do experimentalismo do século xx (lembremos: para o
Brasil, o moderno não era uma escolha, era uma incontornável vocação histórica, dada justa-
mente por essa ausência de tradição, como afirmara o crítico Mário Pedrosa nos anos 50 e antes
dele, hlas com outras palavras, o próprio Oswald). Nesses dois movi mentos, os artistas encon-
travam uma idéia da arte sem "tema", sem significado, arte, portanto, como a experiência abso-
lutamente imanente de submergir no presente sem deixar rastros.
Pode-se dizer, então, que a partirdo passo dado porTarsila, e a despeito de todos os movi-
mentos de retração que depois dela se seguiram na história da arte brasileira, movimentos afi-
nai implicados na dinâmica cultural de um contexto periférico, constituíamos uma pequena e
heterodoxa tradição construtiva. Esta, curiosamente, acolhia tanto o horizonte anárquico e o
criticismo que começavam a assolaro mundo da cultura nos últimos anos daquela década, como

360 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


a natureza "clássica" e solarda melhor pintura "pau-brasil" e "antropofágica" de Tarsila. É um
dado paradoxal, mas o fato é que o neoconcretismo, ao mesmo tempo que levava às últimas con-
seqüências a utopia construtiva da pintora e de certa maneira concluía num clímax nosso capí-
tulo modernista, nos lançava ao informalismo turbulento e sem objetos da arte contemporânea.
Historicamente, tratava-se do primeiro gesto de crítica e superação do otimismo naif da
antropofagia, e de inserção positiva (não mais apenas reivindicatória) da experiência moderna
brasileira no horizonte mais universalista dos problemas da cultura contemporânea. Livre das
demandas ideológicas do nacionalismo oficial e da busca de uma mítica identidade cultural, a
obra neoconcreta empreendia uma profunda reforma lingüística na arte brasileira. Envolvia-se
numa especulação radical sobre as possibilidades emancipatórias da arte numa sociedade regida
pelo mercado, e acabava constituindo (sem quaisquer agendas a priori) um marcante ponto de
vista brasileiro no universo da arte contemporânea.
Abaporu 1928 óleo sobre tela [oil on canvas] 147x127cm coleção Eduardo Costantini, Buenos Aires

361 Tarsila do Amaral Sônia Salzstein


Observe-se que ao mesmo tempo o pintor Alfredo Volpi, longe da agonística performance
da arte neoconcreta em busca de uma espécie de grau zero cultural, reatava à sua maneira com
o otimismo construtivo de Tarsila e perfazia uma das mais interessantes obras modernas na
história da arte brasileira. Deslanchando em plena década de 50, sua pintura incorporaria em
doses idênticas a tradição construtiva e um certo informalismo anárquico emanando do ambiente
contemporâneo, numa combinação que garantiria o viés antidogmático da obra e que renderia
algumas preciosas telas metafísicas no princípio da década de 60.
A solidão histórica da obra de Tarsila, o fato de que não se generalizou para a arte brasileira
a peculiar visualidade moderna que ela montou a partir de uma astuciosa dialética de tradição
e experimentação, talvez se devam ao comprometimento profundo dessa obra com um projeto
utópico do moderno, que afinal não se realizou para o país, ao menos em sua dimensão utópica.
A estratégia da antropofagia, como da própria pintura de Tarsila, pressupunham uma resplan-
decente e imperiosa universalização da forma, na esteira da aguardada internacionalização da
revolução industrial. "No mundo supertecnicizado que se anuncia", dizia Oswald, "quando
caírem as barreiras finais do Patriarcado, o homem poderá cevar a sua preguiça inata, mãe da
fantasia, da invenção e do amor"s. Bem ou mal, uma razão moderna, é certo, se universalizaria e
alcançaria o Brasil, mas produzindo as dilacerações sociais e culturais que pudemos conhecer,
e não, portanto, nos termos utópicos vislumbrados porTarsila ou Oswald . Assim, uma vez res-
secada a fonte, a obra da pi ntora desid rataria, sem alento ético para prossegu ir. Como se vi u, .
teríamos de esperar algu mas décadas, até o advento da reflexão neoconcreta, para q ue o sentido
do moderno se rearticulasse culturalmente como força transformadora no país, já agora informa-
da por uma percepção profundamente crítica do mundo contemporâneo. Sônia Salzstein
o sono [The sleep] 1928 óleo sobre tela [oil on canvas] 60,5x72,7cm coleção Geneviéve e Jean Boghici , Rio de Janeiro
Boi na floresta [Ox in the forest] 1928 óleo sobre tela 50 x 61,2cm coleção Museu de Arte Moderna da Bahia, Salvador

362 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


1. Remeto à análise de Vinícius Dantas: "A negra se alça a sím- do gosto apurado [... ] Mas depois vinguei-me da opressão ,
bolo porque em sua magnífica nudez é só exterioridade, sem passando-as para as minhas telas [. .. ]", Aracy Amaral , Tarsila:
denotar senti mentos próprios e traços i nd ivid ualizadores . sua obra e seu tempo, São Paulo: Perspectiva/Editora da Univer-
Sua tristeza associa lassidão e languidez da prostração sexu- sidade de São Paulo, 1975 , vol .1, respectivamente p.84, P.95
al às sevícias da escravidão, imagem impressionante e ousa- e p . 121.
da da disponibilidade sexual feminina segundo uma mulher 3. Recém-chegada ao Brasil no final de 1923, e respondendo
avançada para seu tem po" . ("Que negra é esta?" , Sôn ia ao jornal Correio da manhã sobre "o estado atual das artes na
Salzstein, org., Tarsila anos 20, São Paulo: Galeria de Arte do Eu ropa", Tarsila faria um balanço entusiasmado da situação,
Sesi , 1997, P.4 8 ). de onde se infere o otimismo que a artista depositava sobre o
2. Sabemos que, durante suas longas permanências em Paris futuro da arte brasileira num contexto mundial de expansão
entre os anos de 1922 e 1923 , Tarsila não optou por vínculos da civilização industrial : "Vou referir-me , particularmente, à
muito rígidos ou sistemáticos com escolas ou ateliês , tendo França, de onde venho. É o melhor possível. Estamos numa
freqüentado por períodos curtos as aulas de Lhote, Gleizes e grande época, assistimos a um renascimento formidável de
Léger, depois de ter passado pela AcademiaJulian . De Paris , letras e 'artes. O século XX procura nas artes a expressão que
em carta enviada à família em 1923, ela afirmaria: "Sinto-me corresponde às descobertas científicas e ao tumulto das
cada vez mais brasileira: quero ser a pintora de minha terra. grandes cidades modernas" . Logo a seguir, indagada se con-
Como agradeço porter passado na fazenda a minha infância viria ao Brasil " pesquisaro que se passa fora" ela responderia:
toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando pre- "Certamente. Porque ignoraro que se passa no terreno artís-
ciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Ber- tico quando telegramas diários nos põem em contato com as
nardo, brincando com bonecas de mato, como no último qua- nações mais distantes?" E refutando o ceticismo do entrevis-
dro que estou pintando". No mesmo ano, relatando à família tador, cuja pergunta manifestava novamente o receio de que
inquietações que novamente se traduziriam num nacionalis- a arte brasileira recaísse na "imitação da Europa" ela con-
mo mais lírico e sentimental do que programático, diria: "[ .. .] cluía com decisão: " Não. O cubismo liberta porque tem a van-
tenciono passar muito tempo na fazenda assim que chegare tagem de ser uma escola de invenção", Aracy Amaral , op. cit. ,
espero na volta para cá trazer muito assunto brasileiro". P-441 e P.443 [grifo meu] .
Especificamente a respeito de sua produção " pau-brasil " de 4. Para uma discussão dessas contrad ições, remeto ao texto
1924-1925, ela relataria em depoimento para a Revista do Salão "A saga moderna de Ta rsila" , op. cit., P.9-17.
de Maio, de 1939, mantendo sempre o mesmo tom nada inte- 5. Oswald de Andrade, "A crise da filosofia messiân ica", Obras
lectual : "As decorações murais de um modesto corredor de completaslOswald de AndradelA utopia antropofágica , apresentação
hotel ; o forro das salas, feito de taq uari n has coloridas e tran- de Benedito Nunes, São Paulo: Globo , 1995, P.107. Trata-se
çadas; as pintu ras das igrejas simples e comoventes, execu- de um texto de 1950, em que o autor glosa e critica as princi -
tadas com amor e devoção por artistas anônimos ; o Aleijad i- pais passagens do pensamento filosófico ocidental , apontan-
nho , nas suas estátuas e nas linhas geniais da sua arquitetura do aí as fontes filosóficas da poética da antropofagia que ele
religiosa, tudo era motivo para as nossas exclamações admira- retomara em 1947, assim como passando em revista as idéias
tivas. Encontrei em Minas as cores que adorava em criança. En- do movimento lançado por ele em 1928.
sinaram-me depois que e ram feias e caipiras. Segui o ramerrão

363 Tarsila do Am aral Sônia Salzstein


curadoria Sônia Salzstein

Tarsila's audacity

An inadverted anthropophagic operation was already present in A neBra [The negress], a key
work by Tarsila do Amaral created in I923. It stood out from the series of studies-orthodox
exercises following the cubist primer almost to the letter-that had absorbed the artist that year.
Painted in Paris, it was one of the rare, fully modern paintings that had emerged up to then in the
Brazilian cultural milieu, and it anticipated ideas in Oswald de Andrade's I928 "Manifesto
antropófago" [Anthropophagite manifesto], not to mention Tarsila's own artistic production of
the period I928 to C.I929, rightly known as "anthropophagic." With a hint of malice, A neBra intro·
duced an irreverent, primitivist and local iconography, but Tarsila, zealot of cubist discipline,
compressed this iconography within an ultra·flat space-almost a geometric abstraction-as if
ostensibly urging the denunciation ofher European source. Or as iftesting the resistance ofthe
formal European matrix in order to assimilate, in its most internal functioning, the heterodox
injunction of a native particularity.
ln contrast to what might suggest Tarsila's apprenticeship in formal reduction in the studio
ofLéger, Lhote, and Gleizes also in I923, by no means did she abdicate from the expressivity of
her character in the painting, and in this way she characterized A neBra through clear ethnic and
sexual emblems that projected themselves in a subtle and imposing (and even defiant) manner
on the surface of the canvas. ln the end, A neBra revealed something of the threatening vulgarity
ofManet's Olympial, albeit extravagantly transposed to the uncultured luxury ofthe Brazilian
forest. The surface, by turn, emerged as a diagrammatic structure of color planes, sustaining the
figure-aIs o fairly simplified-with no melodramatic effort or metaphoric resource. Further,
Tarsila used the "ground" with malicious ambiguity, in such a way that it would be possible to
perceive it, at times as an analytical unfolding ofplanes, at others as a ciphered sign of a partic·
ular landscape-signaled, so as to erase all doubts, bya gigantic banana leaf. It should be noted
that in that work the artist manipulated with involuntary anthropophagic irony, as much the
universalist, "formal" criterion, evidentin the bold constructivism ofthe pictorial elements (the
planar and structural space ofmodern painting), as the affectionate and particularising "local"
criterion, ofthe regional "theme."
Such an unheard of and apparently incongruous combination (since the singularity kept on
trying the whole time to jump to the surface of the painting, contradicting the modern premise
of the universality of forms) would be radicalized and end up five years later, in the period
referred to as the "anthropophagic period." Itwas the culmination ofthe artist's experiences that
the artist executed between I924 and I925, in her first systematic attempt-although it cannot be
denied that it is sometimes almost didactic and excessively sentimental-ofthe acclimatization
of the anonymous and abstract rationality of cubist space to the Brazilian milieu, the so·called
"pau·brasíl period" ofher work. ln any case, it can also be said that Tarsila's "pau·brasil" painting
portrayed, as a precursor; the essential sense of an anthropophagic procéeding, since the works
Urutu 1928 óleo sobre tela [oil on canvas] 60,5 x72,5cm coleção Gilberto Chateaubriand, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

364 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


from that time revealed the sarne metalinguistic dimension ofA negra, deliberately signaling, by
means oftensions between the formal composition and the iconography, a process of appropri-
ation of the "external" model, converted, in this way, to a regional, Brazilian point of view.
ln the face ofthis body-to-bodywith the dynamic,ofthe c~py and the model, a dynamic that
the "Anthrapophagite manifesto" would only thematize a few years later, it seems to me unjust to
take Tarsila's work as an illustration ofthe anthropophagic platform. The artist not only foretold
it in the work she produced between 1924 and 1925 but later threw herselfinto extracting from
it the maximum emancipatory possibilities (and into exploring its contradictions) in the objec-
tive field of form, and in fact, in the implacable confrontation with the Brazilian historical and
cultural circumstance (the "anthropophagite" paintings Of1928-c.29). And, having exhausted
this pictorial projectat the dawn ofthe '30S, Tarsila may not have created a substantial body of
painting throughtout her life, but she did praduce a crucial reflection on the question ofheteran-
omy in Brazilian art.
ln the sarne way, it would be imprudent to suppose that the "pau-brasil" paintings which
can certainly be considered the first systematic incursion ofBrazilian art in a modernform, dialec-
tically engaged in the surmounting of the national historic stigma of imitation, only echoed the
ideas in the "Manifesto da poesia pau-brasil" [Manifesto of pau-brasil poetry] that Oswald pub-
lished in 1924. lt is because A negra was produced the year before. Above all, it is worth consid-
ering that Tarsila confronted these questions, as it was said, enveloped in the objective field of
form; she was enchanted by the idea oflooking freshly and without prejudice at Brazilian reality,
and very little motivated by theoretical formulations and intellectual speculations. 2
Her painting, in the end, discerned anthropophagy-even before it was named, as was
seen -as a poetic procedure that would seem to introduce the very condition of the possibility
of a modern Brazilian art. But before it would be possible to practice anthropophagy with confi-
dence and in a strategic sense, something that would only occur in the final years of the decade,
a radical visual reform would have to take place in Brazilian art. lt would be necessary to remove
it fram the bovarisme ofthe XIX century and place it immediately in confrontation with the tech-
nological and mechanistic symbolism of the modern formo Hence the substantial conceptual
turn realized by Brazilian art in Tarsila's "pau-brasil" work. ln fact, itwas the merit ofthis work
to have hurled us abruptly into a position of synchrony in relation to hegemonic metropolitan
culture, and with this it seemed to unleash the atavistic feeling ofbackwardness that traversed
Brazilian thinking from the moment it aspired to the modern condition.
Nonetheless, there would be no means ofhid-
ing a certain candor in these paintings fram the pau-
brasil period, which,in the final analysis, relied on
the civilizing pulse of that aesthetic reform and on
the imminent unleashing of a process of rationaliz-
ing the Brazilian landscape. 3 Clearly, this optimism
exploded with certain insolence in the insouciance
with which Tarsila processed the cult code, an inso-
lence that conferred, besides, grace and a certain
liberty (with nothing doctrinaire or programmatic
about it) on the artist's approach. But even that
optimism, relativized by the barbaric appropriation
oftechnological form, was expressed in the painting
in a naively demonstrative way, as if the artist were
trying to show-to a cultivated eye-that the Brazilian landscape was capable of assimilating the
constructive premises of cubism, as if she were rejoicing before this gaze in the discovery of a
strange point of convergence between a classical constructivist order and Brazilian nature blessed
with pure and prudent forms, uncorrupted beneath the weight of an "aged European culture."
After the "pau-brasil" period there were two years of a relative reflux in production, couq-
terbalanced by the artist's prolonged stays in Paris. This was due to a solo exhibition at the
Galérie Percier that demanded a series of preparations and, as had occurred since the beginning
of the decade, due to Tarsila and Oswald's intense circulation through Paris' intelIectual and
artistic milieu. The canvases from that period (A boneca [The dolI] and Manacà, for example, both
from 1927) do not conceal the exhaustion of ~he previous project and the advent of something
new, something more personal, something freer from didacticism, which marked her work in
1924 and 1925, even though in that period oftransition there was evidence of still quite provi-
sional attempts to elaborate a new iconographic and formal synthesis. These were paintings that
had moved to spineless forms, thatwere beginning to dissolve the celebrated presumption ofthe
cubist grid. With these works, Tarsila began to shake the constructive order which had cost her
so much effort to learn and which, for good or bad, taught her to accommodate the fistful of
contradictions inherent in such a cultural exploit, 4 and seemed to renew her strength to fulIy
embark on the anthropophagic projecto
The paintingAbaporu, as is known, inaugurated the anthropophagic segmentofthe artist's
o Lago [The lake] 1928 óleo sobre tela [oil on canvas] 75,5 x 93cm coleção particular [private collection], Rio de Janeiro
Paisagem antropofágica III [Antropophag ic landscape III] 1929 nanquim sobre papel [china ink on paper] 18x22,9cm coleção
Mário de Andrade , Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade 'de São Paulo

366 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


work in I928. The mitigated obscenity ofA negra reappeared then in a dynamic intrigue of natural
forms, crassed by phallic references, tactile appeals and hybridities that involved a naughty com-
bination of anthrapomorphic and vegetal elements. The linear essentialism of the constructive
arder saw itselfbeing substituted bya disconcerting empiricism of form, and the pedagogy of
cubist form, dominant in the previous graup of paintings, gave way to a poetics of the ripening
of sexualized fruits that wisely display a dubious nature, somewhere between the natural and the
artificial. On the other hand, with this new synthesis offormal composition and the demands of
an iconography with strang local appeal, Tarsila seemed to have overcome the contradictions of
the "pau-brasil" period, in which the rationality of cubist space was incessantly flanked by the
affective and particularist dimension in which the artist submerged the Brazilian landscape.
Many have tended to single out the oneiric and fantastical character of the works fram the
anthrapophagic period, in a fundamentally psychological interpretation of Tarsila's formal
pranks. Such an interpretation ended up frequently linking her to the school of the fantastical
imaginary, to a Frida Kahlo, for example, when not to the primitive scenarios of the douanier
Rousseau. Meanwhile, the natural forms ofthis Brazilian artist's paintings were essentially par-
odic. It is as if they were the praduct of that almost methodical hybridity between natural and
artificial forms, so that the relative dose of irany and constructive intelligence required in such
an appraach would tend to dissuade us fram interpreting this painting as the repository for the
metaphors of a personal unconscious.
But the most important aspect ofTarsila's anthrapophagic period resides, as mentioned
above, in the pracess of disarticulating constructive f()rm, which the painter embarked upon in
that moment, not without a pinch of self-irany and secret rejoicing in the exercise of her very
chameleon potential-that quality that allowed her to apprapriate fram the modern arder and
submit it to a new cultural dynamic. Clearly, then, Tarsila took on this disarticulation without
abandoning a strict command of modern space, since she persisted in the planar composition
and in the almost abstract reduction of the elements that structure a pictorial surface. It seems
to me that it was in that moment that Tarsila realized the anthrapophagic operation for certain,
that she finally desublimated constructive rationality for Brazilian culture; it is as if she resub-
merged the form in its cultural materiality, finding it totally relativized by the particularity of the
locallandscape.
At the beginning ofthe '30s, surprisingly, the work began to dismantle, battling fram then
on with innumerable stylistic hesitations, trying out a "social phase" in the manner of socialist
realism, edging toward a nalf art and even launching itself into a priceless neo-"pau-brasil"
phase. ln a certain way, we may suppose that it was not simply the work that was fading away. The
I929 crash sealed the ruin of an aristocratic lifestyle and with it the bohemian, intellectual soirées
centered araund Tarsila. On the other hand, the solar and
utopian face with which her painting experienced the feel
of the modern saw itself surpassed bya large-scale author-
itarian reform ofBrazilian sociallife (I930-4s)-the cel-
ebrated Revolution of I9 30, led by a strenvous leader with
a chieftain's spirit: Getúlio Vargas. The "modem" assumed
fram then on the airs ofthe country's official platform and
made the utopian praject of an inexhaustible and experi-
mental present in Brazilian art seem suddenly outdone.
Above all, it dismissed the individualist, speculative, and
aristocratic spirit of the young modernists fram São Paulo.

-- --_._--
ln architecture, strangely enough, this platform would bring about its effects. One must
admit, in passing, that with state approval we conquered the bases of an extraordinary "modern
Brazilian architecture," which emerged as the true poetic synthesis between modernist inter-
nationalism and the traditions of the colonial past, the sarne synthesis so ardently pursued by
Tarsila's "pau-brasil" painting. However, ifit is possible to conjecture that in a country histori-
cally trained in the problems of dependence, such as Brazil, an admirable modern architecture
would not have sprung forth without the strong-but in this case illustrious and reformist-
arm ofthe State, the very opposite is true in the realm of art, a more isolated practice, intimate,
and always endowed with the prerogative to maintain itself relatively on the margins of public
business.
ln fact, part of the "modernist" painting that emerged in that decade would stiffen under
the direct or indirect patronage of official modernist nationalism. lt became increasingly divorced
from the constructive nature that anthropophagy had promised Brazilian art, and miles away
from the experimentalism that we commonly associate historically with the term "modern," at
least since Baudelaire. Similarly, it became increasingly entangled with solutions of compromise
with the old "fine arts" model which we inherited from the French academy, though on the sur-
face the scenario was frequently of a post-cubist type. Obviously, next to this official flowering
ofthe modern, extraordinary individual trajectories sprung up, such as those ofOswaldo Goeldi
and Alberto da Veiga Guignard. But these were solitary works that escaped the suffocating circle
of modernist ideology that had been converted at that time into a national cause. ln any event,
we would see from then on, and at least until the '50S, that the meaning ofthe modern would
becomeproblematic for Brazilian art, even in the case of the most liberated and productive tra-
jectories, like that of Guignard himself, whose extraordinary work did not progress without the
contraposto of certain formal vacillations and weaknesses.
The impasses thatwould perplex Tarsila in the '30S would not be, then, proper to her work,
but to all subsequent Brazilian art. lts problematic and lengthy experience of entrance into XX
century modernity, full of steps backward and stylistic inconsistencies, delayed it into the '50S.
The definitive rupture would arrive with the reflections of neo-concretism. This movement
implacably diagnosed the country's rooted cultural conservatism, and tried to envisage Brazilian
art on the crest of a new and imminent historical synthesis of the modern (however precarious
and experimental such a synthesis would have to bel. ltwas necessary to overcome once and for
all the old and paralyzing ideological polarities that had protagonized the national artistic debate
since the '30s: local/external, nationalfinternational, figurative/abstract, popular/colonized.
Though the known texts by Hélio Oiticica, Lygia Clark, or Ferreira Gullar do not directly mention
the anthropophagic poetic, it cannot be denied that the work and reflections ofthe artists linked
to the neo-concrete movement emphasized uninterruptedly the sarne phenomenology of the
present that is exalted in Oswald de Andrade's manifestos and in Tarsila's work.
ln the absence of a local modern tradition, the neo-concretes sought the innate bonds that
would link Brazilian art to the most radical meaning of modernity in European art of constructive
extraction from the teens and '20S: in Russian constructivism and Dutch neo-plasticism, under-
stood as maximum instances of the experimentalism of the XX century (remember: for Brazil,
modernity was not a school, it was an unavoidable historical vocation, given precisely by that
absence oftradition, as the critic Mario Pedrosa affirmed in the '50S, and before him, but in other
words, Oswald himself). ln those two movements, the artists found an idea of art withouta
"subject," without meaning; art, therefore, as the absolutely immanent experience ofbeing
submerged in the present without leaving a trace.

368 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismqs


It can be said, then, that starting from the step taken by Tarsila, and despite all the reac-
tionary movements that followed her in the history ofBrazilian art, movements implicated after
all in the cultural dynamic of a peripheral context, we constituted a small and heterodox construc-
tive tradition. Curiously, this tradition had embraced the anarchic horizon and the criticism that
began to strain the cultural world in the lastyears ofthat decade, as much as the "classical" and
solar nature ofTarsila's best "pau-brasil" and "anthropophagic" paintings. It is a paradox, but
the fact is that neo-concretism, at the sarne time that it took the painter's constructive utopia to
the last consequences, and in a certain sense gave our modernist chapter a climactic conclusion, it
launched us into the turbulent informalism and without objects of contemporary art.
Historically, it was the first gesture to criticize and overcome the naif optimism of anthro-
pophagy, and to realize the positive insertion (no longer simply a claim) of the modern Brazilian
experience on the most universalist horizon of the problems of contemporary culture. Free of the
ideological demands of official nationalism and of the search for a mythical cultural identity,
Antropofagia 1929 óleo sobre tela [oil on canvas] 126x142cm coleção Paulina Nemirovsky, Fundação Nemirovsky, São Paulo

369 Tarsila do Amaral Sônia Salzstein


neo-concrete art undertook a profound linguistic reform in Brazilian art. ltwas involved in a rad-
ical speculation on the emancipatory possibilitiés of art in a society dominated by the market,
and it ended up constituting (emancipatedly from a priori agendas) a particular Brazilian point of
view ofthe universe of contemporary art.
Note that at the sarne time the painter Alfredo Volpi, far from the agonistic performance of
neo-concrete art in search of a sort of cultural ground zero, reconnected in his way with the con-
structive optimism ofTarsila and completed one of the most interesting modern works in the
history ofBrazilian art. Beginning in the mid '50S, his painting incorporated, in equal doses, the
constructive tradition and a certain anarchic informalism that emanated from the contemporary
milieu, in a combination that guaranteed the anti-dogmatic slant of the work and that would
produce some precious metaphysical canvases at the beginning ofthe '60S.
The historic solitude ofTarsila's work-the fact that the peculiarly modern visuality that she
mounted from an astute dialectic of tradition and experimentation did not become generalized
for Brazilian art-is due perhaps to the work's profound engagement with the utopian project
of modernity, which in the end was not realized for the country, at least in its utopian dimensiono
The strategy of anthropophagy, as ofTarsila's painting, presupposed a resplendent and imperi-
ous universalization of form, on the leveI of the awaited internationalization of the industrial
revolution. "ln the supertechnologized world that is being born," said Oswald, "when the last
barriers of patriarchy fall, man will be able to satisfY his innate laziness-mother of fantasy, of
invention, and love."s For good or bad, a modem reason, certainly, became universal and reached
Brazil, but produced the social and culturallacerations that we know very well therefore, and not
in the utopian terms glimpsed by Tarsila or Oswald. Thus, once the well had dried up again, the
painter's work would dehydrate, deprived of any ethical impulse with which to proceed. As we
saw, we would have to wait several decades, until the advent of neo-concrete reflection, for the
meaning of modernity to be culturally rearticulated with transforming force in this country, now
informed bya profoundly criticaI perception ofthe contemporaryworld.
Sônia Salzstein. Translatedfrom the Portuguese by Sheila Faria Glaser.
r. I refer here to Vinicius Dantas' analysis: "A negra rises to a sion, putting those colors in my canvases [. .. ]," Aracy Amaral,
symbol because in its magnificent nudity it is only exteriority, Tarsíla: sua obra e seu tempo [Tarsila: her work and times], São
without denoting its own sentiments and individualizing traits. Paulo: Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo,
Its sadness associates the lassitude and languor of sexual 1975, voLI, p.84, P.95, and p.121, respectively.
prostration with slavery, an impressive and daring image of 3. Recently arrived in Brazil at the end ofI923, and respond-
female sexual availability according to a woman ahead ofher ing to the newspaper Correio da manhã on "the current state of
time." ("Que negra é esta?," Sônia Salzstein, ed., Tarsíla anos 20, the arts in Europe," Tarsila enthusiastically took stock ofthe
São Paulo: Galeria de Arte do Sesi, 1997, P.48.) situation, from which one can infer the optimism that the
2. We know that in her long stays in Paris between 1922 and artist had about the future ofBrazilian art in the global con-
1923, Tarsila did not opt forvery rigid ar systematic links with text of the expansion of industrial civilization: "I will refer,
schools or studios, frequenting for short periods the classes particularly, to France, from which I come. It is the best pos-
given by Lhote, Gleizes, and Léger, after having passed sible. We are living in a great era, we are witnessing a formi-
through Academy Julian. From Paris, in a letter sent to her dable renaissance of arts and letters. The XX century seeks in
family in 1923 she affirmed: "I feel increasingly Brazilian: I the arts the expression that corresponds to the scientific dis-
want to be the painter of my country. How thankful I am to coveries and to the tumult of great modern cities." Immedi-
have passed my whole childhood on the plantation. The ately after, when asked if it would be in Brazil's interest to
memories of those times are becoming precious to me. ln art, "investigate what goes on abroad," she answered: "Of course.
I want to be the country girl of São Bernardo, playing with Why ignore what is happening on an artistic leveI when daily
hand-crafted dolls, as in the last canvas that Iam painting." ln telegrams put us in touch with the most distant nations?" And
the sarne year, relating to her family the uncertainties that refuting the skepticism of the interviewer, whose question
again were translated in -a nationalism more lyrical and senti- betrayed once again the fear that Brazilian art would again fall
mental than programmatic, she said, "[ ... ] I plan to pass a lot into "imitating Europe," she concluded with a decisive "No.
of time on the plantation once I come home and I hope that Cubism líberates because it has the advantage ofbeing a school
when I return here I will bring much of Brazil with me." ofinvention.," Aracy Amaral, op. cit., PP.441 and 443 [my
Specifically, in relation to her "pau-brasil" production in emphasis] .
1924-25 she related in a statement to Revista do Salão de Maio, 4. For a discussion of these contradictions I refer to my text "A
in I939, maintaining the sarne nonintellectual tone, "The saga moderna de Tarsila," op. cit., Pp.9-I7.
mural decorations of a modest hotel corridorj the lining of 5. Andrade, Oswald. "A crise da filosofia messiânica," Obras
rooms, made of colored and braided taquarinhasj the paint- Completas: Oswald de AndradefA utopia antropofágica. Intra.
ings in sim pIe and moving churches, executed with lave and Benedito Nunes, São Paulo: Globo, 1995, P.I07. This is a text
devotion by anonymous artistsj Aleijadinho, in his statues from 1950, where the author glosses and critiques the princi-
and in the splendid lines of his religious architecture-all pIe passages ofWestern philosophical thought, pointing to
prompt admiring exclamations from us . ln Minas Gerais I the philosophical sources of the anthropophagic poetic that
found the colors that I adored as a child. They told me after- he returned to in 1947, and as if reviewing the ideas of the
ward that they were ugly and provincial. I followed the routine movement he launched in I928.
ofrefined taste [... ] But then I took revenge on this oppres-
à esquerda [Ieft] Composição [Composition] 1930 óleo sobre te la [oil on canvas] 83x129cm coleção particu lar [private
collection], São Paulo
acima [above] Sol poente [Setting sun] 1929 óleo sobre tela [oil on canvas] 54x65cm Geneviéve e Jean Boghici, Rio de Janeiro

371 Tarsila do Amaral Sônia Salzstein


cu radoria Aracy Amaral

Volpi: construção e reducionismo


.sob a luz dos trópicos
A abordagem do trabalho de Alfredo Volpi (1896-1988) pressupõe considerações sobre o mais
notável pintor brasileiro contemporâneo. Sua obra se estende pela maior parte das décadas
deste século a partir dos anos 10, quando começa a pintar, até os anos 80, ocaso de sua vida, e,
em conseqüência, também de sua obra. Sua pintura se afina substancialmente nos anos 40,
período em que revela em plenitude sua potencialidade enquanto artista'. Pintor-pintor, vivendo
para pintar, Volpi é um exemplo do artista para quem a arte é seu fim último. Volpi importava-se
pouco com sua carreira, como pode ser hoje entendida a trajetória de um artista no sentido de
sua projeção enquanto personalidade. Nada podia diminuirou impedirsua paixão pelas tintas,
por seu incessahte e vital "fazer" pictórico. Podia pintar num modesto ateliê, como num quarto

372 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Hi stórias de Canibali smos


de 3X4 metros, o fundamental é que pudesse ter uma tela diante de si, suporte esse que ele
mesmo montava, o tecido sobre o chassis procedia à sua preparação, assim como à elaboração
dos pigmentos com que trabalharia. Volpi, podemos dizer, é o nosso Morandi, com quem tem
grandes afinidades. Sereno, e extremamente sério em relação à sua pintura, não-verbal, reflexivo,
realizava variações sobre o mesmo tema, estudos de cor, em telas aparentemente similares, o
artista se comprazendo com as diferenças tonais ou de composição. Uma pintura silenciosa, em
diálogo consigo mesma, em processo de gradativo desdobramento, como na pintura de naturezas-
mortas, nas quais a mutação de elementos combinados forma novos jogos ao olhar. Aliás, como
nos lembra Domingos Giobbi, as duas grandes admirações de Volpi na arte contemporânea
eram precisamente Matisse e Morandi. Sintomática essa predileção, pois Matisse encarna a ale-
gria da cor, e Morandi a sutileza cromática, ambas presentes, em momentos distintos, na obra
de Volpi2.
Por suas características de aparente simplicidade, a figura e a obra de Volpi atrairiam a
partirdos anos 40 o crítico e psiquiatra Theon Spanudis, e o crítico e físico Mário Schenberg, que
escreveu a apresentação de sua primeira exposição individual, em 1944. Mário Pedrosa seria
fascinado pelo trabalho de Volpi a partir de 1954, e sobre ele escreve, em particular quando vê
sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio dejaneiro em 1957, e desde então o proclama
o mestre brasileiro de seu tempo.
Poucos deslocamentos no decorrer de sua vida o afastam de seu bairro, o Cambuci, em São
Paulo: viagens a Mogi das Cruzes e Itanhaém, em fins dos anos 30, uma viagem breve pelas
cidades históricas mineiras em 1944-ocasião em que traz telas carregadas de expressionismo
retratando cenas religiosas de rua-uma viagem à Bahia em 1954, e outra a Cananéia, ambas
com o crítico Theon Spanudis. Mas plena de emoção seria a viagem realizada à Europa em abril de
1950, onde passa seis meses, acompanhado pordois pintores amigos, Mário Zanini e Rossi Osir-
dez dias em Paris, a maior parte do tempo na Itália, em Veneza, onde passa 40 dias. Nessa ocasião
faz dezoito visitas a pádua para ver os afrescos de Giotto, conhece Roma, Nápoles e a Sicília.
Nos anos 50 artistas de São Paulo e Rio dejaneiro também ficariam curiosos com a obra de
Volpi, que se interessa, nessa década, pelas realizações dos concretos, nunca porém sendo um
deles, e realizando obras abstrato-geométricas, ao observar, com a agudeza que lhe era peculiar
na aplicação de seu olhar, as experimentações desses moços dos anos 50. Para Volpi, são exer-
cícios que ele pratica como num jogo de variações que se desdobram em estudos de cor, até
seu esgotamento, ou para partir para outras experimentações em que a preocupação cromática
é dominante.
Mário Pedrosa faz uma clara distinção entre o "soberbo modelado" de Portinari, "classica-
mente separado das cores", enfatizando portanto sua excelência enquanto desenho, ao passo
que "Tarsila, Volpi, Guignard, Pancetti, se dão às cores pelas cores. Amam-nas". Efinaliza com
a frase: "Volpi é, aliás, o mestre da cor pura no Brasil"3. Em outro texto Pedrosa, escrevendo a
propósito da retrospectiva de Volpi no Rio de janeiro, diria que "representa o grito de inde-
pendência da pintura brasileira em face da pintura internacional ou da Escola de Paris".4 Essa
afirmação se aproxima daquela de um crítico francês nos anos 20, Maurice Raynal, ao se referir
à pintura de Tarsila nessa décadas. Ambos, tanto o crítico francês quanto Pedrosa se baseiam,
portanto, na preocupação moderna de assinalar um artista que pudesse ser identificado com o
Brasil. Artista que, embora impregnado, por meio de sua formação no campo da visualidade, de
obras de várias épocas e de artistas que admira, não deixa de trazer para a tela uma peculiaridade
Casario de Santos [Houses of Santos] 1952 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 116x73cm coleção particular [private
cOllection], São Paulo

373 Alfredo Volpi Aracy Amaral


que tem muito a ver com a nossa realidade. Essa preocu-
pação digamos, política, por parte do crítico, de localizar o
artista dentro de seu espaço/tempo, corresponde a toda
uma postura geracional hoje não mais existente. Embora os
especialistas de fora insistam em querer identificar nossa
realidade político-social assim como nossa visualidade tro-
pical ou subtropical com a obra de nossos artistas.
Talvez essa seja a razão pela qual críticos estrangeiros
que escreveram sobre a arte brasileira freqüentemente focali-
zam artistas como Tarsila, Volpi e Guignard como primitivos
ou ingênuos, como foi o caso do erudito crítico argentino
Jorge Romero Brest em 1945. É claro que em alguns perío-
dos a obra desses artistas pode deixar transpirar uma sim-
plicidade aparente, a despeito de sua formação. Mas essa
maneira "simples" é um assumir uma identificação com o
popularque nos rodeia ou envolve portoda a parte; ao passo
que em outros é conseqüência de um modismo, ou "popu-
larismo", como o denominaria o crítico Mário Schenberg,
referindo-se à tendência vigente nos anos 30 e 40, em artis-
tas da Família Artística Paulista, de origem operária. Ou
pode ai nda se configu rar como u ma vontade de ascese,
com o é em parte o caso de Volpi.
Esta exposição de Volpi na XXIV Bienal de São Paulo
não oferece um panorama completo de sua trajetória, porém
objetiva ser um recorte de sua obra. Ao sair da forte expressão que marcou suas pinturas dos
anos 40, ele parte para um reducionismo marcante dos elementos compositivos, enfatizando
fortemente o dado cromático que envolve sua produção de maneira muito particular nos anos
50 e 60. Volpi não pode ser considerado um antropófago, e ele mesmo daria de ombros a tal
problemática, como a tudo o que fosse teórico em relação à sua contribuição. A verdade é que
este artista, o maior pintor, gostaria de repetir, e não ha nenhuma originalidade em dizê-lo, de
nosso século para o Brasil, opera uma projeção de um encontro de raízes por meio de sua visua-
lidade. Sob esse aspecto pode-se vê-lo como um artista afetado pela antropofagia na arte, que
não é senão, em palavras chãs, a incorporação de elementos de outras culturas, outras infor-
mações ou repertórios que se mesclam às nossas tradições visuais. No caso de Volpi, com rara
sabedoria.
Ao deparar com um significativo desenho de Volpi-do qual freqüentemente se diz não ser
um desenhista, posto que seus trabalhos sobre papel são também pictóricos, preâmbulos de
pinturas que realizará-na coleção de Isaias Melsohn, percebo a matriz de muitas de suas pin-
turas das décadas de 50 e 60. Desenho-anotaçã0 6 , feito provavelmente por ocasião ou logo após
sua viagem à Europa-e Veneza-em 1950, projeta elementos do vocabulário de que se utilizaria
nos anos seguintes: fachadas verticalizadas, barco de forma que posteriormente transmutaria
em vela, além da bandeirola, e do mastro. Sintomático este desenho já registrar os germes de
sua fase de casario descarnado, como gosto de me referir às suas "fachadas" de inícios de 50.
Fachada [Facade] c.1955 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 142 x71 cm coleção particular [private collection], São Paulo
Composição com quadrado [Composition wi th a square] 1957 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 97x74cm coleção Anita
Marques da Costa, São Paulo

374 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Hi stórias de Canibalismos


E, percebe-se aqui, inspiradas pelas delgadas arquiteturas do casario de Veneza, a beira do
Adriático, à esquerda do desenho. Em seguida comparecem os mastros, e as velas, que povoa-
riam suas telas dos anos 60 e 70 e para mim, até agora enigmáticas enquanto procedência?; ao
mesmo tempo, em hibridismo inesperado, as bandeirinhas também aqui presentes, embora sem
o geometrismo com que gradativamente as projetaria. Écomo se este desenho encerrasse num
segredo bem guardado, a genética, como diz Melsohn, do vocabulário retido na emoção e na
memória visual deste artista que posteriormente os elaboraria em repetidas versões alteradas,
por mais de quinze anos.
Como se Volpi trabalhasse, ao longo de anos, os "objetos inteligíveis" de que nos fala
Baldinucci-ao definir "Idea" como "Perfeito conhecimento do objeto inteligível, adquirido
e confirmado pela doutrina e pelo uso. Nossos artistas (i nostri artefici) empregam esta palavra
quando desejam falarde uma obra muito original e bem inventada (opera di bel capriccio, e d'inuen-
zione)"8. Para Volpi, original de Lucca, a partir desta viagem /reencontro com sua ancestralidade,
estes elementos que incorpora a suas variações com positivas, de preocupação de ordem
cromática, são como memórias familiares que permanecem ao alcance de sua visualidade, que
remaneja em exercícios infindáveis, como em labor, isto sim, de artífice que mantém intacta a
possibilidade de desenvolver sua "fantasia" a partirda "imitação" das coisas que o rodeiam-e o
afetam, por seu interesse plástico-visual, tornando-se objeto de sua seleção para fins criativos.
Quando Hughes nos fala da vida sem escândalos ou sobressaltos de Morandi, que igual-
mente não participa de manifestos e contramanifestos da vida artística italiana de seu tempo, o
mesmo perfil se adequa a Volpi, retirado em seu ateliê do Cambuci, em meio ao tumulto inces-
sante da vida urbana em São Paulo, e somente nas duas últimas décadas de sua vida assediado
por colecionadores e marchands , porém mantendo íntegra sua postura de homem rústico,
avesso às mundanidades que desejariam envolvê-lo, preservando seu tempo para a pintura,
razão de seu viver. Nesse recato, poderíamos dizer, em meio à frivolidade do meio artístico-social,
residia exatamente o encanto maior para aqueles que o
procuravam em seu refúgio-ateliê.
Mas, pode-se indagar, quem é este artista que tem 54
anos em 1950, plenamente experimentado enquanto pintor,
não convidado pela direção da I Bienal para integrar a dele-
gação do Brasil-assim como também não o foram Tarsila e
Anita Malfatti, para esse primeiro evento histórico, e nele se
inscreveram para serem selecionados, como qualquer inici-
ante do tempo?
Vem de uma tradição de pintura autodidata, profis-
sionalmente um pintor de paredes, que, como seus compa-
nheiros operários, na primeira juventude aproveitava suas
horas de lazer-fins de semana-para pintar ao ar livre, ou
fixar cenas de sua casa e familiares. Nos anos 30 se dedicaria
com afinco à pintura de paisagens suburbanas, e somente a
partirde fins dessa década e inícios dos anos 40 é que se ini-
ciaria em especulações cromáticas cada vez mais intensas.
Desde os anos 30 a luz "desfazia" as formas de sua figura-
ção. Mas foi por certo a observação atenta da pintura de
um primitivo de Itanhaém, Emigdio de Souza-discípulo do
acadêmico documentalista Benedito Calixto-que o fez

375 Alfredo Volpi Aracy Amaral


valorizar as áreas de cor, justapondo-as com definição. Já em inícios de 40 a presença da
personalidade de Ernesto De Fiori transformaria, a meu ver, a pincelada de Volpi, que passa a
desen har com a cor. De u ma certa forma, Vol pi está pronto, a parti r de então, para sua grande
aventura cromática, de pesquisas sem fim. O cotidiano simples (trabalhadores à mesa, costu-
reiras sentadas, mulher frente à janela, a ceia, uma rua de Itanhaém, a praça de Itanhaém,
menina na bicicleta, conversa de fim de tarde ou jogo de dados) é focalizado com mestria por
Volpi. Não raro a sensualidade da matéria pictórica se impõe além do puro cromatismo, como
uma textura aveludada de painel romano de Pompéia. Por volta de 1944 Volpi abandona a pin-
tura a óleo pela têmpera a ovo, passando a preparar, ele próprio, seus pigmentos, e submetendo-
os a testes de resistência à luz e ao sol. Esse procedimento artesanal de obtenção de suas cores
é similar ao seu ,trabalho no preparo de seu indefectível cigarro de palha, ou ao preparo de suas
telas que montava uma a Uma sobre chassis encomendados. Como tive ocasião de registrar
antes, para mim essas etapas de trabalho não eram distintas, para Volpi, da realização pro-
priamente dita artística, e sim aspectos diversos de uma mesma atividade criadora 9 •
Murilo Mendes certa yez, em 1963, se referiu à carreira de Volpi como "a promoção do
instinto ao consciente. Desde há muito ele se preocupa em destruir o volume, em limpar a cor
dentro dos limites intencionais da bidimensionalidade".lO Talvez essa etapa instintiva a que se
reporta Murilo Mendes seja a das paisagens impressionistas dos anos 30, nas quais as formas
se desmancham nas pinceladas que cobrem a tela gestual mente, desenhando com a cor. Ao
passo que a partirde meados dos anos 40 Volpi principia a distribuiros diversos planos pela tela
com mais parcimônia, reduzindo os elementos que participam da composição, e contendo a
gestualidade dentro de construção que se torna a cada tela mais sóbria e comedida. A magia
contida em "As costureiras", exemplifica bem o preâmbulo desse período. "Cata-ventos", igual-
mente, pertencente à serie de "brinquedos" pintados pelo artista, já assinala essa depuração
Xadrez branco e vermelho [Wh ite and r~d chess] final dos anos 50 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 55x 102cm coleção
particular [private collection], São Pau lo

376 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


tão visível nas pinturas dos anos 50, uma quase abstração plena de alegria e ritmo congelado
pelo voluntarismo do pintor.
O casario de inícios dos anos 50 pode também ser uma eloqüente mostra de como Volpi
se apóia na arquitetura/construção para desenvolver suas fachadas ritmadas, e surpreenden-
temente porvezes com a presença do mastro cortando a composição onde domina a ortogonal.
Excelente exemplo de sua picturalidade exemplar, transpirando portodos os poros a ambiência
de nossa arquitetura litorânea de outros tempos é o "Casario de Santos", em que se percebe o
encontro da fase de fins da década de 40-na área superiordo quadro ainda o mar com barcos
de pesca visíveis-antecipando o reducionismo, por meio dos planos horizontais que elaboraria
nos anos 50, cortando a superfície vertical da tela, com ajanela central no campo inferior, hiera-
ticamente posta, em diálogo frontal com o observador.
A partirde então as fachadas se sucedem em exercícios de planos justapostos de cor, adel-
gaçando-se, esguias, e por vezes limitadas pelas faixas de planos horizontais. Já a "Fachadas"
(Doação Spanudis, do MAC-USP) e a "Fachada" (colo Saul Libman) são verdadeiras abstrações
a partir de uma representação, dentro de uma linha de construtivismo sensível, a pincelada
rastreando o ritmo e a lucidez de Volpi em sua contida fatura.
Esse exercício de cor-figura/fundo-sobre fundo vermelho como sobre fundo azul com
bandeirinhas em duas cores, ou numa única cor, teria suas variantes nas telas de triângulos
brancos sobre fundo monocromático antecipando o "Xadrez branco e vermelho", assim como
os "Ladrilhos". Na verdade, ao vermos em casa de Volpi que ele mesmo desenhara sua régua,
assim como ele próprio desenhara seu tabuleiro de xadrez, branco e vermelho, vemos como
estas telas são derivadas desse seu hábito artesanal (como Reverón que em seu ateliê em Macuto
fizera ele próprio seu telefone, suas bonecas, e outros objetos, conforme tivemos ocasião de ver,
assim como observamos que Torres-Garcia desenhava seus livros, palavra por palavra, ou pintava
um aparelho de rádio inventado porele em madeira). São estes artistas, como Volpi, pertencentes
a uma mesma linhagem da alegria do fazer manual, que não abandonam, em seu viver retirado,
de dedicação total ao trabalho integrado em seu cotidiano. Eque infelizmente para a grandeza
da criatividade do ser humano, seja uma nobre espécie em extinção, da qual Roberto Matta é,
decerto, o último exemplar na América Latina, após o desaparecimento de Gonzalo Fonseca.
A série que se segue, nesta Bienal de 1998, próxima dos concretos de São Paulo, é demons-
trativa de um Volpi atento a uma visualidade construída dentro da qual ele já se achava, mas
que seria levada a seus limites máximos. Aqui nestas obras desaparecem por alguns anos as
referências ao mundo visível, mas Volpi continua como especulador de formas e cores em sua
relação íntima (triângulos que não deixam de ser fragmentos de bandeirinhas, porque não?)
ou na rigorosa geometria na tela "Composição com quadrado", 1957, uma variante absoluta-
mente construtiva dos cata-ventos em quatro cores, uma hélice a simular possível movimento
sob um duplo quadrado antes estático, porém cortado por diagonais precisas.
A am bigü idade figu ra/fu ndo tam bém se apresenta a nossos 01 hos já em fi ns dos anos 50-
"Triângulos opostos", 1957-8-quando uma liberdade maior parece presidir a seleção das
formas e proposições do artista. Ou na composição com faixas horizontais azuis e rosas, dina- ,
micamente cortadas por esticadas diagonais sobrepostas a esse fundo bicolor. 11
A partirdo final dos anos 50 percebe-se em Volpi o refluir para um gestualismo visível, em
que persiste a redução cromática deliberada, mantendo a economia tonal e de elementos, porém
agora com composições em que nos surpreende a audácia no domínio da forma sobre o espaço.
Se é exemplo desta afirmativa obra aqui não exposta da Coleção Adolpho Leirner12 , é eloqüente
a tela da Coleção Ladi Biezus ("Sem título", fim dos anos 50), em que pela primeira vez se insinua

377 Alfredo Volpi Aracy Amaral


de maneira impositiva a vela, como forma ambígua e aud az 13. A permanência referida da ascese
está bem explícita na "Composição" de 1960 c., CColeção João Marino), pintura em que Volpi
não deixa de nos remeter à contenção expressiva de um Barnett Newman.
A partirde começos dos anos 60 dir-se-ia que Volpi organiza suas composições trabalhando
sobre o espaço e não mais, como antes dos anos 50, a partir de referencias do mundo real.
Assim, elementos de seu vocabulário de sempre-bandeirinhas, arcos de portas, bandeiras de
portas, janelas, portas, em particular-passam a ser pretextos/motivos incansavelmente retra-
balhados. O retorno da gestual idade, ao mesmo tempo que a relação cromática entre os diversos
planos, parece tornar-se fundamental num espectro de cores claras que, em determinado mo-
mento de sua obra, torna-se mais evidente, a cada tela, neste recorte que desejamos fazer de sua
pintura. O excesso de luz parece inundar sua produção, como se pode constatar nesta pequena
mostra da alegria de pintarem Volpi, dominando a composição sob névoa em segundo plano,
ao alcançar transparência quase total, em inédita absorção luminosa.
Trata-se, por certo, da projeção, por meio da pintura, da claridade excessiva dos trópicos,
por parte de um artista sensível a essa luminosidade, carregado das ancestrais referências
mediterrâneas, e atento, simultaneamente, ao desejo de construção e reducionismo. Uma arte
de invenção, uma lição de refinamento plástico-visual em pintura, a exigirde nosso olhar uma
releitura a partir deste fragmento de seu processo. Aracy Amaral

1. Seus próprios contemporâneos já lhe reconheciam, em iní- I'intransigeant, Paris, 13.6.1926, apud Catálogo Tarsila/S.Paulo
cios dos anos 40, "um amadurecimento que vai alcançando 1929, p.12, trad. A.A.
nestes últimos tempos o seu ápice". Assim o registra o crítico 6. Esse desenho, segundo Isaias Melsohn, foi adquirido há
Sergio Milliet, sob o pseudônimo de "S. de Santo Adolfo" em algumas décadas, na Galeria Astreia, de Stefan Geyerhahn,
texto de 1941, em que menciona estar Volpi fixando-se no então localizada na Praça Ramos de Azevedo, ao lado do Teatro
"essencial, numa síntese ousada e de grande força expressiva". Municipal de São Paulo.
Etermina dizendo: "No se ençontrar a si mesmo, o que Volpi 7. Sempre identificara os mastros como uma referência aos
vem conseguindo, sem preocupações atualistas ou sociais, mastros de festas juninas, tipicamente brasileiras, ao passo
encontra o artista o homem de carne e osso, de paixões, de que após ver este desenho penso num hibridismo de proce-
sofri mentos: o poeta. E é o poeta na sua encarnação plástica dência dessa imagem que retorna regularmente na produção
que eu admiro em Volpi, chefe de fila acatado por quase todos de Volpi a partirde inícios dos anos 70.
os artistas de São Paulo e, na sua incomensurável modéstia, 8. Filippo Baldinucci, Vocabolario toscano dell'arte dei disegno
tão ignorado do grande público". "Alfredo Volpi", Planalto, (1681), Florença: SPES, 1975, apud Georges Didi-Huberman
15.10.1941. Apud CD-ROM Alfredo Volpi, Sociedade para Catalo- Deuant I'image (capit. "L art comme renaissance et I'immortal-
gação da Obra de Alfredo Volpi, Logos Engenharia S.A./APK. ité de I'homme idéal"), Paris: Editions de Minuit,1990, P.93.
2. No caso de Volpi poder-se-ia dizer o mesmo que Robert 9. Ver Aracy Amaral, "Alfredo Volpi: pintura", in Alfredo Volpi:
Hughes registrou a propósito de Morandi quando de sua pintura (1914-1972), apresentação em catálogo de retrospectiva
retrospectiva no Museu Guggenheim de Nova York, em 1981: no Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro, outubro-novem-
"E se as formas são simples, sua simplicidade é muito enga- bro 1972 (reproduzido posteriormente, A. Amaral, Arte e meio
nadora: pode-se reconhecer nelas a destilação de uma sensi- artístico/entre a feijoada e o x-burguer, São Paulo: Nobel, 1982).
bilidade muito pura, sob cujo olharo tamanho da pintura, o 10. Murilo Mendes, "Volpi: do instinto à planificação", s.l., s.d.
silêncio do motivo e a profundidade interiordo olharsão uma 11. Deve-se observar q ue si ntomaticamente Vol pi não se pre-
coisa só". Robert Hughes, "Giorgio Morandi", apud A toda ocupava em dartítulos a suas telas. Para ele eram "pinturas",
crítica (Ensayos sobre arte y artistas), Barcelona: Editorial Ana- simplesmente, composições, e cada colecionador nomeava-
grama, 1992, p.215-218. as tentando individualizá-Ias, e esses nomes permaneceram
3. Mário Pedrosa, "A Primeira Bienal", apud Mundo homem arte como títu los.
em crise, São Paulo: Perspectiva, 1975, p.261. 12. Presente, no mesmo momento desta XXIV Bienal, em ex-
4. Mário Pedrosa, "O mestre brasileiro de sua época", apud posição da Coleção de Arte Construtiva no Brasil de Adolpho
Dos murais de Portinari aos espaços de Brasilia, São Paulo: Pers- Leirner, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
pectiva, 1981, p.62. 13. Muitas referências e títulos de obras dariam a esta forma
5. Maurice Raynal refere-se às "luminosas e cativantes com- e a suas variantes o títu lo de "vela" e seria, sob várias formas,
posições de Tarsila cujo esforço deve marcar uma data na incorporada a outras pinturas da década de 70.
história da autonomia artística do Brasil". Exposition Tarsila,

378 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


curadoria Aracy Amaral

Volpi: construction and


reductionism in the light of
the tropics
The work of Alfredo Volpi (1896-1988) prompts several reflexions about the most notable of
contemporary Brazilian painters. His work extends through most of the decades of this century,
from the teens, when he begins to paint, until the '80S, the sunset ofhis life, and thus ofhis
work. His painting is substantially refined in the '40S, a period during which the breadth ofhis
potential as an artist is revealed. 1 A painter-painter, living to paint, Volpi is an example of an
artist for whom art is the ultimate end. Volpi cared little for his career, in the sense used today of
an artist projecting himself as a personality along a particular trajectory. Nothing could diminish
or impede his passion for paints, for incessant and vital pictorial making. He could paint in a
modest studio, or in a 3-bY-4-meter room; what mattered was to have a canvas in front ofhim,
Sem título (amarelo e branco) [Untitled (yellow and white)] 1957 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 96,2x72cm coleção Tito
Enrique da Silva Neto, São Paulo

379 Alfredo Volpi Aracy Amaral


which he himself stretched. Fabric over chassis, he would proceed to prepare the canvas, as he did
the pigments with which he worked. Volpi, wecould say, is our Morandi, with whom he has many
affinities . Serene, and extremely serious about his painting, non-verbal, reflective, he realized
his variations on a theme, colar studies, in apparently similar canvases, taking pleasure in tonal
ar compositional differences. His is a silent painting, in dialogue with itself, in a gradual process
of unfolding, much like stilllife painting, in which altering combined elements produces new
games ofvision. And, as Domingos Giobbi reminds us, the two great objects ofVolpi's admiration
in contemporary art were precisely Matisse and Morandi. This predilection is symptomatic:
Matisse incarnates the pleasure of colar, and Morandi chromatic subtlety; both are present, in
distinct phases, in Volpi's work. 2
Because oftheir apparent simplicity, Volpi's work and persona attract, from the '40S on, the
critic and psychiatrist Theon Spanudis, as well as the critic and physicist Mário Schenberg, who
wrote the catalogue for Volpi's first solo shaw, in 1944. Mário Pedrosa would be fascinated by
Volpi's work from 1954 onwards, and would write about him in particular when he sees the
retrospective at the Museum ofModern art in Rio de Janeiro in 1957, at that point proclaiming
him the Brazilian master ofhis time.
Few departures in the course ofhis life take him away from his neighborhood, Cambuci, in
São Paulo: trips to Mogi das Cruzes and Itanhaem, at the end ofthe '30s, a briefvoyage through
the historic colonial towns ofthe state ofMinas Gerais, in 1944-from where he brings canvases
heavy with expressionistic tracings of religious street scenes-a trip to Bahia in 1954, and another
to Cananéia, both with the critic Theon Spanudis. But the trip to Europe in April of 1950 would
be full of emotion. There he spends six months, accompanied by two painter friends, Mário
Zanini and Rossi Osir- ten days in Paris, most ofthe time in Italy, in Venice, where he spends
40 days. On this occasion he makes 18 trips to Padua to see Giotto's frescoes; goes to Rome,
Naples, and Sicily.
ln the '50S, artists in São Paulo and Rio de Janeiro were also curious about the work of
Volpi, who is interested in that decade by the work of the Concretes, without, however, ever
becoming one ofthem, producing abstract geometrical works, when he observes, with the acuity
that is particular to him in the application ofhis gaze, the experiments of those young men of the
Sem título [U ntitled) final dos anos 50 têmpera sobre tela [tempera on canvas) 72x108,5cm coleção Lad i Biezus, São Pau lo

380 XXIV Bienal Núcleo Hi stóri co: Antropofagia e Hi stórias de Canibal ismos
'50S. For Volpi, these works are exercises that he practices as in a game ofvariations that develop
in studies of color, until they are exhausted, or in order to launch other experiments in which
chromatic concerns dominate.
Mário Pedrosa makes a de ar distinction between Portinari's "superb modeling," "dassi~
cally separated from colors," emphasizing however his excellent draftsmanship, while "Tarsila,
Volpi, Guignard, Pancetti, give colors for colors' sake. They love them." And he ends with the
phrase: "Volpi is, then, the master ofpure color in Brazil."3 ln another text, Pedrosa-writing on
Volpi's retrospective in Rio de Janeiro would say that it "represents Brazilian painting's cry for
independence in the face ofinternational painting or the Paris School."4 This affirmation comes
dose to that ofthe French critic Maurice Raynal in the '20S, in his reflections on Tarsila's painting
of that decade. 5 Both, as much the French critic as Pedrosa, based their remarks on the modern
preoccupation with singling out an artist that could be identified with Brazil. An artist who,
though impregnated, through his training in the visual field, with the work of various eras and
artists that he admires, does not fail to bring to the canvas a particularity that has much to do
with our reality. This preoccupation, politicaI from the critic's point ofview, to localize the artist
in his space/time, corresponds to the posture of an entire generation that no longer exists-even
though foreign specialists insist on wanting to identifY our socio~political reality, and our tropical
or subtropical visuality, with the work of our artists.
Perhaps this is the reason that foreign critics who wrote on Brazilian art often focused on
artists such as Tarsila, Volpi, and Guignard as primitive or naive, as did the erudite Argentine
critic Jorge Romero Brest in 1945. Certainly some periods ofthe work ofthose artists mayexude,
despite the artists' training, an apparent simplicity. But this "simple" manner is an assumption of
identification with the popular culture that surrounds us and envelops us in every way; whereas in
others it is the result of a certain fashionableness, or "popularism," as the critic Mário Schenberg
called it, referring to a valid tendency in the '30S and '40S, in artists ofthe São Paulo group of
artists of working~dass origino Or it can be configured as a will to transcendence, as is in part
the case for Volpi.
This show ofVolpi's work in the XXIV Bienal de São Paulo does not present a complete
panorama ofhis oeuvre, rather it attempts to be a slice ofhis work. ln emerging from the strong
expressive quality that marked his work of the '40S Volpi embarks on a marked reduction of
compositional elements, strongly emphasizing the chromatic givens with which his work is
concerned in a very particular way in the '50S and '60S. Volpi cannot be considered an anthro~
pophagite, and he himself would turn his back on such a framework, as he would on anything
theoretical in relation to his painting. The truth is that this artist, the greatest painter-I would
like to reiterate, and there is nothing original in saying this-of our century in Brazil, projects
an encounter with his roots through his visuality. ln this light he can be seen as an artist affected
by anthropophagy in art, which is only, in plain words, the incorporation of elements from other
cultures, other kinds of information or repertoires that become mixed with our own visual tradi~
tions. And in Volpi's case this is done with rare skill.
ln starting with a significant drawing by Volpi-ofwhom it is frequently said that he is not
a draftsman-in Isaias Melsohn's collection, I perceive the matrix of many ofhis paintings from
the '50S and '60S. (I posit that his works on paper are also pictorial, preambles to the paintings
he would later realize.) A drawing~notation6-done probably on commission or just after his
trip to Europe, and Venice, in 19so-projects elements ofthe vocabulary he would use in the years
to follow: vertical façades, a boat in a shape that would later become a sail, as well as the small
flag, and the mast. Symptomatically this drawing already registers the germs ofhis disembodied

381 Alfredo Volpi Aracy Amaral


houses phase, as l like to refer to his "façades" from the early '50S. And, they can be seen in this
small drawing, inspired by the slender architecture of the houses in Venice on the shore of the
Adriatic, to the left ofthe drawing. These elements, masts and sails would populate his canvases
in the '60S and '70S, elements which for me were enigmatic in origin until now7 • At the sarne
time, in an unexpected hybridity, small flags are also present here, though without the geometrics
with which gradually he would project them. lt is as ifthis drawing held a well-kept secret, the
gene, as Melsohn says, of a vocabulary retained in the emotional and visual memory ofthis artist
who later would elaborate them in repeated, altered versions for more than IS years.
lt's as ifVolpi were working, for years, on the "intelligible objects" ofwhich Baldinucci
speaks, in defining "ldea" as the "Perfect knowledge ofthe intelligible object, acquired and con-
firmed by doctrine and use. Our artists (í nostrí artefící) use this word when they want to speak of
a very original and well conceived work (opera di bel capríccío, e d'ínvenzíone)."8 For Volpi, originally
fram Lucca, these elements that he incorporated in his compositional variations, preoccupied with
chromatic issues, are like familiar memories that, after this trip/encounter with his heritage,
remain under the reach ofhis visuality, and that he reworks in endless exercises, in permanent
labor. This, yes, an artifice that maintains intact the possibility of developing his "fantasy" start-
ing with the "imitation" ofthe things that surround-and affect-him for their plastic, visual
interest, and then turn into the object ofhis selection for creative ends.
When Hughes refers to Morandi's life without scandals or misadventures, a life that also
remains alooffrom the manifestos and countermanifestos of artistic life in the ltaly ofhis time,
the sarne profile can be sketched ofVolpi, a refugee in Cambuci, in his studio in a working class
neighborhood, in the middle of the incessant tumult of urban life in São Paulo, and only in the
last two decades ofhis life besieged by collectors and dealers. Maintaining the integrity ofhis
posture as a rustic man, he avoided the mundanities that wished to envelop him, safeguarding
his time for painting, his raíson d'être. lt is in this modesty, one could say, a modesty surrounded by
the frivolity of the socio-artistic environment, that lies the great appeal for those who sought him
out in his studio-refuge.
Nevertheless, which are theprevious activities ofthis artistwho is 54 years old in 1950, fully
experienced as a painter, yet not included to represent Brazil by the curators of the first Bienal-
just as Tarsila and Anita Malfatti were also not invited to that first historic event, and who signed
up to be selected, as any emerging painter of the time would have done?
He comes from a tradition of self-taught painting. A professional house painter, he would,
with his working-claSS companions, take advantage in his youth ofhis leisure time-weekends-
to paint en plein air, or to capture scenes ofhis home !ife and his friends. ln the '30S he concen-
trated in painting suburban landscapes, and by the end ofthat decade and at the beginning ofthe
'40S his chromatic speculations became gradually more intense in his painting achievements.
Even in the '30S the light "dissolved" the forms ofhis figuration. But it was doubtless the atten-
tive observation ofthe painting of a primitive from Itanhaem, Emigdio de Souza-an academic
disciple ofthe documentary academic Benedito Calixto-that made him valorize areas of colo r,
juxtaposing them with definition. Even at the beginning ofthe '40S the presence ofErnesto De
Fiori would transform, in myview, Volpi's brushstroke: Volpi moves to drawingwith coloro ln a
certain way, Volpi is ready, from then on, for his great chromatic adventure of endless sketches.
The simple quotidian (workers at table, seated seamstresses, a woman in front of a window, a
midnight repast, a street in ltanhaem, the square ofItanhaem, a girl on a bicYcle, a conversation
at the end ofthe afternoon or a game of dominoes) is focused with mastery byVolpi. Often, the
sensuality of the pictorial material imposes itselfbeyond pure chromatics, with the velvety texture

382 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


of a Roman fresco from Pompeio Around 1944,
Volpi abandons oil painting for tempera and egg,
beginning to prepare his own pigments, and test-
ing them for their resistance to the light of day.
This artisanal procedure of obtaining colors is
similar to his work in preparing his flawless
straw cigarette, or to the preparation ofhis can-
vases which he mounted on specially ordered
stretchers. As I had occasion to note earlier, for
Volpi these stages of his work were not distinct
from the artistic act of production itself, but,
rather, diverse aspects of one creative act. 9
ln 1963 Murilo Mendes referred to Volpi's
career as "the promotion ofinstinct to conscious-
ness. For a long time he has been obsessed with
destroying volume, with polishing color within
the intentional limits of two-dimensionality."10
Perhaps this instinctive phase to which Mendes
refers is that of the impressionist landscapes of
the '30s, in which forms come apart in the brush-
strokes that cover the canvas gesturally-drawing
with color. Whereas from the mid '40S on Volpi
begins to distribute several planes throughout
the canvas with greater economy, reducing the
elements that comprise the composition, and
containing the gesturality within a construction
that with each canvas becomes more sober and
moderate. The contained magic of "As costurei-
ras" [The seamstresses] exemplifies the preamble ofthis period well. "Cata-ventos" [Weather-
van e] does as well; it belongs to the series of"toys" painted by the artist, and already signals the
depuration so visible in the paintings of the 'sos-a quasi-abstraction full of joy and rhythm
frozen by the artist's will.
The house from tpe early '50S can also be an elegant example of how Volpi draws from
architecture/construction to develop his rhythmic façades, and, surprisingly, sometimes includes
a mast that breaks the composition where the orthogonal dominates. An excellent example of
his exemplary picturality, exuding in every pore the ambiance of our architecture from another
era is "Casario de Santos" [Houses ofSantos, main harbour city ofthe state ofSão Paulo] , in
which the encounterwith the phase ofthe endofthe '40S can be perceived-in the upper half
of the canvas the sea still has visible fishing boats-anticipating the reductionism through
horizontal planes that he would elaborate in t~~ '50S, breaking the vertical surface of the canvas,
with the central window of the background, hieratically placed, in a frontal dialogue with
the viewer.
From that point on, the façades succeed one another in exercises ofjuxtaposed planes of
color, narrowing, slender, and sometimes limited by the strips of horizontal planes. Already
Composição I [Composition I) 1960c. têmpera sobre tela [tempera on canvas) 106 x 71cm coleção particular [private collection),
São Paulo

383 Alfredo Volpi Aracy Amaral


"Fachadas" [Façades] (Spanudis Gift, Museu de arte contempo-
rânea da USP) and "Fachada" [Façade] (Saul Libman collection)
are true abstractions that begin fram a representation, within a vis-
ible constructivist line, the brushstrake tracking the rhythm and
lucidity ofVolpi in his contained facture.
This exercise in color-figure/backgraund-on a red back-
graund as on a blue backgraund with small flags in two colors, or
in a single color, would have its variations in the canvases of white
triangles on a monochramatic graund anticipating "Xadrez bran-
co e vermelho" [White and red chess], as well as "Ladrilhos"
[Tiles]. ln truth, in seeing in Volpi's house that he himself drew
his ruler, just as he drew his chess board, white and red, we see
how these canvases are derived fram this artisanal habitat (like
Reverón who in his studio in Macuto made his own phone, his
dolls, and other objects, as we had occasion to see-just as we
observed that Torres-GarcÍa drew his books, word by word, or
painted a radio built for him in wood). These artists, like Volpi, are
fram the sarne tradition ofjoy in manual labor. ln their retired life,
they do not abandon a total dedication to work that is integrated
with the quotidiano (And, unhappily for the greatness ofhuman
creativity, this is an extinguishing lineage, of which, after the
death of Gonzalo Fonseca, Roberto Matta is certainly the last
example in Latin America.)
The series that is presented in this Bienal (displaying his
praximity to the concretists of São Paulo) shows a Volpi who is
attentive to a vIsuality constructed within the one in which he
already found himself, but that would be taken to its very limits.
ln these works references to the visible world disappear for a few
years, butVolpi continues to experimentwith forms and colors in their intimate relation (triangles
that never cease to be fragments of small flags, why not?) or with the rigoraus geometry of the
canvas, as in "Composição com quadrado" [Composition with a square], 1957, an absolutely
constructivistvariation ofthe weathervanes in four colors, a helix simulating possible movement
beneath a previously ecstatic double square, though cut by precise diagonaIs.
The figure/background ambiguity is already presented to our eyes at the end ofthe 'sos-
"Triângulos opostos" [Opposed triangles]-when a great freedom seems to preside over the
artist's selection of forms and proportions. Or in the composition with blue and pink horizon-
tal stripes, dynamically broken by stretched diagonaIs superimposed on that two-color ground.11
Fram the end ofthe '50s one can sense in Volpi a return to a visible gesturality, in which a
deliberate chromatic reduction persists, maintaining an economy of tones and elements, though
now in compositions where the domination of form over space is astonishing. The canvas fram
the Ladi Biezus collection (Untitled, end ofthe '50S) is an eloquent example ofthe affirmative work
not shown here fram the Adolpho Leirner collection. 12 Here, for the first time, the sai! insinuates
itselfin a forceful way, as an ambiguous and audacious shape. 13 The previously mentioned persis-
tence oftranscendence is very explicit in "Composição" [Composition}, ca. 1960 (Collection João
Marino), a painting in which Volpi gives us the expressive contention of a Barnett Newman.
Sem título [Untitled] início dos anos 70 têmpera sobre tela [tempera on canvas] 84,5x42cm coleção Ladi Biezus, São Pau lo

384 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibalismos


From the beginning ofthe '60S, one woilld say that Volpi organizes his compositions by
working only on the space and no longer, as in the '50s, from references to the real world. Thus,
elements of his vocabulary-small flags, arches, transoms, windows, doors, in particular-
come to be tirelessly reworked pretexts/motifs. The return to gesturality and the chromatic relation
among the various planes seem to become fundamental in a specter oflight colors that in a certain
moment in his oeuvre become more evident with each canvas, in thís period ofhis work we are
focusing on. The excessive light seems to inundate his output, as one can see in this small show
of the joy of painting in Volpi, dominating the composition under poetic mist in the second
plane, reaching for an almost complete transparency in an unprecedented luminous absorption.
It is a question, certainly, of projection through painting of the excessive clarity of the
tropics, on the part of an artist sensitive to this luminosity, weighted with Mediterranean ances-
tral references, and attentive at the sarne time to the desire for construction and reduction. An
art ofinvention, a lesson in the plastic-visual refinement of painting, demanding of our gaze a
rereading based on this fragment ofhis processo
Araey Amaral. Translatedfrom the Portuguese by Sheíla Faria Glaser.

L At the beginning of the '40s, his contemporaries already history ofBrazil's artistic autonomy." Exposition Tarsila, L'intran-
recognized in his work "a maturity that was reaching its peak." s(geant, Paris, 13 June 1926, cited in Catálogo Tarsila/São Paulo
So remarks the critic Sergio Milliet, under the pseudonym "S. 1929, p.12, A.A. trans.
de Santo Adolfo," in a text from 1941. ln it he notes that Volpi 6. This drawing, according to Isaias Melsohn, was acquired a
is concentrated on the "essential, in a daring synthesis with few decades ago, in Galeria Astreia, from Stefan Geyerhahn,
great expressive force." And he ends by saying: "ln locating gallery located in the Praça Ramos Azevedo, next to the Muni-
himself, which Volpi has just been able to, outside current or cipal theater ofSão Paulo.
social concerns, the artist encounters the man of flesh and 7. I had always identified the masts as a reference to the masts
blood, of passions, of suffering: the poeto And it is the poet in ofthe typically Brazilian June Saints Days festivals. After see-
his plastic incarnation that I admire in Volpi, leader of the ing this drawing I think of the hybrid origin of this image that
group attacked by almost alI the artists in São Paulo and, in returns regularly in Volpi's oeuvre after the early '70S.
his incommensurable modesty, so unknown by the public at 8. Filippo Baldinucci, Vocabolario toscano deli 'arte dei disegno
large." "Alfredo Volpi," Planalto, IS October 1941. Cited in CD- (1681), Florence: SPES, 1975, cited in Georges Didi-Huberman,
ROM, Alfredo Volpi, Sociedade para Catalogação da Obra de Devant I'image (in "L'art comme renaissance et l'immortalité de
Alfredo Volpi, Logos Engenharia S.A./APK. l'homme idéal"), Paris: Editions de Minuit, 1990, P.93.
2. OfVolpi the sarne can be said as Robert Hughes said of 9. See Aracy Amaral, "Alfredo Volpi: pintura," Alfredo Volpi:
Morandi on the occasion ofhis retrospective at the Guggen- Pintura (1914-1972), Museu de Arte Moderna ofRio de Janeiro,
heim Museum in New York in 1981: "And if the forms are October/November, 1972 (reproduced later in A. Amaral, Arte e
simple, their simplicity is very deceptive: in them can be dis- meio artístico/Entre afeijoada e o x-burger, São Paulo: Nobel, 1982)
cerned the distillation of a very pure sensibility, under whose 10 Murilo Mendes, "Volpi: do instinto à planificação," s.l., s.d.
gaze the size ofthe painting, the silence ofthe motive and the II. It should be noted that, symptomatically, Volpi did not
depth of the interior of the gaze are one." Robert Hughes, concern himself with giving titles to his canvases. For him
"Giorgio Morandi," cited in A toda critica (Ensayos sobre arte y they were simply "paintings," compositions, and each collec-
artistas), Barcelona: Editorial Anagrama, 1992, p.2Is-218. tor would name them as he attempted to distinguish between
3. Mário Pedrosa, "A primeira Bienal," Mundo homem arte em them, and these names persisted as titles.
crise, São Paulo: Perspectiva, 1975, p.261. 12. Which can be seen, at the sarne time as this Bienal of1998,
4. Mario Pedrosa, "O mestre brasileiro da sua época," apud on show at Adolpho Leirner's collection of Brazilian con-
Dos murais de Portinari aos espaços de Brasaia, São Paulo: Perspec- structivist art, at the Museu de Arte Moderna of São Paulo.
tiva, 1981, p.62. 13. Many references and titles ofworks would give this shape
5. Maurice Raynal refers to the "luminous and captivating and its variants the title "sail" and this shape would reappear
compositions ofTarsila whose effort must mark a date in the in various forms and in other paintings throughout the '70S.

385 Alfredo Volpi Aracy Amaral


curadoria César Oiticica Filho, Luciano Figueiredo e Pau lo Herkenhoff

Corpo-cor em Hélio Oiticica VivianeMatesco

Em 1966, Hélio Oiticica apresentou um trabalho, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
que explicita suas propostas de Antiarte e sintetiza seu percurso anterior: um jogo de bilhar. A
parede vermelha, o verde da mesa e as camisas dos jogadores permitiam "vir à tona toda a plas-
ticidade desse jogo único-plasticidade da própria ação-cor-ambiente: todos se divertem com
o bilhare imergem no ambiente criado".1 A proposta Sala de bilhar-nascida de uma observação
de Mário Pedrosa aproximando as sensações causadas pelos Núcleos e Bólides ao impacto das
cores da tela Café noturno de Van Gogh-enfatiza o aspecto do prazer no jogo e redefine a arte
como uma atividade lúdica, aberta à interferência do público e ao imprevisível 2 •
A produção de Oiticica, a partir dos Parangolés, é nitidamente marcada pela busca para
integrar a arte na experiência cotidiana. Éa recusa do amedrontamento perante um mito. A pro-
posta da "Antiarte" consiste em sensibilizaro cotidiano por meio da repotencialização do "coe-
ficiente" criativo do indivíduo. O artista torna-se agora o motivadorda criação, que só se realiza
com a partici pação do "ator/espectador". Ele reú ne elementos e recu rsos diversos como cor,
estrutura, música, dança, palavra e fotografia, no que define como "totalidade-obra". É por
meio da experiência com a cor que Oiticica rejeita a dicotomia objeto/sujeito. Funda a obra na
própria relação com o sujeito que, ao realizá-Ia, efetiva uma operação que o leva a si mesmo, a
um autoconhecimento. Dos primeiros trabalhos concretos às propostas de Antiarte, a coré um
eixo condutorem sua trajetória, levando-o ao espaço real e a superar a distância entre arte e vida.
Aluno de Ivan Serpa, Hélio liga-se inicialmente ao concretismo, vertente construtiva da
arte que marcaria profundamente seus trabalhos iniciais. A tradição concretista postulava a
redução da cor: ela se tornava apenas um elemento da dinâmica visual que, ao interagircom um
outro, convertia-se num feixe ótico; subjugada à forma, não deveria demonstrar nenhuma refe-
rência pessoal que alterasse os jogos retinianos. Os guaches de Oiticica desse período, planos
saturados de cor, constituem um estudo do vocabulário formal concretista, mas não apresentam
a rigidez de suas formas seriadas. Uma relativa autonomia da cor, já prenunciada nesses pri-
meiros guaches, afirma-se nos seus trabalhos subseqüentes. Os Metaesquemas (1957-58)
indicam pelo próprio nome sua função: são esquemas compostos pela relação forma e fundo,
que adquirem, pela cor, uma instabilidade gráfica. Em vez de uma estrutura hierarquizada do
espaço pictórico, significam uma dinâmica que questiona a própria bidimensionalidade. A ~or
libera a forma do suporte, salta para o espaço, ganha o mundo.
O aprofundamento da questão da cor, da luz, o desejo de explorar sua ação, sua potência
lógica, levaram Oiticica fatalmente à ruptura do conceito tradicional de quadro. Nos Monocro-
máticos ou Invenções (1958-59), desaparece a diferença entre pintura e suporte, o plano torna-se
elemento ativo. São placas quadradas (30cm de lado) que recebem várias camadas de tinta e
deixam aparente essa superposição. São dispostas na parede de maneira inusitada, uma vez
que não são centradas. A cor age, agora, duplamente: em relação a si mesma, como se fosse
uma pulsação e em relação à parede. Os Monocromáticos anunciam, por meio de sua dinâmica

386 XXIV Bienl\l Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


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estrutural, uma tendência ao espaço tridimensional e representam a transição da pintura na


tela para a fase em que a cor, confundindo-se com a própria estrutura, passa a agir livremente
no ambiente. A utilização da monocromia enfatiza e isola a corem um momento único de ação.
A luminosidade, a vibração de suas ondas, constitui a sua temporalidade. Daí a preferência por
cores mais abertas à luz como branco, amarelo, laranja e vermelho. Sobre as cores-luz, escreve
Oiticica: "à cor pigmentar, material e opaca em si, procuro dar o sentido da luz [... ] é preciso
separar as cores mais abertas à luz, como privilegiadas para essa experiência"3. Para se mani-
festar, a "cor-luz" necessita de uma forma material e assim determina sua própria estrutura.
Essa concepção nasce junto com a idéia da cor: não há mais um suporte a ser pintado, a estru-
tura torna-se o "corpo da cor".
Os Bilaterais e os Relevos espaciais (1959) são superfícies de madeira pintadas, suspensas por
fios presos ao teto. "Não objetos"4, inserem-se na experiência de desintegração do quadro reali-
zada pelo grupo neoconcreto e, mais especificamente, significam um processo paralelo àquele
realizado por Lygia Clark na série dos Casulos. Os neoconcretos pretendiam realizar uma revisão
crítica do construtivismo; partindo da convicção básica de que a obra de arte não é uma ilus-
tração de conceitos apriorísticos, objetivam uma redução do pragmatismo concreto mediante o
resgate da expressão e da subjetividade presentes em Malevitch e Mondrian. Deslocam o eixo das
preocupações teóricas de Pierce para a filosofia de Merleau-Ponty e Suzane Langer. Buscam a per-
cepção estética por meio de uma abordagem fenomenológica em que a relação envolve o corpo.
Os Núcleos (1960-63) consolidam as principais questões levantadas pelos Bilaterais e Relevos
espaciais; ampliam o problema da espacialização da cor e conceitos relativos à "estrura-cor"
ativa. São placas de madeira pintadas, com dupla superfície, presas ao teto por um suporte de
madeira. Nos primeiros Núcleos, não havia a possibilidade de movimentar as placas; aos poucos
elas vão ficando mais soltas e incorporam o espaço exterior. A exploração é condição para o co-
nhecimento desses trabalhos: para desvendá-los, o sujeito deve investigar suas potencialidades,
suas várias facetas. A disposição das placas cria espaços virtuais, favorece a tensão entre luz e
sombra, o jogo interior/exterior; elas são pintadas em tons muito próximos, cuja variação segue
um ritmo elaborado. A respeito dessa estruturação, Oiticica afirma: "o desenvolvimento nuclear
que procuro não é a tentativa de amenizaros contrastes, mas de movimentarvirtualmente a cor,
em sua estrutura mesma [ ... ] É a volta ao núcleo da cor, que começa na procura da sua lumi-
nosidade intrí nseca, vi rtual, interior, até o seu movi mento mais estático para a duração" . 5 O
movimento virtual da cor não significa somente fazer uso de suas relações físicas, mas a busca
de uma dimensão de significação. A questão apresenta um aspecto duplo: há um sentido arqui-
tetônico em que a estrutura incorpora o espaço. Aqui vale a relação da cor entre as placas e o
espaço que as circunda. O outro aspecto relaciona-se à ação da cor em relação a si mesma,
como uma espécie demovimento infinito de interiorização e expansão. O espaço construído pela
Sala de bilhar [Pool room] 1966 Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro

387 Hélio Oiticica Viviane Matesco


vibração das ondas luminosas remete à noção de espaço contínuo desenvolvida por Malevitch 6 •
A impregnação da cor introduz a noção de campo. Essa experiência estética funda a proposição
do artista (obra) e pressupõe uma compreensão fenomenológica do tempo: ele é vivido, é
duração, sugere uma abordagem subjetiva. O sujeito reconstitui o processo de produção do
artista, "como concreção do próprio impulso interior de que a obra nasceu. O diálogo que se
estabelece entre a obra e o público realiza-se no campo das vivências interiores, a obra fala à
intimidade no homem e não apenas à sua exterioridade sensorial".?
Nos Bilaterais, Relevos e Núcleos, a participação do espectador ocorre pela vivência visual da
cor; eles representam um desenvolvimento das questões postas pelos Metaesquemas. A partirdos
Penetráveis, Bólides e Parangolés, essa dimensão vai ser radicalizada pela manipulação, movimento
e utilização do plurissensorial. Os Penetráveis (1960) inauguram o projeto das manifestações
ambientais e sugerem uma integração da cor na experiência cotidiana do indivíduo. São cons-
truções em madeira em que se cumpre um percurso. Com placas móveis, permitem articulações
diversas: cada recanto deve ser explorado e não há como apreendertudo simultaneamente. O
indivíduo caminha sobre areia, água, pedra; toca objetos, escuta ruídos, recebe uma série de
estímulos dirigidos aos sentidos. A estrutura-cor adquire literalmente um sentido arquitetônico e
o espectador transforma-se no "descobridor da obra". Nos Bó/ides (1963), a proposta gira em
torno da concentração da cor, ao contrário da explosão típica dos Núcleos. A cor se materializa,
ganha um corpo, uma tatilidade. São recipientes de diversas modalidades: madeira, vidro, cimen-
to, tecido, lata, plástico, bacias, sacos. Contêm materiais como areia, pedra, carvão, brita,
conchinhas do mar e terra apresentados como cor em estado pigmentar. Dividem-se basica-
mente em dois tipos: o bólide-vidro e o bólide-caixa. O primeiro é uma peça de vidro transpa-
rente com massa-pigmento: sobressai o sentido de explorar, manipular. Há um sentido lúdico e
uma descoberta intelectual, conseqüências do desvendamento das possibilidades da obra. Os
Monocromáticos [Monochromatics] 1959 óleo sobre madeira [oil on wood] 30x30cm cada [each] cortesia Projeto Hélio Oiticica,
Rio de Janeiro foto B. Goedewaagen
Mosquito da Mangueira contempla [contemplates] Relevo espacial [Spatial relief] 1959 óleo sobre madeira [oil on wood]

388 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


bólides-caixa seriam "arquiteturas miniaturizadas", nas quais as cores, nem sempre vistas
claramente, escondem-se e criam espaços através de reflexos. A mão experimenta o espaço; nas
gavetas encontra terra ou pigmento puro, pode tocá-Ia, sentir a textura, o peso e o aroma. A per-
cepção cromática desvencilha-se do monopólio visual, requer o corpo do indivíduo, instaura
uma nova ordem: a fruição como proposta de arte.
Esses trabalhos tornam evidente uma outra matriz da arte moderna, que teve importância
decisiva na nova fase do artista. A apropriação de objetos tem uma relação direta com o ready-
made de Duchamp. Contudo, as apropriações de Oiticica têm um caráter mais amplo: não visam
somente à descontextualização do objeto, mas, sobretudo, à incorporação de sua estrutura a
uma idéia estética. Ocorre uma fusão que impossibilita a separação entre o objeto preexistente
e a obra. Eles não são escolhidos ao acaso, nem são eleitos pelo que simbolizam. "Transobjetos"
ou "estruturas de inspeção", os Bó/ides assinalam a importância do conceituai na participação
que define a proposiçã%bra 8 • Essa atitude é a referência fundamental para a constituição da
Antiarte: amplia o sentido de apropriação para as coisas do mundo, situações cotidianas que,
realçadas pelo artista, questionam a concepção de exposição, galeria e museu.
O Parangolé (1964) é a proposta que afirma o programa ambiental na obra de Oiticica. É
uma manifestação que tem como base capas, estandartes, bandeiras para serem vestidas ou
carregadas pelo indivíduo. As capas são feitas com panos (com reprodução de palavras e foto-
grafias) interligados, revelados apenas quando a pessoa se movimenta. A cor ganha um dina-
mismo no espaço por meio da associação com a dança e a música: os desdobramentos das capas
produzem um ambiente-luz. A cor assume um caráter literal de vivência, reunindo a sensação
visual, tátil e rítmica. A "obra", transitória e efêmera, só se realiza pela participação corporal: a
estrutura depende da ação. Aquela fruição, já presente nos Bólides, adquire uma sensualidade

389 Hélio Oiticica Viviane Matesco


que radicaliza a relação experimental com o corpo. Ocorre um reconhecimento de um espaço
intercorporal criado pela obra ao ser desdobrada: "é a incorporação do corpo na obra e da obra
no corpo". Ao vestir soma-se o assistir, as experiências simultâneas criam a totalidade obra-
ambiente, possibilitando a vivência de uma participação coletiva Parangolé. Das capas e estan-
dartes iniciais, o termo Parangolé assume um sentido mais amplo de "arte ambiental". Define
a procura na realidade de objetos ou situações que manifestem o caráter geral da estrutura-cor
enquanto espacializ.ação/vivência. O parangolé apropria-se de manifestações coletivas que se
adaptem a seu projeto; a escola de samba e o jogo de futebol são exemplos da cultura popular
que, cifrados pelo artista, criam uma nova relação entre os participantes. O Programa ambiental,
ou Parangolé, é a criação de uma nova vitalidade na experiência humana criativa; seu objetivo é
dar ao público a chance de deixarde ser público para ser participante na atividade criadora, é a
Antiarte por excelência 9 •
As Manifestações ambientais que Oiticica desenvolve a partir de então supõem a visão de
mundo Parangolé. Tropicália (1967), Apocalipopótese (1967), Crelazer (1968), Éden (1969) lidam com
essa reformulação do conceito de arte, exploram vivências que libertam o indivíduo, não só de
uma rigidez estética mas também de condicionamentos culturais. Neste sentido, Tropicália é um
emblema do questionamento de referências culturais e artísticas por meio da explosão do
óbvi0 10 . É um penetrável circundado por plantas, areia, brita, araras, que tem no final um apare-
lho de televisão ligado; aqui, "é a imagem que devora o participador, pois ela é mais ativa que o
seu criar sensorial [... ] aliás este penetrável deu-me a sensação de estar sendo devorado, é a
meu vera obra mais antropofágica da arte brasileira"11, diz Hélio, numa clara intenção de obje-
tivar uma linguagem brasileira que fizesse frente à imagética pop internacional. Não pretendia,
contudo, criar um mito do tropicalismo por meio de araras e bananeiras, como foi inequivoca-
mente interpretado; a intenção não é superar, mas explicitar as contradições do processo cul-
tu ral brasi lei ro; "an u lar a cond ição colon ial ista é assu mir e degl uti r os valores positivos dados por
essa condição, e não evitá-los como se fossem miragem"12, viver essa ambivalência era a expe-
riência radical proposta por Oiticica.
É o experimentalismo que a produção de Oiticica assume no final da década de 60 que a
distingue de sua fase anterior. Seu desenvolvimento até os Núcleos insere-se num processo de
desintegração do suporte tradicional da pintura, no qual a cor desempenhava papel principal.
Esse processo lidava com conceitos que se relacionavam ainda com discussões da modernidade.
Tratava-se de uma concepção espacial homogênea, que implicava virtualidades e uma autonomia
do campo artístico. A experiência visual da corcorrespondia a uma expec-
tativa que supunha uma situação reconfortante, tranqüilizadora. A parti-
ci pação do "espectador", restrita à ativação dos Cam pos de Cor, percorria
espaços virtuais previstos pelo jogo estético. Nas séries dos Bólides, Pene-
tráveis e parangolés, Oiticica opera uma ruptura que o situa num cenário
de questões mais contemporâneas. A cor passa a relacionar-se com sen-
sações corporais e emoções que supõem muitas vezes uma vivência
desestabilizadora, pois questiona certezas e posturas racionais. A esfera
estética tradicional é aqui claramente esgarçada, é um espaço descontí-
nuo e heterogêneo, fruto de experiências nem sempre previsíveis, uma
vez que os trabalhos são "receptáculos abertos às significações". Esteti-
zar o espaço e a experiência cotidiana implica desestetizar o domínio
artístico, é por meio dessa busca experimental que Oiticica afirma sua
opção incondicional pela liberdade. Viviane Matesco
1. Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: são projetadas no espaço sem nenhuma organização prévia
Rocco, 1986, p.81. que as direcione. O espaço tem uma idéia de continuidade e
2. Carlos Zílio, "Da antropofagia à tropicália", O nacional e o sugere a constituição de um Campo pela irradiação da cor.
popular na cultura brasileira-artes plásticas e literatura, São Paulo: Essa concepção recebeu infl uência das descobertas de Faraday
Brasiliense, 1982, P.S3. relativas ao campo eletromagnético, que não podia serobser-
3. Oiticica, op. cit., p.16. vado, mas deduzido. Ver Andrei Nakov, Maleuitch, écrits, Paris:
4. Para Ferreira Gullar, "o não-objeto é um corpo transparente Ed. Champ Libre, 1975.
ao conhecimento fenomenológico, nasce diretamente no e 7. Gullar, op. cit., p.66.
do espaço e se apresenta diante do espectador como incon- 8. Celso Favaretto, Ainuenção de Hélio Oiticica, São Paulo: Edusp,
cluso oferecendo os meios de ser concluído", Aracy Amaral, P·93·
Projeto construtiuo brasileiro na arte (1950-1962), Rio de Janeiro: 9. Oiticica, op. cit., p.82.
MEC/Funarte, 1977, P.8S. 10. Zílio, op. cit., P.30.
5. Oiticica, op. cit., P.40. 11. Oiticica, op. cit., P.107.
6. A livre navegação de superfícies-planos no espaço real é o 12. Oiticica, "Brasil diarréia", Hélio Oiticica, Rio deJaneiro: Pro-
ponto principal do sistema de Malevitch, que se baseia numa jeto Hélio Oiticica/Rioarte, 1997.
concepção pneumática de infinito. Essa superfícies-planos
à esquerda [Ieft] Penetrável PN1 [Penetrable PN1] 1960 óleo sobre madeira [oil on wood]
acima [above] Grande núcleo [Big nucleus] 1960 instalação na exposição Brazil Projects PS1 [instaled at the exhibition Brazil
Projects PS1] óleo sobre madeira, brita [oil on wood, gravei] cortesia Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro foto Cláudio Oiticica

391 Hélio Oiticica Viviane Matesco


curadoria César Oiticica Filho, Luciano Figueiredo e
Paulo Herkenhoff

Body-colorin
Hélio Oiticica
Viviane Matesco

ln 1966 Hélio Oiticica showed a piece at the Museum ofModern Art ofRio de Janeiro which
clearly outlined his "anti-art" proposals and summarized his previous artistic career: a game of
billiards. The red wall, the green ofthe table and the shirts ofthe players revealed "the plasticity
of that unique game-the plasticity of the action-color-environment itself, where all enjoy the
game and emerge from the environment being created."l The proposal Sala de bilhar [Billiard
room] , has its origin in an observation by Mário Pedrosa comparing the sensations caused by
Núcleos [Nuclei] and Bólídes to the colors ofVan Gogh's Níght café emphasizing the aspect of plea-
sure in the game, and redefine art as a playful activity, open to public intervention and chance. 2
Oiticica's production, from parangolés onward, is clearly marked by the search to integrate
art and everyday experience. It constitutes the refusal to be intimidated by myths. "Anti-art" pro-
poses to sensitise everyday life by heightening the individual's "creative coefficiency". The artist,
thus, becomes the catalyst of creation, which can only be fully accomplished with the participation
ofthe "viewer/actor". The viewer/actor gathers elements and resources such as color, structure,
dance, music, words and photography into what is defined as a "work-totality". It is through his
experiments withcolor that Oiticica rejects the object/subject dichotomy. Or rather, he grounds
his work in his own relationship with the subject, which when carried out, results in self-knowl-
edge. From his first concrete work to the anti-art proposals, color functions as the connecting
thread in Oiticica's career, taking him to real space and allowing him to overcome the distance
between art and life.
As a student ofIvan Serpa, Oiticica üiitially aligned himself with concrete art, the construc-
tivist trend that characterized his early work. The concrete art tradition postulated a reduction of
color: color became merely an element ofvisual dynamics, which through interaction with other
elements, would turn into optical rays for the viewer's perception. Subordinate to form, color
was not to exhibit any personal references which might alter the games ofthe retina. Oticica's
gouaches from this period, color-saturated surfaces, constitute a study ofthe formallanguage
of concrete art, but they do not exhibit the sarne degree of rigidity as that of his serial forms . A
relative autonomy of color, already previewed in those early works, reaffirms itself in his later
Hélio Oiticica com Bólide vidro 1 (Hélio Oiticica with Glass Bólide 1] 1963 cortesia Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro
Bólide vidro 6 metamorphosis [Glass Bólide 6 metamorphosis] 1965 cortesia Projeto Hélio Oiticica, Rio de Janeiro

392 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


work. The title ofMetaesquemas [Meta-schemes] (1957-58) evidences the function ofthe works:
they investigate the relationship between figure and the ground, which acquire graphic instability
through the use of coloro Rather than being a hierarchically structured pictorial space, Metaesque-
mas designate a dynamics that questions its own two-dimensional character. Color frees itself
from the form that sustains it, leaps into space and reaches into the world.
Oiticica's research into the questions of color and light, and his desire to explore its effect
and logical capabilities, led him inevitably to abolis h the traditional concept of painting. ln the
series Monocromáticos [Monochromatics] or Invenções [Inventions] (1958-59) the difference between
painting and its support vanishes, while the surface becomes an active elemento ln this series,
square planks (30cmx30cm), which are covered by severallayers ofpaint, exhibit openly the
superimposed layers. The planks are placed irregularly on the wall, avoiding any kind of centering.
Color functions here in a dual way: both in relation to itself and in relation to the wall, as if it
were a pulse. The dynamic structure of the Monocromáticos initiate a tendency toward three-
dimensional space, and represent a transition from canvas painting to a phase where color,
blending together with the structure, interacts freely in space. The use of single colors empha-
sizes and isolates color as a single moment of action. Luminosity and wave vibration constitute
temporality. This is what justifies Oiticica's preference for colors which are more open to light,
such as white, yellow, orange and red. Regarding light-colors Oiticica writes, "I try to give the
colors used for painting (which are in themselves opaque), a sense oflight [... ] it is necessary to
distinguish the colors which are more open to light, to somehow privilege them for this experi-
ence."3 ln order for the "light-color" to manifest itself, it requires a material form and thus, it
determines its own structure. This concept is born together with the idea of colo r: there is no
longer a base or support to be painted, but rather the structure itselfbecomes the "body of colo r" .
ln Bilaterais [BilateraIs] and in Relevos Espaciais [Spatial reliefs] (1959), wooden surfaces are
suspended from the ceiling by means ofthread. Não-objetos [Non-objects]4 are in line with the
painting-disintegration experiments of the neo-concrete group. They specifically parallel Lygia
Clark's processes in Casulos [Cocoons] . The neo-concrete artists attempted a criticaI revision of
constructivism; based on the fundamental conviction that a work of art is not an illustration of
a priori concepts, they aimed at curbing concrete art's pragmatism, rescuing the expressiveness
and subjectivity present in the work ofMalevich and Mondrian. They shifted the attention from
Peirce's theoretical concerns toward Merleau-Ponty's and Suzanne Langer's philosophy. They
endeavored to find aesthetic perception through a phenomenological approach, where the aes-
thetic relationship also involved the body.
Núcleos (1960-63) consolidate the main questions raised by Bilaterais and Relevos espaciais.
They further explore the problem of the spatial distribution of color and other concepts related
to the active "color-structure". ln this series, double-sided painted wooden planks are attached to
the ceiling by wooden supports. ln the first Núcleos it was not possible to shift the planks until
they gradually became looser, as iftheywere a part ofthe surrounding space. Exploration is cru-
cial in the perception ofthese pieces: in order to uncover the secret ofthese works, the viewer is
forced to investigate their potential and their multi pIe aspects. The arrangement of the planks
creates several virtual spaces which favor the tension between light and shadow, the play
between the inside and the outside. They are painted in similar shades that follow an elaborate
rhythm. Commenting on that structure, Oiticica remarks that "[ . .. ] the nuclear development that
I am looking for is not an attempt to reconcile contrasts, but rather to virtually set color in
motion, in its own contrasts [... ] this constitutes a return to the nucleus of color, which begins
by searching for its intrinsic, virtual and inner luminosity, and goes on until its most static move-
ment stops its duration." 5 The virtual movement of color does not merely make use of physical
relations, but rather seeks a deeper dimension of meaning. This is a double-sided issue: there is
an architectural sense in which the structure incorporates space. Here, the relationship between
the color of the planks and the surrounding space is what is most significant. The other aspect
of the work concerns the effect of color in relation to itself, as a kind ofinfinite contraction and
expansion movement. This space, which is constructed by the vibration oflight waves, corre-
sponds to the notion of continuous space as developed by Malevitch. 6 This impregnation by color
introduces the concept offield. lt is this aesthetic experience which grounds the artist's work,
presupposing a phenomenological understanding of time.
Time is something that is lived and its duration requires a
subjective approach. The viewer retraces the artist's creative
process, as the "materialization of the sarne inner impulse
from which a work is born. The dialogue that is established
between the work and its viewer takes place in the realm of
inner experience. The work speaks to the human inner self,
and not only to the external senses."7
ln Bilaterais, Relevos and Núcleos, the viewer's interaction
with the work occurs through the visual experience of coloro
These works further develop the question initially posed by
the Metaesquemas. Starting from the Penetráveis [Penetrables],
Bólídes and Parangolés, that dimension is further dramatized by
manipulation, movement and the use of multiple senses. Pene-
tráveis (1960) begin the cycle of environmental displays and
suggest the integration of color into the everyday experience
of the viewer. These pieces are wooden constructions that fol-
Iowa certain route. The moveable surfaces allow for diverse
motions: every hidden corner must be explored, as there is no
way to apprehend the whole work simultaneously. The viewer
walks on sand, water, and stones, touches objects, hears nois-
es, receives a series of stimuli aimed at the senses. The color-
structure literally acquires an architectural dimension and the

394 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


viewer becomes the "explorer of the work." Bólides (1963) presents a proposal that revolves
around the concentration of color, in contrast to the explosion which is typical ofNúcleos. Color
materializes, it acquires a body, tactile qualities. Bólídes are containers of various materiaIs:
wood, glass, cement, fabric, tin, plastic, basins, bags. They contain materiaIs such as sand, peb-
bles, carbon, graveI, seashelIs and soil, presented as if they were paint in its pigmentation
processo Theyare basicalIy divided into two types: the glass-"bólide" and the box-"bólide".
The first is a piece of clear glass with pigment mass: the desire to explore, manipulate and dis-
cover is what is emphasized here. The work combines an element of playfulness with intelIectu-
aI discovery, both are the consequence of uncovering the possibilities of the piece. These are like
"miniature architectural" pieces in which misleading or unclear colors hide in the drawers and
create spaces through reflections. The viewer's hands can experience space and discover new
things. ln the drawers the viewer finds soil or pure pigments, which he or she can feel, smelI and
weigh. The monopoly of visual and chromatic perception breaks down, as the body of the viewer
is now required, and this institutes a new paradigm: enjoyment as an artistic statement.
These works also evidence another crucial source of modern art which had a decisive influ-
ence in this new phase ofOiticica's career. Object appropriation is directly related to Duchamp's
ready-made. However, Oiticica's appropriations span a wider range: they don't merely aim at
the decontextualization of an object, but, above alI, their goal is to incorporate the structure of
Nildo da Mangueira com [with] Parangolé P4 capa 1 1964

395 Hélio Oiticica Viviane Matesco


the object into the aesthetic idea. The object blends so perfectly with the work that it becomes
impossible to separate the two. Objects are not chosen at random but with an eye to what they
/
symbolize. Bolides as, "transobjetos" [transobjects] or "estruturas de inspeção" [inspection struc-
tures], emphasize the importance ofthe concept ofparticipation which informs the work/pro-
posaI. 8 This stance is anti-art's essential reference point: by widening the concept of appropriation
to include everyday situations which are enhanced by the artist, the notions of exhibit, gallery
and museum are called into questiono
Parangolé (1964) is one ofthe pieces in Oiticica's environmental programo This work con-
sists in a set of capes, banners and flags to be worn or carried by the viewer. The capes are made
of colorful fabric with interconnected printed text and photographs which are only noticeable
when the person moves. Through its association with dance and music, color gains a dynamic
quality in space. The ruffling and unfolding ofthe capes also produce a environment oflight.
Color becomes something which is experienced, assuming visual, tactile and rhythmical sensa-
tions. This transitory and ephemeral "work" is only accomplished through the physical partici-
pation of the viewer. Its structure is dependent on an action. Here the sensuality already present
in Bólídes is further dramatized by the inclusion of an experimental reIationship with the body.
The viewer becomes aware ofinter-corporal space as the work unfolds : " and an incorporation
of the bodyin the work and the work in the body." The act of wearing something is comple-
mented by the perception of the work, as these simultaneous experiences create the totality of
the work-environment, making parangolé an experience of collective participation. The term
"Parangolé," which initially referred to the capes and banners, acquired a wider meaning to des-
ignate "environmental art" objects. This term defines the sear'ch for objects or situations in the
external world which exhibit the general character of color-structure, inasmuch as it is a spatial
experience. Parangolé appropriates collective phenomena which conform to its projectoA samba
school and soccer game are examples of popular culture which, when encoded by the artist, create
a new relationship between the players. Oiticica's environmental program or parangolé, constitute
the creation of a new human creative experience whose goal is to allow the viewers to become
active participants in the creative processo This type of work is anti-art par excellence. 9
Manifestações ambientais [Environmental manifestations] that Oiticica developed from then
on, presuppose a Parangolé vision ofthe world. Tropicálía (1967), Apocalípopótese [Apocalypothe-
sis] (1967), Crelazer [Creleisure] (1968), Éden [Eden] (1969), deal with that reformulation ofthe
concept of art, which explore life experiences freeing the individual not merely from aesthetic
stiffness, but also from cultural conditioning. ln this sense, Tropicalía is a symbol ofthe way the
artist questions his own cultural and artistic context through the explosion of the ordinary.l0 It
is penetrable, surrounded by plants, sand, gravei, birds and includes a broadcasting TV monitor;
here, "it is the image that eats the spectator, because it is more active than the viewer's sensorial
perception [. .. ] this penetrable gave the sensation ofbeing devoured, it is in my point ofview,
the most anthropophagical work ofBrazilian art,"l1 says Hélio with the clear intention of objec-
tifYing a Brazilian language which could stand up against international Pop imagery. He did not
however, intend to create a myth of tropicalism, through the presence of the birds and banana
trees, as it has often been misinterpreted; his intention was not to surpass, but to make explicit
the contradictions ofthe Brazilian cultural process; "to counteract the colonialist condition is to
assume and ingest the positive values of that condition and not avoid them, as if they were an
illusion,"12 to live this ambiguity was the radical experience proposed by Oiticica.
The experimentation ofOiticica's production at the end ofthe 1960's positions itself differ-
ently from its previous phase. Oticica's development up until the phase ofNúcleos attempts to dis~

396 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


mande the traditional basis of painting, in which colo r played the fundamental role. This
process dealtwith concepts which were still related to the debate over modernity. ln this period,
a homogeneous conception of space still reigned and this implied a certain virtuality and a relative
autonomy of the artistic realm. The visual experience of color satisfied an expectation and thus
resulted in a feeling of comfort and caIm. The viewer/participator was limited to activating color
fields and to meandering through the virtual spaces created by the aesthetic game. ln the Bólídes,
Penetráveis and Parangolés series, Oiticica breaks with the past and positions himselfin the midst
of more current concerns. Color is now related to physical sensations and emotions, which often
produce a disturbing experience because they question rational certainties and attitudes. The tra-
ditional realm of aesthetics is clearly disrupted to create a discontinuous and heterogeneous space,
which is the effect of often unpredictable experiences. The pie ces become, then, containers
which are open to the reception of meaning. Transforming everyday experience and space into
their aesthetic counterparts implies the "de-aesthetization" ofthe artistic realm. lt is through
this experimental endeavor that Oiticica affirms his unconditional choice in favor of freedom.
Viviane Matesco. Translatedfrom the Portuguese by adite Cisneros.

r. Hélio Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, Rio de Janeiro: on a pneumatic conception of the infinite. The plane-surfaces
Rocco, 1986, p.81. are projected into space without any previous arrangement or
2. Carlos Zílio, "Da antropofagia à Tropicália", O nacional e o direction. The continuity of space implies the concept offield
popular na cultura brasileira-artes plásticas e literatura, São Paulo: and of infinity at the sarne time. This concept was influenced
Brasiliense, 1982, P.53. by Faraday's discovery of electromagnetic fields, which could
3. Oiticica, op. cit., p.I6. not be observed, but could be deduced. See Andrei, Nakov,
4. Ferreira Gullar deve10ped the expression "a non-object is a Malevitch, écríts. Paris: Champ Libre, 1975.
body that is permeable to phenomenological knowledgej it is 7. Gullar, op. cit., p. 66.
bom directly in and from space and presents itself to the view- 8. Celso Favaretto, A ínvenção de He1ío Oítícica, São Paulo: Edusp,
er as unfinished, yet providing the means for its completion" P·93·
in Aracy Amaral, Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962), 9. Oiticica, op. cit., p.82.
Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1977, p. 85. 10. Zílio, op.cit., P.30.
5. Oiticica, op. cit., p. 40. II. Oiticica, op. cit., P.l07.
6. The main concept behind Malevitch system is the free 12. Oiticica, "Brasil diarréia", He1ío Oítícíca, Rio de Janeiro:
motion of plane-surfaces in real space. This system is based Projeto Hélio Oiticica/Rioarte, 1997.
Tropicália, Penetráveis PN2 e PN3 1967 instalação Universidade Estadual do Rio de Janeiro

397 Hélio Oiticica Viviane Matesco


curadoria Paulo Herkenhoff com assistência de Yannick Bourguignon

Cildo Meireles-desvio para


a interpretação Lisette Lagnado

"Claudel dit à peu pres qu'un certain bleu de la mer est si bleu qu'il n'ya que le
sang qui soit plus rouge."
-M. Merleau-Ponty, Le visible et I'invisible

A existência da obra de arte é poesia da passagem. Isto não significa uma temporalidade de sua
presença, mas que seu significado se afirma diferentemente no fluxo do tempo. O trabalho exe-
gético tem levado a obra à condição de texto, e termos como leitura e tradução-disciplinas que
se movem na ciência de uma narratividade-são parte integrante da hermenêutica presente.
Mas, quando a construção de uma obra está alicerçada sobre especificidades históricas, o que
significa remontá-Ia quatorze anos depois de sua última apresentação pública, trazendo-a para
uma contextura de outra natureza? A reapresentação, na XXIV Bienal, da instalação Desvio para o
vermelho (1967-84), obra de Cildo Meireles que, na prática, teve uma visibilidade limitada a duas
exposições, coloca novos problemas a partirde sua inserção no Núcleo Histórico da antropofagia
e das histórias de canibalismos. Sua transposição atual ocorre em outro contexto histórico, e o
fato exige reflexão, sob pena de sentenciar uma datação que imobilize o dado pulsativo e inco-
mensurável da obra. Afinal, em cada nova tradução, o (gesto) original é revisitado.
Não constitui novidade afirmar que a investigação de Cildo Meireles sempre esteve asso-
ciada a imagens de forte conotação simbólica. Vários críticos exploraram o valor de resistência
dessa obra, localizada nos anos 70 como "arte experimental de vanguarda", expressão que já
trazia em suas filigranas a efígie das ditaduras militares, que não somente tomaram o poder no
Brasil, como se expandiram por muitos países da América Latina. As poderosas metáforas cons-
truídas pelo artista, ao longo de uma trajetória de trinta anos, tinham como pano de fundo a
busca de uma consciência identitária. Sobre a "brasilidade", Cildo pronunciou-se com firmeza,
afirmando tratar-se antes de uma ansiedade do que de uma questão. Éfato que, do "Manifesto
antropófago", de Oswald de Andrade, até as proposições neoconcretas de Lygia Clark e Hélio
Oiticica, a procura de uma identidade tem sido uma pauta reivindicatória. Mas a pesquisa formal
não poderia ficar à margem dessa discussão, e o argumento mais utilizado, tanto no Brasil
como na lente do "estrangeiro", tem sido o da cor (diferente em Tarsila do Amaral e Volpi, por
exemplo), capaz de assumir inúmeros adjetivos: telúrica, expansiva, idealista, tropical etc.
Ora, por mais que a instalação do Desvio comente limites e nuances do vermelho (assim
como Fontes indicaria que a implosão do tempo e do espaço tem uma densidade amarela)1,
Cildo só pode figurar entre os pintores. Poranalogia, seria um adepto do monocromo tridimen-
sional. No início dos anos 80, é certo que recobriu de pinceladas alguns objetos (um guarda-sol,
por exemplo), em que tratava da pintura pelo viés da camuflagem: transformar o ready-made
em obra pictórica. Compreender seu trabalho exige um trânsito constante entre a conotação
Desvio para o vermelho [Detour into red] detalhe 1967-98 instalação cortesia Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro

398 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


ideológica da obra (Inserções em circuitos antropológicos, 1970-71) e sua discussão formal (Eurekal
Blindhotland, 1970-75). Éessa espécie de sensibilidade que define um artista comprometido com
a realidade política e cultural brasileira. A partirdo desdobramento de uma vivência pessoal dos
acontecimentos-esse dado aqui é fundante-, Cildo evita polaridades binárias, abarcando
sujeito e objeto numa operação simultânea em que o modo de ver atravessa transparências e
opacidades (presente, passado e futuro). Flui uma fenomenologia da percepção que transborda
as margens da fruição retiniana. Não que se subestime a potência do olhar. Pelo contrário, alude-
se a um convite corpóreo feito a olhos que precisam tocar a superfície do mundo para encontrar
a identidade dele (Espelho cego, 1970) .
No caso de Desuio para o uermelho, a metáfora política da violência armada foi uma abor-
dagem possível a partir da envolvente impressão cromática instaurada pelo artista. A cortoma
conta do olhare se transforma em símbolo, notadamente de uma violência relacionada ao dese-
jo revolucionário. 2 Essa percepção sensorial do espaço é marcante 3 já que, antes mesmo de sepa-
rar visualmente cada objeto inserido na instalação, sofre-se o impacto de algo ainda sem
contornos precisos, uma espécie de vermelhidão propagativa, diria M. Merleau-Ponty, fazendo
a síntese entre o sujeito e a obra. O ambiente é ocupado por objetos, corpos portadores dessa
vermelhidão, qualidade associada à excitação da pele, o maior órgão do corpo, figura elíptica
em toda a espacial idade do Desuio. Pressupõe-se uma mobilidade do público pela sala, trajetória
gradativa, que constrói um campo de experiência, próprio a cada um, em que é acionada uma
pluralidade de sentidos. Cildo joga com uma ilusão de profundidade: quanto mais adentramos o
espaço do Desuio, mais nosso corpo busca uma orientação, armazenando memória da convivência
dentro da cor.
Vejamos o que nos indica uma descrição rente de Desuio: O primeiro ambiente, chamado
de "Impregnação", acolhe-nos dentro de uma sala de estar composta de toda sorte de objetos
com várias tonalidades de vermelho; em seguida, vem o "Entorno", acidente que parece esclare-
cer a situação anterior, onde uma peq uena garrafa caída espargi u sobre o chão uma su bstância
densa e vermelha, cuja mancha exibe a desproporção (romântica) entre a capacidade do recipi-
ente e o volume derramado; finalmente, após caminhardentro de uma escuridão, a operação do
Desuio se explicita por meio de uma torneira aberta, escorrendo uma água vermelha dentro de
uma pia pontualmente iluminada. Toda a travessia não é silenciosa; vem acompanhada de um
som ambiente, ruídos líquidos.
A repetição dessa montagem tem, nesse caso, implicaçÕes sobre a memória residual das
primeiras apresentações do trabalho. Por motivos diversos relacionados à falta de interesse
institucional, que bem caracteriza o ambiente cultural brasileiro, a instalação não ficou guarda-
da em sua totalidade, seguindo o errante destino dos objetos
desapossados. Para contornar essa existência dispersa, o artista
dispunha, como único testemunho, de "certas frases e alguns
cromos".4 É a história de uma coleção sem proprietário, ou, dito
melhor no código artístico, é uma coleção que não pertence a
uma Coleção.
O trabalho ora apresentado configura uma outra aparição
iconográfica, embora mantenha a mesma estrutura conceituaI.
Sabendo que o ponto de partida fora, para Cildo, a idéia de
acumulação (de objetos vermelhos), cabe interrogar sua trans-
formação ao longo do tempo, a partir das partes que a compõem .
O mote inicial lembra a tentativa, habitual, de inferir uma ordem

399 Cildo Meireles Lisette Lagnado


e estabelecer conjuntos para encontrar uma lógica associativa dentro de um fluxo aleatório.
Experiência coincidente entre artista e autorque especulam sobre as leis do acaso: observando,
por alguns momentos, os carros que circulam no trânsito, estes parecem obedecer-motivo de
perplexidade na infância-a uma seqüência cromática.
É importante ressaltar que a vermelhidão é dada por um conjunto heterogêneo de tons.
Desuio funciona por uma contigüidade que propicia a fusão entre a natureza do objeto e sua
condição cultural. As coisas são possuídas de uma vermelhidão em sua gênese: esta é sua con-
dição original. Nesse sentido, Cildo reconstrói toda uma gama cromática "natural industrial",
produzida pela fábrica. Os objetos se inscrevem no mundo através de seu discurso de origem,
híbrido entre natureza e indústria, sem contudo ser artificial. A cor se impõe como qualidade
dominante dos objetos: a contaminação por impregnação termina por homogeneizar, banalizar,
des-singularizarcada unidade que compõe o conjunto. É inegável o reconhecimento do desdo-
bramento, em todo seu esplendor irônico, do gesto duchampiano. Assim, a segunda perda de
contornos dá-se na oposição entre vida e arte. Évisível, no primeiro ambiente, uma proporção
quase igual entre objetos do cotidiano e objetos de arte. O "desvio" define a arte: "aquilo que
não se entrega à ordem senão para entregá-Ia de volta às manobras instáveis e duvidosas, ao
momento em suspenso de seu risco inicial. Eis o que não há: o mundo pronto." 5
O dado "canibal", no sentido cultural da apropriação, que o trabalho apresenta, diz respeito
à presença de pinturas e objetos de outros artistas: Antonio Dias, Paulo Roberto leal, Tunga,
Desvio para o vermelho [Detour into red] 1967-98 instalação cortesia Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foto Wilton
Montenegro

400 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Vergara, Alfredo Fontes, Antonio Manoel, Luiz Alphonsus, Joaquim Cunha 6 • Dentro do critério
cromático, Cildo cria uma atmosfera afetiva que discute autoria e propriedade com seus con-
temporâneos. Mas a familiaridade não é gerada apenas a partirda "decoração" montada com os
artistas mencionados. O cenário todo é convidativo. Nessa primeira situação, em que pisamos o
tapete vermelho que aconchega a "Impregnação", todo o esforço feito é concentrado para inte-
grar a realidade desse mundo. "O que se vê é o que se vê." (Frank Stella)
Ora, que espaço é este, em que convivem estantes de livro, telefone, obras de arte e gela-
deira? Qual é a linha de parentesco que liga os objetos entre si? Não é um escritório, embora
tenha uma mesa de trabalho. Não é um dormitório, embora seja confortável deitar nesta poltrona
vermelha. Tampouco pode vir a ser um ateliê ou uma galeria de arte. Trata das mudanças dentro
de uma história do design, da moda e da arte? Quem seriam as assinaturas de hoje? À idéia de
coleção subjazeria uma gramatologia? Do quê, de quem? Um inventário imaginário poderia
apresentar as seguintes classificações: móveis (abajour, mancebo, cristaleJra, mesas, cadeiras,
criado-mudo, estantes, tapete, sofá, almofadas, espelho), máquinas (telefone, máquina de
escrever, televisão, vídeo), roupas (chapéu, xale, guarda-chuva, boina, óculos), objetos diversos
(vasos, lápis, canetas, livros, papel, grampeador, ampulhetas, retrato de Marilyn Monroe,
cinzeiro, copos, jarra, aquário), obras de arte (quadros e objeto na parede), comida e "vivos"
(pimentões, tomates, peixe e cavalo-marinho, suco e outras bebidas). Categorias, diga-se, de
objetos do desejo da classe média. 7 A montagem de uma sala-de-estar depende das oscilações
da moda de cada época. Cildo não trabalha com um apriorismo sociológico, mas sabe-se que os
objetos foram originários de vários extratos (desde objets trouvés na rua, até respostas à publi-
cação de um anúncio em jornal de grande circulação).
A indefinição do acontecimento culmina na presença insólita de uma pia: a infiltração ver-
melha que escorre e penetra o espaço é motivo de desassossego, assim como deparar-se com
um fluxo de água vermelha caindo transversalmente na pia (a escuridão não permite que o
público perceba a razão pela qual é neutralizada a ação da gravidade e o jato sai perpendicular-
mente à pia). Duração e fixação ocorrem na parte da "Impregnação" e do "Desvio", duas opera-
ções que contêm o modo do devir, fenômeno tomado no seu processo. Entre as duas, a cena do
"Entorno" indica um fato crispado. A desproporção entre continente e conteúdo está na ordem
do excesso. Os ambientes, ao invés de confirmar a hipótese de uma natureza congênita para o
surto de vermelhidão, inserem-se dentro de uma antilógica. Afinal, a propriedade do "desvio"
consiste em afastar-se do sentido que pareceria mais evidente para enveredar por sinuosidades.
O que se vê é o que não se vê. Deixemo-nos impregnarda tentação poética de convivercom uma
ordem de objetos que, absorvendo o olhar, estão em transformação permanente.
Lisette lagnado

1.Já em Cinza (1984-86), uma rala camada de tinta sobre a 3. Cabe lembrar a série Espaços uirtuais: cantos (1967-68), em
lona desenvolvia a discussão do espaço e da arte. Nesse caso, que Cildo Meireles explorou questões de escala e desloca-
dada a presença de uma substância combustível, o carvão, a mento do sujeito no espaço ortogonal.
cor se refere a um aniquilamento ou ausência. O sistema da 4. Entrevista à autora, maio de 1998.
arte na mira. 5. Cf. Texto de Ronaldo Brito que acompanhava a instalação.
2. O artista costuma evocar uma sangüínea da infância, 6. Informação sujeita à imprecisão, conferindo uma cor gasta
quando seu pai o levou para ver, em Goiânia, uma manifes- e menos vívida, às imagens da memória.
tação contra o assassinato de um jornalista. Seus colegas 7. Diferentemente de Cildo Meireles, a dimensão labiríntica
haviam pintado, com o próprio sangue da vítima, a seguinte da "cor política e urbana" de Hélio Oiticica, outro integrante
inscrição: "Aqui morreu um jornalista defendendo a liber- do Núcleo Histórico, o levaria a reconstruir o ambiente da
dade de expressão". favela.

401 Cildo Meireles Lisette Lagnado


curadoria Paulo Herkenhoff com assistência de Yannick Bourguignon

Cildo Meireles-detour into


interpretation Lisette Lagnado

"Claudel dit à peu pres qu'un certain bleu de la mer est si bleu qu'il n'y a que le
sang qui soit plus rouge."
-M. Merleau-Ponty. Le visible et l'invisible

The existence of a work of art is a poetry of passing. This does not mean that its presence is tem-
poral" but rather that its meaning asserts itself differently in the course of time. Exegetic work
has led the artwork into a textual condition, and terms such as reading and translation-disci-
plines which are found within the field of narrativity-are integral parts of current hermeneutics.
However, when the creation of a work is based on historical specificities, what does it mean to
reassemble it 14 years after its last public presentation, incorporating it into a context of another
nature? The re-presentation ofCildo Meireles's Desvio para o vermelho [Detour into red] (1967-84)
at the XXIV Bienal, a work whose visibility was limited to two previous exhibitions, poses new
problems when inserted in the Núcleo Histórico with its antropofagia and histories of cani-
balisms. Its current transposition takes place in a different historical context, one which requires
careful consideration given the risk of substantiating a dating which may immobilize the pulsat-
ing and unfathomable features ofthe work. After all, in each new translation the original (gesture)
is revisited.
There is nothing new in stating that Cildo Meireles's research has always produced images
of strong symbolic connotation. Many critics have explored the resistance value ofthis work that,
in the 197os, was situated as "an experimental work of avant-garde art." This expression already
bore, implicitly, the mark of the military dictatorships that not only took over Brazil but also
spread over several countries in Latin America. The powerful metaphors created by the artist
throughout a thirty-year trajectory had as their backdrop the search for an identifjring con-
science. On "Brazilianness," Cildo has positioned himself resolutely, stating it as a display of
anxiety rather than an actual issue. ln fact, from Oswald de Andrade's "Manifesto antropófago"
to Lygia Clark and Hélio Oiticica's neoconcrete proposals, the search for identity has remained a
constant claim. But formal research could not be left out ofthis discussion, and color became the
most frequently used argument, both in Brazil and through the eyes ofthe "foreigner" (differ-
ently than in Tarsila do Amaral and Volpi, for example) capable of assuming numerous adjec-
tives: telluric, expansive, idealist, tropical, etc.
Notwithstanding the extent to which Desvio comments on the limits and nuances of red
(just as Fontes [Sources] indicates that the implosion oftime and space has a yellow density),1
Henry Matisse L:atelier rouge O ateliê verme lho [Th e red stud io] 1911 óleo sobre tela [oil on canvas] 181x219,1cm coleção
The Museum of Modern Art, Nova york

402 XXIV Bienal Núcleo Hi stórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


Cildo can only remain among painters. Byanalogy, he could be regarded a follower of the tridi-
mensional monochrome. ln the early 1980s, when he covered with brushstrokes some objects (a
sunshade, for example), he dealt with painting from the standpoint of camouflage: the transfor-
mation ofthe ready-made into pictorial work. The understanding ofhis work demands a constant
transit between the work's ideological connotation (Inserções em circuitos antropológicos [Insertions
into anthropological circuits], 1970-71) and its formal discussion (Eureka IBlindhotland, 1970-75) .
It is precisely this sort of sensibility that defines an artist committed with the Brazilian politicaI
and cultural reality. Departing from the unfolding of his personal experiences-this element
here is a founding one-Cildo avoids binary oppositions, encompassing subject and object in a
simultaneous operation in which the ways of seeing traverses transparencies and opacities (pre-
sent, past, and future). A phenomenology ofperception comes forth that overflows the margins
of retinal fruition. The power of the gaze is not at all underestimated. On the contrary, the allu-
sion here refers to a corporeal invitation addressed to eyes that need to touch the world's surface
to find its identity (Espelho cego [Blind mirror], 1970).
ln Desvio para o vermelho, the politicaI metaphor of armed violence was a possible approach
because of the appealing chromatic impression instituted by the artist himself. Color takes over
the gaze and turns into symbol, noticeably related to the revolutionary desire. 2 This sensorial
perception of space is quite remarkable, 3 given that even before visually separating the individ-
ual objects presented in the installation, one is impacted by something still without precise con-
tours-a sort of propagating redness, as M. Merleau-Ponty would have put it, operating a
synthesis between subject and work. The space is occupied by objects, bodies which bear this
redness, a quality associated to the excitement ofthe skin, the body's largest organ, an elliptical
figure in Desvio's entire spatiality. A mobility ofthe public throughout the room is presupposed,
a gradual trajectory that builds a field of experience which is particular to each individual, where a
plurality ofthe senses is activated. Cildo plays with an illusion of depth: the more we penetrate the
space ofDesvio, the more our body seeks guidance, storing memories of coexistence in the coloro
Let us see what information is conveyed to us in a concise description ofDesvio: the first
space, called "Impregnação" [Impregnation], hosts us in a living room set up with assorted
objects in various tones of red. After this comes "Entorno" [Surrounding], an accident that

403 Cildo Meireles Lisette Lagnado


seemingly elucidates the previous situation, where adense red substance poured out of a small
bottle overturned on the floor forms a blotch that draws the (romantic) disproportion between
the receptacle's capacity and the spilled volume. Finally, after treading in darkness, Desvio's oper-
ation is made explicit by means of an open tap from which a red water runs in a punctually lit
sink. The entire crossing is all but silentj it is accompanied by a background sound, liquid noises.
The repetition ofthis installation has in this case implications on the residual memory of
the work's first presentations. For different reasons related to the lack ofinstitutional interest so
characteristic of the Brazilian cultural milieu, the installation has not been conserved in its
entiretyj instead, it has endured the errant destiny of dispossessed objects. To circumvent this
dispersed existence, the artist resorted to the testimonial of "certain phrases and a few trans-
parencies."4 This is the story of a collection without an ownerj or, as best stated in the artistic
code, a collection that does not belong to any Collection.
The work now being presented constitutes another iconographic existence, although main-
taining the sarne conceptual structure. The awareness that Cildo's starting point was the idea of
accumulation (of red objects) prompts us to question the work's transformation throughout time,
while taking into account the elements with which it is composed. This initial motto recalls the
customary attempt to infer an order and establish sets to find an associative logic within a ran-
dom fluxo A coincidental experience between artist and author who speculate on the laws of
chance: observing for a few moments cars in traffic, these seem to obey a chromatic sequence-
something that caused perplexity in childhood.
It should be noted that the redness is given bya heterogeneous combination oftones. Desvio
operates through a contiguity that allows the fusion between the object's nature and its cultural
status. Things are endowed with a redness at their genesis: this is their natural status. ln this
sense, Cildo reconstructs an entire "natural industrial" color range, which is factory made. Objects
are inscribed in the world by means of their discourse of origin, a hybrid of nature and industry
nevertheless not artificial. Color comes forth as the dominant quality of objects: the contamina-
tion by impregnation ends up homogenizing, banalizing, de-singularizing each individual unit
that contributes to the whole. The acknowledgment of acts unfolding from the Duchampian
gesture, in full iro nicaI splendor, cannot be denied. Thus, the second loss of an outline results
from the opposition between life and art. ln the first space, a nearly identical proportion between
objects of everyday use and art objects is clearly visible. The "detour" defines art: "something that
does not surrender to order, other than to hand it back to unstable and dubious maneuvers, to
the suspended moment ofits initial risk. Here is the nonexistent: a consummated world." 5
The work features a "cannibalistic" element, in the cultural sense of appropriation, that
concerns the presence of paintings and objects by other artists: Antonio Dias, Paulo Roberto
Leal, Tunga, Vergara, Alfredo Fontes, Antonio Manoel, Luiz Alphonsus, and Joaquim Cunha. 6
Within his chromatic criteria, Cildo creates an affective atmosphere to discuss authorship and
property with his contemporaries. However, the sense of familiarity is not generated merely from
"decoration" with works by the above-mentioned artists.
The entire scene is inviting. ln the first instance, where a red
carpet warms up the atmosphere of "Impregnação," all the
effort is directed at integrating the world's reality. "What you
see is whatyou get" (Frank Stella).
What space is this where bookshelves mingle with tele-
phone sets, artworks and refrigerators? To what kinship line
do these objects belong? It is neither an office, despite the
work desk, nor a bedraom, despite the comfort oflying on this red
couch. It can be neither an art studio nor gallery. Does it deal with
changes in the course of a history of design, art and fashion? Whose
signatures would be featured today? Would there be a grammatology
subjacent to the idea of collection? About what, by whom? A ficti-
tious inventory could be divided in the following categories: furnish-
ings (lamp, garment rack, china cabinet, tabIes, chairs, bedside
stand, sheIves, carpet, sofa, pillows, mirrar); machines (telephone,
typewriter, teIevision set, VCR); clothing (hat, shawl, umbrella,
beret, eyegIasses); miscellaneous objects (vases, pencils, pens,
books, paper, stapIer, hourglasses, Marilyn Monroe's picture, ash-
tray, glasses, jug, fish bowl); artworks (pictures and wall object), and
food and animaIs (peppers, tomatoes, fish and seahorse, fruit juice
and other beverages). All these categories, by the way, comprise
objects of desire of the middIe class. 7 A Iiving-raom design depends
on the going fashion. Cildo does work with a sociological a priori,
yet he knows the objects originate fram different sources (fram objets
trouvés, collected fram the streets, to those supplied by respondents
to ads pubIished in major newspapers) .
The Iack of definition of this happening cuIminates in the
unusual presence of a sink: the red infiltration that spills and pene-
trates the space is as disquieting as the red liquid gushing in a slant
into the sink (in the dark, viewers cannot see how the artist managed to offset the force of grav-
ity and slant the Iiquid spurt). Duration and fixation are operations featured in "Impregnação"
and "Desvio," respectiveIy. They contain an impending manifestation, a phenomenon spawned
by their pracess. Set between the two, the scene of"Entorno" points to a definite, still facto The
Iack of praportion between continent and content Ieads to the dimension of excesso Rather than
substantiating the hypothesis ofinnate trait to expIain the occurrence of redness, the spaces are
inscribed in an anti-Iogic. After all, the act of"deviation" consists in deflecting fram the sense
that would seem more evident to follow sinuous paths. What you see is what you don't see. Let us
become impregnated with the poetic temptation to Iive with an order of objects that, while
absorbing the gaze, are in permanent transformation.
Lísette Lagnado. Translatedfrom the Portuguese by Izabel Murat Burbridge and Veronica Cordeiro.

L ln Cinza [Gray] (1984-86), a flimsy layer of paint on canvas Meireles explored issues ofthe subject's scale and dislocation
developed the discussion of space and art. ln this case, given in the orthogonal space.
the presence of a combustible substance, charcoal, the color 4. Interview to the author, May 1998.
refers to annihilation or absence. The art system was brought 5. See text by Ronaldo Brito that accompanied the installation.
into full view. 6. Information likely to be imprecise, which confers a worn,
2. The artist usually evokes a bloody image ofhis childhood less vivid color to images of recollection.
days, in the city ofGoiânia, when his father took him to watch 7. Unlike Cildo Meireles, the labyrinthine dimension ofthe
a manifestation against the murder of a journalist. His col- "politicaI and urban color" ofHélio Oiticica, himself another
leagues had used the victim's own blood to paint the follow- participant ofthe Núcleo Histórico, led him to reconstruct the
ing inscription: "A journalist died here in defense of freedom shantytown environment.
ofspeech."
3. Special note should be made ofthe series Espaços virtuais:
cantos [Virtual spaces: corners] (1967-68), in which Cildo
Desvio para o vermelho [Detour into red] detalhes 1967-98 instalação cortesia Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foto
Wilton Montenegro

405 Cildo Meiréles Lisette Lagnado


"Lê sujet vient se placer sur le menu à la carte du cannibalisme, dont chacun sait
qu'il n'est pas jamais absent d'aucun fantasme communionnel.
Lisez là·dessus un traité de cet auteur dont je vous parle au cours des années
en une sorte de retour périodique, Balthasar Gracián. Évidement, seuls ceux d'entre
vous qui entravent l'espagnol peuvent y trouver leur pleine satisfaction, à moins de
se le faire traduire [... ]. II s'agit ici de son traité de la communion, El comulBatorio,
qui est un bon texte en ce sens que s'y révele quelque chose rarement avoué-Ies
délices de la consommation du corps du Christ y sont détaillées, et on nous prie
de nous arrêter à cette joue exquise, à ce bras délicieux, je vous passe la suite ou la
concupiscence spirituelle s'attarde, nous révélant ainsi ce qui reste toujours impli·
qué dans les formes, même les plus élaborées, de l'identification orale. Dans cette
thématique, vous voyez la tendance la plus originelle se déployer par la vertu du
signifiant, dans tout un champ d'ores et déjà créé pour être secondairement
habité."

Extrait de Jacques Lacan, "L'objet du désir et la dialectique de la castration", Le


sémínaíre, livre VIII: le transfert (1960-61), Paris: Seuil, 1991.

"O sujeito vem se situar no cardápio do canibal ismo, que, todos sabem, nunca
está ausente de qualquer fantasia de comunhão.
Leiam, a respeito, um tratado daquele autor de que lhes falo ao longo dos
anos, numa espécie de retorno periódico, Balthasar Gracián. É evidente que só
aqueles de vocês que sacam espanhol podem encontrar nele plena satisfação a
menos que o façam traduzir [. . .]. Trata·se aqui de seu tratado sobre a comunhão,
EI comulBatorio, que é um bom texto, no sentido em que nele se revela algo
raramente confessado-as delícias do consumo do corpo de Cristo são ali deta·
Ihadas, e pedem·nos que nos detenhamos naquela bochecha excelente, naquele
braço delicioso, dispenso·os da continuação onde a concupiscência espiritual se
prolonga, revelando·nos assim aquilo que permanece sempre implicado nas for·
mas, mesmo as ma is elaboradas, da identificação oral. Nessa temática, vocês
vêem a tendência mais original se desenvolver pela virtude do significante, em
todo um campo criado daí por diante para ser secundariamente habitado."

Extraído de Jacques Lacan, "O objeto do desejo e a dialética da castração", O


seminário, liuro VIII: a transferência (1960-61), traduzido do francês por Dulce Duque
Estrada, São Paulo: Jorge Zahar, 1992.

406 XXIV Bienal Núcleo Histórico : Antropofagia e Histórias de Canibalismos


"Venons à la pulsion orale. Qu'est-ce que c'est? On parle des fantasmes de dévo-
ration, se faíre boulotter. Chacun sait en effet, c'est bien là confinant à toutes les
résonances du masochisme, le terme, autrifié de la pulsion orale. Mais pourquoi ne
pas mettre les choses au pied du mur? Puisque nous nous référons au nourrisson
et au sein, et que la nourrissage, c'est la succion, disons que la pulsion orale, c'est
le sefaíre sucer, c'est le vampire.
Cela nous éclaire, d'ailleurs, sur ce qu'il en est de cet objet singulier...:.-que je
m'efforce à décoller dans votre esprit de la métaphore nourriture-Ie sein. Le sein
est aussi quelque chose de plaqué, qui suce quoi?-l'organisme de la mere. Ainsi
est suffisamment indiqué, à ce niveau, quelle est la revendication, par le sujet, de
quelque chose qui est séparé de lui, mais lui appartient, et dont il s'agit qu'il se
complete."

Extrait de Jacques Lacan, "Le transfert et la pulsion", Le sémínaíre, livre XI: les quatre
conceptsfondamentaux de la psychanalyse (r973), Paris: Seuil, 1991.

"Venhamos à pulsão oral. O que é ela? Fala-se das fantasias de devoração, se fazer
papar. Todo mundo sabe com efeito, está mesmo aí, confinando com todas as res-
sonâncias do masoquismo, o termo outrificado, da pulsão oral. Mas porque não
colocar as coisas contra a parede? Pois que nos referimos ao lactente e ao seio, e
que o aleitamento, é a sucção, digamos que a pulsão oral, é se fazer chupar, é o
vampiro.
Isto nos esclarece, aliás, sobre o que é desse objeto singular-que me esfor-
ço para descolar, no espírito de vocês, da metáfora alimento-o seio. O seio é
também algo chapado, que chupa o quê?-o organismo da mãe. Assim está sufi-
cientemente indicada, neste nível, qual é a reivindicação, pelo sujeito, de algo que
está separado dele, mas lhe pertence, e do qual se trata que ele se complete."

Extraído de Jacques Lacan, "A transferência e a pu Isão", O seminário, liuro XI: os


quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1973), traduzido do francês por Dulce
Duque Estrada, São Paulo: Jorge Zahar, 1992.

407 Fragmento
curadoria Dawn Ades

Francis Bacon: as fronteiras do


corpo

"Acontece que sou muito repleto de imagens, muito."


-Francis Bacon, entrevistado por David Sylvester 1

Aqui Bacon fala como se estivesse empanturrado de imagens, metáfora fácil que expressa uma
espécie de gourmandise, uma plenitude resultante de um devorar acrítico. "Tenho gana de viver;
e é gana de artista." Em muitos pontos, o trabalho de Bacon toca no tema desta exposição,
antropofagia. Ele absorveu imagens de numerosas fontes visuais, tanto "de cima" quanto "de
baixo": não só as pinturas de van Gogh, de Rembrandt e de Velázquez, que ele enfrenta e refor·
mula, mas também fotografias, inclusive as de Muybridge, pranchas de compêndios de medi·
cina e de ciências naturais, e fotografias de jornal. Tudo isso era capaz de estimulá·lo, de nutrir
sua imaginação e de inspirar respostas em suas pinturas. Muitos aspectos cruciais da pintura
de Bacon podem ser relacionados à antropofagia: o fato r físico do corpo humano, a realidade da
carne e a violência das sensações, que ele seguidamente retrabalha por meio da pintura; a frag·
mentação do corpo, a fusão dos corpos no ardor do desejo, sua tensão no auge das sensações,
corpos revelados pelos raios X ou despidos para o sacrifício (como no tríptico Oresteia).
Na fervilhante imaginação de Bacon, a maior parte dessas imagens era do corpo, normal·
mente o humano, às vezes o animal. É provável que só uma pequena fração delas tenha sido
materializada e, destas, muitas destruídas. Bacon pintava a si próprio, dúzias de pequenos
auto·retratos, bustos oumeios·corpos e, mais raramente, a partirde 1956, fez cerca de dezessete
auto·retratos de corpo inteiro; pintava amantes e amigos íntimos, nus masculinos, femininos,
algumas vezes de sexo indeterminado e, ocasionalmente, de modo chocante, corpos em união
íntima. Como o eram para Picasso, o corpo, sua carne e seus orifícios são o grande tema de
Bacon, havendo diferenças e convergências significativas nas distorções que ambos fazem
respectivamente da figura humana. O que Picasso manipulava e reexprimia nascia do desejo
físico e do medo do corpo do outro, assim como de um amor pelos ritmos formais. Para Bacon,
há o desejo de intensificare quase consumir a presença viva do corpo, quero dele mesmo, quer
o do outro, de exprimir na pintura o físico como uma realidade. "As imagens, apenas tento
extraí·las de meu sistema nervoso tão corretamente quanto possa."2
Pintava a si mesmo a partirdo espelho ou de fotografias; seus amigos, de fotografias, o
que achava preferível, junto com lembranças e associações, à presença física em seu espaço
Self-portrait Auto-retrato 1971 óleo sobre tela [oil on canvas] 35,5x30,5cm coleção Musée National d'Art Moderne-Centre
Georges Pompidou, Paris

408 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


de trabalho. Ficava mais livre assim: "Eles me inibem porque, se gosto deles, não quero praticar
diante deles as ofensas que lhes inflijo em meu trabalho."3 A ofensa, a distorção, é feita em
relação à imagem pintada, mas se não fosse uma imagem, não haveria distorção visível. Em
outras palavras, não se trata unicamente de uma questão de manusear a tinta com violência,
de uma disposição de permitir gestos fortuitos, estrias, manchas e cutiladas desenfreadas de
tinta sobre a tela: a pintura de Bacon não é nem expressionista nem abstrata nesse sentido.
"A imagem", dizia ele, "importa mais que a beleza da pintura."4 Évital que o "dano" seja feito
à imagem, porque o real buscado por Bacon é aquele do co.rpo humano em sua inteireza e o
mistério daquilo que chamamos de "natureza humana". O corpo humano, que a pintura simul-
taneamente vela e revela.
"Falar da violência da pi ntu ra nada tem a ver com a violência da guerra. Tem a ver é com o
esforço de refazer a violência da própria realidade. E a violência da realidade não é unicamente
a violência simples à qual você alude ao dizer que uma rosa ou qualquer outra coisa é violenta,
mas é também a violência das sugestões inerentes à própria imagem, a qual só pode sertrans-
mitida por meio da pintura."s
Em um dos primeiros ensaios que escreveu para a revista Horizon, Robert Melville, um dos
primeiros críticos a reconhecerem Bacon um artista de importância, associou-o ao cubismo de
Picasso e Duchamp, de 1910-12, que era "de longe a mais bela e comovente realização da pintura
do século XX".6 Melville não postulava que a pintura de Bacon fosse anacrônica, pois sustentava,
com considerável justiça, que desde então, estritamente falando, não acontecera "nada de novo
na pintura"-até Bacon. O que Picasso e Bacon tinham em comum era a preocupação com a
"ambigüidade das fronteiras da figura humana no espaço"-preocupação que, como veremos,
era tão filosófica quanto formal. Bacon não partilhava da configuração linear/planar daquele
momento do cubismo, mas procurava representar, por meio de recursos novos, a interpene-
tração do corpo e do que o circunda, criando flutuações similares de espaço e formas indefiní-
veis. Nas pinturas de que fala Melville-as que retratam um homem que passa através de
cortinas (como o magnífico 5tudy from the human body [Estudo do corpo humano], de 1949),
cabeças consumidas até a metade, com bocas abertas ou olhar esgazeado, formas humanas
apanhadas na armadilha de vagas caixas lineares-, é impossível "isolarda feitura aquilo a que

409 Francis Bacon Dawn Ades


a própria feitura dá forma". Melville abstém-se da opinião, que se tornava cada vez mais
comum, de que Bacon era o pintorda alienação e do horror.
Melville também reconhece que, como no cubismo, não se trata da questão de uma "ten-
dência crescente rumo à abstração", como Michael Fried escreveu na Arts Magazine. Fried, crítico
filiado à tradição de Greenberg, para quem a pureza dos recursos pictóricos e a negação da "tea-
tralidade" eram de fundamental importância, foi muito mais ambivalente sobre Bacon. Argumen-
tava que o entrosamento da tinta com a imagem muitas vezes não acontecia; sentia que a figura
humana e o cenário lutavam um contra o outro e, dada a sua predisposição para a abstração,
naturalmente preferia esta: "largos campos de azulou negro manchado sobre os quais Bacon
pintou com um pincel vagaroso linhas simples mas nítidas de um amarelo seco, brilhante[ . . .]"7
Fried notou que o grupo de pinturas baseadas na obra de van Gogh, The painter on his way to
work [Pintor a caminho do trabalho] (1888), os Studies for a portrait ofuan Gogh [Estudos para um
retrato de van Gogh], assinalava um momento decisivo, que ele via em termos do aumento de
densidade da tinta, o qual estimulava uma configuração global. Embora a paisagem/cenário se
ache afirmada de modo sem precedentes aqui, com faixas brilhantes de cor ou cutiladas de
tinta, em contraste com os fundos até aqui predominantemente escuros-cortinas, venezianas,
Self-portrait Auto-retrato 1973 óleo sobre tela [oil on canvas] 198x147,5cm coleção particular [private collection] , Paris

410 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


gaiolas ou vazios que absorvem ou contêm a figura-, a relação ainda é de tensão e luta. Apesar
de agora em sentido inverso, afigura contra o fundo colorido, esse relacionamento ainda é o
âmago da pintura: a sombra negra que segue o pintorem seu caminho para o trabalho, na pin-
tura de van Gogh, devora a figura de Bacon.
Se é que se destacam por algum aspecto, as pinturas que se seguiram a esta explosão
repentina de corampliam a ambigüidade espacial e, simultaneamente, simplificam-na, com os
corpos isolados, apertados e espremidos pelo espaço.
A atitude de Bacon em relação ao corpo humano e à própria idéia de "ser humano" tem
muito em comum com a do grupo de dissidentes surrealistas reunidos no final dos anos 20 em
torno de Georges Bataille e da revista Documents. Bacon iria, muito mais tarde, tornar-se muito
amigo de um deles, o escritor e etnógrafo Michel Leiris, que em 1930 publicou extraordinário
ensaio em Documents, "L'homme et son intérieur" [O homem e seu interior], em que se prefiguram
certos aspectos das "imagens" de Bacon.
Leiris recoloca a questão da ambigüidade das fronteiras do corpo, acima discutida em
relação à distorção e à fragmentação cubista, numa arena filosófica desafiadora; entretanto, ao
fazer as perguntas: o que é o homem e o que é a natureza humana, coloca em lugar bem central o
problema da representação do corpo. Seu tema ostensivo-e inteiramente consoante com o uso
do bizarro, feito pela revista Documents, para questionar a noção de norma-é uma série de
gravuras seiscentistas de anatomia, de autoria de Amé Bourdon, tiradas de um compêndio
de medicina. Lembrando uma anedota-sobre uma mulher que, repugnada, assistia a um
açougueiro que eviscerava uma carcaça de boi, e exclamava "Temos essas coisas horríveis dentro
de nosso corpo?"-, Leiris descreve, por outro lado, a extraordinária beleza dessas gravuras de
corpos que, esfolados, revelavam músculos e tendões; dissecados, desnudavam nervos e veias.
Celebra-lhes a natureza irresoluvelmente paradoxal: descascadas e cortadas ao meio, essas
figuras humanas se fazem garbosamente passar por vivas, acariciando o próprio corpo ou
displicentemente segurando uma orelha com a mão. Leiris propõe que as superfícies regulares
do nu convencional da pintura acadêmica desumanizam o corpo e o deixam completamente
destituído do sentido de sua misteriosa realidade.
Em Bacon, há paralelos em diversos níveis: o amor pela parte interna da boca, a pintura de
carcaças, que lembram Rembrandt, a ênfase provocadora que põe na beleza da cordo sangue.
Mas é também no desafio materialista, que Leiris aqui lança deliberadamente aos valores con-
vencionais atribuídos à natureza humana, que encontramos um eco em Bacon. Leiris é de opinião
que a única garantia que o homem tem, de não estar sozinho numa "natureza" estranha e glacial,
é a existência de uma "natureza humana", isto é, de criaturas humanas além de nós mesmos; o
que importa, porém, não é o companheirismo nem a sociedade, mas a realidade física do corpo;
vê-lo, quer se sinta solidariedade, quer animosidade, em relação a ele, é o que nos toca mais
intimamente. "No fim, o masoquismo, o sadismo e quase todos os vícios são apenas modos de
nos sentirmos mais humanos, em virtude de entrarmos em contato mais rude e profundo com
o corpo."8 Éo corpo, com as entranhas e tudo, que constitui a natureza humana.
Em muitos aspectos diferentes, os corpos das pinturas de Bacon são impelidos a extremos:
às vezes literalmente, presa de uma sensação violenta, às vezes com os órgãos internos expostos
por raios X, como no painel central do Triptych 1976 [Tríptico 1976], às vezes pela manipulação
pura da tinta. Particularmente impressionantes são as obras em que a realidade crua do corpo
é relacionada à grandiosidade do mito antigo, como no Triptych inspired by the Oresteia of Aeschy/us
[Tríptico inspirado pela Orestéia de Ésquilo] (1981), em que a figura nua e sem cabeça de Aga-
menon, no centro, não está apenas nua, mas também com o interior exposto. Aqui poderíamos

411 Francis Bacon Dawn Ades


recordar também a noção de aviltamento, de George Bataille, do contínuo "rebaixamento" das
aspirações do homem "no mundo". A oscilação entre a elevação, o engrandecimento, a vertica-
lidade do homem e a sua queda, a redução ao horizontal terreno, é freqüentemente representada
nas pinturas de Bacon.
Embora, em certas ocasiões, Bacon efetivamente buscasse na literatura os seus temas,
como no tríptico Oresteia, nunca o fazia para formular uma narrativa, para contar uma história.
Às vezes, há um espectador na pintura, espiando um casal, como no Triptych inspired by T. S. Eliot
poem "Sweeney Agonistes" [Tríptico inspirado pelo poema "Sweeney Agonistes" de T. S. Eliot] (1967).
Em "Sweeney Agonistes" de Eliot, cujo subtítulo é "fragmentos de um Melodrama Aristofânico",
personagens imorais e intimidadores trocam ameaças e seduções contra uma invocação em off
de uma "ilha de crocodilos" paradisíaca:

"DORIS: Você me levará? A uma ilha de crocodilos?


SWEENEY: Eu serei o canibal.
DORIS: Eu serei a missionária.
Eu te converterei!
SWEEN EY: Eu te converterei!

Num cozido.
Um bom, pequeno e branco cozido de missionário."g

Não há nada, diz Sweeney, nesta ilha exceto três coisas: "Nascimento e cópula e morte". Ele fala
de um homem que assassinou uma menina, e as últimas linhas são uma versão da era do jazz de
um coro grego, evocando um terror caçador inominável. O tríptico de Bacon não ilustra o poema
de forma alguma, mas expressa um similar mundo assombrado de acasalamentos e aniquilação.
Como escreveu Michel Leiris em seu estudo sobre Bacon de 1983, em suas telas há "partes

412 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


incandescentes, fervilhando energia, em contraste com as partes neutras onde nada acontece".10
Nesse tríptico, há três pontos de concentração de energia: nos painéis da direita e da esquerda,
dois casais-um masculino, outro feminino-estão contidos em suportes-pedestais em uma
jaula posicionada contra espaços neutros virtualmente idênticos. Em cada um, parece haver um
espelho, um dos quais reflete um observador casual ao telefone. Nesse centro, não há espelho,
mas uma janela aberta ao vazio, atrás de uma terrível massa de carne e roupas. Bacon, como
Eliot, transpõe os trágicos impulsos do drama grego em ritmos do mundo moderno-sua
linguagem e imagética.
Apesardas ocasionais referências a temas poéticos, religiosos ou mitológicos, Bacon negava
que estivesse ratificando uma hierarquia tradicional, que coloca a pintura histórica no topo,
depois os retratos, as paisagens e finalmente a natureza morta. Concordando que "como seres
humanos, nossa maior obsessão somos nós mesmos", sugeria uma ordem diferente, pela qual,
como "as coisas são tão difíceis, os retratos vêm em primeiro lugar" .11
Tanto no Self portrait [Auto-retrato] (1971), quanto no Portrait of Michel leiris [Retrato de Michel
Leiris] (1976), paira uma aparência vaga, sedutora e estranha, de feições familiares e calmas,
por trás dos vigorosos golpes e manchas de tinta. Esses vestígios improváveis assombram a
imagem tal qual uma lembrança escondida logo abaixo da superfície, mas também trabalham
com as marcas que a destruíram para transmitir uma aparência que se situa além da mera
semelhança "fotográfica". A aparência incorpora movimento, estrutura, postura física; mas em
jogo também há mais que isso. Bacon falava de quererchegarà essência da coisa, mas com isso
não queria dizer algum eu desincorporado, transcendental : bem ao contrário. Em vez disso, o
que ele queria era alcançar o todo material impossível do corpo, em cuja carne registram-se
nossas paixões e sensações mais fortes .
Three studies of Henrietta Moraes Três estudos de Henrietta Maraes tríptica [triptych] 1969 óleo sobre tela [oi l on canvas]
35,5x30,5cm cada [each] coleção particular [private collection]

413 Francis Bacon Dawn Ades


Mas o que dizer das muitas figuras não identificadas, freqüentemente chamadas de lying
figure [figura deitada] ou Reclining figure [Figura reclinada], às vezes de sexo incerto ou de aparên-
cia andrógina? No catálogo da recente exposição da Hayward Gallery, David Sylvesterobserva que
no Triptych-Studies ofthe human body [Tríptico-Estudos do corpo humano], de 1970, a figura da
esquerda é andrógina, ao passo que a da direita, apesar dos seios proeminentes, tem rosto
muito parecido com o do próprio Bacon. Este notável exemplo de assumirou absorver o corpo e
até mesmo o sexo do outro, Sylvester associa à extraordinária capacidade de Bacon de passar
de um papel a outro: "Há momentos em que ele é o mais feminino dos homens; outras vezes,
o mais masculino". E isso o leva a Tiresias. Em "The waste land" [A terra devastada], de Eliot-o
poema mais ressoante, para Bacon-, Tiresias, o "velho de tetas encarquilhadas", é o espectador
em quem "os dois sexos se encontram":

"E eu, Tiresias, tudo antecipei e


Experimentei neste mesmo divã ou cama[ ... ]"12

414 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


A ambígua fronteira do corpo, do eu e do outro, é triunfalmente transgredida nas pinturas
de Bacon.
A transformação entre corpos, aqui representada, é também uma conseqüência da procura,
como disse Bacon, das "sugestões contidas na própria imagem". Por exemplo, as formas
humanas em luta, das fotografias de Muybridge, transformam-se em machos em união íntima.
O processo de alteração tem qualidade quase cinemática. Bacon dizia ver "o tempo todo cada
imagem de modo mutável e quase em seqüências mutáveis"; e aqui poderiam ser feitas com-
parações com o tipo de montagem cinematográfica que em lugar algum foi realizada com mais
vigordo que em Un chien andalou [Um cão andaluz], de Dalí e Bufíuel.
Bacon canibalizou fotografias com dramaticidade muito maior do que qualquer outro de
sua época. De seu ateliê, resgataram-se montes de fotografias de revistas e jornais, de pranchas
de compêndios de medicina e de outras fontes, que haviam sido "retrabalhadas", às vezes vio-
lentamente apagadas, desfiguradas, ou montadas por colagem, às vezes com o acréscimo de
linhas e marcas que salientavam e exageravam o que nelas o estimulara. Por exemplo, numa
fotografia de jornal, fora apagada a metade superior do corpo de um jogador de críquete, res-
tando a metade inferior, com as pernas envoltas em calças de críquete. A parte de cima dessas
calças curvava-se como nádegas. Esta deve ser uma das fontes dos torsos das pinturas do início
dos anos 80, como em Study ofthe human body [Estudo do corpo humano], de 1982. Em certo
sentido, essas fotografias funcionavam como os cadernos de esboço de Bacon; e o que ele fez
com elas e como elas se relacionam com as pinturas são assunto de solução complicada.
O que nas pinturas de Bacon parece ser violenta distorção tem, portanto, diversas causas
e efeitos. Na ausência dos mitos religiosos consoladores e com a perda de qualquer noção de
progressão na modernidade, Bacon afirmava para si mesmo, como uma espécie de dialética
interna: "Ah, bem. Podemos ser otimistas e completamente sem esperança. Nossa natureza
fundamental é totalmente sem esperança e, mesmo assim, nosso sistema nervoso é feito de
otimismo."13 Dawn Ades. Traduzido do inglês por Claudio Frederico da Silva Ramos.

1. David Sylvester, Interuiews with Francis Bacon , Londres: Thames sua maturidade de .pintor, nos Figure studies [Estudos de figu-
& Hudson, 1980, p.166. ra], de 1945-46, em que um buquê estranhamente formal
2. Ibid. P-41. representa (em certo sentido) um rosto.
3. Ibid. P·41. 6. Robert Melville, "Francis Bacon", Horizon, dezenibro de 19491
4. Ibid . P·41. janeiro de 1959, p.421.
5. Ibid. p.81. Sempre tive dúvidas se, por "violência de uma 7. Michael Fried, "Bacon's achieve~ent", Arts Magazine.
rosa", Bacon quisesse dizer apenas que ela tinha espinhos; 8. Michel Leiris, "L'homme et san interieur", Documents, n.5,
uma história contada por Michael Peppiatt, na biografia que ano" (1930), P.264.
escreveu sobre Bacon, esclarece a questão. Este não gostava 9. T. S. Eliot, "Sweeney Agonistes", Collected poems 1909-1962,
dos vasos de flores artificiais que havia na casa de uma de Londres, 1963, P.130.
suas amigas e anfitriãs londrinas. Ao lhe dizerem que elas 10. Michel Leiris, Francis Bacon:full face and in prof/le, Nova York,
não morriam, ao contrário das flores de verdade, ele protestou: 198 3, P·24·
"Mas todo o sentido das flores é morrer." Tal como Georges 11. David Sylvester, op. cit., p.63.
Bataille em "The language offlowers" [A linguagem das flo- 12.- , Francis Bacon: the human body , Londres: Hayward
res], era precisamente na mortalidade das flores que Bacon Gallery, 1998, P.38.
via sua pungência ("farrapos do esterco que cai do céu"). É 13.-, Interuiews with Francis Bacon, op. cito
claro que ele não pintava flores, exceto nos primeiros anos de

Seated figure (The cardinal) Figura sentada (O cardeal) 1955 óleo sobre tela [oil on canvas] 152x117cm coleção Stedelijk Museum
voor Actuele Kunst, Gent foto Oirk Pauwels
Artur Barrio T. E. (trouxas ensangüentadas) [B.B. (bloody bundles)] fase externa [external phase] Rio de Janeiro, 1969 registros
Cesar Carneiro
curadoria Dawn Ades

Francis Bacon: boundaries


of the body

"I happen to be very, very full ofimages."


-Francis Bacon in interview with David Sylvester 1

Bacon speaks here as ifhe were gorged with images, the casual metaphor expressing a kind of
gourmandise, a plenitude resulting from an uncritical devouring of images. "I'm greedy for life;
and I'm greedy as an artist." His work touches on the theme of this exhibition, antropofagia at
several points. He absorbed images from numerous visual sources both "high" and "low": not
only the paintings of van Gogh, ofRembrandt and Velazquez, which he confronts, absorbs and
reformulates, but also photographs, induding those ofMuybridge, plates from medical and nat-
ural history textbooks, and newspaper pictures. All were capable of engaging him, nourishing
his imagination and prompting responses in his paintings. Many crucial aspects of Bacon's
painting can be related to this theme: the physical fact ofthe human body, the reality offlesh and
the violence of sensation, which he continually reworks through paint; the fragmentation of the
body, the fusion of bodies in desire, their tension in the extremity of feeling, bodies revealed
through x-ray and stripped for sacrifice (as in the Oresteia triptych).
Most of Bacon's images, in his teeming imagination, were of the body, usually human,
sometimes animal. A small proportion were probably realized, and ofthose manywere destroyed.
Bacon painted himself, dozens of small self-portraits, busts or half-Iength, and more rarely,
from I956, about seventeen full-Iength self-portraits; he painted his dose friends and lovers,
nudes male, female and sometimes of indeterminate gender, and occasionally and shockingly,
coupling bodies. The body, its flesh and its openings are Bacon's great subject, as they were
Picasso's, and there are significant comparisons and differences in their respective distortions of
the human figure. Picasso's manipulations and re-tellings spring from physical desire and fear
of another's body, and from a love of formal rhythms. For Bacon there is a desire to intensifY and
almost consume the living presence ofthe body, whether his own or another's, to render the phys-
ical as a fact in paint. "I'm just trying to make images as accurately of my nervous system as 1 can."2
He painted himself in a mirror or from photographs; his friends he painted from pho-
tographs. He preferred these, together with memories and associations, to the living presence in
his room. He was freer that way: "They inhibit me because, ifI like them, 1 don't want to practice
before them the injury that 1 do to them in my work."3 The injury, the distortion is to the painted

416 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibali smos


image, but if it were not an image there would be no visible dis-
tortion. lt is not, in other words, just a matter of the violent han-
dling of paint, a willingness to allow chance gestures, gougings,
smears and slashes of paint free rein on the canvas: his painting
is neither expressionist nor abstract in that sense. "The image,"
he said, "matters more than the beauty ofthe paint."4 lt is crucial
that the "damage" is done to the image, because the real that
Bacon was after is that of the human body in its entirety and the
mystery ofwhatwe call "human nature." The human body, thatis,
simultaneously veiled and revealed in paint.
"When talking about the violence of paint, it's nothing to
do with the violence ofwar. lt's to do with an attempt to remake
the violence of reality itself. And the violence of reality isnot only
the simple violence meant when you say that a rose or something
is violent, but it's the violence also ofthe suggestions within the
image itselfwhich can only be conveyed through paint."s
Robert Melville, one of the first critics to recognize Bacon
as a major artist, linked him in an early essay in Horízon to the
cubism ofPicasso and Duchamp OfI910-12, which was "far and
away the most beautiful and moving achievement of 20th century
painting."6 Melville was not implying that Bacon's painting was
an anachronism, for he held, with considerable justice, that since then there had, strictly speak-
ing, been "no new developments in painting"-until Bacon. What Picasso and Bacon had in
common was a concern with "the ambiguity ofthe boundaries ofthe figure in space"-a con-
cern which, as we shall see, was as much philosophical as formal. Bacon did not share the lin-
ear/planar configuration of that moment of cubism, but sought to represent through new means
the interpenetration ofthe bodywith its surroundings, creating similar fluctuations of space and
indefinable forms. ln the paintings of which Melville speaks, those depicting a man passing
through curtains (like the magnificent Studyfrom the human body OfI949), heads half consumed,
with open mouths, or with piercing gaze, figures trapped in spare linear boxes, it is impossible
to "divorce the facture from what it forms." Melville eschews the opinion, which was becoming
increasingly current, that Bacon was the painter of alienation and horror.
Melville also recognises that, as with cubism, it is not a question of an "increasing tendency
towards abstraction," as Michael Fried wrote in Arts Magazíne. Fried, as a critic in the Greenberg
tradition, for whom the purity of the pictorial means, the avoidance of "theatricality" were of
absorbing importance, was much more ambivalent about Bacon. He argued that the interlocking
of paint and image often does not happenj he felt that figure and setting pull against each other,
and, given his predisposition to abstraction, naturally preferred the latter: "broad fields of stained
black or blue over which Bacon has painted with a dragging brush simple but elegant railings in
bright, dryyellow [... ]"7
Fried noted that the group ofpaintings aftervan Gogh's The paínter on hís way to work (1888) ,
the Studyfor portraít ofvan Gogh, marked some kind of a turning point, which he saw in terms of
the increased density of paint which encouraged an overall configuration. While it is true that
à esquerda [Ieft] Francis Bacon 1954 foto John Deakin
acima [above] Study for a portrait of van Gogh VI Estudo para um retrato de van Gogh VI 1957 óleo sobre tela [oil on canvas]
202,5x142cm coleção The Arts Council of Great Britain , Londres

417 Francis Bacon Dawn Ades


the landscape/background enforces itself in an unprecedented way here, with brilliant colour
bands or slashes of paint by comparison with the hitherto dark grounds: curtains, shutters,
cages or voids which absorb or contain the figure, the relationship is still one of tension and
struggle. Although now in a sense reversed, in that the figure is dark against the colours, this is
still the heart ofthe drama: the black spidery shadow cast by the painter on his way to work in
van Gogh's picture devours Bacon's figure.
If anything, however, the paintings which followed this sudden explosion of colour magnifY
the spatial ambiguity, and simultaneously simplifY it, while the bodies are isolated, pressed and
squeezed by space.
Bacon's attitude to the human body, and to the very idea of"being human" has much in
common with that ofthe group of dissident surrealists gathered at the end ofthe 1920S round
Georges Bataille and the review Documents. Bacon was, much later, to become a very dose friend
of one of them, the writer and ethnographer Michel Leiris, and it was Leiris who published an
extraordinary essay in Documents in 1930: "L'homme et son interieur," in which certain aspects of
Bacon's "images" are prefigured.
Leiris moves the question ofthe body's ambiguous boundaries, discussed above in con-
nection with cubist fragmentation and distortion, into a challenging philosophical arena; how-
ever, in asking the questions what is man, and what is human nature, he places the problem ofthe
body's representation at the very center. His ostensible subject-and one which is wholly in
keeping with Documents' use of the bizarre to question the idea of a norm-are a series of 17th
century anatomical prints by Amé Bourdon from a medical textbook. Recalling an anecdote of
a woman watching, repelled, a butcher eviscerating a beef carcass, and exdaiming "Do we
Three studies for a portrait of John Edwards Três estudos para um retrato de John Edwards tríptico [triptych] 1984 óleo sobre
tela [oil on canvas] 198x147,5cm cada [each] coleção particular [private col lection], Paris

418 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofag ia e Histórias de Canibalismos


have such horrors inside our body?" Leiris by contrast,
describes the extraordinary beauty of these plates of
bodies flayed to reveal muscles and sinews, dissected to
uncover nerves and veins. He celebrates their irresolvably
paradoxical nature: skinned and cut in half, these figures
pose jauntily as living, caressing their own body ar casualIy
holding an ear in one hand. Leiris proposes that the clean
surfaces of the conventional nude of academic painting
dehumanizes the body, leaves it bereft of any sense of its
mysterious reality.
There are paralIels at several leveIs with Bacon: his
love afthe interior ofthe mouth, his paintings af carcasses,
recalling Rembrandt, his defiant stress on the beauty of the
colour of blood. But it is also in the materialist chalIenge
Leiris deliberately poses here to the conventional values
placed in human nature that an echo is found in Bacon.
Leiris suggests that the only pledge man has that he is not
alone in a glacial and strange "nature" is the existence of a
"human nature," that is, human creatures other than our-
selves; but it is not companionship or society that matter,
but the physical fact of the body, the sight ofwhich, whether
one feels solidarity or enmity towards it, is what touches us most closely. "Masochism, sadism,
and almost alI vices in the end are only ways of feeling more human because ofbeing in deeper
and more abrupt relationship with the body."g lt is the body, entrails and alI, that constitutes
human nature.
ln many different ways the bodies in Bacon's painting are pushed to an extremity: some-
times literalIy in the grip of a violent sensation, sometimes with internal organs exposed through
x-ray, as in the central paneI ofTríptych 1976, sometimes through the pure manipulation ofthe
paint. Particularly striking are those works where the brute fact ofthe body is brought into relation
with the grandeur of ancient myth, as in the Tríptych ínspíred by the Oresteía of Aeschylus (1981),
where the headless, naked figure of Agamemnon in the center is not just naked but his interior
is exposed. Here we might recalI also George Bataille's notion of debasement, of continuaI
"bringing down in the world" ofman in his aspirations. The oscillation between man's eleva-
tion, erection, verticality and his falI, reduction to the earthly horizontal is often enacted in
Bacon's paintings.
Although Bacon did occasionalIy, as in the Oresteía triptych, draw upon literature for his
subject matter, it was never to draw out a narrative, to telI a story. SometÚnes there is a spectator
in the painting, watching a couple, as in Tríptych ínspíred by T.S. Elíot's poem "Sweeney Agonístes."
(1967) ln Eliot's "Sweeney Agonistes," subtitled "fragments of an Aristophanic Melodrama,"
louche and menacing characters exchange threats and seductions against a background invoca-
tion of a paradise "crocodile isle":

"DORIS: You'lI carry me ofr? To a crocadile isle?


SWEENEY: I'1I be the cannibal.
DORIS:I'1I be the missionary.
I'1I convert you!

419 Francis Bacon Dawn Ades


SWEENEY: 1'11 convert YOu!
lnto a stew..
A nice little, white little, missionary stew."9

There is nothing, Sweeney says, on this isle except three things: "Birth, and copulation, and
death." He te11s ofa man who murdered a girl, and the finallines are a jazz age version of a Greek
chorus, evoking a nameless hunted terror. Bacon's triptych in no sense illustrates the poem, but
conveys a similar haunted world of couplings and annihilation. As Michel Leiris said in his I983
study ofBacon, in his canvases there are "incandescant parts, seething with energy, in contrast
to neutral parts where nothing is happening."10 ln this triptych there are three concentrated
centers of energYi in the right and left paneIs, two couples-one male, the other female-are
contained on plinth-like supports within a cage set against virtua11y identical neutral spaces. ln
each, there appears to be a mirro r, one of which reflects a casual observer, on the telephone.
ln the center, there is no mirror but a window open onto a void, behind a terrible mass of flesh
and clothes. Bacon, like Eliot, transposes into the rhythms ofthe modern world-its language
and imagery, the tragic impulses ofGreek drama.
Despite his occasional references to mythological, religious or poetic subject matter, Baçon
dénied that he was affirming a traditional hierarchy, which placed history painting at the top,
then portraits, landscape and finally stilllife. Agreeing that "as we are human beings, our greatest
obsession is with ourselves," he suggested a different order, in which, as "things are so difficult,
portraits come first." 11
ln both the I97I Self portrait and the I976 Portrait of Michel Leiris, a strange and seductive
ghostly likeness hovers, of caim and familiar features, behind the powerful thrusts and smears
of paint. This uncanny remnant haunts the image like a memory just below the surface, but also
works with the marks that have destroyed it to convey a likeness beyond that of mere "photo-
graphic" resemblance. The likeness incorporates physical stance, structure, movement, but there
is also more at stake. Bacon talked ofwanting to get at the essence of the thing, but he didn't mean
by that some transcendental, disembodied self: quite the reverse. lt is rather that he wanted to
grasp the impossible material whole, of the body in whose flesh our strongest sensations and
passions are registered.
Butwhat ofthe many unidentified figures, often ca11ed Lyinafi.gure or Recliningfigure? These
are sometimes of uncertain gender, or appear androgynous. ln the catalogue to the recent exhi-
bition at the Hayward Ga11ery, David Sylvester makes the observation that in Triptych-Studies of
the human body of I970, the left hand figure is androgynous, while that on the right, despite its
emphatic breasts, has a face that is very like Bacon's own. This remarkable instance of entering
or absorbing another's body and even gender is linked by Sylvester to Bacon's extraordinary
capa city to switch between roles: "At moments he was one of the most feminine of men, at others
one ofthe most masculine," and this leads him to Tiresias. ln Eliot's "The waste land," for Bacon
the most resonant of poems, Tiresias, the "old man with wrinkled dugs" is the spectator, in
whom "the two sexes meet":

"And I Tiresias have foresuffered all


Enacted on this sarne divan or bed [... ]" 12

The ambiguous boundary of the body, of the self and other is triumphantly transgressed in
Bacon's paintings.

420 XXIV Bienal Núcleo Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos


The transformation here enacted between !1odies
is also a consequence of pursuing, as Bacon said, "the
suggestions within the image itsel(" The wrestling
figures fram Muybridge's photographs, for instance,
become coupling males. The pracess of alteration has
an almost cinematic quality. Bacon described seeing
"every image all the time in a shifting way and almost
in shifting sequences," and comparisons could be made
with the type of montage that is nowhere more power-
fully achieved in film than in Dalí and Bunuel's Un
chíen andalou.
Bacon cannibalised photographs in a much more
dramatic way than anyone in his lifetime realized. Sal-
vaged fram his studio are scores of newspaper and
magazine photographs, plates fram medical textbooks
and other sources which were "worked over," some-
times violently erased, defaced, or collaged together,
sometimes lines and marks added to pinpoint and
exaggerate what had excited him in them. A news pho-
tograph of a cricketer, for instance, has had the top
half of the body rubbed out, leaving the lower half of
the body with legs encased in cricket pads, their tops
curving like buttocks; this must be one source of the
torsos in the early 80S paintings like Study ofthe human
body I982. These were in a sense his sketch pads, and what he did to them and how they relate to
the paintings will be a complicated matter to resolve.
What seems to be violent distortion in Bacon's painting thus has several causes and effects.
ln the absence of the consoling religious myths and the loss of any notion of pragressive mo der-
nity, Bacon put it for himself as a kind of internal dialectic: "Ah well, you can be optimistic and
totally without hope. One's basic nature is totally without hope, and yet one's nervous system is
made out of optimistic stuf(" 13 Dawn Ades

I. David Sylvester, Interviews with Francis Bacon, London: Thames mature years as a painter, in the Figure Studies of1945-46, where
& Hudson, 1980, p.166. the oddly formal bouquet stands in, in a sense, for a face.
2. ibid. P.41. 6. Robert Melville, "Francis Bacon," Horizon, December 19491
3. ibid. P·4 1 January 1959, P·4 21.
4. ibid. P·4 1 7. Michael Fried, "Bacon's achievement," Arts Magazine.
5. ibid. p.81. I have always doubted whether by "the violence 8. Michel Leiris, "L'Homme et son interieur," Documents, n.s ,
of a rose" Bacon just meant it had thornsj an anecdote told by 2nd year (1930), P.264.
Michael Peppiatt in his biography of Bacon throws light on 9. T. S. Eliot, "Sweeney Agonistes," Collected poems 19°9-1962,
this. At the house of one ofhis London hostess friends Bacon London,1963, P·13 0.
disliked the bowls of artificial flowers. When told they didn' t 10. Michel Leiris, Francis Bacon:fullface and in profíle, New York,
die like real flowers, he protested: "But the whole point of 19 8 3, P·24·
flowers is that they die." Like Georges Bataille in "The lan- .II. David Sylvester, op. cito p.63.
guage offlowers," Bacon found the poignancy offlowers pre- 12. - - , Francis Bacon: the human body , London: Hayward
cisely in their mortality ("tatters of aerial manure") . He did Gallery, 1998, P.38.
not of course paint flowers, except at the very beginning ofhis 13. - - , Interviews with Francis Bacon, op. cit
After Muybridge-study of the human figure in motion-woman emptying a bowl of water-paralytic child on ali fours
O'apres Muybridge- estudo de figura humana em movimento-mulher esvaziando uma bacia de água-criança paralítica de quatro
1965 óleo sobre tela [oil on canvas] 198,5x147cm coleção Stedelijk Museum , Amsterdã

421 Francis Bacon Dawn Ades

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