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11 © Tempo Os crist@os-novos no Brasil colonial: reflexées sobre a questao do marranismo” Anita Novinsky™ Os estudos dedicados a hist6ria sefardita e a0 marranismo tém prolife- rado consideravelmente nos ditimos anos. O quinty centeudsio da expulsao dos judeus da Espanha (1492-1992) estimulou historiadores de varios paises a mergulhar mais profundamente na historia dos judeus sefarditas da Penin- sula Ibérica durante a Idade Média e na Epoca Moderna, buscando as razdes que levaram Espanha e Portugal, paises tradicionalmente conhecidos por sua tolerncia em relagao a outras culturas, a adotarem politicas anti-semitas to extremadas ¢ violentas, que preconizam o anti-semitismo difundido no sé- culo XX. As origens da Inquisigao espanhola € portuguesa, a perseguigao ¢ 0 pretendido exterminio gradual dos judeus, 0 papel dos conversos ou cristios- novos na expansao européia, a sistematica dispersio dos cristos-noves por- tugueses quase que pelo mundo todo, sua vida secreta ¢ a extraordindria re- sisténcia de seus descendentes em aceitarem 0 catolicismo tém sido objeto de excelentes trabalhos. Bascados em fontes arquivisticas, eles tem cada vez * Versio em inglés deste artigo foi publicada em Studies on the History of Portuguese Jews from Their Expulsion in 1497 trhough Their Dispersion, 2000, Co-edited by Israel Katz.and M, Mitchell Serels, Sepher-Hermon Press, Inc. forthe American Society of Sephardic Studies, New York. Professora do Departamento de Hist6ria da USP, Tempo, Rio de Janeiro, n* 11, pp. 67-75 67 Dossié mais contribufdo para o nosso conhecimento sobre esse ainda obscuro capitulo da hist6ria judaica e oferecido novas perspectivas para futuras investigagdes. No entanto, enormes lacunas ainda persistem, especialmente no que toca as Américas, onde a vida e o destino dos cristdios novos foram completa- mente negligenciados pela historiografia sefardita. Dentre os numerosos tra- balhos publicados sobre os sefarditas, nos titimos anos, citamos, como exem- plo, a colecdo de ensaios, em dois volumes, publicada em Israel, com 0 titulo de The Sephardi Legacy (Beinart, 1992), na qual quase todas as referéncias ao Novo Mundo dizem respeito exclusivamente & América espanhola. E sur- preendente que nao haja ali um tnico estudo especificamente relacionado a0 Brasil, sobre o qual pesquisas consideraveis ja foram realizadas ¢ publicadas em livros e revistas cientificas.! O fendmeno dos conversos no Novo Mundo foi muito diferente da his- téria da conversao na Europa, visto que seguiu diversas etapas. Em primeiro lugar, devemos apontar que foi um fendmeno extremamente original, que se desenvolveu num mei multicultural, ao contrario das sociedades mais uniformes ¢ racistas européias. Os conversos, cristdos-novos ou anusim (mar ranos) sofreram variadas influéncias no Nove Mundo, desenvolvendo uma diversidade de atitudes ¢ comportamentos que diferiam enormemente de seu passado original. Para citar um exemplo, lembramos que os violentos ¢ brutais aventureiros, conhecidos como dandeirantes, que, no sul do Brasil, atravessaram florestas, assassinaram indios, expulsaram jesuftas ¢ deram con- formagio ao territério brasileiro eram, em grande nimero, cristéos-novos. Gulturalmente falando, fizeram uma migragio inteiramente diversa dos ju- deus sefarditas que se estabeleceram na Ivilia, na Holanda € no leste do Mediterranco. Eram, também, diferentes dos senhores de engenho do nor deste brasileiro. E importante, como ponto de partida, explicar meu conceito de marrano € de marranismo, que difere do que é dado pela maioria dos historiadores. A fim de compreender a hist6ria sefardita no Brasil, devemos extrapolar 0 es "Entre as publicagies dedicadas aos cristios-novos, que se estabeleceram em vérias regides do Brasil, estio J. G. Salvados, Os Gristdas-Novos ¢ 0 Gomércio no Atldntico Meridionat, Sto Pau- lo, Pioneira/Ministério da Educagio, 1978, ¢ Os Magnatas do Tréfico Negreiro, Sao Paulo, Pio- neira/Universidade de Sao Paulo, 1991; E. C. de Mello, O Nome eo Sangue, Sto Paulo, Com- panhia das Letras, 1989; A. Novinsky, Cristdas-Novos na Bahia, 2 ed., Sao Paulo, Perspectiva, 1992, © “Cristios-Novos no Brasil. Uma Nova Visio do Mundo”, Guy Martinier (ed.), Argai- ‘vor do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Mélanges offerts Fréderie Mauro, Lisboa-Patis, Cen- tro Cultural Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 387-97. 68 Os cristitos-novos no Brasil colonial: reflexdes sobre a questo do marranismo treito conceito tradicional de marranismo, que o identifica com eriptojudatsmo. ‘Também devemos introduzir um conceito muito mais claro do marranismo na assim chamada questo controversa sobre “O que & ser judeu2” Um exame das fontes primérias relativas aos cristios-novos no Brasil me permitiu revisar 0 conceito tradicional de marranismo e me aproximou do conceito de “submarranismo”, proposto recentemente pelo filésofo fran- cés Edgar Morin. Morin, que compreendeu a complexidade e a fecundidade éspagne, de Henti Méchoulin,? afirmou: “o que me ligou ao matranismo (...)” foi a experiéncia do marranismo quando escreveu o prefiicio para Les Juifs d's psicolégica complexa, que traz consigo uma dupla indentidade, dilacerante © eventualmente criadora, fermento da superagio dos dogmas das duas reli- gides, resultando numa postura interrogativa ¢ critica, 4 moda de Montaigne, © na busca de novos fundamentos, como em Spinoza.? Os marranos eram “nao-judeus” judeus € judeus “ndo-judeus”. Per tenciam a um grupo que os exclufa e eram excluidos do grupo ao qual per- tenciam, como o préprio Morin.* A experiéneia marrana podia ter ocorrido a qualquer tempo ¢ em qualquer lugar. Desenvolvi esse mesmo conceito, quan- do escrevi meu ensaio sobre “O Homem Dividido”’, Contudo, 0 conceito de (pés-marranismo — utilizado por Morin — também lembra o caso do poeta Heinrich Heine, publicado recentemente num artigo de Philipp E. Veit." Heine permaneceu marrano por toda a vida. Como outros marranos do im- pério lusocolonial, teve que se adaptar a um mundo a que niio pertencia Mesmo sem praticar a religiao judaica, nem compreender a real esséncia do “o outro”, os judaismo, numa sociedade que considerava os judeus como marranes desenvolveram, psicologicamente, uma certa idéia do “nosso”. Como Heine, muitos marranos julgavam o judaismo como 0 fazem homens modernos, nZio como uma religigo ou uma fé, sendo no sentido muito mais largo de “visio de mundo”, Essa id¢ia de marranismo resultou da diversidade * Edgar Morin, “Preface”, Henci Méchoulin (ed..), Les Juifed’ Espagne, Histoired une Diaspora, 1492-1992, Patis, Ed. Liana Lévi, 1992, pp. iv. 3 Idem, 9. 151. *O texto de Morin diz: “Bis, portanto, minha idencidade: son um judeu nio-juden, um nao- judeu judeu. Pertengo a quem nao pertencia e ndo pertencia a quem pertencesse", idem, p. 140. 5 Gristaos novos na Bakia, op. eit pp. \AA-162. Philipp E Veit, “Heine: The Marrano Pose”, Monatschefie, 1974, 66/2, Madison University ‘of Wisconsin, pp. 145-56. Sou grata ao Sr. Wygal Lossin, de Jerusalém, que me fez dirigir a atengio para o marranismo de Heinrich Heine, ¢ por me ceder uma eépia desse artigo. oo Dossié da experiéncia judaica tanto no passado como no presente. Um marrano era um “judeu secreto”, sem que necessariamente fosse um “judeu religioso”. Numa sociedade marrana pluralista, como a em que viviam 0s etist4os-no- vos no Brasil, sua ligagdo com os judeus nao se dava sempre através da teli- giao.” Sabemos, hoje, com base em pesquisa recente, que a maioria dos conversos que deixaram Portugal nos séculos XVI, XVII e XVIII foram para a América. Além daqueles que, voluntariamente, emigraram para 0 Novo Mundo, em busca de melhor qualidade de vida, ou daqueles que fugiram das perseguigées inquisitoriais, também devemos considerar os crist4os-novos que foram degredados para o Brasil pela Inquisigo. Nos séculos XVI e XVII, 0 Brasil era a “Terra Prometida” para as pessoas banidas de Portugal. Mas a maioria desses degredados para o Brasil era composta de cristos-novos, acu- sados de criptojudatsmo.$ Estudos demogrificos, relativos aos cristos-novos no Novo Mundo, ainda estdo na infancia. Na Universidade de Sao Paulo, desenvolvemos um projeto de pesquisa intensiva, lidando com a vida religiosa, econdmica e so- cial dos cristéos-novos no Brasil. Para tanto, dividimos o pais geograficamen- te © cada regio esta sendo investigada. No presente estagio de nossa pes- quisa, podemos dizer que, durante 0 século XVIII, na Bahia, no Rio de J: neiro ¢ em Minas Gerais, entre 25 e 30%, aproximadamente, do total da po- pulagao branca, eram marranos.’ Durante esse mesmo perfodo, em Jodo Pes- soa, no Estado da Parafba, aproximadamente a metade da populagao branca era de origem judaica."” Essas estimativas, contudo, no incluem a maioria * Dividi os eristdos-novos portugueses em trés categorias: 1) 08 marranos que seguiram deter. minados prineipios judaicos, sabiam algumas oragbes ¢ acreditavam na redengao c na vinda do Messias; 2) 0s marranos “alinhados” (agnésticos, eéticos), que sc opunham a qualquer dogma cristio e ndo acreditavam em nenhuma religifo; nao eram criptojudeus, mas se identificavarn com os judeus; ¢ 3) os que, por conviceao ou interesse, assimilaram sinceramente a fé crist3 ¢ desapareceram, como judeus, da sociedade portuguesa. *Ver G. Pieroni, Les Exclus du Royaume. L'Inguisition Portugaiseet le Ranissement au Brésil(1580- 1720), Thése de Doctorat, Département d'Histoire Moderne, Université de Paris, Sorbonne,1996; “O Ar de Portugal faz Judeus? A Inquisigao © os Degradados para o Brasil Colonial”, Locus. Revista de Histéria, Juiz. de Fora, 1997, 1.3/2, pp. 7-22. *Ver A. Novinsky, 1992a, e L. G. F. Silva, 1994; informagaes sobre Minas Gerais aparecerao, brevemente, em A. Novinsky, Marranos and the Inquisition in the Golden Age of Brasil. "A presenga histériea de marranos na Paraiba, baseada em manuscritos nae publicados, est sendo agora estudada. Ver também M. L. Machado, Histéria da Provincia da Paraiba, 2ed., Jodo Pessoa, Universidade Federal da Paraiba, 1977. 70 Os crist@os-novos no Brasil colonial: reflexbes sobre a questizo do marranismo dos crist@os-novos no Brasil, os que nunea foram presos nem perseguidos ¢ que se integraram completamente aos cristdos-novos. No século XVIII, de acordo com 0 economista Celso Furtado, 200 a 500 mil portugueses podem ter deixado Portugal em diregao as minas,"' grande parte dos quais, segundo minhas pesquisas, era composta de marranos, E, durante a ocupacao holan- desa do leste do Brasil, havia mais judeus em Recife do que em Amsterda.? Gostaria também de chamar a atengo para o fato de que, em termos histéri- cos, freqtientemente achamos que os sefarditas € os converses dispersos fos- sem sempre referidos como espanhéis. Apés a segunda metade do século XVI, 0 fendmeno dos conversos espanhéis se tornou portugués, e, desse periodo em diante, a maioria dos conversos punidos na Espanha eram portugueses ou de origem portuguesa. Os judeus convertidos, quando em Amsterda, nun- ca se chamavam judeus de nagdo espanhola, mas sempre judeus de napao por- tuguesa. No Brasil, o marranismo foi um fenémeno heterogéneo € em cada re- gido o comportamento marrano era especifico, No Rio de Janeiro, por exem- plo, 2 populagao de origem judaica estava bastante miseurada com a socieda- de crista. Eram os cristaos-novos do Rio mais sofisticados e educados que no resto do Brasil e tinham alcangado um padrao mais elevado de vida. O desejo de apagar sua origem judaica era muito mais forte entre os judeus do Rio de Janeiro que entre os crist4os-novos do norte do Brasil. Mas as perseguiges inquisitoriais do século XVIII trouxeram muitos de volta ao judaismo ¢ os novos imigrantes de Portugal, ap6s a descoberta das minas, também trouxe- ram um novo florescimento do judaismo no Brasil. Ja na isolada regio rural da Parafba, os trabalhadores cristos-novos das grandes plantations viviam modestamente, embora permanecessem mais ligados as tradigdes judaicas. A partir do século XVI, 0 criptojudaismo foi wansmitido, na Paraiba, de uma geragdo para outra, Socialmente falando, pertenciam aum estrato muito mais baixo do que o dos judeus do Rio de Janeiro. Na cidade de Salvador da Bahia, no século XVIII, os cristaos-novos eram principalmente comerciantes, mui- tos dos quais tinham chegado recentemente de Portugal, para vender mer- " Histbria Eeondmica do Brasil, 1959, México, D.R, Fundo de Culeura Econémica, p. 93. 1 Essa opinio é baseada em atuais estudos demograficos. Vertambém Amold Wiznitzer, Jews in Colonial Brasil, Sio Paulo, Pioncira, 1966. © Ver Yara N. Monteiro, A Presenga Portuguesa no Peru em Fins do Steutlo XVI e Principios do XVII, Tese de Mestrado, Universidade de Sio Paulo, Departamento de Histéria, 1979. a Dossié cadorias e escravos aos comerciantes das minas."! No sul, a vida primitiva de So Paulo oferecia uma histéria completamente diferente da do resto do Brasil, como discutirei num artigo prestes a ser publicado. Durante a [dade do Ouro, Minas Gerais se tornou 0 novo centro do marranismo atraiu massas de cristdos-noves de Portugal e de outras regides do Brasil. Minas Gerais, a exemplo de outros centros do Brasil colonial, abran- gia uma sociedade plurimarrana, que incluia uma grande diversidade de com- portamentos, ainda que o laco entre seus membros nem sempre fosse basea- do em priticas religiosas. Muitos marranos brasileiros faziam parte de uma rede internacional, com base em lagos e confiangas familiares. Tinham mais oportunidades de ascenso social e, como dissemos, quanto mais bem-suce- didos economicamente, tanto mais se integravam a velha cultura cristé ¢ por ela eram absorvidos. Ouro Preto, a mais rica cidade do Império portugués du- rante a primeira metade do século XVIII, era o centro de uma sociedade marrana clandestina, que reunia cerca de 300 membros, Cinqienta e seis deles foram presos, acusados do crime de praticar 0 judaismo, ¢ levados para Portugal, onde foram julgados pelo Tribunal do Santo Oficio. Um deles, dr. Diogo Correa do Vale, diplomado pela Universidade de Coimbra, foi quei- mado na fogueira, no mesmo dia em que seu filho, Luis Miguel Correa, tam- bém aluno de Coimbra. Ambos foram injustamente acusados de praticarem a heresia judaica, pois, ao analisar seus processos, ndo encontrei nenhuma evidéncia de judaismo religioso durante os muitos anos em que viveram no Brasil. Luis, na verdade, desejou desesperadamente tornar-se padre, mas foi desencorajado pelo bispo, por causa de seu “status de sangue” de cristio- novo. Seu caso é um virtual exemplo do racismo portugues.” Vinte © um marranas do Brasil foram queimados na fogueira, em Por- tugal, a maioria dos quais entre os anos de 1731 ¢ 1748, ¢ 9 deles (43%) eram de Minas Gerais.” Entre 0s prisioneiros luso-brasileiros da Inquisicao, somen- Ver Suzana M. S. Santos, Marranas ¢ Inguisigao na Bahia. Sécwlo XVI, Tese de Mestrado, S20 Paulo, Universidade de Sao Paulo, Departamento de Histéria, 1997. Os processos do julgamento de Diogo Correa do Vale (Inguisig30 de Lisboa, nt 821, manuscri- to.) ¢ de seu filho, Luis Miguel Correa (Inguisigio de Lisboa, n* 9.429, manuscrito) podem set encontrados no Arquivo Nacional da Torre do’‘Tombo — ANT: Ver Inguisigdo de Lisboa, 1 9.249, manuscrito, no ANT: 2 Os marranos de Minas Gerais, queimados na fogueira, em Portugal, cram: Felix Nunes de Miranda (comerciante), Miguel de Mendonca Valladolid (comesciante), Diogo Correa do Vale (médico pela Universidade de Coimbra), Luis Miguel Correa, filho de Diogo (aluno de Me- dicina em Coimbra, queimado no mesmo dia que seu pai), Domingos Nunes (comerciante), Manuel da Costa Ribeiro (comerciante), Joao Henriques (farmacéutico), Martinho da Cunha de Oliveira (comerciante ¢ artista de teatro) ¢ Pedro Henriquim (cabalista e messianista, acu- sado de judaismo ¢ queimado na fogucira). Seus processos continuam sem publicagio. 2 Os cristzos-novos no Brasil colonial: reflexdes sobre a questo do marranismo te 08 cristdios-novos acusados de judaismo foram condenados & morte. Diogo Nunes Henriques, um dos principais membros desta comunidade seereta, foi preso em Ouro Preto, no ano de 1728. Foi acusado de ter dito que “cada homem pode crer, viver e morrer de acordo com a lei que preferir”. Diogo viveu mais de trinta anos em Minas Gerais e um de seus crimes foi o de ad- vogara liberdade de pensamento." Importantes comerciantes ¢ profissionais liberais se reuniam na casa de Diogo, que também era acusado de ler livros proibidos, de ensinar seus escravos a desobedecerem aos dogmas cristdos, © que, quando importunado, dizia sempre “O Deus!”, mas nunca “O Jesus!”."” Os inventarios de propriedades confiscadas aos marranos luso-brasilei- ros, presos no século XVIII, mencionam excelentes bibliotecas, algumas das quais com 70 ou, mesmo, 200 livros, o que, para o periodo colonial, era um niimero extremamente elevado.” A InquisicZo portuguesa controlava om terial de leitura da populagdo do Brasil, mais severamente que a espanhola, na América. Os agentes inquisitoriais, chamados de Visitadores das Naus, ram colocados em cada porto brasileiro, onde cuidadosamente examinavam mer- cadorias e qualquer pequeno pedago de papel que chegassem do exterior. A Inquisicao estava extremamente preocupada com a enorme populagao de origem judaica no Brasil, sempre suspeitando de heresia e subyersao e lutan- do vigorosamente contra a independéncia intelectual dos marranos. Para combater qualquer forma de modernidade, a Igreja Catélica empenhava-se em neutralizar o conhecimento cientifico. A crescente importancia das Cién- cias Naturais foi vista como ameaga a fé catélica, de modo que Portugal proi- biu todo ensino ¢ impressio universitéria, no Brasil, até o século XIX. Nas possessdes espanholas, a repressao foi geralmente mais fraca, ¢ universida- des muito cedo foram criadas no México e no Peru. Até livros ld chegavam mais freqiientemente que no Brasil. Mas 0s marranos permaneceram sempre suspeitos, porque seu pensa- mento refletia uma visio racional do mundo, ¢ a Igreja portuguesa carecia de qualquer respeito para com a razdo humana. Mobilizava intensas campanhas de propaganda para humilhar e desmoralizar as expressées racionalistas dos "Ver Inguisizdo de Lisboa, w 7.487, manuserite, no ANTT: ” Ibid. 2 Ver A. Novinsky, Imventérios de Bens Confiscados a Cristdos-Novos do Brasit (Século XVII), Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda (Col. Fontes para a Historia de Portugal ¢ do Bra- sil), 1978. Ver também os processos de Anténio Ferreira Dourado (Inguisipio de Lishoa, Proces 0 n® 6.268, manuscrite) Tomas Pinto Ferreira (laguisidio de Lishoa, Processo 08 8.659, manus- rita), no ANTT. 3 Dossié marranos. A perseguicdo aos cientistas cristéos-novos e a seus descendentes, como o botanico Garcia Orta ou o astr6nomo Pedro Nunes, sao bons exem- plos para ilustrar a posigao da Igreja em relagao ao conhecimento cientifico. Para a Igreja Catélica, a felicidade temporal nao era essencial, diante das fantasticas perspectivas oferecidas pela vida futura, e isso era o oposto do pensamento marrano. Cartazes eram afixados nas paredes externas das igre- Jas, para instruir a populacao sobre como identificar um judeu e, num deles, se lia: “Nada mais existe do que nascer e morrer”. Na doutrina catélica, 0 conceito de “pessoa”, como mencionou Leszek Kolakovsky, era contrario a quaisquer idéias materialistas e seculares daquilo que fosse humano,"' ao passo que, na filosofia de Spinoza, encontramos a idéia marrana de razio humana como critério de conhecimento, bem como sua absoluta confian¢a no homem. A posicao incondicional de Spinoza contra todas as formas de dogmatismo e de submiss&o a autoridade era um desafio para dar ao homem sua dignidade, como ser humano, e, nesse sentido, expressava a mentalidade de muitos marranos.* Benzion Netanyahu, num livro recente, explica a perseguigao dos marranos na Espanha como uma politica racista, Em Portugal, a propaganda antijudaica seguiu 0 modelo espanhol, mas a religiao judaica e suas praticas naio eram as principais razSes para 0 exterminio dos judeus pela Inquisisao. O perigo era “o judeu”. Era uma operagao do fenémeno anti-semita, no sen- tido mais completo. A experiéncia brasileira confirma minha tese de que a Inquisigao desejava ver o marrano como um judeu. Os marranos constituiam uma minoria indefesa, e Damiao de Géis, humanista portugués e cronista do rei d. Manuel, ja expressara, no século XVI, sua opiniao de que os judeus sofriam grandes inforttinios porque nao tinham uma terra propria. A publicacao de processos inquisitoriais isolados — carecendo de ané- lise: comparativas — para provar que os cristéos-novos conversos ou marranos exam judeus criptorreligioses, que desejavam morrer como mértires santos pela sua f& (Aiddushim Hashem), nfo pode ser levada a sério. Os cris tos-novos desejavam viver e fizeram todas as concessées para isso, De acor- do com 0 Padre Anténio Vieira, um dos maiores defensores dos judeus no 21 Ver B, Piwowarczyk, Lire Kolakowsky, Patis, Cest, 1986. ® Ibid, ¢ E. Morin, op.city pp. iiv. ® The Origins of the Spanish Inquisition in Pifteen-Century Spain, New York, Random House, 1995. % “Crénica do Felicissimo Rei D. Manuel”, Anténio Alvaro Doria, Damido de Géis, Lisboa, Livraria Clissiea, 1944, pp. 51-102 4 Os cristdos-novos no Brasil colonial: reflexbes sobre a questiio do marranismo século XVII e que conhecia a Inquisigao por dentro — ja que ele proprio fora seu prisioneiro — escreveu ao Papa Inocéncio XI para dizer que a Igreja de Portugal matava cristéos-novos inocentes.”* A Igreja portuguesa n&o queria que os marranos vivessem, fossem ou nao cripfojudeus. A principal razao para essa perseguicao ¢ exterminacio dos marranos nada tem @ ver com o criptojudaismo, nem com teligiio judaica, mas com 0 marrano como “judeu”. O exterminio inquisitorial de portugueses de origem judaica, até a décima geracdo, nao foi por raz6es religiosas, mas anti-semitas: 0s marranos eram uma classe rica e 0 Unico grupo na sociedade portuguesa capaz de reverter 0 status quo. Devemos, assim, rever as fontes cuidadosa ¢ criticamente e revisar a historiografia tradicional & luz dos estudos recentes. Devotos judeus religio- sos viviam entre os marranos, mas eram pequena minoria. A maioria dos cris- tos-novos, que viviam nos serrées brasileiros, ndo teve nenhum contato com 0 mundo judeu. O principal drama psicolégico des cristios-novos no Brasil envolve o fato de que fugiram do império portugués ou espanhol, onde eram perseguidos, e de que nfo se reconverteram ao judaismo. Permaneceram marranos, que viviam continuamente “entre” dois mundos ¢ separados de ambos, seja o ctistdo, seja o judeu. Criaram um mundo préprio ¢ viveram nele todas as suas contradigoes. Para concluir este breve ensaio, relativo A questo marrana, “ser marrano”, em Portugal, assim como no Brasil, do século XVI ao XVIII, nao foi apenas ser um seguidor do judaismo ou dos costumes tradicionais. Havia um conceito muito mais amplo de marranismo, que deve ser incorporado a0 conceito do “que € um judeu”. Muitos marranos perderam suas vidas, nao porque secretamente continuassem em sua fé religiosa judaica, ou porque expressassem uma fé sincrética, mas porque eram judeus, exatamente como milhdes de judeus perderam suas vidas no século XX, nao por razées religio- sas, mas, simplesmente, porque eram judeus. Nao podemes falsificar a his- t6ria. As contradigdes ¢ 0s paradoxos da historia do marraxo pertencem a velha tradigao anti-semita do mundo ocidental ¢ sao parte da condigao original especifica de ser judeu. ® A “Carta do Padre Antonio Vieira sobre a causa do Santo Oficio, escrita ao Santissimo Padre Innocencio XI” (Manuscrito 49/1/23, p. 6, 8 volume) pode ser cncontrada na Biblioteca da Ajuda (Lisboa). Nessa carta, o jesuita Vieira explica ao Papa que, em seu pats, a Igreja est ‘matando portugueses inocentes, somente por causa de sua origem judaica. Ver também A. Novinsky, “Padre Ant6nio Vieira, a Inquisigio c os Judeus”, Novas Estudos Cebrap, Sio Paulo, 1991, pp. 171-81. 75

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