Michalsky Os Clássicos Estão Na Moda

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Humanidades Abril/Junho 1983 Volume! Naimero 3 SUMARIO ' Dansas 17 © Futuro do Homem — Max Sebeler 28 Os “'Clissicas"” ¢ a Exemplaridade HistSrica —~ Nelson Saldanha 37 Os Clissicos esto na Moda — Yan Michalski 43 0 Totalitatismo: Esboco de uma Caracterizacio — Rogue Spencer ‘Maciel de Barros 53 Sobre @ Mecanismo da Fotmagio de Agtcar no Figado — Claude Bernard 58 A Fspantosa Eficacia da Matematica nas Ciéncias Natutais — Eugene P. Wigner 68 A Energia do Universo — Freeman J. Dyson 80 0 Sentido das Teorias Polticas — Raymond Aron 87 A Vocagio Pedagégica da Filosofia — Rduardo Soveral 101A Fangio das Univessidades — Ano Teixeira 109 0 Dilogo dos Mélios — Tucidider | 116 Concessio do'Titulo de Doutor Honoris causa a0 Rei Juan Catlos | — Vamireh Chacon 123, Camdes 3 Dom Quixote: Um Apélogo da Alma Ocidental — San Tiago 126 Alexandre ¢ Dario (Cartas) 129 Universidade Aberta — Cursos a Distincia aL 136 | | io de Estado do Vaticano a revista Humanidades | IMD © sec ermonoanes con att wns de ete eat Ae EAN AADS Some et Nei baa Sk ESTRO 08 Oordes In Estudos Darkuausens FACULDADE DELETRAS N.Cham. 300.05 veas — Titulo: Humanidades , Brasilia . een 15786 fo 224074 wenn, 1983, Os ClAssicos estao na Moda Yan Michalski O critico tearral Yan Michalski nos fax aqui uma pergunta intrigante: por que os classicos? A resposta pode ser 0 proprio texto, porque sao classicos e neles encontramos sempre respostas para ar ‘mais diferentes situagoes. O teatro salva, 0 teatro induz, 0 auior do artigo brinca em descobrir as razées por que os classicos sao tao encenados e descobre que além de todos os motivos que possame estar por tris das cortinas, um $6 & fnico ¢ verdadeiro: sao classicos. Uma tradiggo solidamente sedi- mentada através dos tempos demons- tra que, em épocas de grave conturba- ‘ou repressio politica, © acervo universal da dramaturgia classica ten- de a ganhar um vigo renovado e atrair © interesse dos produtores ¢ especta: dores que em tempos mais serenos costumam dar prioridade a textos contemporineos. HA varias explica- es para o fato; entre elas uma, bas- tante Gbyia: quando a censure aperta © tados sabem que ela costuma apertar em momentos de ctise € ten- sdo —, os classicos constituem-se num excelente recutso para driblar os seus rigores e para proclamar verdades de ardente ¢ etetna atualidade sob 0 manto protetor dos autores antigos sempre mais protegidos das tesouras censorias do que 0s por natureza sus- peitos, quando nao subversivos, dra nyatutgos consemporineos Mas ndo se trata apenas de um es teatagema destinado a contornat pro blemas com as autoridades. O fato € que os clissicos so classicos, entre outras coisas, justamente porque me- xem com temas, personagens ¢ situa- Bes que concém um inesgoravel ma- nancial de ligdes para os momentos de crise. Por tras das grandes tragé- dias, de Fsquilo a Shakespeare ou Ra- cine, existe quase sempre um con- fronto a seu modo politico, evidente quando a obra aborda as relagdees en- tre governantes € governados, mas também presente quando o conflito coloca o ser humano frente a frente com os deuses, ou a fatalidade, ou 0 destino: de uma maneira ou de ou- tra, quase nunca deixa de tratar-se de uta pelo Poder, dos abusos do Poder € de optessio que uns exercem sobre os outtos. E para ter uma chance de participar desses confrontos com um minimo de possibilidades, os prota- gonistas cléssicos precisam dispor de qualidades pessoais de coragem, de- terminagio, astticia ¢ sensibilidade politica muito semelhantes aquelas que a realidade contemporinea exige dos simples mortais que, nos tempos de hoje, vivem em paises e sociedades OES SLL TEES | aferados por situacées de crise. Mes- imo se sabemos que nao ha preceden: te de uma revolucio diretamente mo- tivada por uma peca de teatto, € ine- Ravel que 2 encenacio de alguns tex tos hoje considerados classicos chegou 2 contribuir coneretamente, em de- tetminados casos, para a ctiagdo de cotrentes de opiniao pablica que ra- pidamente desembocariam em movi- mentos de libertagao politica. O caso tradicionalmente mais citado € 0 de O Casamento de Figaro, que Beau: marchais escreveu cinco anos antes da Revolucio Francesa. Mas ctonologica- mente bem mais perto de nds cemos também o exemplo da montagem, «em 1968, em Crac6via, de uma obra prima do romantismo polonés, Or Antepassados, de Mickiewicz, © da sua cortelagio com os violentos movi mentos estudantis ¢ operitios que sa cuditam a Polénia naquele mesmo ano. No Brasil, tal tendéncia a lancar mio dos autores antigos nos periados de crise fica pareialmente esvaziada Humanidades 37 pela fragilidade do nosso acervo dea- mavirgico do passado. Sem querer negara Martins Pena, Arthut Azeve- doc outros congéneres os, méritos que Jhes cabem, entre os quais a ca- pacidade de reteatar os costumes de seu tempo com espirito de observa gio, bom-humor ¢ instinto de teatra- lidade, o fato € que nenhum deles tem estofo para servit de exemplo ¢ ampato 0s momentos de graves ten- ses nacionais; talvez jé pelo simples fato de que nossa tradiglo dramattir- gica sitwa-se predominantemente no ‘campo da comédia, € por conseguinte so comporta protagonistas de esta- cura suficiente para que possamos mirar-nos, quando estamos em crise, ‘em seu espelho, ¢ ganhar animo a partir do seu exemplo. Neste sentido, 0s verdadeitos classicos do teatto bra~ sileiro, aqueles que souberam criat fi guras ¢ situagdes arquetipicas nas Guais todo mundo & capaz de se reco- nhecer, talvez sejam — contraria~ mente’ ao que acontece em outtos paises — alguns dos nossos principais dramaturgos modernos: Nélson Ro- drigues, Aviano Suassuna, Dias Go- mes, Jorge Andrade, Oduvaldo Vian- na Filho, Gianfrancesco Guarnieri. Os grandes clissicos universais, bem entendido, esto 2 disposicio dos nossos produtores teatrais, pron- tos a cumprir o mesmo papel de cata- lisadores do inconsciente coletivo que Ihes cabe em qualquer lugar do mun- do, Alguns deles tém sido bastante utilizados neste sentido. Antfgona, de Séfocles, por exemplo, deve ser um dos textos mais montados por alunos das nossas escolas de teatro € por grupos amadores, além das relat- vamente freqiientes montagens pro- fissionais do. mesmo texto, De um modo geral, porém, 0 piblico brasi Ieivo tem menos oportunidades de ver em cena os grandes cléssicos do que o piblico de outros paises. Isto se explica, por um lado, pelas dificulda- des ccondmicas: as produgdes dos clissicos costumam ser caras, sobretu- do em fungio do grande ntimero de personagens que geralmente colocam em cena. No exterior, na maiotia das vezes, sua montagem cabe a compa- 38 Humanidades nhias totalmente ou pelo menos substancialmente subvencionadas, fendmeno inexistente entre n6s. Por outto lado, nossos artistas so muito ‘menos preparados para este tipo de trabalho interpretative do que, por cexemplo, os seus colegas britinicos, alemaes ou franceses: autodidatas na sua maioria, eles no passaram, com ratas excecies, por uma aprendiza- ‘gem especifica, quer de cardter cultu- ral ou técnico, sem a qual a nocio de estilo fundamental a encenagio dos classicos dificilmente chega a tomar corpo no paleo. B, finalmente, a fra- gilidade da nossa tradicio teatral faz ‘com que 0 pGblico nao inclua geral- mente as obras classicas no seu reper: totio predileto, pouco acoscumado que esti a0 exercicio mental nevessi- tio para transpor a distancia no tem- po € No espaco que nos separa, pot exemplo, de uma tragédia grega ou de um drama do Século de Ouro es- panhol, ¢ para extrait dos aconteci- mentos dessa obra associagoes de idéias ¢ emocoes que fepercutam no seu pr6prio cotidiano. Ser por iso que no recente perio: do de regime autoritario, quando 0 teazto brasileiro esteve submetido a uma pressio da censura sem prece- dentes em toda a sua Historia, poucas vezes os homens de teatro chegaram a langar mao dos clissicos para dizer aquilo que nao Ihes era permitido fa- lar explicitamente por intermédio dos autores nacionais ¢ contemporaneos? Nosso teatro atravessou durante essa década ¢ meia, apesar de todas as di ficuldades, fases de cara fertlidade, durante as quais foram produzidos varios esperdculos inesqueciveis ¢ re- volucionatios. Salvo etro, nenhum deles teve origem num texto que, a0 menos pelos critérios convencionais, possa ser rotulado de cléssico. As re- novadoras experiéncias de linguagem cénica empreendidas pelos grandes ‘encenadores europeus da época, co- mo Grotowski ou Peter Brook, utili- zaram na maiotia das suas versbes ori- ginais obras classicas dos seus respec- tivos paises como matéria-prima lite- raria, Ja os espetculos brasileiros rea- lizados na esteita dessas mesmas ou de outras semelhantes tendéncias &- nicas preferiram, com poucas exce ses, lancar mae de autores moder- nos: Brecht (Na Selva das Cidades, Gi ile Galilet), Oswald de Andrade (O Rei da Vela), Genet (O Baleao), Atra- bal (Cemitério de Automéveis, O Ar quiteto eo lmperador da Assiria), Alti- mar Pimentel (A Construgdo), Chico Buarque (Rods viva), José Vicente (O Assalto, Hoje é Dia de Rock), paracivat apenas alguns cxemplos patticular- mente significativos. Paradoxalmente, a partir do mo- mento em que a abercura politica co- ‘megou a aliviar as pressdes da censura {que pesavam sobre 0 nosso teatro, os paleos passaram a ser invadidos por textos cldssicos, com uma intensidade talvez jamais vista no passado. So- mente nas duas Gltimas temporadas catiocas 0 piiblico teve oportunidade de assistit a Sonbo de Uma Noite de Verio, Hamlet; A Tempestade ¢ A Megera Domada, de Shakespeare; Volpone, de Ben Jonson; Leonce ¢ Lena, de Buchner; Peer Gynt e Hedda Gabler, de Tosen; Noites Brancas, de Dostoievsky; A Vide & Sonho, de Calderin; Lisistrasa, de Aristéfanes, entre outtos. E verdade que na sua maioria estas montagens forum obra de jovens grupos nao-empresariais e, pagando natural cributo 4 inexpe- riencia das respectivas equipes, nao chegaram a firmar-se junto 40 pabli- co, nem tepercutit significativamente no plano artistico. Mas a Hedda Ga- bler produrida ¢ protagonizada por Dina Sfat revelou as possibilidades da montagem dos clissicos cambém no plano empresatial; enquanto A Tern- pestade nao $6 constituiu-se num dos ‘mais premiados sucessos de 1982 co- ‘mo também consagrou um novo ¢ original espago teatral ao ar livre, 00 patio interno da Escola de Artes Vi- suais do Parque Lage, Rio, ¢ atraiu a esse espago multiddes de espectado. res muito jovens, quase adolescences — clientela bastante inesperada para uma obra de extrema densidade filo- séfica e sofisticada poesia verbal, co- mo € 0 caso deste canto-de-cisne sha- el 2 espeatiano, E mesmo as outras mon tagens, embora de repercussio limi- tada, contribuiram para definir uma tendéncia: os classicos esto na moda. ‘A que attibuir este fato de que os clissicos, pouco presentes na fase mais critica e repressiva, tenham rea- parccido com peculiar forca justa- mente num momento de distensio, configurando uma quebra da norma ‘enunciada no inicio deste artigo? As cexplicagées sto méltiplas, mas a ob- setvagio do conjunto desses espetécu- Jos ¢ conversas com alguns dos grupos que os realizaram permitem chegar a uma curiosa conclusio: 0 que, neste momento, atrai os artistas nos textos clissicos € precisamente o seu lado nio-politico, os valores eternos que eles abordam, a esséncia do ser hu- mano € do seu estar no mundo, En- quanto a situagio do pais, € notada- mente o conflito entre 0 esquema au- toritirio ¢ a criacao artistic, estavan a exigit do teatro uma resposta pre- dominantemente ideolégica, as tta- mas politicas das pecas classicas pare- ciam aos artistas brasileiros insufi- cientemente diretas, ¢ eles sentiam: que a dramaturgia contemporinea estava mais bem aparclhada para vei- cular mensagens adequadas 20 mo- mento, mesmo enfrentando 0 tisco de proibigées ou cortes, ou mesmo re- correndo a cédigos metafricos para tentar transmitir 0 seu recado. Ja na hhora em que o teatro pode dat-se a0 luxo de diversificar mais a sua esfera de preocupagies, 0 texto clissico ofe- rece um potencial ilimitado de. temas € sugesties. Num artigo publicado ha alguns meses no Jornal do Brasil sobre a recente onda de montagens classicas, dois jovens artistas davam depoimentos significativos a respeito. E assim que Jitman Vibranovski, in térprete de Volpone, constatava: = Uma pega tecentemente escrita ja traz dentro de si uma visio de montagem, enquanto um classico, que fala de vemas grandiosos e atem- porais, permite varias leituras, ade- quadas a cada momento ¢ pals. E Paulo Reis, diretor de A Tempes- Jade, propunha uma explicacio lici- da para o fendmeno: — Durante 0s anos de repressio, 25 pessoas viviam muito no preto ou branco; todo mundo eta contra ou a fayor, todos procuravam textos que fosscm contra. Quando a sociedade acaba de se abrir, aparecem outras co- res, as pessoas se disp5em a descobrit coutras coisas além da contestagio, aparecem pesas que antes seriam cha- madas de alienadas, mas que slo pe- gas de que a sociedade precisa. Em 1979 jamais pensariamos em fazer A Tempestade, 0 méximo que nos pet- mitimos entao foi O Despertar da Primavera, que € uma peca que se presta a uma leitura contestatoria. E assim mesmo fomos criticados. Hoje as pessoas podem pensar em outras coisas, podem investigar o amor, sem ligar isso a sistemas politicos. Dentro da revitalizacio do repert6- tio classico que se verificou nas Glti- mas temporadas, destaca-se um pat- ticular — © na verdade nada sur- preendente — interesse dos. nossos ctiadores teattais pela obra de Shakes- peate, Além das quatto jé citadas montagens shakesperianas recente- mente realizadas no Rio, cabe men- cionar, quanto mais no seja a ticulo de cutiosidade, alguns trabalhos nos quais Shakespeare serviu de inspira fo para experiéncias de dramaturgia contemporinea, Em Sto Paulo acaba de fazer sucesso mais um Hannlet te- visto pelo prisma do nosso tempo, através da adaptagao de um autor ita- liano, Testori. E os aproveitamentos aleangam também o campo dos meios de comunicacao outros que o teatro: a Rede Globo mostrou primeiro um Romex e Julieta ambientado em Ou- ro Preto e, mais recentemente, um Otelo, aliés Otelo de Oliveira, cuja agio girava em torno de uma modes- ta escola de samba carioca. Por outro lado, no momento em que este artigo esta sendo escrito, vém sendo inicia- dos os preparatives para um particu- larmente ambiciaso projeto shakes- peatiano que, segundo tudo indica, devera marcat profundamente 0 ano teatral catioca de 1983: 0 Rei Lear do Teatro dos Quatto. Eis aqui um espe- téculo que poderd elevat a atual voga dos classicos, ¢ particularmente de Shakespeare, a aleuras ainda no atingidas. Trunfos para isto nfo Ihe faltam: um dos textos mais fascinan- tes do bardo de Stratford, salvo erro, nunca encenado por uma companhia brasileira; traduc20_ especialmente feita pelo melhor tradutor que o nos- so teatro jd teve, Millor Fernandes, ¢ que ja ostenta na sua folha de servicos um outto extraordinatio trabalho shakesperiano, A Megera Domada, uma companhia que tem mantido desde a inauguragio do seu teatro, ‘em 1978, uma politica de repertério e um cuidado de execucio caracteriza- dos por um tigor raro nos tempos que correm; um dos nossos principais ato- tes, Sétgio Britto, propondo-se a co- ‘memorat 0 seu 60° aniversitio com ‘um papel que submeteri a uma in- comparivel prova de fogo 0s seus re- cursos interpretativos acumulados a0 longo de uma carteira exemplar; ¢ uum dirctor inguieto ¢ talentoso, Cel: s© Nunes, em grande evidéncia nos Ailtimos meses, gragas ao extraordin’- tio sucesso da sua encenagio de As Lagrimas Amargas de Petra von Kant. Rei Lear bem um exemplo de um exto no qual a permanéncia dos clis- sicos se manifesta de um modo des- Jumbrante. Permanéncia, no sentido da traducio da esséncia do tempo em que a obra foi escrita, ¢ ao mesmo tempo de uma flexivel adaptagao a uma reflexao profunda sobre proble- mas fundamentais de qualquer época fem que a mesma obra estiver sendo representada, Apesar das aparéncias (que no inicio do século passado leva- ram o grande critico inglés Charles Lamb a escrever: “Um ancito tope- gando pelo palco com um bastéo na ‘mio, posto porta afora pelas suas fi- has uma noite de chuva... O Lear de Shakespeare € irrepresenta- vel...""), eis aqui um texto que paica acima das épocas. ‘As raizes do enredo mergulham ‘em fabulas de um passado muito te- moto: seus ptimeitos vestigios sio en- conttados em crénicas do inicio do séc. XII, Shakespeare apoderou-se do Humanidades 39 40 Humanidades ag material cerca de cinco séculos mais tarde (a peca foi esctita, provavel- mente, cm 1605), € rolocou a aio: num ambiente atemporal, em todo ‘caso anterior 2 uadicio crista, Segun- do varios estudiosos, a abordagem do tema, com a nitida diviso entre os personagens que representam as for- fas do Bem e do Mal, revela vestigios ‘de uma concepsio teatral propria a ‘moralidade medieval, bastante ante- fior, portanto, a0 periodo elisabeta- ino.’ Mas a complexidade psicologica dos personagens, cada um dos quais € delineado como um ser humano cheio de contradigies, estabelece uma ponte entre o teatro do tempo de Shakespeare ¢ um tipo de teatro fundamentalmente intetessado nos mistérios da mente humana, que s6 se firmaria muitos séculos depois. Ao mesmo tempo, a5 devastadoras lucas pelo Poder e pela fortuna, de uma violencia poucas vezes igualada 00 resto da obra shakesperiana, tradu- zem uma preocupagio caracteristica da época em que Shakespeare viveu € ctiou. Passados quase quatro séculos do momento em que 2 obra foi escrica, ela se oferece a nossa leitura sob pri mas scguramente muito diferentes dos que prevaleciam na época de sua cfiagio, ou em qualquet época que dela nos separa (sendo sintomatico, alias, que durance quase 150 anos de sua hist6ria, entre aproximadamente 1680 ¢ 1830, o texto original, consi- derado barbaro demais para’ os pa- droes da época, virtualmente desapa- receu dos palcos do mundo ¢ foi substituido por uma versto eduleora- da de autoria de um obscurso Nahum Tate). Mas, qualquer que seja 0 as- pecto que se queira eleger para o principal gancho da contemporanei- dade da temédtica — ea peca aborda, entre muitos outros, assuntos de tao ardente atualidade’ como conflitos centre pais ¢ filhos, falta de respeito velhice, obsesséo do Poder ¢ lutas de- la decottentes, 0 enfraquecimento do Poder pela divisto, o homem ¢ natu- teza, a decadéncia do mundo resul- tante da decomposigio dos. valores morais — a reflexto dramitica de Shakespeare jogard uma s6lida ponte por cima dos séculos que nos separam da concepgio da obra; ¢ enriquecera 4 nossa proptia reflexio sobre a con digéo humana, sem que haja necessi- dade de disfargar, através de ingé- nnuas afualizazdes, as inegaveis dife rengas entre 0 modo de viver da hu- manidade que habita as paginas de Rei Lear € a nossa proptia maneira de estar no mundo, Diferengas de forma ‘mais do que de contetido, mas que assustam muitos dos que se aproxi- mam da peca com excesso de receio, € fazem dela uma das obras shakespe- rianas mais raramente representadas © que nao impede Rei Lear de in- flucnciar continuamente a dramatur gia contempordnea, conforme o espe- ista polonés Jan Kort demonstrou ‘no magistral ensaio que dedicou a pega no seu livto Shakespeare, Nosso Contemporineo, revelando 35. ¢x- traordinasias afinidades entre 0 gro- tesco tragico que marca o espirito des- ta tragédia shakespeariana € 0 grotes- co dos personagens ¢ das situagées que fazem a originalidade da obra de Samuel Beckett, notadamente numa peca como Fim de Jogo. Nao devemos, por outro lado, des- cartar uma outra explicacio, esta de carater mais citcunstancial, para a atual voga do teatro clissico: a fragili dade momentinea da atual ctiacio dramavixgica brasileira (e, numa cer- ta extensio, também mundial). Mui- to poucas pecas novas tém surgido nos palcos durante as tltimas tempo- tadas, A interessantissima geracio de autores que apareceu e se fitmou nas décadas de 60 ¢ 70 parece experimen tar sétias dificuldades em adaprar-se aos novos tempos que correm. E 0 ¢s- aco deixado vazio por essa geragio (Plinio Marcos, Anténio Bivat, José Vicente, Leilah Assungio, Consuelo de Castro, Fernando Mello, Mario Prata etc.) nigo vem sendo ocupado por novos dramaturgos nacionais, cu- Humanidades 41 a ja criaglo no consegue vencer os obs- tacalos que se opdem 3 sua chegada ‘aos palcos, Nem de longe se pode fa- lar, ainda, numa dramaturgia da abertura. (Os espacos vazios tém sido ocupa- to sim, pela yolta, com grande forea, de um tipo de repert6rio que chegou a dominar a cena brasileira um passado mais remoto, mas foi telegado a um segundo plano pela onda de tenovacio do nosso teatro nos anos 60/70: os grandes sucessos internacionais de bilheteria, previa- mente legitimados pela aprovagio das platéias de Nova York, Londres ¢ Paris. Nao sé 0s musicais como Evita € Chorus Line, mas também. dramas de certa sericdade, como Ensina-moe a Viver, Bent ou O Homem Elefante, sio bons exemplos dessa tendéncia. ‘Num momento de grave ctise econd- 42 Humanidades mica, o ptiblico torna-se naturalmen- te scletivo, ¢ tende a reservar suas despesas com teatro para espeticulos cujo impacto j& vem garantido por ‘uma divulgasao com a qual nenhuma produgio baseada em texto nacional pode compctis Insurgit-se contra essa invasdo seria ingénua manifestacio de sectarismo. ‘Mas no hé diivida de que, por mais ptestigiados que sejam pelo ptblico, esses espetdculos importados —~ n0 caso dos musicais 0 contrato de cessio dos direitos costuma estipular a obti- gacio de reproduzir toda a mise-en- Scéne, detalhe por detalhe, do mode- fo otiginal — pouco ou nada podem contribuir para a evolugio € a renova- fo do processo criativo do teatro bra- sileiro ‘Jéos classicos, mesmo estrangciros, podem contribuir para esse processo: como ja vimos, eles se prestam docil- ‘mente a leituras as mais variadas ¢ a ‘expetiéncias muito diversificadas € renovadoras da linguagem cénica. Assim sendo, a por enquanto ainda algo modesta, mas nem. por isso me- nos significativa, onda de interesse pela montagem dos textos classicos ‘nfo deixa de conscituir-se numa espé- cie de frente de resisténcia, Cabe tor- cet para que ela prospere, se alastre, € revele encenadores dotados de sopro ctiativo necessitio para, a partir dos textos classicos, devolverem a0 paleo brasileiro a capacidade de nos sur- preender, provocar, ¢ soltar os vos Ga nossa imaginagio. Esti mais do que provado que Séfocles, Shakes- peare, Moligre, Lope de Vega ¢ ou- tros colegas igualmente ou até menos votados constituem excelente maté- ria-prima para esta urgente tarefa

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