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A TEORIA MARXISTA DA TRANSICAO EA PRATICA SOCIALISTA VANIA BAMBIRRA a re * [ve CG i ¥ G sy oO 1) 2% Edunb Editora Universidade de Brasilia i al FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor: Jodo Cléudio Todorov Vice-Reitor: Sérgio Barroso de Assis Fonseca EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA Consetho Editorial Cristovam Buarque Elliot Watanabe Kitajima Emanvel Aragjo (Presidente) Everardo de Almeida Maciel José de Lima Acioli Odilon Pereira da Silva Orlando Ayrton de Toledo Roberto Boccacio Piscitelli Roque de Barros Laraia Venfcio Arthur de Lima A Editora Universidade de Brasflia, institufda pela Lei n° 3.998, de 15 de dezembro de 1961, tem como objetivo “editar obras cientfficas, técnicas e culturais, de nfvel universitério”’. A TEORIA MARXISTA DA, TRANSICAO E A PRATICA SOCIALISTA Vania Bambirra Tradugdo: Ivo Martinazzo Edtiab Editora Universidade de Brasilia © 1993 by Vania Bambirra Os direitos desta ediggo foram adquiridos pela Editora Universidade de Brasflia Editora Universidade de Brasflia Caixa Postal 04551 70919-900 Brasflia, DF Editoragéo: Thelma Rosane Pereira de Souza Revisdo: Joelita de Freitas Aratjo, Patricia Maria Silva de Assis e Zeniceia Silva de Assis Supervisdo grdfica: Antonio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro Capa: Ana Paula Diniz Composicg4o: Anesio B. Oliveira Arte- final: Valperino Andrade ISBN: 85-230-0330-4 Ficha catalogr4fica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Bambirra, Vania A teoria marxista da transigo e a pritica socialista / Vania Bambirra; tradugao por Ivo Martinazzo. — Brasflia: Ed. Universidade de Brasflia, 1993. 309 p. B199t Tradug&o de: La teoria marxista del socialismo en los clasicos K. Marx, F. Engels y W. I. Lenin. 1. Marxismoe 2. Socialismo real I, Martinazzo, Ivo II. Titulo CDU 330,85 I PARTE — AS BASES DA TEORIA DO SOCIALISMO 1. EM K. MARX E F. ENGELS . O NECESSARIO PERIODO DE TRANSICAO....... Caracterfstica essencial do socialismo Solugio socialista de alguns problemas e questées taticas.. 3. O CONCEITO DE DITADURA DO PROLETARIADO. . Primeira intuigdo. «2.1... ees Conceito submetido & pratica.... 2... ee eee eee Acerca da democracia ditatorial.................--. 4. SOCIEDADE COMUNISTA ...........-.000000eee Da exting&o do Estado. ............65 Leis de movimento da nova sociedade... . 5. A NOVA SOCIEDADE E A CULTURA............. As primeiras intuigdes sobre o comunismo. . a) Da educagio...........04. ee aeaeee b) Da familia, do sexo e da mulher... . c) Da defesa.........0......0.0. d) O reino da liberdade... 0.2... ...00.0 00200202 eee NOTAS DA I PARTE... 1.0... ee eee ees 13 Wf PARTE — A CONSOLIDACAO DA TEORIA DO SO- CIALISMO EM VLADIMIR ILITCH LENIN . ECONOMIA POLITICA DA TRANSICAO SOCIALISTA. Caracterfsticas, dificuldades, contradigdes: construgGes © destruigdes, retrocessos ¢ avangos, atrasos ¢ saltos... .... - 2. O ESTADO E AS CLASSES SOCIAIS NA TRANSICAO SOCIALISTA . 0... ccc ee cece eee teeters Necessidade de destruigfo do aparelho do Estado pré-re- volucion4rio; conservagio do seu aparelho técnico e da bu- Uma methor compreensiio da burocracia.........---+- O novo tipo de Estado: A ditadura do proletariado. . . . . - - O conceito de ditadura do proletariado: primeiro aprofun- damento analfticd .... 2.262. ee sence eee rece eens A democracia ditatorial: segundo aprofundamento . . --. - - 3. A BCONOMIA SOCIALISTA........-.2--22002 02208 O primeiro passo: reorganizagio da economia.....---- . a) O trabalho obrigatério, as estatizagSes ¢ o taylorismo. . b) O capitalismo de Estado na transigSo socialista....... c) Rumo a uma nova cultura econémica: a disciplina do trabalho, a utilizagio da imprensa ¢ a emulagio como A polftica econémica socialista no perfodo de restauragio. A resisténcia camponesa.... 2... ee ee ee ee eee ee A planificagdo socialista ...... 2... - 62 eee eee eee O controle e a diregdo operéria na economia socialista. . . . A economia socialista ¢ o internacionalismo, o nacionalis- mo, a coexisténcia pacifica ¢ as relagGes com os pafses co- loniais ¢ dependentes NOTAS DA IE PARTE...... 60-2 e nee e eee eer eeeee BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ..... 2.22222 2-0 eee ANEXO ~— Principais interpretagdes sobre a teoria do socialis- mo nos clfssicos: Marx, Engels e Lenin 1. OS BOLCHEVIQUES...... 2-0. e eee reer e ee eeeee A interpretagSo de E. Preobrazhenski e N. Bujarin em rela- 73 97 115 122 137 147 147 155 158 162 183 189 195 235 fo a contribuigao de Marx, Engels ¢ Lenin A teoria do so- 2. OS DIRIGENTES COMUNISTAS OCIDENTAIS: ROSA LUXEMBURGO, ANTONIO GRAMSCI E PALMIRO TOGLIATII. 0... 0 ce cece cece a) Rosa Luxemburgo ¢ o luxemburguismo b) Antonio Gramsci ¢ 0 gramscismo...........-....- c) Palmiro Togliatti: transigo socialista pela via democrati- 235 235 254 260 277 277 283 PREFACIO A contribuigéo de Karl Marx e Friedrich Engels para a toria do socialismo — cujas bases ambos estabeleceram — tem sido objeto de anélise de numerosos cientistas sociais, de dirigentes de partidos politicos marxistas, bem como de instituigées cientfficas. Seria exaustivo enumerar aqui uma ampla relagio de estudos empreendi- dos durante v4rias décadas e que trataram de sistematizar essa teoria, em varios casos de mancira mais ampla, como foi por exemplo o es- forgo de Lenin expresso em sua obra O estado e a revolugdo, ou 9 de Preobrazhenski, realizado no seu livro Por wna alternativa so- cialista, no qual o autor restringe 0 seu objeto de pesquisa A contri- buig&o econémica dos cléssicos. E preciso ressaltar, todavia, que nem Lenin nem Preobrazhenski tiveram acesso ao conjunto da obra de Marx ¢ Engels, tendo em vista que estudos tio fundamentais co- mo 08 Grundisse ¢ a Ideologia alema née haviam sido divulgados no seu tempo. Acompanhando o esforgo dos bolcheviques, v4rios dirigentes de processos revolucion4rios da transi¢&o socialista, como por exemplo Mao Tse Tung, Kin I Sung, Che Guevara e muitos outros, empre- enderam notdveis esforgos parciais de sistematizagio da mesma fonte cléssica, com objetivos praéticos. Diversos teéricos marxistas, como G. Lucaks, E. Mandel, C. Bettenheim, também intentaram interpretar esse marco teérico, bus- cando discernir a problemftica do socialismo contemporaneo. : A Academia de Ciéncias da URSS, entre outras instituigdes si- milares dos pafses socialistas, produziu uma série de obras com 0 - propésito de expor o pensamento marxista no que diz respeito ao so- cialismo, sendo que muitos deles circulam em maguais didfticos que refletem a preocupagéo de difusio em massa. S4o conhecidos também outros esforgos, como o que foi realiza- do pela Academia de Ciéncias da Tchecoslovaquia, indo muito além da mera divulgagio do pensamento classico. Tal € o caso da obra magistral dirigida por Radovan Richta, que parte des fontes clfssicas h 10 Vania Bambirra como base cientffica fundamental para vislumbrar as Perspectivas do desenvolvimento socialista em diregio ao comunismo, e assenta as bases da compreenso de um dos fenémenos mais not&veis da nossa €poca: a revolugio cientffico-técnica. Essa obra inaugura toda uma linha de interpretagdo que frutificaré numa literatura muito signifi- cativa sobre o tema, particularmente na prépria Uniao das Reptbli- cas Socialistas Soviéticas (URSS)*. No que diz respeito 4 contribuig&o leninista, ainda esté pendente uma discuss&o sistemética, rigorosa e exaustiva do seu aporte & teo- ria do socialismo. Tinha razio N. Bujarin quando dizia, na sua E€po- ca, que “o Lenin marxista ainda est& A espera do seu sistematiza- dor’’, Passadas tantas décadas dessa observagao, a tarefa ainda aguarda a sua hora. A pesquisa sobre o seu pensamento, A qual dedicamos um esfor- go concentrado durante mais de seis anos, leva-nos a confirmar a hi- P6tese de que € justamente a contribuigio de Lenin que fundamenta em definitivo a teoria da transig&o socialista. Esses subsidios estio dispersos num conjunto de ensaios, artigos, discursos, conferéncias € comunicacédes, tornando bastante complexo o trabalho do pesqui- sador, no sentido de articular o seu pensamento, interpret4-lo, extrair dele toda a sua coeréncia e riqueza analftica. Essa tarefa de exposi- go e sistematizagao de sua obra nem 0 préprio autor péde realiza- la, devido as suas responsabilidades Pr&ticas como dirigente estatal do primeiro processo de construgéo socialista. Todavia, a sua luci- dez teGrica s6 péde ser plenamente alcangada em virtude dessa mesma pratica: € ela que permite submeter os fundamentos tedricos, légicos e ao mesmo tempo intuitivos de Marx e Engels ao critério da verdade concreta. Ao empreender essa pesquisa, tio ambiciosa quanto necesséria, fizemo-lo com a intengio de oferecer de nossa Parte uma contribui- ¢%0 valida para a compreenso do fenémeno do socialismo contem- Porfneo, pois, ao sistematizar o pensamento marxista-leninista, est4- 8€ proporcionando um acréscimo relevante A ciéncia, vez que essa tarefa permitiraé seu avanco. Estamos persuadidos de que somente a partir das bases teéricas do marxismo-leninismo é possfvel visualizar em dimens%o ampla as caracterfsticas que vaio assumindo os proble- * Extinta em novembro de 1991. (N. do E.) j i 1 Teoria marxista da transicéo 11 mas, as dificuldades, os éxitos, as limitagGes ¢ os fracassos das ex- periéncias reais do socialismo, até a fase atual do seu desenvolvi- mento, bem como as perspectivas dos seus avangos futuros. Lenin € um marxista ortodoxo, embora nao no sentido da orto- doxia dos epigonos da II Internacional, como os Kautsky, os Berns- tein, os Vandervelde ¢ tantos outros, mas no sentido de que no seu pensamento encontra-se o mais estrito rigor teérico-metodolégio com respeito & obra de Marx e Engels. & exatamente por isso que a sua ampla capacidade criativa enriquece esse patriménio e, partindo estritamente dele, supera-o. Daf que nfo se pode compreender Lenin sem uma compreens&o cabal da contribuig&o dos seus mestres. Lenin resgata, na obra destes, as bases da teoria do socialismo langadas pelo materialismo histérico e por suas tentativas bem-sucedidas da aplicagZo do mesmo no campo especffico do estudo teérico dos pro- cessos de transic&o socialista. E nesse sentido que Lenin entende que as bases da teoria do socialismo — como uma teoria especffica — foram fundadas por Marx e Engels. Sem embargo, € dbvio que o objeto especffico da investigagao dos cl&ssicos nao foi primordial- mente o estudo da formag&o econémico-social socialista e sua evo- lugdo para o modo de produg&o commnista; eles concentraram muito mais © seu esforco no discernimento das leis de movimento do modo de produgdo capitalista, por duas razées interligadas: captar as suas caracterfsticas essenciais e poder, dessa mancira, vislumbrar o pro- cesso da sua superagdo, abrindo caminho para as revolugées sociais € para a Criagio de uma sociedade superior. Por esse motivo Preo- brazhenski tem toda razio ao considerar que O capital somente po- dia ter sido escrito a partir da perspectiva de um comunista. Insistimos, portanto, que seria um v&o esforco a tentativa de seccionar a contribuigéo de Lenin daquela de Marx e Engels, no que diz respeito a teoria do socialismo. Marx e Engels langam cimentos para a fundacfo dessa teoria, enquanto Lenin, retomando e enrique- cendo essa base a luz da pratica, confere-lhe sistema e consolidagao. O embasamento tedrico marxista e 0 processo revolucionério russo sao, portanto, elementos cruciais de uma andlise para a compreenséo plena da teoria marxista-lenimista da transicZo para o socialismo. Ora bem, apés a contribuigdo leninista, essa teoria seguiu avan- gando. Contudo, nossa hipétese € no sentido de que todo avango posterior efetivo nao péde, nem poderd no futuro — caso se trate de avango realmente valido, cientffico, que explique de fato as novas 12 Vania Bambirra manifestagdes ¢ produgGes do fendmeno do socialismo ~— prescindir do seu ponto de partida, isto é, do legado teérico-metodoldégico cl&s- sico. Dividimos por isso a exposicéo do presente estudo em trés par- tes principais: a primeira focaliza e interpreta o pensamento de Marx ¢ Engels; a segunda, que é a mais alentada, se concentra na evolu- ¢&o posterior do mesmo por obra de Lenin; trata-se aqui de pér em relevo como em Lenin se confirmam ou s¢ retificam varias intuigdes hipotéticas que Marx e Engels n&o tiveram condigdes de verificar em sua época, por nfo terem vivido um processo concreto de revolugio social vitoriosa, que na prdtica criaria um novo tipo de Estado; a ter- ceira, na realidade um anexo, tem como objeto uma revisiio das prtincipais interpretacdes da teoria do socialismo. Por prépria imposig&éo do tema, n&o foi possfvel evitar, em mui- tas ocasiGes, a utilizagéo de citagGes mais ou menos extensas dos autores consultados, tendo em vista que muitos aspectos, so ainda objeto de controvérsias apaixonadas. Preferimos por isso sacrificar a eleg&ncia expositiva 4 fundamentacio das Iinhas da nossa interpreta- ¢&o. De qualquer maneira, confiamos que 0 estilo vivo e apaixonado das citag6es dos classicos, ao invés de tornar tedioso o nosso texto, . ajude o leitor a percorrer conosco o caminho dessa ciéncia que mo- dificou a face da humanidade. NOTA A EDICAO BRASILEIRA Este livro foi escrito entre 1980 e 1981. A concepcao revisio- nista eurocomunista havia chegado ao auge e era notéria a sua in- fluéncia na América Latina. O marxismo e o leninismo, em particu- lar, passaram a ser abjurados, dessa vez por partidos ¢ intelectuais comunistas. : A minha preocupagio, portanio, naquela época, além da motiva- Gao estritamente académica, era, através da andlise sistematica dos autores, entregar elementos que ajudassem a superar essa visao equivocada. A conseqiiéncia prética de tal visio, que descambava para © oportunismo, logo ficou patente: todos os partidos comunistas europeus, que adotaram essa orientagdo, foram perdendo, paulatina- mente, sua base eleitoral. A receita requentada de Bernstein mostrou de novo sua ineficdcia. Com o advento da Perestroika/Glasnost a utilidade da divulga- ¢4o deste trabalho era ainda maior, pois, a meu modo de ver, a0 contrfrio da interpretagio predominante mundialmente, tanto na di- reita como na esquerda, a politica proposta inicialmente por Gorba- chev era inspirada ortodoxamente no leninismo. Nos cursos que dei para a p6s-graduacdo na Universidade de Brasflia desenvolvi a tese que sustentava ser a Perestroika a NEP II (Nova Politica Econémica ID e nao tive nenhuma contestagdo. Hoje, apés o fracasso do socia- lismo na ex-URSS, tal interpretagfo pode parecer absurda para aqueles que buscam uma explicagao facil ao atribuir exclusivamente a Gorbachev a culpa do desastre; ou até alvissareira para os antile- ninistas... Creio que a Perestroika foi uma proposta necessfria de revolugio na revolugio, porém tal proposta nfo foi implementada plenamente, pois como veio de cima nfo conseguiu mobilizar a maioria do povo e fracassou. Mas a Glasnost, que surge como pro- posta gémea da Perestroika, se independentizou dela e seguiu um curso préprio empolgada pelos liberais disfargados de comunistas ti- po Yeltsin. Na verdade, tal proposta grandiosa de Gorbachev e sua equipe de reestruturar a URSS para torn4-la a grande poténcia do 14 Vania Bambirra terceiro mil€nio através de ‘mais socialismo’ transformou-se em um feitigo que © préprio mago nfo péde controlar. Adveio, em substi- tuig&o a ‘ditadura do proletariado’ a ‘ditadura dos liberais’, os comu- nistas e seu partido passaram a ser perseguidos e discriminados sem nenhuma condescendéncia pluralista ¢ democritica. S6 que essa ul- tima ditadura nfo se exerce em fungiio da satisfagfo das necessida- des bfsicas da maioria. Lenin sempre contemplou a possibilidade do fracasso de uma experiéncia histérica de socialismo. Nem poderia deixar de fazé-lo, Pois © seu pafs esteve a beira disso durante a guerra civil ¢ As véspe- ras da NEP. A realidade comprovou seus temores. Contudo, que procedéncia tém as afirmagées absurdas e tao corriqueiras na im- prensa de nossos dias sobre ‘o fim do comunismo’, ‘o mundo pés- socialista’, ‘a morte do marxismo’, etc.? Nenhuma, exceto para aqueles que créem que o capitalismo é o fim da histéria! Exceto para Os pessimistas que pensam que a humanidade n&o tem alternativa melhor para a maioria, senfo a miséria e seus subprodutos tais como a marginalidade, a enfermidade e a violéncia! Ou para os ingénuos que créem que esse sistema pode evoluir para uma distribuigéo mais eqiitativa da renda e da riqueza gerando nfveis progressivos de bem-estar. Todas essas percepgées so estranhas a histéria ¢ a cién- cia. S&o historicamente infundadas porque os oprimidos, sobretudo quando adquirem consciéncia de sua condig&éo objetiva, descobrem formas de questionamento da situago existente; so cientificamente infundadas porque o capitalismo atravessa uma crise estrutural insu- perdvel que advém do processamento da revolugio cientffico-tecno- Idégica. Essa revolug&o situa a ciéncia como a principal forga produ- tiva e tende, pela automagao, a retirar a forga de trabalho do homem do processo produtivo direto, supondo portanto o seu deslocamento para outras esferas sociais, tais como as de ci€ncia pura, desbrava- mento do cosmos, atividades culturais, lazer, etc. Tudo isso j4 era percebido nas ‘utopias’ de Marx e Engels. Como processar tudo isso sem planificagdo? Mas esse conceito hoje nao € tio abjurado? Como fazé-lo sem intervengdo estatal? Mas essa idéia nfo est4 tho ‘fora de moda’? Paradoxo da hist6ria: quanto mais o mundo de hoje necessita planejar e estatizar mais florescem as miimias do liberalismo. O fato € que o capitalismo € congenitamente incompatfvel com a revolugao Cientffico-tecnolégica ¢ tende, pois, a transformar-se em reacion4rio ao desenvolvimento da sociedade. Nao € aleatério que suas crises Teoria marxista da transig¢fo 15 c(clicas sejam cada vez mais constantes e profundas c suas recupera- Ges curtas ¢ medfocres. Por tudo isso penso que a proposta socialista, tal como foi con- cebida pelos cl4ssicos marxistas, mantém imalterada a sua validez. Tal convicgfo provém néo apenas de uma visio humanista mas, so- bretudo, de um aprendizado cientffico que obteve com os autores estudados. Que cu saiba, ainda n&o foi feita uma andlise da derrota Go socialismo na URSS ¢ da crise atual do marxismo dela decorren- te. Em todo caso, penso que s6 através do marxismo ser possfvel explicar a ambas. Brasflia, fevereiro de 1992 I PARTE AS BASES DA TEORIA DO SOCIALISMO EM K. MARX E F. ENGELS INTRODUCAO A obra de Marx ¢ Engels esté dedicada em sua maior parte & anélise do capitalismo. Para os fundadores do marxismo, a temftica da transicgio socialista nfo chegou a ser objeto especffico de investi- gacéo. Contudo, em suas obras podem-se encontrar mifltiplas refle- xGes sobre as caracterfsticas da nova sociedade ¢ das linhas gerais da sua evolugio. Apesar de que suas reflexes sfo muitas vezes in- tuitivas ¢ estio dispersas em vdrios livros e artigos, no seu conjunto elas contém um certo apelo & sistematizacaéo que configura as linhas bdsicas de uma concepgdo coerente sobre a sociedade em transi¢ao socialista — a ditadura do proletariado — bem como a sociedade comunista propriamente dita. Essa concepgado € meridianamente distinta das concepg¢ées socialistas utdpicas. Comentando, nesse sentido, a concepgéo marxista, Engels dizia: Ademais, o que confere & nossa obra uma importancia especialfssima € a circunstincia que ela se proclama pela vez primeita a formula em que unanimemente os partidos operarios de todos os pafses do mundo con- densam a sua reivindicagéo de uma transformagao econémica: a apro- Ppriagéo dos meios de produgao pela sociedade (...) e Marx escreve: Por detrés do direito ao trabalho est4 o poder sobre o capital, e por de- tras do poder sobre o capital est4 a apropriagGo dos meios de produgao, sua submissao 4 classe trabalhadora unida ¢, por conseguinte, a aboligéo tanto do trabalho assalariado como do capital, e de suas relagdes miituas. Aqui se formula, pois, pela primeira vez, a tese pela qual o socialismo obreiro moderno se distingue taxativamente de todos os matizes do so- Cialismo feudal, burgués, pequeno-burgués, etc., da mesma forma como da confusa comunidade de bens do comunismo utdpico e do comunismo obreirista espontineo.! Mas a contribui¢&o de Marx e Engels nfo se detém na apropria- gao dos meios de produciio pela sociedade. Eles descobrem também 20 Vania Bambirra a Unica férmula polftica por meio da qual ela poder4 realizar-se: “‘o Proletariado organizado como classe dominante”, quer dizer, a dita- dura do proletariado. Fazendo referéncia as suas contribuigées tedricas, em uma carta a Weidemayer, de 5 de margo de 1852, Marx diz o seguinte: No que a mim diz respeito, néo me cabe 0 mérito de ter descoberto a existéncia das classes sociais na sociedade moderna, nem a luta entre elas. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses j4 haviam exposto o desenvolvimento hist6rico dessa luta de classes € alguns economistas burgueses haviam evidenciado a sua anatomia econémica. O que eu trou- xe de novo tem sido demonstrar: 1) que a existéncia das classes esté liga- da apenas a determinadas fases histéricas do desenvolvimento da produ- ¢40 (historische Entwicklungsphasen der Production); 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, 4 ditadura do proletariado; 3) que essa mesma ditadura, de per si, ndo € mais do que o trénsito para a aboligSo de todas as classes e para uma sociedade sem Classes...2 Essas palavras de Marx revelam, como acentuou Lenin, “a es- séncia da sua teoria do Estado”’.3 Lenin, analisando o pensamento marxista sobre a transig&o, res- salta que: Em Marx nao hd nem rasto de utopismo, pois nao inventa uma ‘nova’ so- ciedade. Nao, Marx estuda 0 processo natural de como nasce a nova s0- ciedade a partir da velha, estuda as formas de transigéo da segunda a Primeira. Toma a experiéncia real do movimento proletério de massas € se esforca por extrair dela os ensinamentos praticos. "A prende’da co- muna, da forma como nao recearam aprender todos os grandes pensa- dores revolucion4rios da experiéncia dos grandes movimentos da classe oprimida, e ndo thes dirigiram nunca sermées pedantes...4 ; Lenin considera que “‘essa parte da sua doutrina (...) 6, inques- tionaveimente, a mais importante’’.5 Ora, é sumamente relevante refletir sobre essa consideragao de Lenin a respeito da contribuigdo mais mportante da teona marxista. Sem dtivida alguma, é certo que Marx e Engels dedicaram grande parte de suas vidas e de suas obras ao estudo do capitalismo. Contu- do, € importante destacar que, se assim o faziam, era porque enten- diam a necessidade de compreender as leis do funcionamento da so- Ciedade de classes para conseguir explicar sua tarma de superagao. Teoria marxista da transico 21 Buscavam na andlise daquela néo um mero exercfcio académico, mas a identificagao rigorosa e cientffica do processo de transicao da sociedade ‘velha’ para a sociedade do futuro. Analisaram 0 capita- lismo a partir da perspectiva da sociedade superior comunista. Por esse motivo, as caracteristicas bdsicas da sociedade do pe- tfodo de transigaéo ao socialismo emergem da sua andlise do capita- lismo como uma resultante ldégica e histérica. A evolugao dos seus estudos acerca da teoria do capitalismo vai engendrando ao mesmo tempo 0 esclarecimento e a sistematizagao das bases da teoria da re- volugao e do socialismo. E, ao mesmo tempo, € de suas reflexGes sobre a pratica da luta de classes, “‘sobre a experiéncia real do mo- vimento proletério de massas”’, que eles extraem ensinamentos va- liosos; ¢ € a vivéncia poiftica direta das mesmas que permite a Marx e Engels precisarem com todo rigor 0s seus conceitos e fundamentar a nova teoria da transigao. Lenin soube captar muito bem ess¢ aspecto essencial da contri- buigao marxista: Toda a teoria de Marx € a aplicag&o da teoria do desenvolvimento — na sua forma mais conseqiiente, mais completa, mais meditada e mais rica de contetdo — ao capitalismo moderno. Era natural, portanto, que se apre- sentasse a Marx a quest@o de aplicar essa teoria também 4 iminente ban- carrota do capitalismo e ao desenvolvimento futuro do comunismo futuro. Pois bem, mas em base 2 que dados pode armar-se a questdo do desen- volvimento futuro do comunismo futuro? & em base ao fato de que 0 comunismo procede do capitalismo, € 0 re- sultado da agao de uma forga social engendrada pelo capitalismo. Em Marx nao encontramos a mais leve intencao de fabricar utopias, de fazer conjecturas vas sobre coisas que nao € possfvel conhecer. Marx coloca a questéo do comunismo como o naturalista colocaria, por exemplo, a do desenvolvimento de uma nova espécie biolégica, sabendo que surgiu de tal e tal modo e que se modifica em tal e tal direg&o determinada.§ O objetivo desta parte € destacar Os aspectos teGricos essenciais do pensamento de Marx e Engels em relagaéo ao perfodo de transigao ao socialismo e ao comunismo, acrescendo-os de alguns coment4rios e interpretagGes no intuito de facilitar uma compreensio mais ampla de alguns dos seus aspectos. Para isso, importa destacar as princi- pais categorias marxistas sobre o tema, tomando em consideracgéo uma certa ordem légica de exposigao. 1. AS CONDICOES MATERIAIS DO SOCIALISMO Os germes do socialismo Nos Elementos fundamemtais para a critica da economia politi- , Marx, embora nfo analise especificamente a transig&o para a no- Se sociedade, faz algumas referéncias importantes a essa temftica. Essas refer€ncias, além de representarem indicagées que desembo- cam na teoria do socialismo, sio revelagdes de que € a perspectiva da sociedade superior que ilumina e orienta a an4lise por ele realiza- da sobre o modo de producio capitalista. Da mesma forma, a aniélise mo tempo os elementos essenciais do seu caréter contraditério — a propriedade privada dos meios de produ¢&o e a resultante apropria- So privada dos resultados do trabalho — os quais geram em seu seio as condigGes e as formas de superagio. Ele expde isso do seguinte modo: O car4ter coletivo da produc&o converteria o produto desde o principio em um produto coletivo universal. A mudanga que se realiza originaria- mente na producSo — mudanca nado de valores de troca, mas de atividades determinadas por necessidades coletivas, por fins coletivos — incluiria desde o princfpio a participac&o do individuo no mundo colctivo dos pro- dutos. Sobre a base dos valores de troca, o trabalho € colocado como trabalho em geral apenas através do seu aspecto de permuta. Mas sobre esta nova base, o trabalho seria colocado como tal anteriormente A per- muta; ou seja, a troca dos produtos deixaria de ser 0 medium comum que medeia a participago do individuo na produgdo geral. Claro est4 que em qualquer caso deve existir uma mediacSo. No primeiro caso, que deriva da produg&o aut6énoma dos individvos — mesmo que tais producdes autd- nomas se determinem ¢ se modifiquem post festum* através de suas rela- ges reciprocas -, a mediago acontece através da troca de mercadorias, * No original: “‘...cntre ambos problemas” (N.T.). 24 Vania Bambirra através do valor de permuta, do dinheiro, que séo todas expressdes de uma tinica e mesmo relagéo. No segundo caso, 0 préprio suposto € o me- diante; ou seja, est4 pressuposta uma Produgao coletiva, ou o carfter co- letivo como base da producdo. O trabalho do individuo € colocado desde 9 princ{pio como trabalho social. Qualquer que seja a forma material do produto que ele cria ou que ajuda a criar, o que cle adquiriu com o seu trabalho nao € um produto particular e determinado, mas uma determi- nada parcela da produgio coletiva. Dessa forma, ele no possui nenhum produto particular para intercambiar. O seu produto néo’e um valor de roca. O produto assim nao deve ser convertido antes de tudo em uma forma particular para receber um cardter geral para 0 indivfduo. Em lu- gar de uma diviséo do trabalho, que se origina necessariamente da troca de valores de troca, ter-se-4 uma organizacdo de trabalho que tem como resultado a porgéo que corresponde ao individuo no consumo coletivo. No primeiro caso, o carSter social da Produgdo € estabelecido apenas através da clevacao dos produtos a valores de comércio, sendo a mudan- ¢a desses valores de troca estabelecida post festum. No segundo caso, o carfter social da produgdo € pressuposto, ¢ a Participagao no universo dos produtos, no consumo, nado é mediada pelo intercémbio de produtos do trabatho ou de trabalhos reciprocamente independentes. Ele é media- do pelas condigoes sociais da produgao dentro das quais age 0 individuo. Querer transformar o trabalho do individuo (ou seja também o seu pro- duto) imediatamente em dinheiro, em valor de troca Tealizado, significa determiné-lo imediatamente como trabalho geral, quer dizer, negar pre- cisamente as condices sob as quais deve ser transformado em dinheiro e em valor de troca, ¢ sob as quais depende do cémbio Privado. A exigén- cia pode ser satisfeita somente em condigdes em que j& nfo pode ser co- locada. O trabalho, sobre a base dos valores de troca, supée precisamente que nem o trabalho do individuo nem o seu produto sejam imediatamente universais, e que este Gltimo apenas obtenha a sua forma universal atra- vés de um dinheiro distinto dele.7 Faz pleno sentido mencionar aqui esses passos de Marx, pois como ele mesmo dizia, nosso método pée cm evidéncia os Pontos nos quais deve introduzir-se a andlise histérica, ou nos quais a economia burguesa, como mera forma hist6rica do processo de producao, aponta para além de si mesma, para os modos procedentes de producdo histéricos. Para analisar as leis da eco- nomia burguesa no é, pois, necessdrio escrever a histéria real das rela- Teoria marxista da transigao 25 — que apontam para um passado que se localiza por trés desse sistema. Tais indfcios, conjuntamente com a concepgao correta do presente, for- g6es de produgdo. Mas a correta concepgao ¢ deducdo das mesmas, en- quanto relagdes originadas historicamente, conduz sempre a primeiras equagées — como por exemplo os ndmeros empfricos nas ciéncias naturais necem também a chave da compreensdo do passado (um trabalho a parte que confiamos poder abordar em outra oportunidade). Esta andlise cor- reta leva de qualquer maneira a pontos nos quais, foreshadowing (prefi- gurando) o movimento nascente do futuro se insinua a aboligdo da pre- sente forma das relagées de producéo. Se por um lade as fases pré-bur- guesas se apresentam como pressupostos puramente histéricos, Ou seja, abolidos, por outro as condigées atuais da produgdo se apresentam como abolindo-se a si mesmas e, portanto, como estabelecendo os pressupostos histéricos para um novo ordenamento da sociedade.8 A seguir, nos permitiremos reproduzir outra ampla citagéo de Marx, que se reveste de importfncia muito especial como sintese da sua concepc&o sobre “‘a contradicgao entre a base da produc&o bur- guesa e 0 seu proprio desenvolvimento’’. Nessa andlise ele demons- tra como o progresso da ciéncia e da tecnologia entra em conflito com 0 sistema de relagGes burguesas de produci’o, criando as condi- g6es para que “se desaprume a producdo fundada no valor de tro- ca’’, ou seja, a base natural, para que na nova sociedade seja supe- rada completamente a lei do valor. Adquire sentido a seguinte trans- criggo de Marx, nao propriamente para revelar as contradigées do modo de produgao capitalista, 0 que nao é 0 objetivo do presente trabalho, mas porque essa sua andlise revela, ao mesmo tempo, ca- racterfsticas do desenvolvimento das forgas produtivas que sao a ba- se material em que se fundar4é a nova sociedade. Assim escreve Marx: O intercémbio de trabalho vivo objetivado, isto é, a submissfo do traba- lho social 4 forma de antftese entre o capital e o trabalho, é o derradeiro desenvolvimento da relagao de valor e da produgado fundada no valor. O Ppressuposto dessa relagéo €, ¢ continua sendo, a magnitude de tempo imediato de trabatho, o quanto de trabalho empregado como fator decisi- vo na produgao da riqueza. Sem embargo, na medida em que a grande indGstria se desenvolve, a criagao da riqueza efetiva torna-se menos de- pendente do tempo de trabalho e do quanto de trabalho empregados do que do poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de tra- balho, poder esse que por sua vez — sua powerful effectiveness (poderosa 26 Vania Bambirra isso € revelado pela grande inddstria — na ¢norme desproporgao entre 9 tempo de trabalho empregado ¢ seu produto, bem como na despropor- ¢ao qualitativa entre o trabalho, reduzido a uma Pura abstragao, ¢ 0 po- derio do processo de produgao vigiado por aquele. O trabalho j4 nao prio processo produtivo. ( que é dito sobre a maquinaria € v4lido tam- bém para a combinagéo das atividades humanas © 0 desenvolvimento do comércio humano). O trabalhador J4 n&o introduz o objeto natural modi- ficado como elo intermedidrio entre a coisa ¢ ele mesmo, mas insere-se RO processo natural, transformando-o em industrial como meio entre si cesso de produgdo, em vez de sero seu agente principal. Nessa transfor- magao, © que aparece como pilastra fundamental da Producao ¢ da rique- za nao € nem o trabalho imediato executado pelo homem, nem o tempo Que este trabalha, mas sim a apropriagdo da sua prépria forca produtiva geral, sua compreensdo da natureza e seu domfnio da mesma, &facas a sua existéncia como corpo social; numa palavra, o desenvolvimento do individuo social. O roubo de tempo de trabalho alheio, sobre o qual se funda a riqueza atual, aparece como uma base miserével em comparagao com esse fundamento recém-desenvolvido, criado Pela indtistria grande mesma. Tao logo como o trabalho em sua forma imediata deixou de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa ~e tem que deixar — de ser a sua medida, e Portanto o valor de cémbio deixa de ser a medida do valor de uso. O plustrabatho* da massa deixou de ser condigéo para o desenvolvimento da Tiqueza social, assim como 0 ndo-trabalho de uns poucos deixou de sé-lo para o desenvolvimento dos Poderes gerais do intelecto humano. Com isso desapruma-se a Produg4o fundada no valor de troca, ¢€ tira-se 40 processo de producdo material a forma de necessidade premente e o * De acordo com 9 original traduzido do espanhol. Na €poca, o autor no havia desen- volvido 0 conceito de mais-valia tal como existe hoje. (N. do A.) i | | | | | | | | Teoria marxista da transic¢&o0 27 antagonismo. Desenvolvimento livre das individualidades, ¢ Por conse- guinte nao redugao do tempo de trabalho necessério ao estabelecimento de plustrabalho, mas reducdo em geral do trabalho necesséio da socieda- de a um mfnimo, ao qual corresponde entao a formagdo artistica, cientffi- ca, etc., dos individuos, gragas ao tempo que se tornou livre € aos meios criados por todos.? E mais adiante Marx conclui: (...) O crescimento das forgas produtivas jf nfo pode estar ligado a pro- ducao de surplus labour alheio, mas a massa trabalhadora deve apro- priar-se do seu plustrabalho. Uma vez feito isso — e com isso deixando 0 disposable time de ter uma existéncia antiética — de uma parte o tempo de trabalho necessério encontrar a sua medida nas necessidades do indi- viduo social, e de outra, o desenvolvimento da forga produtiva social ser& tao rapido que, embora presentemente se calcule a producto em funcso da riqueza comum, crescer o disposable time de todos. A riqueza real Passa a ser a forga produtiva desenvolvida por todos os individuos. Entiio M nao € de forma alguma o tempo de trabalho a medida da riqueza, mas sim 0 disposable time.10 O pensamento de Marx exposto nas transcrigGes anteriores € tio claro que dispensa maiores comentérios. Todavia, é importante sa- lientar como, através de um raciocinio lSégico-dialético, Marx de- monstra que o desenvolvimento das forcgas produtivas alcangando um est4gio superior, o da automacao, cria as condigées materiais in- dispens4veis para uma organizac&o radicalmente nova e superior do aparelho produtivo (onde n&o mais impera a lei do valor), e da vida social em geral, para o comunismo. Obviamente, a automacfo niéio € por si mesma uma condigfo suficlente — pois nesse caso o Passo a0 comunismo seria mecfinico — mas sim absolutamente necesséria. E interessante destacar também como Marx zomba da incapaci- dade dos economistas burgueses de compreender a evolucio histéri- ca para o socialismo: Os cconomistas burgueses esto de tal maneira enclausurados nas repre- sentagdes de determinada etapa hist6rica do desenvolvimento da socieda- de, que a necessidade de se objetivar os poderes sociais do trabalho que Ihes aparece como insepardvel da necessidade de que os mesmos se alie- nem em relagSo ao trabalho vivo. No entanto, com a abolig&o do carfter imediato do trabalho vivo como trabalho meramente individual, ou ape- 28 Vania Bambirra ! nas intrinsecamente geral, com o poder da atividade dos objetivos da! Produc4o, suprime-se-lhes essa forma de alienagao; com isso eles sao! colocados como propriedade, como o corpo social org4nico no qual os: individuos se reproduzem como individuos, porém como indivfduos so- ciais. As condigées para serem tais individuos sociais na reproducao da! sua vida, no seu processo vital produtivo, sio postas unicamente pelo Préprio processo econémico histérico; tanto as condigées objetivas como as subjetivas, que nada mais sfo do que duas formas diferentes das mes- mas condigées.!1 Em O capital, Marx, analisando a correlagéo entre o aumento da intensidade e a forga produtiva do trabalho com a diminui¢ao da jor- nada, desenvolve de maneira mais completa esse mesmo raciocinio. A citagdéo que destacamos a seguir também € longa, mas, devido A sua relevfncia na presente tematica, permitimo-nos transcrevé-la: O aumento da forga produtiva do trabalho ¢ sua crescente intensidade atuam uniformemente no mesmo sentido. Ambos os fatores incrementam a massa de produtos elaborada num determinado perfodo de tempo. Am- bos diminuem, portanto, a parte da jornada em que o operério tem que trabalhar para produzir os seus meios de subsisténcia ou o seu equiva- lente. O limite minimo absoluto da jornada de trabalho é 0 que traca essa sua parte necessGria, porém com restrigdes. Se toda a jornada de trabalho se reduzisse a isso, desapareceria o trabalho excedente, coisa inconcebi- ' vel sob o regime do capital. A supressdo da forma capitalista de produgdo permitiria reduzir a jormada de trabalho ao trabalho necessério. Este, to- davia, na suposigdo de que todas as demais circunst4ncias Permanecessem inalteraveis, dilataria os seus limites. Por duas razées: Primeiro, porque! as condigdes de vida do trabalhador seriam mais Prdésperas ¢ as suas exi- géncias maiores; segundo, porque ao trabalho necessério incorporar- Se-ia uma parte daquilo que atualmente é trabalho excedente, a saber: a quantidade de trabalho necess4ria para a criag&o de um fundo social de reserva e acumulacdo. Quanto mais cresce a forga produtiva do trabalho, mais pode encurtar-se a jornada. e quanto mais se encurta esta, mais po- de crescer a intensidade do trabalho. Socialmente considerada, a produti- vidade do trabalho cresce também com sua economia. Esta n4o inclui# apenas a economia dos meios de produgdo, mas também a supressiio de tudo quanto seja trabalho instil. Em seguida Marx enfatiza como essa economia dos meios de produgdo, embora no regime capitalista ela acontega no interior de cada empresa particular, gera todavia, ao nfvel do sistema como um Teoria marxista da transigZo 29 todo, devido a suas caracterfsticas essencialmente an&rquicas, o des- perdicio dos meios de produgio e da forga de trabalho, e d& susten- tagao a uma série de atividades absolutamente supérfluas. Da anfilise anterior Marx tira a seguinte conciusio: Dadas a intensidade e a forga produtiva do trabalho, a parte da jornada social de trabalho necessdria para a produgdo material ser4 tanto mais curta, ¢ por isso tanto mais longa a parte de tempo dedicada a livre ativi- dade espiritual e social dos indivfduos, quanto mais equitativamente seja distribufdo 9 trabaiho entre todos os membros iiteis da sociedade, ¢ quanto mais se reduzam os setores sociais que se subtraem 4 necessidade natural do trabalho para lang4-la sobre os ombros dos outros. Nesse sen- tido, 0 limite absoluto em que esbarra a jornada de trabalho € o cardter geral do mesmo. Na sociedade capitalista, se uma classe goza de tempo livre, € a custa da conversso da vida toda das massas em tempo de traba- Tho. Em outros termos, Marx estabelece uma conexéo estreita entre o “desperdicio mais desenfreado dos meios sociais de produgao e for- ga de trabalho” (o que significa de resto uma limitag&o do progresso social em geral) e maior extensio da parte da jornada social de tra- balho necessaria 4 producdo material, com a distribuigao despropor- cional do trabalho. Isso nfo pode deixar de ocorrer na sociedade ca- pitalista, e representa portanto um limite intrfnseco que o sistema de explorag4o imp6e ao desenvolvimento social amplo. A distribuigdo equitativa do trabatho, e portanto uma parte maior de tempo ‘‘dedi- cada a livre atividade e¢spiritual e social dos indivfduos” somente pode ser o resultado de uma sociedade regida pelo princfpio do pla- nejamento social, onde o trabalho possa adquirir um sentido qualita- tivamente diverso daquele que o orienta sob o regime capitalista. No se trata, segundo a visio marxista, meramente de ‘adocicar’ os efeitos mais ostensivos do sistema de exploragéo do trabalho, trata-se de super4-lo completa e radicalmente. Pois, ‘mesmo que al- guma forma de trabalho assalariado possa eliminar os efeitos de ou- tra, nenhuma delas pode eliminar os inconvenientes do préprio tra- balho assalariado’’.!3 O socialismo como uma necessidade histérica A andlise histérica geral realizada por Marx em O. capital, sobre a tendéncia histérica da ‘acumulag4o capitalista, oferece novos ele-

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