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Este trabalho 6 parte de uma retlexSo malt ampla onde pro- cro determinar algumas estratéyias da produgSo tebrica bra ra © 0 papel que nelasteve a naturallzagto das relarSes s0- Ciais, utlizando a chamada escola Nina Rodrigues como f0- co histbrico do explicitario deste processo Gostaria de agradecer aqui a meus alunos de gradu Citas Sociais ds Unicare, com quem esta discussdo foi primeiro travada em 1976 e também a leitura paciente @ su- sgestva de alguns amigos: Verena Stolcke, Alba Zaluar, Peter Fry, Ruth Cardoso, Luiz Orlandi, Plinio Dentzion &Suely K. ce Almeida REPENSANDO A FAMILIA PATRIARCAL BRASILEIRA Notas para o estudo das formas de organizaeio familiar do Brasil Mariza Corréa Do Departamento de Cincias Socials da Unicamp, RESUMO Este artigo tents colocar algumas questBes preliminares {2 respeito dos supostos empiricos # tedricos ath apora tomados como bases indiscutiveis de duaslinhas dominantes na literatu ‘a sobre familia no Brasil: a que v8 a femiia patriacal rural co- ‘mo a instituigdo fundamental do Bratil Colénia e e que focalize 2 familia conjugel moderna de época urbana. Sua proposta 6 que ‘amibas fazer de fato parte de ume mesme visio teériea que, ana Tisando apenas as classes dominantes como agentes de nossa his ‘tori, expulsam do nosso horizonte de pesquisa s possbiidade de investigar formas alternatives de organizario familiar no Bre ai ‘SUMMARY This paper attempts to question some of the empirical and theoretical bases until now aknowledged # the foundations {for the emergence of two dominant lings in the literature about family in Brazil: one that sees the patrareal family a the fund mental institution in rural Colonial Brazil, the other focusing on the modern conjugal family of urban times. The argument Is ‘that both may be better seen as part of a single theoretical v- sion that envisoges only the ruling classes of society as agents of ‘ur history, therefore ruling out of our universe of research the possibility to investigate the alternative forms of family life that tay have existed, and stl exit, in Brazil, Cad, Pesq., Séo Paulo, (37): 5-16, Mai. 1981 ‘A historia das formas de organizago familiar no Brasil tem se contentado em ser a histéria de um deter- minado tipo de organizagao familiar e doméstica — a ‘fo mila patriarcal’ —, um tipo fixo onde os personagens, uma vez definidos, apenas se substituem no decorrer das ‘geragdes, nada ameacando sua hegemonia, e um tronco de onde’ brotam todas as outras relagSes sociais. Ela se instala nas regides onde foram implantadas as grandes uunidades agrérias de produgéo — engenhos de agiicar, fazendas de criagdo ou de plantacdo de café — mantém- se através da incorporago de novos membros, de pref réncia parentes, legitimos ou ilegitimos, a extensos ‘clés que asseguram’ a indivisibilidade de seu poder, e sua transformacao se dé por decadéncia, com o advento da industrializago © a ruina das grandes propriedades ru- rais, sendo entéo substitu(da pela ‘familia conjugal mo- derna’. Esta € 0 ponto de chogada onde aquela 6 0 ponto de partida, e seu oposto: tfpico produto da urbanizacio, reduzida ao casal e seus flhos, a finalidade do casamento ‘no € mais principalmente a manuten¢io de uma pro- priedade comum ou dos interesses politicos de um gru- bo, mas sim a satisfagdo de impulsos sexuais e afetivos ‘que na familia patriarcal eram satisfeitos fora de seu cf culo imediato! Com algumas varlagées na utiliza¢o dos termos @ maior ou menor énfase num ou noutro aspecto — por ‘exemplo, a questio da originalidade: a familia patriar- cal brasileira 6 um produto tipico da colonizagio portu- {guesa nos trépicos, ou foi importada de Portugal? — em linhas gerais este & 0 retrato que temos da familia bras leira através do tempo. Este 6 0 modelo tradicionalmen- te utilizado como pardmetro, & a histéria da familia bra- sileira, todos 0s outros modos de organizagao familiar aparecendo como subsidiérios dela ou de tal forma inex- pressivos que ndo merecem atencéo. ‘A trajetoria da ocupagdo do territério natural bra sileiro e de seu espaco social é assim apresentada como uma linha cheia, central, homogénea, que percorre a nos- sa historia acompanhada de perto, nas margens, por fi rnhas pontithadas: ramificagdes, veredas, afluentes secun- darios de um caminho seguremente tragado do exterior para 0 interior do nosso mapa, do fundo do nosso passa- do para o presente, dos campos para as cidades. Huminados por este padro dominante, lemos nos sa historia a partir dele, como se nessa biografia de um personagem central se incorporassem todos os persona- gens centrais dos varios séculos, sempre os mesmos; co imo se todos os caminhos levassem natural e inexoravel- ‘mente a0 caminho principal, o percorrido, e ele fosse um desdobramento também natural de uma cirounstancia dada, ou um resumo, um apanhado, das alternativas con- ‘retamente vividas. Esta maneira de othar achata todas as possibilida- des imaginadas e tentadas, reduzindo-as a extensées de lum nGcleo homogéneo que ngo teria feito mais do que expandir-se e progredir através do tempo e do espaco, vindo afinal a ocupar 0 lugar que desde sempre the est ve reservado. Escamoteando as alternativas, tornando-as invisfveis, este olhar se alinha a0 lado do modelo domi- 6 ante, ignorando que foi através de uma luta suja, de in- finitos pequenos conflitos e manipulacées, e da violén- ‘que este modelo, afinal, se impés. ‘A presenca do sangue 6 expulsa desse retrato em branco e preto, um retrato que ignora a ‘multidao dos terceiros’, dos anénimos to ocupados em fazer a hist6- ria que so por ela escassamente registrados — e quase ‘nunca individualmente. Registra-se a casa grande a senza- la como sua sombra apagada ou luxuriante; registram-se ‘0s nomes dos sobreviventes: quem se importa:com o no- me dos mortos na luta?? 2 Estas reflexées. me slo sugeridas no momento em que penso sobre as formas de organizacdo familiar no Brasil colonial. € possvel reduzir a imensa gama de pos- siblidades insritas num ezpago natural social aberto, muito lentamente ocupado e organizado, a uma histé- ria na qual, mudando os personogens, permanece uma fa la central idéntica asi mesma, preenchide a cada geracdo or novas palavras, sempre com 0 mesmo sentido? E Bossivel ignorar a soma de personagens, fungdes ea mo- bilidade envolvidos na mais simples operacao social no Brasil em seus primeros anos de existincia,e aprisionar todos estes elementos num lugar privilegiado como mo- delo de interaggo social: 0 engenho? E possivel esquecer as redes de relagdes, a ramifi cages interiores e exteriores ao pais, necessdrias 4 sobre- vivancia do mais simples extabelecimento colonial e in- corporé-las todas na figura de um senhor, 0 dono do en- genho — que muitas vezes ndo passava de um agente dos donos reais ~ moderno Abralo conduzindo um deci re banho? Podemos esquecer do emaranhado de tensées em ‘que se debatia a sociedade colonial, lembradas apenas quando irrompem ra forma de uma sedicSo, um levan- te, um motim, mas presantes também na slenciosa res téncia que os torna possiveis ¢ que dota os habitantes dessa sociedade de uma espantose mobilidade 20 tratar da interpor distancia entre si eos vigilantes othos da lre- do Fisco, do Recrutador? (A mesma mobilidade que, nicamente, levando os agentes dests intituies em #8 persoguigio, para fazéos retornar ao seu control ampliara). 1A expresso “Yamilia patriarcal bratileira fol principalmen- te difundiés por Gilberto Freyre, também seu mais extenso pesquisador no Brasil. “Familia Conjugal Moderna” é expres. ‘ho utilizade por Antonio Candido de Mello © Souza Ceracterizapéo do ponto terminal do trajetéria hist familia brasileira, No exbe discutir aqui a “extratdgio endo- ‘mica’, a vioblidade prética do casamento entre parentes ome rhecanismo de manutenedo das grandes propriedades furais, embore este seja um panto importante da questi Pera exemplos deste mecanismo,vojase entre outros, Calmon (1939), Pino (1946) e Levi (1977); para ume objecSo te6rt 2 Para um desenvolvimento tebrico dessos quest ues, 1966). 8, vor lodri- Cad. Pesq., So Paulo, (37): Mai. 1981 Uma primeira questo importante a resolver diz respeito entio 20 corpo tebrico jé existente © pode s resumir na pergunta: como se dé a produgdo tebrica das formas de organizacdo da estrutura familiar, nos termos dos autores dedicados ao assunto? A resposta a esta per- unta deverd provir de uma cuidadosa andlise ‘interna’ dos textos principais da literatura sobre familia no Bra- sil, aqui exemplificada pelo exame dos pressupostos en- volvidos na utilizagdo do conceito de familia patriarcal {eita por Gilberto Freyre e Antonio Candido de Mello Souza. ‘A questéo imediatamente derivada desta primeira ode ser assim formulada: como se dé historicamente a Producdo concreta das formas de organizagio familiar? AA chamada ‘familia patriarcal brasileira’ era 0 modo co- tidiano de viver a organizacéo familiar no Brasil colonial, compartilhado pela maioria da populacio, ou ¢0 mode. lo Ideal dominante, vencedor sobre vrias formas alterna- tivas que se propuseram coneretamente no decorrer de ‘nossa historia? Sugiro que uma releitura cuidadosa de textos ciéssicos de nossa historiografia (cronistas,viajan- tes, agentes coloniais, ete.) pode apontaralternativas até agora obscurecidas pela énfase que se tem dado a apenas ‘uma forma de organizagéo familiar. Essa andlise, ‘exter na’, de um corpus bastante conhecido ¢ exemplificada aqui por algumas pistas que remetem & necessidade de maiores pesquisas hist6ricas sobre 0 assunto @ pelo ‘exemplo dos bons resultados colhidos por autores que se edicaram a seguir algumas dessas pista. A obra de Gilberto Freyre, especialmente Casa Grande Senzala (1933), e o enssio (ainda) cléssico de Antonio Candido, “The Brazilian Family” (1972), par ‘cem ser 0$ textos mais importantes a rever para uma ané lise dos pontos teéricos subjacentes & concepcdo de fa milia que estou discutindo*. Gilberto Freyre, leitura ‘obrigatéria de toda uma geracio, amplamente traduzido e divulgado, deixou sua marca em grande parte dos estu dos sobre fam(lia — e relagSes racials — no Brasil. As pesquises que se fizeram depois dele, e das quais foi um importante precursor, acabam retomando suas preocu- pages, sela para contesté-as, seja para amplié-las. A im porténcia do artigo de Antonio Candido néo se deve ape- nas 20 fato de o autor resumir ¢ aprofundar as principa questdes colocadas pela maioria dos autores que se de- dicaram a0 estudo da chamada familia patriarcal (como Oliveira Vianna, Nestor Duarte, J. Camilo de Oliveira Torres, LA. Costa Pinto e Fernando de Azevedo), mas também 8 sua presenca constante como fonte de referén- ia citada por pesquisadores (Levi, 1977), até hoje. ‘Ambos 0s autores parecem compartithar com mui 108 outros estudiosos a ilusio de que 0 estudo da forma , Essa evocagio da multiplicidade também esté pre- sente, de maneira mais cuidadosa e sitil, no texto de Antonio Candido, da mesma forma servindo para obs- Repensando a familia patriarcal brasileira curecer a clivagem aceita e apresentada como a funde- mental: entre 0 nGicleo familiar onde imperava o patriar- ‘ca e uma massa andnima totalmente entregue a0 reino da rnatureza, sem qualquer norma cultural a reg@-la. Em am- bos 0s casos, esta visdo dualista parece ser resultante da ‘aceitagdo de uma impossivel autonomia dessa sociedade nascente, explicita em Freyre, implicita em Antonio Candido'+. € como se a sociedade colonial brasileira pu- esse ser equiparada a uma ‘sociedade primitiva’, sem Ex ‘ado; mas a hist6ria néo recomeca cada vez que se instau- a um novo desenvolvimento del ‘As sociedades de tecnologia ‘simples’ foram duran- ‘te muito tempo vistas e estudadas pela antropologia co- ‘mo ‘sociedades sem histéria’ e a primeira tentacdo dos antropélogos primitivos foi a de afirmar a inexisténcia de ‘qualquer tipo de norma de comportamento regendo a vi da de seus habitantes, aparentemente entregues a esse mesmo caos @ que nossos autores destinam os habitantes do Brasil colonial que néo viviam dentro ou em volta da casa grande. Sem querer entrar na polémica entre os que aceitam e os que contestam essa versio, podemos lem bbrar que para alguns antropologos modernos o paren- tesco seria 0 idioma bésico das sociedades sem Estado, @ Estrutura sobre a qual se organizaram todas as outras atividades sociais, inclufdas as econdmicas'’. Assim, os ‘grupos politicos de parentesco, ao mesmo tempo unida- de familiar e de producdo, comecariam a se desintegrar @ a transformar-se em unidades individualizadas no mo- mento em que o Estado, colonizador ou emergente, faz seu aparecimento. Comparemos a afirmagio de uma antropéloga que subscreve este ponto de vista com uma afirmagéo de Antonio Candido sobre a familia patri cal em seus trezentos anos de existéncia no Bras 4 Sobre a importincia da utilizapo da méo-de-obre indigens nesta Srea @ 0 seu desenvolvimento como trabalho aatlari 4o, voja-se Maclaklon, in Alden, 1973. 13 Estas notas no pretendem nem poderiam fazer Justica 20 talento literério de ambos os autores aqui focalizados, nem lmplicam no desconhecimento da disténels que of topara om ‘termes do atuaedo politica: eles foram escolhidor pelos re 108 apontadas antes © as consideracBes fetes dizem resp ‘0 exclusiva ‘seu tratamento do tema em quest: 2 famflia brasileira. Seria impossvel por exemplo refazer equi ‘© caminho percorrido pela prota livre associative de G. Frey re, tanto na dimensio te6riee como na empstics, Numa ans lise mais aprofundeda dos fundamentos de sua visbo wor 2, espero deixar claro que ela nasce junto, e 6 parte, de ou ‘ras tentativasideol6gicas de compreensfo da sociedade bra. Sllira, dels se afastando e se proximando por turnos, o que toxna ao mesmo tempo mais inteligivel «sua visSo @ s outras ‘um Indicador dos parémetros politicos que regem esta visio. (Lamounier, 1977). 14 Para uma discussfo da ‘autonomia' da soclodade coloni telogéo 8 Metropole, Faoro (1975) e Novais (1980). A ciativa privada” da colonizarSo sendo postulada por estes dois autores, tornase um imperstivo em sua anélise deixar entre pardnteses tanto a apdo do Estado portuputs (apo eco- rémica, politica @ ideologies) como a daqueles Submetem nem & metropole nem ao senhor de engenho ou {azendeiro de café 20 longo da het formar o& ciodade. "Os deveres, responsabilidades e privilégios de cada um em relagio aos outros, séo definidos em termos do parentesco mituo, ou de sua auséncia. A tro- ‘ca de bens e servicos, a sua producio e distribu ‘do, a hostilidade e a solidariedade, os rituais e ce- rim@nias, tém lugar dentro da estrutura organi dora do parentesco” (Rubin Reiter, p.170). “Do ponto de vista funcional, como foi indicado, cesta sélida estrutura constitufa-se mais num siste- ma de ordenamento das relagdes econdmicas e po- liticas do que num sistema de procriacdo e de rela ‘gBes sexuais. Ela era o fundamento de toda a orga- 120 econdmica, politica e social, como Oliveira Viana demonstrou em seu estudo das funcdes sim- plificadoras da grande propriedade rural.” "De certa maneira, pode-se dizer que ela constituia a ‘organizagdo fundamental do perfodo colonial, ser do @ produeéo, a administragdo, a defesa e o status social dos seres individuais dela dependentes. E como fungo desta organizago que podemos en- tender a sociedade da época, porque quem no ertencesse a ela, no teria meios de participar da vida coletiva” (Souza, 1972, p.303-304)!°, Visto deste angulo, 0 Brasil colonial, nascendo pa- ra incorporar-se a. uma economia internacional de mer- cado, poderia entio ser comparado a uma sociedade sem Estado? E possivel esquecer que a producéo e a circule- do de mercadorias estavam orientadas e controlades pe- lo Estado portugués, através de seus agentes aqui instala- dos desde 0 infcio? Ou que os “rituais e ceriménias”, evocados por Rubin, ¢ 0 status dos membros da socie- dade colonial eram também orientados ¢ controlados pe- la lgreja catdlica e seus representantes, presentes desde a primeira hora da colonizaglo? Seria ingénuo forcar 0 argumento até que ele se transformasse no seu reverso, quando a tentativa que se faz aqui é justamente a de relativizar essa imagem dom- nante na literatura sobre a familia no Brasil. A “familia patriareat” pode ter existido, e seu papel ter sido extre- mamente importante: apenas no existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da easa grande o processo total de formacio da sociedade brasileira. Para ambos os, autores parece no ter havido, neste pais onde a coloni- zacSo se fez de maneira tbo dispar, um processo de cons- tituigdo de unidades domésti nas muitas regides onde se instalaram os primeiros colo- nizedores. A histéria da familia brasileira torna-se, em suas mios, um objeto dado, individualizado, e é apenas ‘no seu interior que ocorrem as transformagSes: trata-se aqui de uma instincia do que Gienotti chama da “ ‘tauraeio de uma histéria universal por meio da destrut- 0 das historias particulares" (1976, p. 167). 0 concei ‘to de "familia patriarcal”, como tem sido utilizado até agora, achata as diferengas, comprimindo-as até caberem todas num mesmo molde que & entéo utilizado como onto central de referéncia quando se fala de familia no Bras tonio Candido chama a ateneio para outro ponto impor- 10 ‘ante: a utilizago de uma 6tica integracionista na anélise de uma situago onde a regra — como ele préprio afir- ma — era 0 oposto. Diz ele: “Por outro lado, e uma vez ‘que 0s brancos eram minoria até 0 fim do perfodo colo- nial, talvez no seja exagero dizer que até o século 19, ¢ para a populago como um todo, a procriagao em geral @ 2 satisfagio do impulso sexual ocor i ‘temente fora do que dentro do ambito da fami parecia ser a super-estrutura, 0 Spice desta extensiva @ persistente irregularidade."?” Por que decidir-se entio pela familia patriarcal, pe- lo elemento da “ordem’’ como foco de andlise em meio 2.uma “‘desordem’ tdo gritante, em que as “unides irre- ‘ulares” eram de fato a ordem dominante? O que assegu- rava, naquele momento, a futura prevaléncia (ao menos imbélica) daquela “‘ordem”; qual seria a visio dos que *5 Sobre o papel das relapSes de parentesco como fator predo- ‘minante na organizaedo dos Sociedades ditas primitvas, vera critica de Terray (1978) 6 No orignal de Antonio Candido: “From the functional point Of view, 2s has been indicated, this slid structure constituted ‘more of 2 system for bringing order Into the economic and political relationships than one for procreation and sexual ns. It_was the foundation of the entire economic, political ond social organization, es Olivera Vianna has ‘demonstrated in his study of the “simplitying function of the ‘great rural property” "To some extent, it may be ssid that it (the patiercal amity) constituted. the fundamental ‘organization of the Period, production, administration, defense, and the ‘status of the individual being dependent upon it It stand the society of the time, because one who did not be {ong to it lacked means of participation in the collective life”. Estas afirmagdes encontram aco também em Gilberto Freyre: “A casegrande, completada pela senzala, representa ‘odo um sistema econdmico, socal, politico: de proaucso (a ‘monoculture latifundisria; de trabalho (a excravidlo); de ‘Yansporte (0 carro de boi, © bangut, a rede, o cavalo); dere ligigo (0 eatolcismo de familie, com capeldo subordinado 20 pater familias, eulto dos mortos, ete); de vida sexual iia (pari casa (0 "tigre", ho de gamela, © banho de assento, {6 compectisme). Fol ainda, fort ppedaria, escola, santa easa de mi Those a vives, recolhendo érfaos lavarpts); de politica 2, bane, eemitéto, hos. iebrdla amparando 0: ve- (1978, p. XxIX) ” No original: “on the other hand, since the whites were 2 ‘minority until the end of the colonial period, perhaps it Would not be exsggerating to say that until the nineteeth century, ond for the population as a whole, procreation in ‘general end the satisfaction of the sexual impluse occured ‘more frequently without than within the legal realm of the family. The latter appeared to be a superrealm, the capstone of this extensive and! persistent irregularity” (1972, p. 300). Notese que, mais uma vez, o papel social de organizacSo ‘amiiar 6 reservado is classes dominantes, &s outras restando ‘um papel meramante bioldgico. O conceito de familia € no 4 destinado @ uma minoria branea como parece provir de dereri¢S0 do sua forma de orgenizagSo far guns ‘exemplos historicos @ discussdo dos casos de biologismo em Felacdo & mulher a familia. (Stoleke, 1980). Cad. Pesq., Séo Paulo, (37): Mai. 1981 viviam a "“desordem”, se a maneira pela qual se movia a sociedade colonial levou até alguns viajantes a prever, ate morizados, um Brasil futuro onde predominaria a raca negra, face & frequéncia com que os escravos se revol- ‘tavam e constituiam format de organizagio alternati- vvas 8s que thes eram impostas? Decidir-se por acomp: ‘har a trajetéria daquele pequeno grupo que, retrospecti- vamente, impds-se aos outros, aliado a outras parcelas da sociedade igualmente exclu(das do quadro, e apresenté-la come um grupo ndo é s6 coeso mas imune as batalhas do momento, € outra vez assumir a sua visdo da socieda- de coloni Gilberto Freyre, sob uma aparente defesa da “>ple- bbe" do pats, 0 que faz é transformé:la, apresentando a0 leitor um povo brasileiro — ou pernambucano — que des- cende diretamente do cruzamento dos “‘nobres”” da casa grande com os “nobres” da senzala, sem esquecer do concurso dos famosos padres “garanhdes” que t iam contribuido para o aprimoramento gené brasileiro. O elemento indgena, componente fundamen- tal no povoamento’ paulista, & caracteristicamente des: pprezado por ele como de menor importéncia, represen- tando 0 aspecto “infantil”, “feminino” e “passivo” de ‘nossa origem étnica. Antonio Candido, por seu lado, aceita a explicaeio tradicional: a camada dominante da sociedade brasileira dos primeiros séculos era provavel ‘mente composta de elementos provenientes da zona ru: ral, dos estratos médios e baixos da sociedade, o que ex- plicaria um maior conservadorismo e uma maior intimi- dade sua com a estrutura patriarcal da sociedade portu- guess Duas visdes aparentemente opostas — cade uma absorvendo da histéria portuguesa os elementos que me- hor parecem adequar-se ao modelo apresentado — mas {que se conjugam no resultado obtido: se hé uma famflia definida como normal, ela é Unica por contraste com a grande massa_ndo familiar que a cerca, definida como anormal. Um levantamento répido dos termos emprega: dos por Antonio Candido, da linguagem utilizada para omear os componentes do “‘ndcleo estabilizador’ Usixo de sumtentaio”, “noore”, “Yoreaestabiizado fa", "poder regulador, ete.) por oposi¢io aos utilizados para nomear uma "perferia” subsidise abvolutamente destitufda (“estrato social amorfo e anénimo”, elemen- tos vagabundos e desordeiros”, “caos sexual" etc.), suge- re afinal a aceitagao da frase tradicionalmente repetida e aceita por tanto tempo: “o Brasil ndo tem povo"”. Melhor seria empregar para esta familia patriarcal a defini¢o su gerida por Fernando de Azevedo, citada por este autor: ela & de fato um “instrumento disciplinador”. Adotar sua visdo do mundo em que vive, adotando também sua linguagern, & assumir no s6 0 seu mas também 0 ponto de vista dos agentes em Gltima instancia controladores do comportamento social no Brasil colénia, da Igreja en- te eles — esse “grande olhos escancarados sobre nés” co- ‘mo a definiu Gilberto Freyre. E também utilizar os mes ‘mos argumentos de que a classe dominante da época lan- ava mo para manter esa “massa amorfa” em seu lugar fe manter-se no poder! Se & fécil porceber que desde © comeco da colon zagio hé um afrouxamento na aplicago das regras cand- Repensando a familia patriarcal brasileira nicas referentes 20 casamento, sempre que interesses maiores estdo envolvidos, 6 possivel também observar ‘que a implantago da disciplina cristd foi uma forte es- tratégia de controle utilizado pelo Estado portugués na ‘ocupario do novo territério, embora esse controle te- nha sido muitas vezes usado pela Igreja em proveito pré- prio e contra os interesses do estado colonizador. Desde (5 pequenos conflitos narrados por Anchieta, com os primeiros colonizadores que pretendiam autonomia do bbrago estatal portugués, aqui representado pelos jesuitas expedicionérios que desejavam sua ajuda na explora- go da terra, até 0 suicidio de um exgovernador de dduas capitanias diante do impasse de voltar 8 metrépole com uma companheira ilegal de vérios anos, ou casar- se com uma mulher de classe “inferior’, 6 possivel acom- panhar @ utilidade da tentativa de implantar uma moral e uma ordem onde 0 casamento tinha importante papel, ainda que simbélico”® ‘As denunciages @ confissbes registradas pelo San- to Oficio em suas visitas as terras do Brasil, mesmo se as ‘olharmos com cautela em face da maneira como eram ‘obtidas © dos interesses que as moviam, sfo um bom ‘exemplo da extensio, do alcance deste olho que preten- dia fixar tio estritamente os limites de cada um que tor- aria mais fécil 0 acesso dos vérios mecanismos de con- ‘role a essa populagdo espantosamente mével. Ironica- ‘mente, os denunciantes pagos polo Santo Oficio eram ‘Fam grandes poredes de terra no Bratil, seus primeiros empre- Sirios rursis,eram pelo menos merecedores da confianca e de festima do rel, e que multos dos que re aventuraram por sue propria conta na nova terra eram ricos comerciantes urbanos, siguns deles eristdornoves perseguidos © que aqui se torna- ‘am senhores de engenno, participando efetivamente da edmi- nistragdo colonial. Anita Novinsky (1972) desmente Frayri ‘outros que afitmam a ndo integrardo do crstéo-nove Vidades agrériat ou administrative, apontando também 2 benevolénela com que muitos deles foram tratados palo Sento Oficio no Brasil, quando acusados de blastémias, ou palo governo da época, quando acusados de taigSo, Os que ®tetivamente foram punidos eram membros das camadas mais pobrer da populaeSo, Exta autora tambim oferece pitas pars ' caracterizogso da orgenizarSo familie desta parcela da po- pulagdo. Uma meior elaboreego deste ponto, extremamente fevelador sobre uma porcéo da classe dominante no Brasil Colonial merece ateneo mas deve ser adiada aqui. 1 Para a nocto de discipina, ver Foucault (1975) e para uma ditcussfo epistemologies do. termo normal, Cangullhem (1978). 0 proprio Antonio Candido its om seu ensaio (302) 0 exemplo de Braganga que, 20 pretender o estatuto de vila erm 1797, encontrou a ops da Chmara de Acibaia, 1" chamados de “familiares”, assim como eram “familia- res" 0s diabinhos utilizados pelas feiticeiras que pare- ciam existir em cada esquina das aglomeragies “urba- nas" do Brasil colonial Seria conveniente abrir aqui um parénteses para referir brevemente a posigio de ambos os autores sobre a situagio da mulher dentro desta familia. Antonio Can- dido, a0 descrever a sua esfera de ago como compl mentar & do marido, confirma que esta & a apresentacao do retrato de uma classe inteira: a mulher desta classe era a auxiliar direta do marido na manutenglo de seu lugar social e, se preciso fosse, poderia até assumir atitu- des mais “‘patriarcais” do que ele. Isto no nos deve fazer esquecer, no entanto, 0 fato de que formalmente a posi- ‘¢30 da mulher, enquanto tal, era inferior & do homer: ‘do so de desprezar 05 relatos que temos de fazendeiros ue encerravam suas mulheres quando safam em viagem, ou a existéncia dos famosos recolhimentos, onde as mu: Iheres adGtteras ou as filhas sem dote passavam o resto de suas vidas; sem falar nos impunes assassinos de mulhe- res de que nossa crdnica colonial esté cheia?!. Mas sem divida a situagdo da mulher estruturalmente igual 20 senhor de engenho era privilegiada; basta lembrar 0 es- Céndalo no convento do Desterro na Bahia, ocasionado pela visita de um bispo que se horrorizou com o niémero de escravas e bens materiais pertencentes as mulheres ri- cas ali internadas — além de exprobar suas sedas e seus decotes. Ironicamente, no caso do Dest nos, as mesmas normas sociais que marginal tas mulheres da vida familiar mais restrita do grupo do- inante na Bahia colonial, as integravarn er sua vida so- cial mais ampla. Essas freiras eram relativamente mai independentes do que suas companheiras de época casa- das; aprendiam a ler e a escrever @ conduziam aparente- mente com bastante sucesso os negécios financeiros do. convento, emprestando dinheiro a juros e cobrando na justiga tanto as dividas como as promessas de financia- mento dos parentes de suas ims de hébito??. Gilberto Freyre, se acentua a submisséo da mulher, repetindo a famosa frase de Capistrano para definir a fe milia colonial (“pai taciturno, mulher submissa, filhos aterrorizados”), no deixa de citar abundantes exem- plos de dominacdo das senhoras sobre suas escravas. O eixo de seu argumento a respeito da fundamentagio hi moniosa de nossa sociedade repousa sobre as relages se- xuais entre brancos e negras, sobre a ‘miscigenaco". Esta tinha duas causas: a escassez de mulheres brancas na colonia e a famosa ‘inclinago natural’ do Portugués para 0 ideal feminino de mulher de pele escu- a, adquirida entre os mouros, ou melhor, as mouras??. Para ele, colonizar o Brasil foi “um extraordinario esfor: {90 de virilidade” (dos brancos). Em primeiro lugar, ‘miscigenacéo’ no & uma questio resolvida de maneira homogénes em todo o territério e em todo © perfodo colonial. Em Sio Paulo, inicialmente, o cruzamento en tre brancos e indios superau o que ocorreu entre brancos € negros, 0 mesmo podendo ter ocorrido em outras re- igenacdo’, inclinagdes naturais & parte, era uma imposicgo da vida dos primeiros anos na colonia, ou pelo menos uma possibilidade. Aos funcioné rigs da Coroa portuguesa s6 excepcionalmente era permi- 12 tido, por exemplo, fazer-se acompanhar de suas familias, 20 contrério do que ocorria com os da Coroa espanho- la, Além disso, se a escassez de mulheres no inicio da co- Jonizago era mais geral do que Gilberto Freyre mostra, as suas conseqiiéncias em termos de poss lagdes sex miscigenaggo. Em segundo lugar, 0 argumento de que fhavia menos mulheres brancas do que homens brancos. 170 ppafs tampouco pode ser estendido a todo o perfodo colonial, nem a todas as regides. Em So Paulo, em cer- tas épocas, as mulheres livres mantiveram uma constan- te superioridade numérica sobre os homens livres, 0 que se poderia talvez esperar encontrar também no sertéo ou nas areas de fronteira?*. Nessas regides talvez a vida dos homens fosse, analogamente 8 do bandeirante, bastan- 20 © suicidio de Fernando Delgado de Castino 6 reatado por Prado Junior (1973, p.353), que considera “excepcion situaeSo de casados na época colonial, fora da eamada dom ante. Segundo Thales de Azevedo (1961) esta excepcionalt ‘dade perduraria até hoje, Tio Livio de Castro (A Mulhe Sociologia) afirmava em 1893 que “a familia como prWvil ‘io burocrata, a femilia ao sleance de 27% de populagSo no uma instituigdo publica, 6 uma imoralidade” (apud Satfioti, 1979, p.192), Um decreto de 1734 proibia osjutzes dese casarem nas colo- igs som a permissfo real (Kennedy, 1973, 0.426) ¢ ums lei Portuguesa estipulava 0 tempo durante 0 qual poderiam ficar atestados do Reino os homens que ai tinham deixado famt- Tig. Ndo obstante, 2 bigamia e o amasiamento que estes regu- lamentos tentavam coibir, eram profusamentecitados nos de- Poimentos registrados pelo Santo Oficie, por exemplo. So- bre o némero escasso’ de unites legos, ver também Boxer (1978): apenas das foram. colebradas na Bahia de 1738. Assim, néo ¢ de espantar que Antonio Candido chame a aten- ‘¢80 para a raridade de ropistros de caramentos interrociais: priviligio de uma clas. ‘s# que porece prezar sts sinals parecer apoiar {2 hipbtese de Foucault (1976, 9.159), no sentido de que as téenicas mais rigorosas de vigilénci repressio sexual, comecam por im Classe que trabalharb depois para torn 21 Ete parece ter sido 0 caso de Bento Teixsira, por exem- plo. © poeta da Prosopepéia esteve algum tempo recothido ‘20 morteiro de S, Bento em Olinda, no ano de 1694, depois ‘de mater a expose (Garcia, 1928). Ainda hoje a legads inf elidade da esposa, presumivelmente a razJo do sto de B. Teixeira, pode resultar na impunidede de seu essassino (Cor- ro, 1978) 22 Para uma detcrigSo dot recothimentos no Rio de Janeiro, ver LLuccock (1942) e Silva (1976). Sobre o convento do Dester- +0 na Bahia, vr Nascimento (sdp) e Soviro (1974), 29 Conforme informagses do historiador baiano, professor Cid ‘mas tembémm 08 "nego Teixeira, no apenas 2s ‘neges Fuld ‘ocorrido, ou selam lembrades, de rar ‘que so referom 2 ligagdes de so reas com escravos, Tombérn Charles Expilly (1835) menciona este tipo de amores e un: padre, citado nas enunclagées de Pernambuco, teria afirmado do pulpito: 'V6s outros homens no quereis senéo fazer adultério & vossas mulheres, pois desenganal-vos, que elas na mesma moe- a velo pagam’. (Garcia, 1929; Stein, 1970, p.187). Cad, Pesq., Séo Paulo, (37): Mai. 1981

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