Conto Popular

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87 O CONTO POPULAR Doralice Fernandes Xavier Alcoforado Prof. Assistente do Instituto de Letras da UFBA RESUMO —Determinamn-se a estrutura candnica predominante em trés tipos de conto € o proce- dimento instaurador do espaco maravilhoso comeelementos indispensdveis a compreenséo da na- tureza do conto popular. ABSTRACT ~ The canonical structure prevailing in three kinds of tales and the procedure that establishes the wonderful space are determined as elements which are indispensable to the unders- landing of the nature of a folk tale, .- outra: literatura, sem nome em sua antiguidade, viva e sono- ra, alimentada pelas fontes perpéwuas da imaginacao, colabo- radora da criagéo primitiva, com seus géneros, espécies, fina- lidades, vibracdo ¢ movimento, continua, rumorosa e eterna, ignorada ¢ teimosa, como rio na solidéo ¢ cachoeira no meio do mato, (CASCUDO, 1978). INTRODUGAO Os géneros na literatura popular, talvez mais do que na literatura erudita, estdo condicionados a um modo de existéncia determinado por formas de produgio. Disso decorre, em uma abordagem de um texto folclérico, a necessidade de um estudo in- terdisciplinar para a exata compreensio do fendmeno: alguns motives encontrados nas narrativas 6 podem ser explicados através das representagOes e das préticas migico-religiosas dos varios estédios do desenvolvimento da sociedade humana. Foi © que fez PROPP (s.d.), quando investigon a origem do conto popular em “A Ar- vore Mégica sobre 0 Timulo”, publicado em Edipo & Luz do Folclore, a respeito dos motivos, a inumagio dos ossos a Arvore magica que cresce do cadéver, encon- trados em contos de encantamento. Quando a oralidade € 0 iinico veiculo de comunicagéo, como nas sociedades iletradas, as formas fixas artisticas so a maneira propria dessa sociedade transmitir seus valores ¢ scus sentimentos as geragdes mais novas. As corregdes que uma mae deseja fazer a um filho, por exemplo, so efetuadas através de narrativas. Ea partir delas que “‘a sociedade define suas experiéncias, sua imaginagSo criadora ¢ seus co- mentérios para a sociedade”, pois cada “género se caracteriza por um conjunto de relagdes entre seus clementos formais, seus registros teméticos © seus usos sociais possiveis” (BEN- AMOS, 1974, 275).E através desse sistema de distingdes € corre- ages que os géneros populares tomam-se uma categoria de experiéncia cultural, vefculo de comunicacdo de uma sociedade ou de segmentos dela, Sitientibus, Feira de Santana, (5) :87-99-janJjun, 1986 BN A audiéncia ¢ 0 canal de transmissdo. Sem o que nao haver4 narrativa, conse- giientemente, as informagécs ndo podem circular. Em sintonia com a natureza do Canal, a construgdo estética explora determinados procedimentes estilisticos que re- presentam através de sons, gestos, entonacao, as imagens do que se deseja transmi tir. Em decorréncia da sua natureza, os géneros nartativos orais encerram uma mistura do pico com o dramético. O narrador do conto popular, por exemplo, su- perpic cm uma 56 pessoa as fungées de narrador, de ator ¢ de criador. © passado do relato torna-se presente na encenacdo qug, através da interagéo do ritmo, da gesti- culacdo ¢ da inflexdo de voz, se comunica com a platéia de maneira envolvente € mais persuasiva que uma fria e simples narragao. 1 A ESTRUTURA DO CONTO POPULAR © conto popular, como forma verbal, é simultancamente uma experiéneia do real ¢ uma prética cultural de comunicagao. Surge da necessidade de um tipo de so- ciedade falar da sua organizagao social ¢ transmitic as suas experiéncias. Segundo os antropSlogos, sua origem remonta as praticas religiosas, aos rituais, que também deram origem aos mitos. Como forma verbal, 0 conto popular apresenta uma construcéo, uma forma ar- tistica elaborada nao apenas por uma imaginaco individual, mas resultante, sobre~ tudo, da criatividade de vérias geracdes. E uma criago da imaginagio coletiva. Ea “Soma do Todo”, do dizer de André Jolles. Como uma forma coletiva, passa por in~ cessantes acomodacdes em cada nova realidade, atualizando-se para melhor atender 2 instrumentalidade da forma c ganhando novo perfil, ao submeter-se aos impulsos ctiativos de cada novo executante, que sero tanto mais significativos quanto mais exuberante for a sua imaginagdo criadora. O ato de transmissdo de uma estrutura ja canonizada nio significa pura e simplesmente um ato de repeticao da “letra”. O texto recebido aciona @ imaginacdo do executante que, estimulado pela platéia, acrescenta a nivel da forma, elementos enriquecedores que vo lhe dar nova fisio- nomia, O texto transmitido nao ser o mesmo recebido, pois o executante nele cu- hou o seu préprio texto que, a depender do grau conotativo que atinja, poderd sustentar um sentido a nivel manifesto ¢ outro a nfvel latente. O entrelacamento desses planos, por sus vez, possibilita a criacao de um espaco simbélico, gerador de novos sentidos. A nivel do simbélico se instaura o jogo que transporta o ouvinte para um espago de prazer, de entretenimento, de emogdo que s6 0 estético desenca- deia. Esse lado Kidico do texto 6 0 que mais atrai e prende ¢ também o que o torna mais eficiente como instrumento de comunicagdo. Como veiculo de comunicagao, © conto popular é mais dependente de uma re- ferencialidade externa e de uma forma de existéncia e tem a sua vigéncia garantida nas varias adaptages que se operam a nivel de significante. Remotamente © conto popular era um vefculo de comunicagao de uma socieda- de iletrada; posteriormente torna-se veiculo de uma classe, geralmente analfabeta ou semi-alfabetizada que, ndo tendo acesso A cultura oficial, se vale das narrativas para Swtienaibus, Feira de Santana, XS) :87-99-janJjun, 1986 89 transmitir seus valores, seu modo de existéncia ¢ suas expectativas de vida. Assim, 0 conto veicula tracos particulares, identificadores de certos segmentos sociais, confi- gurados em um contexto. Se difundido ¢ aceito universalmente, deve-sc ao fato de sucessivas migragées 0 colocarem em contato com outras realidades ¢ as perma- nentes adaptagées 0 viabilizarem como instrumento de comunicagao de uma nova cultura, Desse modo, ao quebrar essa distancia temporal, destréi-se ou neutraliza-se a tensio existente entre texto e atualidade, 0 que nao € possfvel no texto literdrio. A adaptago tem a fungéo de colocar 0 conte em sintonia com as modificacdes estru- turais encontradas em cada nova realidade, Assim, nos contos migrados para o Nor- deste brasileiro, os palécios foram substituidos pelos engenhos de agiicar, pelas fa- zendas de gado, permanecendo, entretanto, na figura do dono do engenho ou da fa- zenda o mesmo status econdmico ¢ social do rei. ‘A maior mobilidade da forma popular, porém, contraditoriamente, ndo Ihe permite uma grande variabilidade de estrutura. Quanto mais tradicional, mais credi- bilidade tem junto ao piblico ouvinte. Essa variabilidade resulta em alguns tipos de contos. CASCUDO (6.4.), em Contos Tradicionais do Brasil, admite a existéncia de doze tipos, baseando-se no fndice de classificagéo Aarne-Thompson. Para o conhecimento mais profundo da estrutura dos contos populares, selecio- namos uma amostra contendo contos de encantamento, de animais e de exemplo, ‘que possibilitou a apreenséo da estrutura que subjaz em cada um desses tipos, ‘Contos de encantamento. Os contos de encantamento ou de fadas, como so mais conhecidos, so aqueles que, partindo de uma indefinigao espago-tersporal, falam de um heréi que parte para uma aventura onde se depara com problemas de dificil solugdo e, s6 através da ajuda de elementos mégicos, pode superd-los, ser re- conhecido como herdi e se casar com um descendente real, Esse heréi dos contos de encantamento pode ser homem ou muther do povo, via de regra, como um principe ow princesa que, circunstancialmente, ¢ por tempo limitado, perdeu sua condigfo so- cial. Dada a diversidade dos contos de encantamento, tem-se a impressdo de que eles, possuem grande variedade de estrutura. Apesar da diversidade de sua forma, uma Jeitura mais atenta revelard a presenca de alguns elementos invariantes neles pre- sentes. Esses elementos constantes foram detectados por PROPP, em 1965-70, em Morfologia do Conto, ao descrever os contos maravilhosos russos ¢ por ele denomi- nados de fungées. Os valores constantes da agdo das personagens definem-se a par- tir da sua significagdo no desenvolvimento da intriga € sfio em niémero de 31 (trinta eum). Para a apreensdo da estrutura do conto de encantamento, partiu-se para a and- lise descritiva das varias fungbes das agSes das personagens de cada conto, Nesses contos, detectou-se a presenca de elementos estruturais constantes, comuns a todos eles e que, mesmo quando no explicitados, 0 seu espaco Ihes era reservado. Tais elementos constituem-se nas invariantes estruturais menores que sustentam 0 mo- delo desse tipo de conto, Assim, a partida do heréi, a tarefa dificil, a ajuda de ele- mentos magicos, 0 reconhecimento ¢ 0 final feliz representam as fungdes, constantes, indispenséveis & articulagao da narrativa dos contos de encantamento. Se Prop Sitientibus, Feira de Santana, 3(5) :87-99-jan{jun. 1986 90 destacou 31 (trinta e um), certamente essas cinco fungdes so as mais importantes, porque definidoras da sua natureza. A partida do herdi, afastamento do seu habitat paca passar por provagées a arefes dificil — a que ele supera gracas 3 intervengdo do ajudante magico, constitui o embriio narrative, origem de toda a seqiiéncia que formard @ “univers” do conto de cncantamento. A acao do ajudante magico, por sua vez, possibilita a fantasia se espraiar, criande um espaco simbélico onde os significados a nivel aparente reme- amplos, Ao afastamento do herdi ¢ A conseqiiente provacdo a que é submetido, pode subjazer a necessidade de um crescimento, de um amadurecimento que todo individuo precisa atingir para voder assumir um dos pa- pis definidos pelt organizacio da sociedade. As tarefas diffeeis por ele assumidas no se concretizariam sem a interferéneia de foreas sobrenaturais, desencadeadas pelo ajudante magico. A partir da instauracdo dese espaco simbélico, a imaginagao alga scus niais altos vOos nas paragens da fantasia, possibilitando 0 enriquecimento do texto, & medida que esse nivel simbdlico Ihe confere uma auto-referencialidade maior, como texto artistico em sua imanéncia, ¢ uma maior autenticidade como texto ficcional, Mesmo quando a ace do elemento mégico nfo esté explicada, sub- cende-se a sua exi s6neia através de um dominio do espago ¢ do tempo, superior 20 desempenho natural humano: ou, entdo, o her6i jf se apresenta metamorfoseado em uty animal (sapo, lagartdo, fers e tantos outros) o que pressupée a existéncia dese espago maravilhoso. Finalmente, a consagragdo e o reconhecimento do her6i sho ratificados, reitera- dos pela recompensa final, taduzidos por um casamento com o principe ou com a princes, cunonicamente denominado de final feliz, que implica ainda riqueza e po- der, Quando isso go ocorre — raramente — a recompensa se reduz a dinheiro, ou hé auséncia de recompensa, atribufda a esquecimento ou a inovagao do narrador, dei- xaudo a impressio de conto ndo concluido (A Bota Misteriosa). ‘As cinco fungdes constantes bisicas do conte de encantamento, a partida do he- r6i, a tarefia dificil, a ajuda de elementos magicos, 0 reconhecimento e o final fell apés passarem por rearrumagdes, reduplicagées ¢ receberem encaixes de noves mo- tivos, organizam-se em novas seqiéncias narrativas, possibilitando uma infinidade de rearticutagdes — as versbes ou as variantes, Se essa variabilidade de formas, por um lado, dificulta delimitar matriz ¢ variante, por outro lado, traz para 0 conto de cncantamento maior complexidade ¢ riqueza, tanto a nfvel da fabulagdo, como a nivel do seu significante, Certamente por isso o conto de encantamento, mais do que qualquer outro do género popular, desencadeia a fantasia em criangas e adultos. Gragas, sobretudo, a esse trabalho na forma, esse tipo de narrativa se aproxima mais, da chamada literatura erudita, Tal aproximagao deve-se no apenas a existéncia de um espaco simbélico que camufla sentido a que o texto remete, mas também a0 préprio tecido do texto apresentado por ambas as formas, embora em graus dife- rentes. A presenga de um espago maravilheso, preparado ¢ introduzido no inicio do texto por uma indefinigio de tempo e de lugar —— “Era uma vez..." —, repre- senta 0 trago mais caracteristico e definidor do tipo de conto chamado de encanta- ‘mento. tem a outros mais profundos ¢ Sitientibus, Feira de Santana, 35) :87-99-janJjun, 1986 91 Contos de exemplo. Nos contos de exemplo tem-se, como primeira funcao que desencadeia a intriga, um delito contra uma norma de cardter social. A infracdo dessa norma traz, como conseqiiéncia, a condenagao do infrator, geralmente a mor- te. Recorrendo & sua sagacidade para tentar inverter a situagdo de desvantagem em que se encontra, o sagaz, de réu, se transforma em her6i, O modelo da estrutura nos contos de exemplo estudados tem como elemento de transformagGo a sagacidade ressaltada e, de certa forma, incentivada. Ao contrério, a ambigdo desenfreada € desestimulada ¢ sobre cla recai toda a forga da punigao. Em alguns deles, 0 esquema das funcées varia ligeitamente sem, contudo, afetar 0 mo- delo. Q clemento estruturador do conto de exemplo —— 0 antagonismo Bem versus Mal — conduz o desfecho para uma li¢do de moral, punindo com a morte os sen- timentos negativos, nada altrufstas, como inveja e ambico. H4 a valorizacdo do es- Pirito de luta e da sagacidade, fraco, o desprotegido, o simplério, porém sagaz, sempre sai vitorioso. Utiliza a sagacidade como arma contra os poderosos, sendo- Ihe, até mesmo, permitido langar mao de expedientes pouco recomendsveis nesses confrontos. A vit6ria tem um sabor de desforra, como se 0 fraco ali representasse toda uma classe massacrada pelas injustigas sociais. Seu her6i tem tragos dos heréis picares- cos. Vale-se da malicia e da astécia para inverter a situagao de desvantagem diante de um epis6dio e da propria vida. O mito do Malazartes neles circula. © tipo de he 16i desses contos encontra-se bastante difundido até mesmo nos contos de encanta mento, mas sobretudo no cordel, onde sua situacao de desigualdade nao sc apresenta apenas no plano social; fisicamente, também, caracteriza-se como um individuo ra- quitico, amarelo, com cara de bobo. Tem-se como exemplo o Joao Grilo, imortali- zado pelo cordel ¢ “literalizado” por Ariano Suassuna em O Auto da Compadeci- da.Seus tragos fisicos ratificam posigao de desvantagem diante da vida. Como a sa- gacidade ndo tem um signo externo, aparentemente ninguém d4 nada pelo “amare- To” €, por isso, esse tipo de her6i sempre surpreende. Na verdade, 0 que hd mesmo no conto de exemplo é a velha oposi¢o Bem versus Mal, to difundida, sobretudo, no interior, no meio rural, onde os remanescentes de uma obra catequética de ins~ piragSo maniqueista ainda so muito fortes. Nos contos de’animais, predomina 0 modelo: a astdcia transforma a vitima em her6i vitorioso ou a astiicia $6 nao vence a prudéncia ou a experiéncia seguindo a mesma estrutura da fabula, na acepgdo que Ihe d4 La Fontaine, pois encerram uma intencdo moralizante explicitada, © narrador se mostra simpitico ao animal que encontra em uma situago de desvantagem, quer seja pelo tamanho, pela forga fisica cu por um outro trago caracteristico, que o leve a ser motivo de galhotia, Nao po- dendo concorrer em condigdes de igualdade pelos seus “dotes” fisicos, o que fatal mente o levaria a uma derrota, poe-se em destaque a sua “inteligéncia”, Gnica’a de que dispde para enfrentar o inimigo com possibilidade de vitéria, Sua matreirice ganha relevo, tematizando um dito popular: “Quem nao é © maior, tem que ser & melhor”. Somente a prudéncia c a experiencia podem vencer a astiicia. A experi- Sitientibus, Feira de Santana, 3(5):87-99=janJjun. 1986 92 mentacdo da realidade € valorizada como uma pritica indispensdvel ao amadureci- mento, Tais contos valorizam a esperteza ¢ a asticia no animal como cquivalentes da inteligéncia no homem, A comparagdo entre a forga fisica ¢ a “forga” da inteligén- cia est tematizada no conto “O Touro ¢ 0 Homem” em que a fortaleza do homem, to decantada pelos outros animais, € testada por um touro que se julga superior & sai para comprovar tal fato, Diante de tamanha ousadia, o homem dispara-the um tiro de bacamarte. Instado, tempos depojs, sobre o acontecido, responde © touro: “— Ah! meu amigo, s6 com um espirro que ele me deu na cara, olhe em que esta~ do figuei!” (CASCUDO, s.d. 269). Desses contos de animais estudados, dois fogem totamente A estrutura dos de- mais, tanto no que diz respeito a uma ldgica estrutural que os aproxima das fébulas, como também por nfo apresentarem uma moral convencional de influéncia cristé. O primeiro, O Macaco ¢ a Negrinha de Cera, mistura dois motivos de contos distintos: prisdo do macaco pelo boneco de cera e a morte de quem comeu carne de animal encantado. O motivo da priséio do macaco pelo boneco de cera circula em varios pafses da Europa, Mas 0 outro motivo, Cascudo diz ser de origem africana. A morte para quem come a care encantada deve ser uma reminiseéncia de antigas proibicies, adotadas pelo sistema do totemismo em que cada clé escolhia um animal, considerado seu antepassado e seu protetor. Matar o animal ou comer a sua carne constitufa um tabu, tido por FREUD (1973) em Totem ¢ Tabu, como o ponto central do totemismo. No Recncavo baiano, CAMPOS (1939) coletou 0 conto O Rei dos Péssaros —— com esse mesmo motivo. Em outro conto, a Aranha Caranguejeira e 0 Quibungo, também recolhido por CAMPOS (Gp. cit.), a personagem principal € a aranha, pouco referida nos contos brasiJeiros © muito popular em algumas regides africanas. A anansi, assim chamada naquclas regides, constitui um animal mitico, O tecer da teia simboliza 0 trabalho ancestral dos tecelées. A aranha mitica Thes ensinou a ciéneia da tecelagem, diz BA (1982), em Histéria Geral da Africa. Nesse conto, a aranha apresenta entre os scus tragos caracteristicos, a asticia, a prudéncia, mas, sobretudo, a traigao. Paga o bem com 9 mal a todos os favores recebidos. Ludibria com o fim deliberado de maltratar, de espicacar © animal que estiver em sua mira, Revela-se uma estéria de origem africana nfo apenas pelo tema abordado, mas pela presenga da aranha. Como na maioria dos contos de animal, hd a vit6ria do mais hébil, mais astuto, embora figura da em uma personagem mé, Nao se observa, porém, a luta maniguefsta do Bem contra 6 Mal de uma moral de influéncia crista. Ao contrério, a moral & primitiva. Fala-se da ferocidade natural em que a lei da sobrevivéncia, na dispute pela vida, dé a Vit6ria ao mais hdbil, mais capaz, mais astuto, que sabe tirar proveito da situagéo. A astiicia € levada até as dltimas consequéncias, sem a preocupacéo ——~ preconiza dana moral ocidental-—— de reparar danos ou de punir quem a tiliza, Nos trés tipos de contos examinados, constatou-se a predomindncia de uma es- trutura candnica para cada um deles, que subjaz as variagées de forma, Q conto de animais € 0 que apresenta maior variedade de estrutura, ndo obstante nele predomi- nar o modelo di fabula eldssica, A narrativa aleg6rica do conto de animal, de cardter Sitientibus, Feira de Santana, 3(5) :87-99-janJjun. 1986 93 aparentemente ingénuo, como na fabula, esconde uma moralidade inferida dos va- lores de um modelo de sociedade. Esse tipo de narrativa poe em destaque certos tra~ G05 totémicos ancestrais, necessdrios ao desenvolvimento psicolégico do homem em um dado momento da sua evolucao. Também o conto de exemplo, estruturando-se através do antagonismo Bem versus Mal, tem uma finalidade moralizante bastante explicitada: endossar valores de um modelo social. O ponto de vista da narrativa est sempre do lado dos mais fracos, instrumentando-os com “armas” e®impativeis com a sua condigio social, mas suficientemente potentes para abater os fortes, os poderosos. Sua estrutura niio apresenta a variedade de formas nem a riqueza de imaginacdo dos contos de encan- tamento. © conto de encantamento, dos modelos estudados, apresenta a maior diversida- de de formas, embora sua estrutura ndo sofra modificagies, A existén Pago maravilhoso, como elemento estruturador desse tipo de narrativa, estimule a imaginagao popular, possibilitando a riqueza das versdes ou das variantes que, se por um Jado dificultam um estudo da origem de um determinado conto, precisan- do-Ihe 0 texto-matriz, por outro, é um elemento de atracdo que minimiza a rotina da tepeti¢o da mesma letra. © elemento maravilhoso tem ainda 0 poder de instaurar uma nova Iégica que passa a reger os acontecimenios, retificando no mundo real aquilo que no atende as expectativas ¢ aos desejos de cada um, ia de um es 2 OMARAVILHOSO NO CONTO DE ENCANTAMENTO. © maravithoso no conto de encantamento cria um modelo de realidade em que 08 acontecimentos € as coisas no podem ser explicadas por uma l6gica conven nal, embora essas coisas e acontecimentos guardem certa verossimilhanca com a realidade, Nesse modelo de mundo criado, os desejos c as Fantasias do individu po- dem realizar-se, pois, ao construir-se um mundo fantasioso, instaura-se uma légica diferente da convencional que passaré a reger os acontecimentos de modo que esse satisfagam as expectativas ¢ os desejos do homem. Assim, através da experimenta- Go dessa realidade, subtraem-se e repdem-se as pecas de um joyo alimentade pela imaginagéo criadora, quc retiticam, no mundo real, aquilo que nio atende tis uspira~ goes do homem e, consegiientemente, nao o satisfaz. Através dessa nova légica, 0 mundo ordena-se dentro do que Jolles chama de “moral ingénua”, isto é, 0s acontecimentos se passam como os individuos vostartam que acontecessem, de modo que, no desenrolar da ago narrativa, haja a punigio para 0s maus © 0 prémio para os bons. Essa gratificaco final cria a expectativa de vit6ria que instrumentaliza a personagem com suficiente coragen ¢ disposicio para enfrentar os maiores perigos e para vencer qualquer dificuldade. Com a certeza de que no confronto entre Bem (fadas) ¢ Mal (bruxas ¢ gigantes), 0 Bem prevalecerd, a ago do clemento magico € entendida como o veiculo nevessirio para que « injustics ova “imoralidade do universo real” seja reparada, Sitiemtibus, Peira de 5):87-99-janJjun, L9Ke © modelo de mundo idealizado estrutura-se, nos contos de encantamento, com um afastamento do agui e do agora para onde se transporta o ouvinte. E, a partir desse deslocamento no tempo ¢ no espaco, introduzido, geralmente, por “Houve um tempo...”, “Era uma vez,..”, forma candnica que dé infcio & narrativa desses contos, © ouvinte penetra em um outro mundo, 0 mundo do faz-de-conta onde novas leis 0 regem e uma nova ordem se instaura com causalidade prépria, diferente daquela do mundo natural. A nova ordem ndo afeta a compreensio ¢ a accitagao desse univer- 0, sem qualquer constrangimento ou outfa reagdo que nao seja a familiaridade por parte da personagem, mesmo diante de situagGes estranhas. (Maria Gomes): Uma vor misteriosa disse: —Maria Gomes? O jantar esté na mesa! = Maria Gomes? Seu quarto é 0 tiltimo, no corredor! A moga encontrou um quarto preparado de tudo, muito con- Jortével, com roupa para mudar ¢ objetos de uso: Deitou-se dormiu trangiilamente. {CASCUDO, s.4.,86) Estende-se essa familiaridade ao ouvinte que, identificando-se com o heréi da estéria, ndo percebe estranheza nos acontecimentos. A indefinigao com que se inicia a narrativa dos contos aparentemente evita qualquer identificaco com pessoas ou fatos concretos da Hist6ria, possibilitando veicular um modelo de sociedade idealizada, mais confidvel, desde que no comprometido com ‘0s modelos viciados ¢ problematicos do quotidiano, Desse modo 0 ouvinte, evadin- do-se para outras paragens criadas pela fantasia, aliena-se do seu mundo real ¢ en- volve-se numa atmosfera de encantamento. © cardter Ifidico dos contos de encantamento nivela adulto e crianga, trazendo de volta o passado infantil. As personagens, ao atuarem numa realidade indetermi- nada, intemporal, perdem a sua identidade de pessoa para se transformarem em ti- pos, com um comportamento padrao, pertinentes a determinado modelo de socieda- de. Nao € sem razio que essas personagens sio designadas por nomes comuns: 2 princesa, 0 principe, o rei, a rainha, a moga, 0 rapaz, o velho ¢ tantos outros. Mesmo quando a designagao se da através de um nome proprio, € a nogo de generalidade que subsiste. A indefinigdo cria um espaco maravilhoso, regido por leis préprias que desfa- zem todas as barreiras, todos os limites entre 0 fisico ¢ © metafisico, onde a natureza das coisas € dos acontecimentos se afasta do convencional, do estabelecido, do es- tritamente racional. A extraordinariedade se instala, A medida que essas coisas € es- ses acontccimentos “exorbitam as leis fisicas ¢ as normas humanas.” (CHIAMPI, 1980, 48). E, ao fundir-se natural ¢ sobrenatural, um desdobrando-se no outro, possibilita-se uma experimentacdo mais abrangente e mais profunda da realidade, pois, ao desaparecer o limite entre um espaco interior mitolégico, atemporal, que 0 “inconsciente coletivo” armazenou ¢ um espago exterior, social, marcado por um Sitientibus, Feira de Santana, 3(5) :87-99-janJjun, 1986 95 sistema referencial do leitor, amplia-se 4 percepcio de realidade que ndo se res tinge apenas ao dado racional, convencional, mas também ao irracional que, & pri meira vista, d4 a impressio de distorgdo, de deformagdo desse real. Esse modo de percepcao ¢ de experimentagdo abrangente constitui o maravilhoso. A indeterminagio espaco-temporal com que se inicia a narrativa desses contos apenas despista um vinculo mais profundo com elementos extratextuais de outras séries culturais que determinam 0 modo de producio e de recepgio do texto. Com- prova-se tal afirmativa com a necessidade,de um constante adaptar-se da forma do conto a novas realidades que o executante opera, no scntide de the prover de uma maior instrumentalidade ao agui ¢ ao agora. O afastamento introduzido logo no ini- cio da narrativa e a recorréncia a elementos mégicos na solucao de impasses criados, na fabulagdo apenas camuflam a utilizagdo de todo um idesrio mitolégico popular em que as crencas religiosas, a visio mégica do mundo e as tradigdes varias, herda- das de um modo de existéncia coletivo de uma ancestralidade, fluem, religando 0 ouvinte a uma meméria atévica, reprimida pela racionalidade da vida moderna, Nesse jogo de esconde e mostra, as duas I6gicas se articulam, criando procedimentos discursivos que envolvem 0 ouvinte numa atmosfera de encantamento, subjacendo, entio, um sentido mais amplo ¢ mais complexo de toda uma cultura recaleada que, parece, s6 pode existir em um mundo de fantasias, ao tempo em que, através de es- tranhas leis de causalidade, uma ética de um modelo de socicdade € referendada, A fusio do cultural com © social se harmonizam de tal forma que, através do efeito de encantamento, devolve a fungio comunitéria de comunicagio ¢ integra 0 ouvinte a um espago cultural hist6rico como “ser da coletividade, como membro de uma (de- sejdvel) comunidade sem valores unitérios ¢ hierarquizados”. (CHIA MPI, 198,69). Anuladas, assim, no conto de encantamento, as oposig6es entre natural e sobro- natural, os fatos e os scres fantésticos perdem a carga de estranhamento que, incor- porando-se ao sistema de referéncia do ouvinte 0 traz de volta ao familiar da sua realidade hist6rica, A funcio léidica é a de ensinamento desses contos articulam-se, conferindo-Ihes uma maior eficiéncia como instrumento de comunicagéo cultural. Através da interagio dessas duas I6gicas, uma imagem orgdnica do mundo, uma vi- sto de totalidade do universo se estrutura. Emerge dessa nova ordem uma causalidade propria que, nao dissociando o dado racional do mundo exterior da ilogicidade do mundo subjetivo, motiva ¢ explica uma percepcao diferente, deformada dessa sealidade, se comparada & causalidade do mundo convencional. Essa indiferenciaco leva a crianga a compreender as reagoes ambivalentes dos adultos, motivadas por sentimentos antag6nicos, como oriundas de pessoas distintas: a ternura identificando-se com a mae ¢ a avé, enquanto a agressio identifica-se com a madrasta, com 0 lobo. Muito comum no conto de encantamento, é esse mecanismo de transformacao, tornado operacional por uma causalidade extraordindria ou pela acio de seres so- brenaturais. Os seres extraordindrios neles se apresentam com superpoderes sobre os mor- tais e sobre todas as leis do universo, o que’os leva a praticarem as mais diferentes transgressGes, eliminando a barreira entre natureza e sobrenatureza, entre realidade Sitientibus, Feira de Santana, (5) :87-99-janJjun. 1986 96, ¢ fantasia, Novas leis so institufdas, nova I6gica passa a vigorar e uma nova ordem se instaura, O mundo fisico € 0 mental se interpenetram, modificando as suas cate- zorias. © tempo parece nio fluir ou, entdo, se prolonga, apagando as nogées con- vencionais de temporalidade (A Princesa do Sono-sem-Fim): w» fado esta menina para que, quando o fuso the ferir a palma da mio, niio morra mas fique dormindo cem anos, acordada que seja por um™ principe, case e seja feliz. (CASCU- DO,s..,47-8) Também as barreiras espaciais se desfazem © o deslocamento das personagens se efetiva, contrariando as mais elementares leis fisicas (A Filha do Pescador): Maria pegou o vestido, enrolow, guardou e se agarrou no Sol. O Sol deixou maria na casa da Lua. (BIBLIOTECA,1981, V.6.27). Constata-se a agdo de seres sobrenaturais como fadas,bruxas, gigantes que deci- dem sobre o destin das personagens, fazendo-as, 0 mais das vezes, joguetes dos seus caprichos. F. comum a existéncia de objetos que geralmente funcionam como ajudantes magicos dos heréis nos momentos diffceis em que a simples acéo humana nao € suficiente para desvencithé-los das garras do inimigo, conduzindo-os & vit6ria (A Bota Misteriosa}: Aqui, 0 amarelo pegou os trés objetos: — Capa, me encape! Carapuca, me esconde! Bota, me bote na casa de Dio José primeiro de que aquela moca! (BIBLIO- TECA, 1981, V.3,25) Os ajudantes mégicos também podem ser ammais que falam ¢ tém muito dos atri- butos humanos, chegando mesmo a orientar os heréis no confronto com os seus an- tagonistas (Q Filho do Lenhador): A burrinha jé sabia, adivinhava tdo no mundo, disse assim: ~ Maria, na tua casa vai chegar wm rapaz de branco, montado num cavalo preto, Esse rapaz € 0 cao. (Ibid., V-1,25) Mecanismo de transformacio muito comum nos contos de encantamento é a metamorfose: pessoas se transformam em animais por tempo determinado e, finda a provacdo, reassumem a forma humana.As metamorfoses materializam a transgres- séo dos limites entre palavra ¢ coisa corh que um modo de pensamento, utilizando- se de operagées. predominantemente sensiveis, busca apreender abstrages como imagens, como coisas. O sobrenatural se instala a partir do momento em que as pa- avras passam a ser coisas. Sitientibus, Feira de Samana, 3(5) :87-99-jan jun, 1986 7 ‘As metamérfoses geralmente acontecem por dois motivos: puniggo ou predes- tinacdo. A punigao pode ser motivada por uma desobediéncia a certo cédigo que ve- da o acesso de pessoas a um determinado lugar interdito. A violagdo dessas normas resulta numa penalidade. O ato ousado € punido com a transformagio do seu res pons4vel em animal (Jodo sem Medo): “No que 0 rapaz entrou no Reino a bruxa encantou-se ¢ ele ficou transformado numa lagartixa”. (BIBLIOTECA, 1981, V.6, 16). O fato do antagonista ser colocado em uma situagao de desvantagem em rela~ do A personagem leva-o a punf-la, valend6-se da ago de elementos magicos. Em A Moura Torta, a beleza da moca provoca inveja na antagonista que, sabendo no po- der concorrer em condigdes de igualdade, a transforma em pomba. ‘A punigdo também pode se efetivar devido a uma blasfémia da personagem por ndo aceitar a vontade de Deus, ou nao respeitar os preceitos religiosos (0 Veado de Plumas e O Principe Lagartéo). Por vezes, a metamorfose nao tem a sua motivacdo explicitada, podendo, nesses casos, a personagem aparecer jé transformada em ani- mal, desde 0 inicio da ago narrativa ou se transformar no desenrolar da fabula (A Moga Encantada): “...eu trouxe um signo de no dia que cu me casar transformar-me numa serpente”. (BIBLIOTECA, 1981, V.9, 5). A metamorfose geralmente se con- cretiza pelo simples desejo do antagonista (Jodo sem MedoJ0’ com a ajuda de-ob- Jjetos “enfeiticados” como o alfinete de A Moura Torta. Rarfssimas vezes 0 agente do Mal se transforma em vefculo do Bem (José e Maria) ou assume diferentes for- mas para ajudar o her6i apenas com o objetivo de recuperar algo que este the tirou (O Fitho da Burra). A metamorfose pode processar-se ainda como forma de livrar-se do antago- nista ou como meio de enfrentar com sucesso 0 adversério (O Filho do Lenhador), ou ainda como estratégia para vencer uma disputa (O Espetho Magico). Para que as pessoas metamorfoseadas assumam ou reassumam a forma humana, faz-se necessdrio, por vezes, cumprir um tempo de provacio ou, mais freqiiente- mente, submeter-se a uma prova de fidelidade, 3s vezes, associada a um ato de arre- pendimento (0 Fiel Don José}, obedecer a certos preceitos ou depender de um ato de coragem ¢ valentia (Jodo sem Medo). Desrespeitadas certas recomendacées, ge- ralmente a durago da metamorfose € dobrada ¢ a desobediéncia é reparada por um perfodo de provacées, quase sempre severas, apés 0 que pode-se chegar ao ser me- tamorfoseado (O Papagaio Real): “Ai ingrato! Dobraste-me os encantos! Se me quiseres ver, s6 no reino de Aceléis.” (CASCUDO, s.d.,45). As vezes, a volta a condigdo humana nio depende apenas de desejo; mas de climinar a ago do instru- mento magico, agente da transformagao (A Moura Torta) ou de destruir 0 elemento caractetizador da metamorfose (O Principe Lagartéo). A existéncia desses seres dos fendmenos sobrenaturais originam-se do mo- mento da evoluciio do homem em que os fendmenos da natureza tinham a sua causa ignorada. Ao definir uma lei geral que explica o mais antigo desenvolvimento de certos povos,Levy-Bruhl afirma que o homem primitive ndo era capaz de conceber~ se a si proprio e ao mundo como entidades distintas.(PROPP,s.d..44). As forcas da natureza Ihe pareciam coisas estranhas, misteriosas ¢ superiores. Assimila-as, perso- nificando-as, Essa fase animista também faz parte de uma etapa da evolucao mental Sitdensibus, Feira de Santana, 3(5) :87-99-jan.Jjun, 1986 ON da crianga que ndo apenas concebe as coisas com vida, como também dotadas de intengio, como firma PIAGET (1967), em Seis Estudos de Psicologia, ao tratar da evolugio do pensamento nas vérias fases de desenvolvimento da crianga, justifican- do esse comportamento como uma confusio entre o mundo interior € o universo fi- 0. A fase pré-l6gica do pensamento em formagao € comum ao homem primitive ¢ i crianga. Em ambos, o pensamento verbal se estrutura no jogo simbélico, satisfa- zendo © cu por meio da transformagao do real. A ficgdo completa e corrige a reali- dade. ¥ TODOROV, (1975), em Introdugdo & Literatura Famédstica, a0 falar dos ele- mentos sobrenaturais, afirma que a existéncia desses seres simboliza um sonho de poder do homem e um dominio sobre uma causalidade deficiente que nao é capaz de explicar certos acontecimentos do dia a dia normalmente atribufdos ao acaso. Surge, assim, uma causalidade prépria diferente daquela do mundo convencional, que substituird 0 acaso, Enquanto 0s contos de encantamento se estruturam ¢ se definem pela existéncia de um espago maravilhoso, os contos de exemplo e, sobretudo, os de animais se ca- racterizam por um espago alegérico. Encerrando uma intengéo moralizante bastante explicita, os contos de animais se estruturam como a fébula que também possui dois sentidos expressos, bastando que se acione um deles para dar-se o apagamento do outro sentido, Os temas séo de natureza ética e remetem a valores considerados fundamentais em uma sociedade em formacéo. Como afirma PROPP (1965-70) em As Transjormacées dos Contos Fantésticos, serem as f4bulas anteriores aos contos maravilhosos, € possivel que os contos de animais também objetivem enfatizar de- terminados tracos totémicos ancestrais, indispensfveis ao desenvolvimento do grupo humano que ora se formava, Nos contos de exemplo, entretanto, como 0 préprio nome indica, a preocupagéo moralizante € mais explicita; so valores geralmente de fundo religioso, inspirados por uma ago catequética cristd. ‘A percepcao que o homem tem do universo nao chega, nestes contos de exem- plos, a afasti-lo de uma ordem de mundo natural, convencional. Ao invés de extra- polar-se para o sobrenatural, como procedimento capaz de expressar, de forma total, a sua concepcdo de mundo, © homem busca uma relagéo simbélica para expri- mi-lo. Através desse simbolismo, codifica as duas visdes da realidade, a concreta, da sua experiéncia, ¢ uma outra corrigida, a desejdvel, que transcende a realidade em- pirica a que espera atingir, nfo se dando o apagamento da relagdo sujeito/objeto como nos contos maravilkosos, Ao contrério, o homem coloca-se como observador dessa realidade ¢ dela tem uma compreensio profunda que procura externar de ma- neira simb6lica, O simbolismo se estabelece na relagdo particular e universal, e co- Jifica-se na alegoria estruturada através da superposigéo de, pelo menos, dois senti- dos, em que o sentido explicitado, primeiro, particular, desaparece para dar lugar a outro, mais universal ~ aquele que se deseja atingir. Diz-se uma coisa com a inten- fo deliberada de apagé-la para remeter a outra. Antigamente 0 conto popular se constitufa em um vefeulo de transmissio da hist6ria dos antepassados as geragdes mais novas e de todo conhecimento necessério a9 crescimento do grupo. E ainda o 6, hoje em dia, nas sociedades iletradas. Sitientibus, Feira de Santana, 3(5) :87-99-janJjun. 1986 99 Para continuar dando cumprimento a essa sua instrumentalidade, porém, 0 conto popular passa por constantes adaptades em cada nova realidude que garan- tema “vigéncia cultural” da sua fungdo comunicativa. Embora passando por essas transformagGes, ainda hoje, 0 conto popular conti- nua transformando terreiros ¢ salas em palcos, criando espagos de aventuras para ‘onde criancas e adultos se transportam, E nessa encenagdo, veicula expectativas ¢ desejos através dos papéis escolhidos ¢ encarnados por cada um. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BA, A. Hampaté. A tradicéo viva, In: KI-ZERBO, J., coord, Histéria geral da Africa, metodologia e pré-hisibria da Africa, Sao Paulo, Atica, 1982, p.181-218. BEN-AMOS, Dan, Catégories analytiques et genres populaires. Poérique. Paris, Seuil, (49): 265-86, 1974. BRASIL. MEC/PRONASEC RURAL, Biblioteca da vide rural brasileira. 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