MCC Antero Seducao Divino

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A QUESTAO DE DEus na Historia da Filosofia Volume II A Questio pe Deus Hisroria & Critica FCT /CFUL Coordenagao Maria Leonor L. O. Xavier Zéfiro sta obra no pode ser reproduzida ou ransmitida par | qualquer processo a excepeio de excetos para divulgacio, | Reservatios todos 0s direitos, de acord com a legislacio em vigor. Apolo: FCT a andapo para 2 aca es Tecolopa Bs Titulo: A Questio de Deus na Historia da Filosofia - Vo Coordenagao: Maria Leonor L. O. Xavier Revisio: Carlos Joo Correia, Filipa Afonso, Maria José Figueiredo, Maria Leonor L. O. Xavier, Renato Epifanio Logotipo: Filipa Afonso Editor: Alexandre Gabriel Impressao: Rolo & Filhos Tl, S.A. 1" Edigao: Dezembro de 2008 ISBN: 978-972-8958-71-8 © 2008, Zetiro Se Zébto — Edges e Actividades Cultus, Unipesoa Lia Apartado 24 ~ 2711-953 Sintra — Portugal ~ Tel. (#351) 914848900 www.zelio pt ~ zeficotzefiro.pt ANTERO DE QUENTAL: A SEDUCAO DO DIVINO* ‘Macpa Costa Carvatio, E verdate que un Deus defnito perde agra no presta® Deus, se Deus fssepossivl, seria esse ser absolulameste lore. Mas, por iso que no & real, é que € verdadeiro® Ao ser recordada a personalidade de Antero de Quental, seja no dominio poético ou no plano filoséfico, dificilmente se evita uma representagéo em tons sombrios de tormen- to psiquico e abandono existencial. £ comum associar-se & imagem do poeta-filésofo um percurso biografico de desilusao e desespero, tragicamente conduzido a um suicidio an- gustiante e estéril. Nesse seguimento, a ideia de um homem profunda e absolutamente desencantado com a vida e afastado da crenca numa qualquer benéfica protecsao impde-se como um (pré)conceito dificil de erradicar. Antero é descrito, intimeras vezes, como “o malogrado poeta” que, a 11 de Setembro de 1891, desistiu de acreditar num senti- do superior da existéncia e, como consequéncia, pos termo a vida. Porém, ao estudarmos o percurso biografico do autor e ao procurarmos desvendar os sentidos intimos que habitam o seu corpus postico-filoséfico, vamos gradativamente desco- brindo uma realidade totalmente diferente. Ao lado de expressies taciturnas e desencan- tadas, deparamo-nos com um registo optimista e intimamente comprometido com ideais e crengas superiores. Ant6nio Sérgio, um dos primeiros pensadores portugueses da geracao seguinte a sublinhar a importancia do legado anteriano, encontrou ai a presenca dle uma dualidade constitutiva que categorizou como “o Antero nocturno” eo Antero luminoso”® Outros autores depois dele tém procurado refutar essa cisio bipartida e espartilhada da obra do poeta-flésofo, integrando as suas varias expressdes no contexto mais vasto de ‘uma personalidade profundamente rica e multifacetada®, Foram divergéncias hermenéuti- cas como esta que, ao longo do tempo, alimentaram um conjunto de questées intrigantes e perturbadoras acerca da figura do pensador agoriano, para as quais nem sempre foi possi- vel encontrar respostas definitivas. No Ambito dos varios enigmas que 0 leitor ainda hoje pode descobrir por detras das vivencias e da obra de Antero de Quental, ocupa lugar de destaque a relagio que, enquanto homem, poeta e fildsofo, manteve com o divino, Sobre esta questao se tém pronunciado 0s especialistas, incidindo sobre determinados aspectos da vida do autoxou simplesmente * presente estudo foi efectuado ao abrigo de uma bolsa de doutoramentoatrbuda pela Fundacio para a Cién- ciaea Tecnologia A, de Quental, Cartas, I, organizagio,introdugio e notas de Ana Maria Almeida Martins, Editorial Comunica- {80/ Universidade dos Agores Lisboa, 1989, p. 89. dem, "Tendéneias geais da filosofia na segunda metade do século XIX", em Filosofi,organizacio, introdugio e notas de Joel Serrao, Editorial Comunicacio/ Universidade dos Agores Lsboe, 1991p. 106. “CEA. Sérgio, “Os dois aneros (0 Iuminoso e © nocturo)", ern Obras Completes ~ Ensais, tomo IV, Livraria $8 «da Costa, Lisboa, pp. 129-159, * Anionic Jose Saraiva afirma aeste propésito: “Quanto teoria de Sérgio, que supde em Antero fasesaltemativas {que podiamos comparar com as fases da Lua, nfo serve para caracorizar nem Antero nem qualquer outro autor, Porque se aplica a qualquer um", A tetiaocidental, Gradiva, Lisboa, 1985, p. 122. ‘A Quustao pe Deus wa Hisronta 0a Fitosona Vil. 1 procurando descortinar a razao intima que atravessa os varios momentos da sua obra. Ede ‘uma ¢ outra vez encontramo-nos perante factos e ideias que nos obrigam a repensar e, por vezes, a redimensionat a personalidade e os objectivos de Antero de Quental, E 0 caso do testemunho do amigo de infancia de Antero, Andrade de Albuquerque, no volume do In memoriam, publicacao de homenagem péstuma surgida em 1896, Revelan- do que Antero de Quental alimentou, na sua juventuce, um projecto de vida sacerdotal, este texto pode, assim, surpreender 0 leitor. Em contraste com a ideia de decadéncia ¢ descrenca que o posterior século XX exaltou como a divisa de Antero e da sua Geragio, a reflexao de Andrade de Albuquerque revela uma faceta pouco conhecida do pensador & exige do hermeneuta uma outra ponderacao dos factos, (Ou ainda 0 episédio da confidencia feita em carta acerca da composigéo do soneto “Na Mao de Deus”, escrito por volta de 1882: “Nao te assuste a palavra Deus. ~ afirmava Antero a Alberto Sampaio - £ um simbolo e ainda o melhor para exprimir certa coisa, que doutro feitio nao caberia em verso. Pura liberdade poética’”. Ao confessar neste sobeja~ mente conhecido soneto que 0 seu coracéo descansava no seio da balsamica e tranquiliza- dora divindade, Anteto parecia querer transmitir a mensagem de uma entrega interior a Deus e, nessa linha, a composicao tem sido entendida a luz de uma possivel conversao do poeta, Se o poema “Na Mio de Deus” reafirma, a esta luz, o campo de intrigantes e enig- iaticas quest6es aincla por esclarecer acerca do percurso biografico ¢ espiritual de Antero, €certamente coadjuvado por passagens da obra do autor como, por exemplo, as epigrafes de abertura da nossa reflexio, cujo contetido joga com a contradicao e, diriamos até mes- ‘mo, com 0 oximoro, reafirmando 0 seu pensamento como ia filosofia do paradoxo Diante de uma personalidade capaz de tao fascinantes discardancias, parece-nos im- perioso procurar esclarecer a posi¢ao que o livino ocupa neste pensamento, buscar uma aproximagao cada vez. maior ao sentido que anima este enigma com que Antero brindow a posteridadle, Recusé-lo poder4 contribuir para que se comprometa a unidade e a coerén da obra anteriana, deixando dissolver numa “manta de retalhos” um percurso bio-biblio- grafico que acteditamos ser, acima de tudo, polimorficamente rico e significativo. ‘© nosso breve contributo para esta reflexdo consistiré nao s6 na elucidacio de alguns momentos biogréfico-espectilativos que nos parecem constituir marcos importantes para ‘0 modo como o pensador acoriano foi perspectivando o divino, como num simulténeo de- senvolvimento de ideias-chave que Antero foi trabalhando até ao seu texto maior, as Ten Aéncias gernis da flosofa na segunda metade do século XIX, publicado em 1890. Assim sendo, "GEC. Andrade de Albuquerque, “Em lembranga de Anthero (Notas de impressio pessoal)", em Anthero de (Quentl~ mn Memoriam, Fal. Mathiew Lugan, Porto, 1886. Redico fa-similaa, com pretacio de Ana Maria Aline! dda Mactns, Bitorial Presenga e Casa dos Agores, Lisboe, 1993, p75, * Cartaa Alberto Sampaio, de Maio de 1882, em Cartas, I, p. 34 * Vejase, por exemplo, a posi¢io de Ruy Galvao de Carvalho, provavelmente o conterrneo de Antero que me Thor soube divulgar e perpetuar a sua obra, que enterde que este sone evoca reminiscéncias do tempo em que 0 ppoeta-filosofo aprendeu a rezarao colo da mie. Fruto do que nos parece ser ums excessva iberdade hermené fica, 0 comentador vai ainda mais longe afirmando que "Na Mio cle Devs” “[..] é um testemuniho bem evidente ‘de como nunca se secou a fonte cristalina da sua cena em Devs", "A ansia da divino nos sonctos de Antero de ‘Quental,em Antero de Quentl. Novos Ensaios, Vila Franca do Campo, Eitri Ilha Nova, 185, pp. 143. "M. Candido Pimentel, Antow de Quental: una flosfa do paradox, Ponta Delgada, Instituto Caltaral dle Ponta Delgada, 1993, ‘ falgamos que a anise que iremos desenvolver vit, até certo ponto, a0 encontro da divisio tripastida que A Braz Teixeira apresenta da ideia ce Deus no percurso de Antero, cf. "A ideia de Deus a religito etn Antero e no _pensamentoIuso-brasleizo da segunda metade do séeulo XIX", em Calquio Antero de Quental ~ Anais, Fundagi ‘Augusto Franco, Aracaju, 1983, pp. 271-300. Ao contrério do que possa parecer, consideramos que a exsténcia ‘estes varios rgistosnéo inviabiliza a unidade subjacente ao modo como o poeta flésofoantevé 0 divino, cons tituindo antes varias faces de wma nocto tinica e mulireterencial. lis, a onanipresena do tema ao longo ta vida dle Antero comprova claramente a constante necessidade de o autor teressar a uma mesma inquietagtointrion, ainda que vi conferindo diferentes contornos a cada nova resposta, Leonel Ribeiro dos Santos refere-se muito ‘A QuistAo ve Dovs na Histowa 04 Fitosorta VIL 1 ‘a nossa reflexdo pretende recuperar as principais variantes e matizes com que o pensador construiu a sua relagao com o divino, de modo a eaptar a caleidosc6pica rede referencial {que Ihe subjaz. Nao assumindo qualquer pretensio de esgotar o tema, visamos apenas dar lugar a uma reflexao que procura fazer jus ao espirito do seu autor, esperanco também motivar futuros desenvolvimentos de tao cativante temética Deus ou a dinsia suprema da alma anteriana De uma forma ou de outra, todos 0s filésofos acabam por ser confrontados com uma determinada configuracao do “divino”, seja ele entendido numa linha personalista ou en- tao como postulado racional fundante. A obra filoséfica de Antero de Quental encontra- se, também ela, impregnada de reflexes que, a cada entrelinha, remetem a procura pelo sentido da existéncia para um plano superior e supremo, Contudo, a medida que o leitor se aproxima analiticamente do corpus anteriano, torna-se complexo o tratamento herme- néutico da questo de Deus. Comecando, desde logo, pela primeira ideia com que abrimos epigraficamente, surgida numa carta de 1888, de que um Deus definido perde a graga ej nto presia, Esta recusa em delimitar explicitamente o conceito, enquanto hipéstase redutora, torna mais dificil, sem dvida, a tarefa hermenéutica de reconstrugao dos varios sentidos que 0 divino possa ter assumido para 0 poeta-fil6sofo. Para além disso, 0 percurso biografico de Antero de Quental foi particularmente con- turbado no que diz respeito a uma possivel relacdo pessoal com este dominio. A saida da terra-m3e agoriana trouxe consigo o fulcral afastamento diante da educagao catolica recebi- da conservadoramente nos anos da infaincia e primeira juventude. A chegada a Coimbra e as vivencias estudantis, a medida que o afastavam do Deus da Igreja Catdlica que conhece- ra desde crianca, aproximavam Antero das mundividéncias europeias da segunda metade do século XIX, fortemente marcadas por um espfrito laico e secular. O culto positivista e as novidades cientificas que, na época, revolucionavam a ocidentalidade vinham trazer uma nova imagem da natureza ¢ do préprio homem que, para algumas faccbes, se revelava incompativel com a ideia de um ser supremo criador ¢ omnipotente. Contudo, apesar desta ambiéncia de fundo, a obra de Antero esté longe de ser pact fica no que respeita a questo da natureza de Deus. Recusando, por um lado, 0 correlato catélico do divino por enclausurar numa s6 entidade um principio que, por natureza, excede todas as patticularizacdes - por outro lado, o pensamento anteriano deixa-se cons- tantemente seduzir pela necessidade de conferir um lugar proprio ao ser absoluto, de re- solver superiormente a questao da ansia de infinito que, para o pensador, sempre animou co espirito humano. ‘A escolha do titulo da nossa reflexdo vem entroncar directamente neste aspecto: 8° Ievarmos em conta o sentido original do termo, Antero de Quental foi um homem profun- damente religioso, fortemente empenhado em "re-ligar” todos aspectos da existéncia que, 0s olhos da razao humana, permanecessem absurdos e sem sentido. E, nesse contexto, foi ‘um homem intimamente atraido pela presenca insinuante do divino, cativo da demanda pelo que nos ultrapassa enquanto seres humanos espacio-temporalmente finitos. Em nosso entender, Antero de Quental foi, mais do que um seduzido de “Deus”, um seduzido do divino e pelo divino, Um apaixonado inveterado do principio interior absoluto e origination Jastamente 8 tematica de Deus como uma questao obsessiva em todas as Fes da evokucdo intelectual e moral de ‘Antero, ef.“ Antoro e Feuerbach. Sobre flosofa anteriana da rligiao" om Antero de Quental. Una viszo moral do ‘mundo, Imprensa Nacional ~ Casa da Moeda, Lisboa, 2002 p, 119-152. "Expresso importada de R.G. de Carvalho, “A ansia clo divino nos sonetos de Antero de Quental”, em Antero de Quental. Novos Ensios, Editorial Tha Nova, Vila Franea do Campo, 1985, pp. 133-143, ‘A Questo ps Dsus ea HisrORta Da Titcsona VIE ndo tanto de uma entidade definida suprema e perfeita. A luz desta divina sedugao, 0 poeta-filésofo conduziu um percurso coriturbado em termos espirituais e especulativos, oscilando entre momentos de serena e placida crenca interior e épocas de visceral e causti- ca desilusio diante da certeza de uma vacuidade universal. Desde as suas posigdes diante cla religiao catdlica até ao tratamento filosético do con- ceito de “Deus”, pasando pelo projecto de uma renovada religiao do futuro e até por ‘uma certa atracgao diante da espiritualidade oriental, em todos estes momentos Antero de Quental repensou a posiciio ea importancia do divino na existéncia humana. Esta questo pode, assim, entrever-se como um dos principais dominios da reflexao anteriana, cuja for- sa provém da alianga emergente entre o puro registo especulativo eo plano existencial. O autor nao se limita a equacionar Deus como pura categoria filoséfica. Entendido em muitos dos seus sonetos como uma visio balsamica, em vao procurada nos limites da realidade ‘mortal finita, noutros textos 0 divino esconde-se por detras da nogio de Absolut, ou surge ‘como reflexo de uma perfeigio sempre buscada. A abertura ao transcendente: a ode “Deus”, de A. Herculano A procura pelos momentos iniciais em que o espfrito de Antero de Quental despertou para a incontornavel e insinuante presenca do dominio divino recua, a nosso ver, ao pri- meiro contacto do jovem pensador com uma ode de Alexandre Herculano, O titulo dessa composicao ¢ tio mais sugestivo quanto converge directamente para o objecto das nossas reflexdes: “Deus”. Durante longos anos, Antero haveria de reconhecer abertamente a im- portdncia que o episédio desempenhou no seu futuro percurso especulativo, Teria o poeta apenas dez anos quando, numa aula dedicada ao estudo da gramética latina, uma intensa ¢ inolvidavel experiéncia 0 assolou profundamente. A. partir da leitu- ra do referido poema de Herculano ~ um dos mais célebres nomes da literatura nacional de entao, digno do maior respeito ¢ admiracdo anterianas - tomou forma naquela mente precoce a significacao religiosa e transcendente da existéncia, Antero fixou publicamente a importincia destes instantes no prefaicio ao volume Tesouro Poético da Infircia (1883), anto- Iogia de composicées poéticas, sob forma de um cancioneito infantil. Producao singular do autor, esta obra abre com uma “Adverténcia” onde Antero invoca com alguma minticia 0 episédio de descoberta do poema “Deus”. O acontecimento ¢ descrito pelo préprio como ‘© nascimento ea revelagZo de um ideal religioso, apesar da confessada incompreensio de muitos conceitos e palavras, dada a sua tenra idade. Jé adulto, e ao preparar a edicao do Tesouro, Antero reconhecia naquele momento o nascimento de uma intuicio do ideal religioso que, ainda que mais tarde evolutsse para outras formas e perspectivas, jamais haveria de © abandonar", Antero, qute ao primeiro contacto com a ode contava com apenas 10 anos, estava com certeza longe de toda a problematica que mais tarde viria a tornar-se o nédulo do seu pensamento. Todavia, como o ptdprio reconhece, esse encontro inaugural marcou a iniciacao do poeta na regio das cvisas transcendentes, e por muito que depois estudasse e cultivasse reflexdes a esse nivel, segundo o proprio, aquela impressio ficou, Sublinhe-se que Antero escolhiew precisamente © poema “Deus” para encertar o Te- souro poético de infincia, esclarecencio no prologo que o mesma representa uma excepca0 no seio da antologia: “O sublime religioso ~ no dos dogmas, mas do sentimento ~ quando ¢ forte ¢ simples, como na Biblia, é capaz. de produzir naquelas imaginacdes tenras, mas nada prosaicas, uma impressio profunda e salutar. A ode de Alexandre Herculano, que parece um salmo biblico, esté neste caso. Pelos conceitos e pelo estilo, excede e muito a in- CLA. de Quental,Tesouro Potio de fini, Port, Lello & lmao - lites, p. 12. ‘A Quistéo De Divs a Histon DA Fitogorta VIL 1 teligéncia dla crianga: mas 0 sentimento simples, forte e primitivo vai-lhe direito ao coracito. E pelo menos 0 que posso inferir pela minha propria experiéncia”®. Este confronto entre a religiosicade como sentimento e a religiao como fenémeno ritualizado e institucionalizado sera, sem duivida, uma constante nas reflexes de Antero. Como veremos, ser pata a pri- meira que o pensador agoriano se encaminharé, procurando af encontrar a Gnica forma de relacio com o divino que considerava auténtica e verdadeira, A saida da Ilha e a ruptura com a educacio catélica Como jé apontamos, a procura pelas origens e pelos condicionalismos que iniciaram 0 jovem Antero na problematizagio em torno da temética de Deus, e da vasta série de ques- t6es adjacentes, remonta a primeira infancia do autor. O ano de 1852, em que Antero conta- ‘va.com apenas 10 anos, haveria de representar um outro importante marco: por esta altura, © autor agoriano embatca, pela primeira vez, para o meio da irrespeitosa agitagio intelectual da Capital!*, Mesmo tendo regressado pouco tempo depois a Ilha que o tinha visto nascer, esse ano de 1852 viria a marcar o inicio de um longo percurso revolucionério no pensa- mento ena acgio de Antero. Mais do que a mudanca para novos espacos fisicos, a saida da Iha significou para o poeta-filésofo - como ele proprio o reconhece posteriormente ~ 0 de- cisivo abandono do placido marasmo de uma pacata provincia, imersa nim sono histérico™, eum duro golpe de descrenca no seio de uma educacio tradicional catélica. Assim sendo, ‘Antero assume o desassossego e 0 desnorteio de quem nasce de novo, de quem prova um desacerto interior com as referéncias que até entao lhe serviam de béssola, Mas ¢ 86 a chegada a Coimbra, quatro anos mais tarde, que tem inicio 0 contacto com outros tantos espiritos em desatino e, simultaneamente, a consciencializacao de que se im- punha & nova Geragio um ideal, uma nobre misstio evangélica, um compromisso perante a Humanidade. A vivencia universitéria ¢ pautada por intensos acometimentos de teor académico e literério, cujas repercussdes se estendem até aos planos politico e social. Das variadas empresas lideradas por Antero, destaca-se a incidéncia nas relagées entre 0 ho- mem ea religiao, nomeadamente a crista, projecto tao mais belicoso quanto fez despoletar dios e rancores de diversa proveniéncia, ¢ recair sob a Geracio emergente o estigma da irresponsabilidade e da inconsciéncia. f neste clima intelectual que Antero de Quental pu- Dlicard, em 1865, uma das suas obras maiores: as Odes Madernas. Como veremos, para além de ter constituido um importante marco na hist6ria da literatura e da cultura portuguesa da época, esta publicagéo imprimiu um cunho anti-catélico ao percurso do pensador aco- riano, permitindo-Ihe erigit por contraponto uma doutrina da religiosidade auténtica. Pa- ralelamente, a stia concepcao de Deus vai sendo trabalhada no sentido de uma depuracéo semantica que procurava, sobretudo, encontrar o verdadeiro principio divino subjacente as determinagdes institucionais, A caducidade do dogma catolico e a religiao do futuro O feito provocado pelas Oces Modernas, obra que Antero conclu em 1863, por certo superou qualquer expectativa que inicialmente o seu autor alimentara, Nas palavras de Nuno Jtidice, este livro publicado no rescaldo da formatura em Direito caiu “[...] como ‘uma pedra no charco de uma literatura de saldo, respeitosa das conveniéncias do seu pie SA ae Quental, "Advertencia", em rbidem, p. 12. °C carta aW. Storck, de 14 de Mato de 1887, em Carts, p-893, "Tide ‘A Questo bs Deus Na Hisroai pa Bosom VIEL blico e dos seus mestres [...]"%. O autor refere-se obviamente ao pontificado literario de Antonio Feliciano de Castilho, célebre oponente de Antero na querela que haveria de ficar conhecida para a posteridade como “Questo Coimbra”, ocorrida em 1865. Com a pu- blicagao das Odes, considerada escandalosa e provocadora, Antero de Quental lancou as sementes do que viria a constituir a grande ruptura cultural da segunda metade do século XIX portugués, opondo as veteranas autoridades literarias a efervescéncia renovadora da poesia moderna. Para além de representar a inauguracao de uma nova idade em termos literdtios, esta obra impds-se também pelo teor céustico das teses que, implicitas ou expli- citas, constroem a intengao geral dos poemas. Desse conjunto de pro-vocugées faz: parte 0 repto lancado a civilizacéo portuguesa, e europeia, sobre o estado decrépito e arruinado do dogma cristo, Antero de Quental compunha em tom de epopeia a extincao do lirio da Fé~ s{mbolo do abandono a graca e a vontade divinas - ao declarar o auto-encobrimento voluntério de Deus perante a Humanidade”. No segundo soneto agrupado sob o titulo “A Ideia”, 6 significativa a caracterizacaio da palidez de Cristo e do estado moribund de Deus. “"E preciso partir a Igreja em mil pedacos” - anunciava 0 poeta ~ "Por que se possa ver em cheio a luz de Deus! ‘A nocdo de “Deus” era aqui a que Antero tinha recebido pela sua educagdo crista cat6- lica, da qual o pensador procurava desvincular-se publicamente. Numa dinamica diddica de antiteses, que tem tanto de linear quanto de redutora, Antero apresenta nas Odes Moder- nas um constante jogo de tenses entre a cegueira do antigo credo cat6lico e a luminosida- de do porvir, denunciando as fragilidades, inconsisténcias e desajustes daquele. O soneto “Didlogo” representa paradigmaticamente o espirito geral da obra, ainda que, sendo uma composicao de 1870, apenas tenha sido incluido na segunda edigao das Odes Modernas (1875). Nele se exemplifica a aproximacao entre o tema de “Deus” e a ideia de “natureza”, colocando na conjugacao de ambos a t6nica central do que o pensador considerava ser a autentica religiosidade. Antero justificava o lacunar desinteresse do Cristianismo pelo mundo natural, reconhecendo na ignordncia da natureza a falha fundamental desta religido que, no seu entender, Ihe custaria a perversao e final dissolugio”, As ideias expressas neste soneto encontram no texto “A Biblia da Humanidade de Mi- chelet” um tratamento filoséfico mais alargado, escolhendo a confrontagio, ainda que im- plicita ao longo de todo o texto, coma obra do historiador francés Jules Michelet (1798-1874) ‘como pano de fundo ao tratamento da questo acerca da fungao do Cristianismo na evolu- ‘sao do pensamento e da civilizagao europeias, Este pequeno ensaio critico de 1865 marcou a inauguragao da reflexdo anteriana de matriz especulativa, centrando-se na relativizagio do valor espiritual de qualquer credo religioso: “As religides ~ afirma 0 autor ~ sio os mat~ ‘cos sucessivos das mais longas corridas do seu [homem] desejo no caminho do infinite: ‘mas nao sto o termo dessa estrada, que se perde nas névoas do inatingivel, e cujos desvios Liltimos pé algum pode ainda pisar”®, I nas sexta e sétima partes do texto que toma nova- mente forma uma estrutura analitica dual através da distingao, de teor histérico, entre reli- sides da natureza e religides do espiito, respectivamente, politefsmo helénico e Cristianismo. As primeiras, guiadas pelo preceito do movimento, da sucesso, da diversidade, revestiram-se de uma expresso e medida humanas™. Todavia, segundo o autor, deixaram-se dominar pela ansia de diversidade e descuraram, na obsessio pelo humano, a contemplagao do correlativo extra-humano, do Absoluto, da Unidade. Por seu tuo, 0 Cristianismo deixou- lice, “Prefacio” a A. cle Quental, Oes Moderna, Ulmeiro, Lisboa, 199, pp. 56 ental, Odes Moderns," Ideia =", p46. bier, "Carmen Legis ~ XV", p. 16. ‘CE carta a Oliveira Martins, de 3 de Jul de 1876, em Carts, |, p. 348, ‘A. de Quental, "A Bia da Humanidade de Michelet”, em Flos, p15 2 dbidem,p. 2. ‘A Quistio pe Deus wa Histo. Da Fivosoria VIL 1 se ancorar num principio uno, apostou na aridez, do coragao humano para nao artiscar a turva agitacio do instinto e da vida. Em consonancia com o teor da composigio “Dialogo”, ‘Antero reitera a perspectivacio do Cristianismo enquanto doutrina inerte e estéril do pon- to de vista natural e humano, cujo objective reside na s6lida consolidagao da fé em torno da leitura dogmatica de uma entidade divina absoluta, O fildsofo assume, entao, como misao ‘adendincia da ilusio em que consiste tal propésito: o absoluto assim concebido é um finado absoluto, morto pela contemplagao crista infecunda e abstracta, “Antero prope, entio, a superagio de cada um desses termos, sugerindo uma alianca religiosa que opere a sintese entre aquilo que no paganismo respeita a realidade e aquilo que no Cristianismo atende ao ideal. Antero resolve a inicial antinomia na necessidade de uma fusfo harménica entre o plano espiritual e o plano da natureza. A resolugio do conflito prevé a reabilitacdo da realidade de forma a adequé-la ea torné-la instrumento ao servigo da ascensio espititual™. O autor preconizava a necessidade de um equilfbrio na sociedade moderna entre uma propensdo naturalista e uma inclinagao para 0 ascetismo, como tinico modo de garantir um pleno e integral desenvolvimento do homem moral”, Para Antero, ser homem é sentir a realidade natural finita que nos envolve e percorre e, simultanea~ mente, adivinhar 0 ideal infinito para onde nos impele o espitito; ¢ atender a constituigao positiva e vital da natureza, sem descurar a projecgto e a aspiragio ao plano espiritual; ¢ pertencer a esses dois mundos: o que atesta a nossa filiacao natural e 0 que nos abre para a seducio incontornavel do divino, Segundo o autor, a observancia desse registo antropo- légico devera impreterivelmente consistir na pecira-de-toque do auténtico credo religioso, de forma a evitar perspectivas assentes no que para o autor era a cegueira crista. Antero no pretende dissolver o didlogo entre Cristianismo e natureza num discurso monolégico, ‘mas, pelo contratio, incitar ao primeiro uma ascensdo que jamais comprometa ou renegue as origens naturais e teltricas do homem. Nisto devers consist, para o pensador, a verda- deira e mais fiel forma religiosa. 'A preocupacao anteriana com o significado humano do fenémeno religioso haveria de acompanhar 0 poeta-fildsofo nos anos seguintes. O més de Marco de 1873 represen- tou um importante momento desse processo, quando Antero pronunciou em Lisboa uma conferéncia da qual, infelizmente, nao ha qualquer registo a excepsio do titulo: O valor {filosdfico das concepgdes religiosas. No ano seguinte, Antero inicia um conturbado periodo de enfermidades fisicas que o obrigam a abdicar de uma série de projectos. Como conse quéncia, viu-se confrontaco com sérios e intensos dilemas existenciais: « minha antiga vida pareceu-me vii ~ confessa anos mais tarde ~¢ a existéncia em geralincompreensive?™, ‘Antero depara-se, entéo, com 0 desajuste entre o naturalismo cientifico, que desde cedo 0 havia seduzido, e aquilo que ele acreditava ser uma auténtica concepgao da exis- téncia. A aspereza cientifica do tratamento positivo das questoes deixava, na sua perspec- tiva, um insuperdvel hiato religioso, F nesta aridez de sentimentos e pensamentos que se cruza com as leituras de Eduard von Hartmann (1842-1906), antevendo nelas o colirio tio ansiado perante a angustiante busca pelas respostas aos seus dilemas existenciais. A partir do estudo de uma obra do pensador alemao sobre a religiao do futuro®, Antero con- solida e apura a sua concepcao pessoal acerca de uma nova forma de religiosidade: ainda que concorde com Hartmann no tocante grave lacuna do Cristianismo face & natureza, discorda dele quanto ao futuro daquele credo retigioso, Hartmann inclinava-se para uma concepcao de cariz. pantefsta que consistisse numa sintese do desenvolvimento judaico-cristdo, = Carta 0, Martins, de 3 de Julho de 1876, em Cartes, I p. 389. bide, Up. 808. Carta W. Storck, de 19 de Maio de 1887, em ibiem, 1, p. 897. = Die Selbsersetzung des Chistentuns wn de Religion der Zutunp, publicada em 1874 e traduzia para frances com. ‘titulo de La Religion de "Avenir em 1876, Foi a versio francesa que Antero Teu ¢estudou. ‘A Quistho os Dius wa Histonta 0a Faooora Vik 1 constituindo uma forma que rewnisse em si as vantagens das duas tendéncias™; Antero, por seu tumno, consicerava que 0 Cristianismo poderia, e deveria, ser poupado a destruigao, sendo apenas necessario completé-lo com a ciéncia da realidade, ou seja, com a perspectiva natu- zal perante a qual estava em falta”, neste sentido que se dirige o conjunto de interessantes cartas trocadas entre o espirito teGrico que era Antero eo homem de acco que era 0 seu sempre leal companheiro ra Martins. Uma vez. que a particular preocupagao de base da polémica incidia sobre a passa- ‘gem, ou evolucio, na civilizagto europeia do politetsmo helénico ao monoteismo to, a plataforma categorial que sustentava a argumentacao erigia-se sobre o transito da imanencia a transcendéncia. Contra a tese de Oliveira Martins, segundo a qual a Idade Média se resumia a um periodo de decadéncia e de perversio do espirito grego, Antero sustentava a necessidade desse perfodo de transcendéncia enquanto fase légica da evo- lugao do espitito™. Essa necessidade justificava-se uma vez que, por sis6, 0 pensamento e a mundividéncia antigas do helenismo se mostravam incapazes de erigir uma auténtica filosofia positiva e de permitir a imanentizacio do plano divino na consciéncia humana. Foi o petiodo medieval da transcendéncia que, segundo Antero, permitiu evidenciar a insatisfagao perante o pernicioso afastamento da natureza e, dessa forma, possibilitar na

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