Percepçao

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A percepcao Para compreender as diferencas de opiniao ‘Uma das fung6es importantes da administra- go € a tomada de deciséo. Ora, quando se toma uma decisaio, a questo da objetividade se coloca fatalmente. De que maneira se pode garantir a ob- Jetividade de uma decisao? E, no caso em que esta deciséio concerne ao trabalho de uma equipe, ou se refletira nas pessoas, de que maneira se conse- gue compreender as diferencas de opiniao, e como levé-las em conta no momento da tomada de de- cisio? A compreensdo dos mecanismos da per- cepgio e a compreenstio da inteligéncia humana representam um instrumento importante para se responder a essas questdes. Este capitulo tem por objetivo descrever e explicar os mecanismos que permitem & pessoa entrar em relago com os ou- tos, interagit com seu meio e se adaptar a ele. Na primeira parte do capitulo, o problema da objet vidade e da origem do conhecimento ¢ discutido para que se capte melhor a importancia dos con- ceitos percepcio e inteligéncia. A segunda parte introduz as nogbes de sensacdo, de percepcio e de cognigio para facilitar a compreensao dos concei- tos em foco. A terceira parte expée a importancia do sistema nervoso na compreenséo das atividades Perceptivas. A quarta parte apresenta as atividades mentais que intervém no ato de perceber; essa par- ~~ 4 Consciéncia, conhecimento e imaginagdo so as caracteristicas singulares da espécie humana, Legon (1974, p. 20) te tem por objetivo explicar como a pessoa percebe © contexto em que vive, o papel que sua propria atividade af desempenha e a importancia que pode ter sua propria subjetividade, A quinta parte trata dos erros de percepeao; a identificagéo das infe- réncias e das atividades responsaveis por esses er- 0s permite corrigi-los, ou ao menos compensé-los. A tiltima parte do capitulo apresenta uma compe- téncia importante em administragao, a empatia, ow a capacidade de compreender o ponto de vista dos outros, Essa faculdade se revela muito itil nas relagées profissionais, relagdes em que é preciso colaborar para encontrar solugées para problemas simples ou complexos. Porém, antes de explorar mais a fundo os mecanismos da percepcao, faca- ‘mos um exame répido dessa nogdo, bem como das varias concepgdes que alguns pesquisadores e pen- sadores, que deixaram sua marca nesse dominio, tém a respeito dela. Da consciéncia ao conhecimento © conceito de percepedo est, ha muito tem- po, vinculado ao problema do conhecimento. Des- de a Antiguidade, a comecar por Plato (427-347 54. Psicologia e estio * Morin e Aubé aC.) € Aristételes (384-327 a.C.), 0s fildsofos se interrogaram sobre algo que constitui uma carac- teristica essencial da espécie humana, a busca de conhecimento. Segundo Aristételes, os sentidos fornecem os elementos necessérios ao conheci- mento e a razo 0s organiza, para torné-los inte- ligiveis. Essa maneira de conceber a especulagéio sobre 0 conhecimento marcou profundamente pensamento cientifico moderno: existe um mundo objetivo, uma verdade na natureza, ¢ 0 julgamen- to da pessoa que observa esse mundo objetivo & fonte de erros, A objetividade e a subjetividade © problema da objetividade e da subjetividade continua a ser muito discutido no meio erudito € também no ambiente de trabalho, onde as pessoas stio chamadas a tomar decisGes. Na verdade, todo © campo da resolugo de problemas e da toma- da de deciséo se defronta com os problemas colo- cados pela subjetividade e com a possibilidade de tomar os processos de resolugdo de problemas de tomada de deciso mais objetivos. Entretanto, quando se olha mais de perto a questo da obje- tividade da subjetividade, percebe-se que 0 ver- dadeiro problema reside no fato de que se liga a objetividade & neutralidade, & imparcialidade, & verdade tinica e inteira, e a subjetividade ao ar- bitrério, a desigualdade ¢ 8 imaginagao. ‘Trata-se mais de um problema moral do que de um proble- ma epistemolégico. Por outro lado, quando se concebe a objetivi- dade como a qualidade do que ¢ real, do que existe independentemente do espitito que percebe, colo- ca-se a questo da existéncia mesmo da realidade, daquilo que constitui as coisas, dos fatos que es- to presentes no contexto ¢ podem ser percebidos or todos. Além disso, o problema do conhecimen- to esté também em que néo conseguimos nos en- tender sobre o que é a realidade. O que garante & pessoa que o que ela percebe é real? O fato de se poder tocar alguma coisa poderia ser uma respos- ta, porém a realidade nao se apresenta unicamen- te sob formas tangiveis. Muitas coisas so sentidas or outros receptores menos confidveis; é 0 caso, entre outros, da vista (DIXON, 1985). E.0 que nos Prova que 0 que vemos é produto de nossa expe- rigncia sensorial (convicgéo), e nao fruto de nossa imaginagéo (persuastio)? Da perspectiva do ceticismo radical, se diré que a pessoa nao pode estar absolutamente cer- ta de alguma coisa; da perspectiva do senso co- mum se dird, em vez disso, que se pode estar certo de alguma coisa mesmo quando essa certeza nao € absoluta, Para Denis (1989), 0 problema nfo é tanto saber se as representagbes so verdadeiras ou falsas, mas saber se elas sao utilizadas eficaz- mente pelo individuo para regular seus compor- tamentos. No texto clissico apresentado no final deste capitulo, Laing et al. (1966) demonstram que a percepco é produto de trés fatores: (1) do préprio estimulo; (2) da interpretagao do estimulo gracas as atividades cognitivas; e (3) dos fendmenos psi- quicos associados a esse estimulo, como a proje- gio. Na verdade, é possivel perceber alguma coisa sem que haja estimulo aparente, isto é, perceptivel para um observador. E isto ndo é um sintoma de doenca mental, mas de imaginagéo. problema da realidade dos fenémenos ja foi Ievantado por Plato na narrativa sobre os homens aprisionados em uma caverna, que expomos bre- vemente no destaque 2.1, narrativa que explica a natureza do espirito humano e do conhecimento. Nessa histéria, Plato conta que os homens tomam as sombras que veem sobre a parede da caverna onde se encontram aprisionados por ob- Jetos reais e se exercitam procurando diferencié- los e lembrar-se da sequéncia de seu surgimento. Ele explica, em seguida, 0 que aconteceria se um desses homens fosse livre e pudesse sair da caver- na, Inicialmente, esse homem sofreria, pois deve- ria utilizar faculdades que, até entZo, tinham sido frustradas mas, a partir do momento em que to- ‘masse consciéncia de que as sombras eram apenas © reflexo de outras coisas, ele ndo poderia mais acreditar na realidade delas e nem poderia voltar a viver na caverna com a mesma disposicéio que tinha anteriormente, pois descobrira o prazer de conhecer e descobrira o mundo que o cerca. Para conhecer, 0 individuo se fia em sua per- cepcéio, ou seja, na aparéncia das coisas tal como F as percebe. A maneira dos prisioneiros da caverna que acreditavam que as sombras sobre a parede exam reais, 0 individuo tem confianga na aparén- cia das pessoas e das coisas tal como elas sao per- cebidas pelos sentidos. Essas aparéncias so ape- nas ilusdes mas, apesar de tudo, servem para que se conheca; elas servem como hipsteses sobre 0 ‘que se passa aqui e agora e como crenga a respei- to da realidade. A conviegio de que as coisas sio ‘como elas aparecem na consciéncia torna possivel a atividade da razio, ou seja, faz com que seja pos- sivel conhecer e julgar as percepgées, distinguir os objetos aprender a significagdo deles. Em resu- mo, a inteligéncia, no sentido de Plato, é 0 poder de aprender e de pensar por si mesmo, um pouco como o homem livre que viu a luz do dia. A ilusdo da certeza é explicada ndo apenas no plano psicolégico mas também ~ e sobretudo — no plano biolégico. Segundo Dixon (1985), a consciéncia produzida pela percepgio gera fatal- mente 0 sentimento de objetividade, e trés fatores explicariam esta ilusdo. Em primeiro lugar, o in viduo ndo tem consciéncia de todas as atividades do sistema nervos ndo ele percebe, nao tem consciéncia de todos os dados sensoriais que esti- A eaverna de Platso Apercepsio 55 mulam os receptores nem do tratamento a que 0 cérebro submete tais dados. Como veremos nes- te capitulo, o sistema nervoso € responsével pela transmissio dos dados sensoriais até 0 cérebro por sua organizacio, que objetiva proteger a vida do individuo e assegurar seu desenvolvimento no ambiente em que vive. Em segundo lugar, o individuo que percebe al- guma coisa tampouco esté consciente da informa- (¢do j memorizada que se ajunta aos dados senso- riais para completé-los, corrigi-los, e Ihes dar um. sentido; em outras palavras, ele nao est conscien- te dos sistemas de representagio que séo utiliza dos para construir as imagens presentes em seu espirito (DENIS, 1989). Isto € evidente: quando olhamos um objeto, nao nos damos conta das ati- vidades de reconhecimento e de organizagao efe- tuadas pela inteligéncia. Veremos neste capitulo que a meméria ¢ as atividades da inteligéncia sio iprescindiveis para se descobrir um sentido na experiéncia imediata. Em terceiro lugar, 0 individuo ndo tem cons- jéncia dos mecanismos da percep¢ao subliminar que incorporam dados sensoriais & representagio ‘Suponia alguns homens em uma morada subtertanea, em forma de averna, cj entrada core por toda a sua extensso, absindo para alvz do dia toda a cavena, Els esto desde a infénea, as pernase 0 pescoco presos por correntes que 05 ‘brigam a olharsomente 3 frente, incapazes que so de vor ‘2 cabege por causa dos gihées. A luz de uma foguera que ‘arde numa elevagio distancia thes chega por is, e entre 2 ‘ogudra eos homens acorrentados, passa um caminho a0 longo do qual um pequeno muro foi lvantado, semelhante a0s tabiques que os apresentadores de marionetesutilzam ara separs-os do pio e por cima dos quasexber suas habiidades (p. 357). [J Para comegar, vod acrcita que esses homens poderiam ver alguma coisa além de si mesmos e dos outros que ndo fosse 8s sombrasprojetadas pelo fogo sobre a parede da caverna | iante dels? [1 Entdo, se eles quisessem falar francamente uns com os ‘outros, voct no acha que eles consideraiam 0 que veer como 6 que é realmente? Analiseentdo o que se passaria Se os libertéssemos de seus agrilbes(p. 357-388)... Cada vez que um dees fossesolto, sera obrigado a se Jevantarimediatamente, a volver a caboca, a olharalvz, © cle soften a cada um desses gestos,e ofuscamento 0 tomar incapar de dstinguie 35 cosas, cosas de que, pouco mesmo ele via a sombras [Voc no acha que ele fcara desnorteado e consideraia que as coisas que wa 46 pouco tempo ats eram mais vedadeias do que as cosas que vé 290787 (p. 358-389). {.] Sim, creio que el teria necessidade de se habtuar para ver {35 colsas Is de cima. Para comesar, ele distinguira mais, facilmente as sombras, e depois disso as aguas, as imagens dos homens eas das outrasrealidades que elas se relletem, © mais tarde ainda vera as proptas realidades. Em seguida, ele seria capac de, noite, voltando os olhos para a luz dos astrose da lua, contemplar mais facimente os objetos que estdo no céu, eo proprio céu do que, durante dia, olhar 0 sol ea luz do sol |. ‘Mas, diga-me: voce nfo acha que, lembrando-se de sua primeira morada eda "sabedoria’ des, ede seus ompanhiros de entio, ele se sentria feliz com a ‘mudanca enquanto seus companheiros o lstimariam? (p 359-360) Fonte: Patho 427-247 a. (€aigoesGaivard, 1955). 36. Psicologia e gesio + Morin e Aubé mental do objeto percebido. Experiéncias sobre 0 consumo de bebidas gasosas ou o consumo de pi- poca nos cinemas tentaram demonstrar os efeitos da percepcao subliminar. Ainda que esse assunto ainda seja objeto de controvérsias, esta assentado que 0 cérebro trata os dados sensoriais que estéo abaixo do limiar perceptivel. © estudo da percepeao leva & compreensio dos fendmenos da consciéncia, a qual constitui ao mesmo tempo o dominio das crengas e das emo- ‘Ges e, consequentemente, da racionalidade das condutas ¢ da afetividade. Em geral, se associa a racionalidade a inteligéncia ¢ a afetividade a mo- tivacdo. No entanto, essas associagées aplicam-se apenas em parte. As atividades cognitivas so para a subjetividade do individuo o que as atividades afetivas so para a racionalidade de seus compor- tamentos. Em outras palavras, o estuco da percep- ao desvenda as atividades da inteligéncia e coloca em relevo a riqueza da subjetividade do individuo; co estudo da motivagio revela as necessidades e os campos de interesse da pessoa ¢ valoriza a logica de seus comportamentos no contexto em que ela se encontra Como acabamos de ver, o problema do conhe- cimento reside, entre outras coisas, na distingéo do real, logo do objetivo, ¢ do possivel, logo do subjetivo. Ele consiste também em compreender (5 mecanismos de aquisigio e de desenvolvimento do conhecimento. Quanto a esse ponto, hé duas hi- péteses: ou o ser humano vem ao mundo com uma ‘memiéria virgem e adquire conhecimentos gragas & sua atividade, ou o ser humano nasce com conhe- cimentos elementares, a partir dos quais desenvol- ve outros conhecimentos. A origem do conhecimento: 0 empirismo e 0 inatismo Para Descartes (1596-1650), apenas os ele- ‘mentos psicofisicos da percepgio constituem a fon- te do conhecimento, Essa concepgiio est, prova: velmente, na origem da psicofisiologia, quer dizer, do estudo das relagées entre as atividades fisiol gicas (fisicas e somaticas) ¢ as atividades psicolé- gicas (0 pensamento, as atitudes e os comporta- mentos). 0 progtesso da psicofisiologia permitiu, ademais, compreender as bases neurofisiolégicas da percepgao e da inteligéncia. Descartes reconhece o valor da informacao dita objetiva, da informagao presente no meio cir- cundante, isto é, dos dados sensoriais. Consideran- do-se o fato de que 0s receptores sensoriais séo continuamente estimulados por uma penca de in- formagées sobre o ambiente, podemos nos pergun- tar que mejos e mecanismos permitem a percepgio conseguir colocar ordem nesse universo cadtico produzido pela sensacéo. Para empiristas como Locke (1632-1704) e Hume (1711-1776), a percepgao faz. associagbes de dados sensoriais regidas por leis de similitude (parecido/diferente) e de contiguidade espacial- temporal (acontecimentos simulténeos). Essas leis seriam aprendidas no decorrer das experiéncias do individuo em seu ambiente. Kant (1724-1804) dé uma explicagao comple- tamente diferente dos mecanismos perceptivos. Segundo esse filésofo, o individuo néo pode per- ceber alguma coisa da qual jé nao detenha algum. conhecimento, Existiriam entao ideias, conheci- mentos inatos tais como a unidade, a totalidade, a reciprocidade e, especialmente, 0 espaco e o tem- po. Esses conhecimentos elementares forneceriam & percepcao estruturas que Ihe permitiriam colocar ordem no caos sensorial. O sentido que elas permi- tem encontrar na experiéneia sensorial guiaria as atitudes e as condutas da pessoa. A ideia de que uma estrutura mental possa servir para selecionar, e organizar, dados senso. riais foi destacada pela teoria da gestalt, que abor- damos na introducao deste livro. De acordo com essa teoria, a pessoa que percebe um objeto cap- ta imediatamente a significacdo dele em sua tota- lidade e o sentido que encontra nele impée uma estrutura aos elementos que compoem esse ob- jeto. Por exemplo, quando um individuo perce- be uma mesa, ele Ihe atribui imediatamente uma forma e uma funcdo (é uma mesa para refeigées); essa forma e essa fungdo serio titeis para descre- ver 0 objeto (ela é redonda, de carvalho, possui quatro pés etc.). A teoria da gestalt enuncia uma lei importante no estudo do pensamento: 0 todo (a forma) & mais que a soma das partes (dos ele- mentos). Para compreender o sentido que pode iS ter um objeto ou um fendmeno para uma pessoa, é preciso saber como ele se apresenta no campo da consciéncia dessa pessoa, jé que é a forma que tem as relagdes entre os elementos desse objeto ou desse fenémeno que possuii um sentido para ela, e cada elemento ndo pode ser compreendido senio pelas relagdes que tem com a forma. Dessa ética, os elementos sensoriais nao séo os elementos es- truturantes da experiéncia consciente, mas os ele- mentos estruturados pelo campo da consciéncia. A tcoria da gestalt permitiu compreender e valorizar a percepcao ¢ a subjetividade humanas. A percepcéo constitui um objeto de estudo muito antigo, eas teorias propostas para compreen- dé-la se inspiram na filosofia, na psicofisiologia e na psicologia da gestalt. Atualmente, as pesquisas sobre a percepeio esto associadas & psicologia cognitiva, Os estudos sobre a percepgao colocam em evi- déncia as riquezas do pensamento, ou a faculda- de da imaginagdo criativa, como a chama Laborit (1970b) quando fala da faculdade de reestruturar, cada vez de modo original, as experiéncias e os conhecimentos adquiridos no decorrer de sucessi- vas geragées. Com efeito, a cultura desempenha um papel essencial nas atividades perceptivas, jé que é ela quem fornece os conhecimentos neces- Apercepsio 57 sérios para encontrar sentido nas experiéncias da existéncia. Jean Piaget foi um dos pioneiros da explora- do dos mecanismos perceptivos; para ele, 0 co- nhecimento nao se desenvolve apenas a partir dos dados sensoriais, mas também a partir de toda ‘uma ago desenvolvida pela pessoa que quer saber ¢ aprender. Nés veremos que a percepgio se baseia em atividades complexas, que prefiguram as ativi- dades da inteligéncia. A percepgio constitui, por conseguinte, um processo essencial & aquisi¢ao do conhecimento e para o desenvolvimento da consciéncia. Hla garan- te 0 contato direto e imediato entre a pessoa e seu ambiente, e isso permite a pessoa tomar conscién- cia de suas necessidades e das oportunidades que © ambiente Ihe oferece de atendé-las. A percep- Gao permite pessoa adquirir conhecimentos so- bre si mesma e sobre seu ambiente; permite que ela transforme este iiltimo de maneira a atender stias necessidades e se adapte ao seu ambiente e af se desenvolva. E preciso todavia nao esquecer que a percepgao se inscreve na estrutura do compor- tamento e no pode, sozinha, explicar a interagio entre a pessoa e seu ambiente. Apesar disso, ela constitui um processo essencial, porque permite a apreensio do real, isto é, traz 0 conhecimento sen- sivel desse real. A apreensao do real: a sensacao, a percepciio e a cognicao Perceber nao 6 experimentar uma infinidade de imoress6es ‘que trariam com elas lembrangas capazes de completé-las; perceber & ver jorrar um sentido imanente de uma constelagio de dados, sem o qual nenhum recurso as lembrancas é possiel O ato de percepeao pressupée duas coisas: (1) um corpo capaz. de perceber e de conhecer; e (2) uma pessoa consciente de seu corpo e de suas re- lagées com o meio ambiente e que age com uma intengéo, ow seja, de acordo com um projeto pelo menos consciente de um objetivo a atingir. Menueay Pony (1945, p. 30) Para ter consciéncia de alguma coisa, & preci- so, evidentemente, ser capaz de perceber essa “al- guma coisa” com os sentidos e Ihe atribuir uma significago. Isso exige que os receptores sensoriais| estejam em bom estado; assim, um dalténico nao consegue perceber certas cores mesmo quando en- + Moria e Aubé 58. Picologiae ges xerga com nitidez. Perceber e conhecer depende, além disso, do bom funcionamento do cérebro. Por exemplo, se as areas associativas do cértex visual softeram um traumatismo, uma pessoa pode en- xergar alguma coisa sem conseguir saber 0 que ve. O sistema nervoso é um pouco como o hardware da consciéncia, Pode ser titil saber como ele fun: ciona para compreender melhor a légica do com- portamento humano. Para se ter consciéncia de alguma coisa, é preciso que se seja capaz de triar e de tratar os dados sensoriais, para em seguida encontrar um sentido para 0 objeto percebido. Isso implica uti- lizar esquemas de regulacao, megadiretrizes o megacritérios que mal so conscientes (LAING et al., 1966). Retomando a analogia dos sistemas in- formaticos, diremos que a inteligéncia, de onde se originam esses esquemas e essas megadiretrizes, representa o software da consciéncia, A consciéncia € a sintese de todos os elemen- tos percebidos pela pessoa, ela permite a essa pes- soa dar um sentido sua experiéncia imediata, conereta, e compreendé-la na continuidade de seu passado e em seus projetos futuros, em fungao de sua personalidade, de suas motivagées e do con- texto em que vive. O resultado das atividades per- ceptivas constitui 0 campo da consciéncia da pes- soa, 0 que Lewin (1950-1975) chama de campo psicolégico e Saint-Arnaud (1974) de campo per- ceptual. Laing et al. (1966) utilizam o termo ex- periéncia. Dixon (1985) emprega, de preferéncia, a expresso campo fenomenal para falar daquilo de que a pessoa tem consciéncia aqui e agora, por oposigao ao campo subliminal, que compreen- de todos os fatos nao percebidos pela pessoa ou que so inconscientes, mas que apesar disso in- fluenciam suas atitudes e suas condutas. Campo psicolégico, campo perceptual, campo fenomenal experiéncia so expressdes sindnimas que fazem referéncia ao conjunto dos fatos de que a pessoa tem consciéncia e que determinam seu compor- tamento. O inconsciente & composto por todos os elementos que ndo so percebidos nem sao per- ceptiveis & pessoa, mas que, nao obstante, exer- cem uma influéncia em suas atitudes e condutas. Segundo Jung, ele seria constituido por contet- dos primitivos, arcaicos, imaturos ¢ exerceria uma funcao compensatéria em relagio as atividades da consciéncia, A experiéncia consciente que resulta das ati- vidades perceptivas determina o comportamento de uma pessoa em dada situagao; este & o prim ro axioma da teoria de Laing et al. (1966), apre- sentada no texto clissico no final deste capitulo. Em outras palavras, o ser humano age, no momen- to em que age, em funcio daquilo de que ele tem consciéncia aqui e agora (SAINT-ARNAUD, 1974). ‘A primazia da subjetividade enunciada aqui nao quer dizer que os dados do meio ou os fen6- ‘menos inconscientes nao sejam importantes, muito pelo contrétio, Ela significa que o comportamento da pessoa é fungtio do que ela percebe. O segundo axioma da teoria de Laing et al. (1966) estipula que a experiéncia e 0 comporta- mento estiio sempre em conexo com alguém, ou alguma coisa, que nao é 0 eu. Com efeito, € por meio da relagéo com um objeto ou uma pessoa que 6 individuo molda sua identidade, aclara e dife rencia suas percepgdes e, em consequéncia disso, adapta seus comportamentos. E & por isso que se pode dizer que 0 comportamento é fungao da pes- soa e do meio ambiente e, portanto, que a percep- go é determinada por fatores pessoais e por fato- res do contexto em que a pessoa vive, como vimos na introdugio deste livro (LEWIN, 1950, 1975). Pode-se descrever 0 campo psicolégico com a ajuda de quatro niveis de consciéncia, determinados por varios processos de conhecimento: (1) a sensa- Gao, (2) a percepcao, (3) a cognig&o; e (4) a mega- cognigéo (LAING et al., 1966; PINARD, 1992). A sensacio designa, em geral, um acontecimen- to psicoldgico elementar, determinado pela ativagio de modalidades sensoriais, Sua manifestago no or- ganismo ¢ global, imediata e indiferenciada. A prin- cipal fungi da sensacio ¢ reagir e informar 0 corpo sobre 0 que se passa tanto no seu interior como no sett exterior, Stias mensagens sao fisiolégicas. O fato de sentir produz uma mudanga, um desequilibrio ‘ou um desequilibrio potencial na estrutura da cons- ciéncia da pessoa, que 0 esforgo desenvolvido para saber 0 que se passa ajudard a restabelecer (MER- LEAU PONTY, 1945). A sensacio engendra a toma- da de consciéncia de alguma coisa. - ‘A percepgio € um processo que seleciona organiza os dados sensoriais de man trar um sentido neles. A percepgo é, por assim dizer, uma atividade cognitiva que permite A pes- soa captar de imediato, na enorme quantidade de dados provenientes de seu corpo € de seu meio, © sentido que une esses dados e Ihes ¢ atribuido (MERLEAU PONTY, 1945). As principais fungdes da percep¢ao consistem em explorar 0 meio inter- no ¢ externo (¢ sinalizar desequilibrios), em retra- tar ou configurar os dados sensoriais (figura, ima- gem, forma) e preparar a aco (alimentando as funges de antecipagao da inteligéncia). Segundo Piaget (1970), a percepgao nao é a simples leitura dos dados sensoriais. Em vez disso, ela comporta uma organizacdo ativa em que decisGes e pré-infe- réncias se intrometem e atestam a influéncia das operagées intelectuais desenvolvidas. A percepgio implica necessariamente atividades sens6rio-mo- toras jé que ela é, ela prépria, uma experiéncia sensério-motriz. A percepeiio engendra a conscién- cia implicita aencon- A cognigéo € “o conjunto das atividades i telectuais ¢ dos processos que se reportam a0 co: nhecimento e & fungio que faz com que ele se efetive” (BLOCH et al., 2002). 0 termo cognigao significa, simultaneamente, 0 conhecimento e 0 proceso pelo qual este conhecimento é adqui do, Muitas expressdes sao utilizadas em psicologia cognitiva para designar esse conceito; elas podem, ser substitufdas umas pelas outras sem inconve- niente. Por exemplo, pode-se utilizar a expres- sdo esquema de agao (Piaget), estrutura operativa (Piaget, Neisser), nocao, conhecimento, crenga, conceito (Changeux). Esses termos designam a organizagio dos dados da experiéncia consciente em um sistema equilibrado de relagées interde- pendentes, Segundo Piaget (1947, 1967), “cada estrutura deve ser concebida como uma forma particular de equilibrio, mais ou menos estdvel ‘em seu campo restrito, ¢ que se torna instdvel nos limites” (p. 13). Em outras palavras, a cognigéo é um conheci- ‘mento formado de muitos elementos ligados en- tre si de maneira coerente, como uma rede, Al- guns elementos de conhecimento adquirem certo valor para a pessoa, eles se situam no centro da tede e séo relativamente permanentes. Outros Apercepsio 59 elementos de conhecimento so instéveis; eles fi- cam na periferia da rede e podem ser modificados pela experiéncia. A cognicéo gera a consciéncia explicita, ‘Tomemos como exemplo 0 conhecimento que temos de gesto. A gestio é a ciéncia da adminis- tragdo, da direcéio de uma organizacio e de suas diversas fungdes. Podemos dizer que a gestio é isso. Isso constitui o centro de nosso conhecimen- to de gestdio. Sobre essas ideias, outras se enxer- tam, Por exemplo, a ciéncia ¢ 0 estudo de alguma coisa, um corpo de conhecimentos, um savoir-fai re, uma habilidade etc. A administracio esta as- sociada ao exercicio das fungées de diret controle, & aplicagio das leis ou das diretrizes de um governo, & agéo de administrar um sacramen- to, & agio de ministrar um remédio a alguém etc. A diego de uma organizagao esta ligada aos ne- gécios, as pessoas que ela emprega, & lideranga, & orientacio das atividades da empresa, & sua mis- sdo etc. As fungdes da gestio sao a gestdo dos re- cursos humanos, a contabilidade as finang gestio das operagées e da producao, a adminis- tragdo, o marketing, a pesquisa e desenvolvimento etc. A Figura 2.1 ilustra a rede da gestio tal como acabamos de descrevé-la. Como se pode observer, quanto mais vagas, incertas, so as ideias que se tém de gestdo, mais elas se afastam do centro da rede e mais instaveis sao. joe de A cognigdo, ou 0 esquema de agio, nfo efetua apenas a tradugao dos dados sensoriais; ela 0s cor- rige, os enriquece e os transforma. Logo, ela de sempenha papel importante no ato de percepcao, pois permite assimilar e elaborar 0 préprio perce- dido ajuntando-se aos dados sensoriais. A expe- rigncia (ou os dados oferecidos pelo objeto) e a deducdo (ou as operagées mentais da pessoa) so insepardveis, segundo Piaget (1970). Para com- preender a percepsiio & preciso, ento, analisar as, operagdes mentais efetuadas pelos esquemas de agéo. So muitas as fungSes da cogni¢éo. Todas elas visam oferecer ao sujeito um sentido para as imagens percebidas, para isso elas transformam, corrigem, completam, enriquecem, compensam, somam, subtraem etc. Em psicologia cognitiva e em psicologia so- cial, utiliza-se frequentemente 0 conceito “crenca”” para descrever as ideias que se tém a respeito de 60 Plcologae gestéo * Morin e Aubé a da" de eto Gestéo dos humanos Gest das coperagbes e da producto, ministragio ‘aplicagéo dae roma: e das ditetivas alguém ou de alguma coisa. Mais especificamente, uma crenga é definida como a “atitude intelectual de uma pessoa que toma por verdadeiro um enun- ciado ou um fato sem que haja necessariamente uma prova objetiva ou aceitavel para sua atitude” (BLOCH et al., 2002). Crenca é 0 mesmo que cer- teza, confianga, conviegdo e fé; essas palavras tra- duzem o conhecimento de um objeto, seja esse ob- jeto uma opiniao (creio que fard sol amanha), um conhecimento verdadeiro (dois mais dois sio qua- rr tro), ou mesmo um conhecimento nao verificdvel (creio em Deus). De todo modo, esse conhecimen- to, quer ele possa ser provado ou néo, comporta uma carga afetiva, mais forte no caso da fé. Essa carga afetiva, comum & atitude e & crenga acerca de um objeto, provém do valor que inspirou estas uiltimas. As crengas dao lugar a atitudes, as quais| so predisposigdes adquiridas para se reagir de maneira positiva ou negativa a um estimulo, de acordo com os sentimentos e as ideias que ele evo- ca, Uma atitude é, entéio, um comportamento que ainda nfo ganhou sua forma acabada, uma estru- tura do sujeito que comanda uma reacdo ante um objeto ou uma classe de objetos. A megacognigao é 0 procedimento mental que consiste em refletir sobre a maneira como pensa- mos. Segundo Pinard (1992), trata-se da capaci- dade de tomar a seu cargo, de maneira consciente € deliberada, seu préprio funcionamento cogniti- vo, em outras palavras, seu préprio pensamento. Isso significa que a pessoa adquiriu a maturida- de necessdria para tomar distancia ¢ refletir sobre suas préprias atitudes e sobre suas motivagées no que respeita suas experiéncias e as situagées pro- blematicas que deve enfrentar cotidianamente. A megacognigéo significa, também, 0 conhecimen- to que a pessoa tem de sua eficdcia pessoal, de seu estilo de atribuigio (exteriorizagéo ou inter- nalizagéo), de seus didlogos internos ete. As prin- cipais fungdes da megaconsciéncia sto a intros- peccio, a autorregulagio, ou a gestiio de si, e a individuagao. A megaconsciéncia que decorre da tomada de consciéncia traduz um nivel superior da conscién- cia que implica o desenvolvimento da autonomia da pessoa no que diz respeito & maneira de pensar € ao sentido que ela quer dar A sua existéncia. O desenvolvimento da megaconsciéncia permite a0 individuo tornar-se cada vez mais consciente de suas possibilidades e de seus limites, de seus valo- res, dos perigos da inconsisténcia, de desmorona- mento ou de decadéncia que comporta a vida que ele leva, bem como das pressdes exercidas pelo progresso da tecnologia e das motivagées reais de seus comportamentos. A megaconsciéncia torna possiveis a autenticidade e a transcendéncia da pessoa. ‘Apercepgio 61 sistema nervoso A percepcaio comporta atividades biolégicas, que séo da algada do sistema nervoso, ¢ atividades mentais, que sao da algada da inteligéncia. Assim, uum pouco ao modo de Dejours (1986), fazemos uma aproximagio entre 0 corpo € a consciéncia com 0 objetivo de melhor compreender a unida- de do ser humano e colocar os fendmenos psico- légicos na materialidade que caracteriza a drea da biologia, sem o que a psicologia corre o risco de se tornar artificial ou sem vida. compo ¢ f...] um objeto sensfvel a todos 05 outros, que ressoa por todos os sentidos, vibra por todas as cores e confere as pala- ‘ras sua significago primordial pela manei- a. como as acolhe (MERLEAU PONTY, 1945, p. 273). © corpo, na medida em que ele tem “con- dutas”, & este estranho objeto que utiliza suas préprias partes como linguagem geral do mundo e por meio do qual podemos “fre- quentar” este mundo, podemos “compreen- dé-1o" e encontrar uma significagao para ele (MERLEAU PONTY, 1945, p. 274). Essas citagdes de Merleau Ponty ndo so ape- nas posticas, elas valorizam o papel do corpo e de suas relagdes com 0 ambiente na constituigéo dos fenémenos da consciéncia e, em particular, da per- cepcdo que o individuo tem de sie do meio am- biente, Com efeito, as atividades da consciéncia e a ago da pessoa em seu meio dependem da or- ganizacdo interna do sistema nervoso, gragas a0 qual a informagao & transmitida em cédigo, é tra- tada, armazenada e depois utilizada para preparar a acdo (CHANGEUX, 1983) sistema nervoso forma uma vasta rede de células nervosas chamadas neurénios. Um mesmo neurdnio se encontra, via de regra, em contato com ‘um mtimero relativamente grande de outros neuré- nios que Ihe transmitem influxos que provocam ou efeitos excitativos (pensemos na posicao “partida” de um botdo de comando), que originam a trans- missio sindptica do influxo, ou efeitos inibidores (pensemos na posigéo “parada”), que bloqueiam a 62. Pricologia e gestio + Morin e Aubé transmissio do influxo e permitem garantir 0 con: trole de atividades como a percepgao. As principais atividades do sistema nervoso consistem em transmitir as mensagens dos rgios dos sentidos a respeito do ambiente externo até os centros superiores (sistema nervoso central), para onde confluirdo também as mensagens dos recep- tores viscerais e dos proprioceptores quanto ao es- tado de desequilibrio do organismo para agir sobre ‘ meio extemno tendo em vista restabelecer 0 equi- ibrio do organismo (LABORIT, 1974), ‘A Figura 2.2, adaptada de Laborit (1974), presenta o esquema de atividade funcional do sis- tema nervoso, que leva finalmente consciéncia, Os receptores sensoriais: estimular A sensibilidade do corpo & possibilitada pelos diversos receptores sensoriais que captam e trans: formam as propriedades fisicas ou quimicas dos estimulos em energia elétrica, 0 influxo nervoso. 0 termo estémulos designa toda forma de energia que se produz no interior ou no exterior do organis- ‘mo e tem intensidade suficiente para desencadear 0 psicofisiolégica especifica ou, em ou: tras palavras, para excitar um receptor sensorial, A Figura 2.2 sugere ao menos dois tipos de receptores: receptores que captam informacao no EsquematizasSo funcional do sistema nervoso. ambiente exteno e receptores que captam informa- Go no estado interno do organismo. Na verdade, Sherrington (1947) caracterizou trés receptores, de acordo com sua localizagao no corpo: os interocep- tores, os proprioceptores e os exteroceptores. A sensibilidade interoceptiva compreende as sensagées provenientes da parede das visceras € das mucosas, em especial do estémago e do tubo digestivo. Os receptores viscerais informam 0 or- ganismo das suas necessidades e de suas emogdes. Suas mensagens tém forte teor afetivo. A sensibili- dade interoceptiva esta estreitamente ligada & mo- tivagdo humana. As atividades do sistema nervoso permitem & pessoa tomar consciéncia do estado in- terno de seu organismo, a saber, de suas necessida- des, de suas emogGes, do seu nivel de estresse etc. Estes estados sto de natureza afetiva, eles so ne- cessérios para organizar as condutas de adaptagao conferem um valor a essas condutas. Asensibilidade proprioceptiva informa o orga: nismo quanto a suas posigdes e seus movimentos no espaco € no tempo. Os proprioceptores esto localizados no nivel dos misculos, dos tenddes e das articulagées, Por fim, a sensibilidade exteroceptiva informa 6 organismo quanto ao mundo exterior, seja por contato direto (0 tocar e 0 gosto), seja por pré- ocorréncia, isto 6, as sensagdes obtidas sem con- tato direto (por meio da visio, do ouvido e do ol- Organism Siaisinternos fu vegetatvos Atividades Atividade Teuromotor| gio do meio Fonte: Adaptada de Laborit (1974, p. 53). yr fato). Os exteroceptores, os érgios dos sentidos, esto situados na periferia do corpo. 0 sistema nervoso central: sentir, perceber e conhecer Desde sua concepso, 0 organismo humano é literalmente assediado, o tempo todo, por toda sorte de estimulos, captados e codificados pelas cé- lulas receptoras. O sistema nervoso central (SNC) tem por principais funges levar as mensagens dos receptores até 0 cértex cerebral, selecionar as ‘mensagens para reter apenas as que tém um valor vital para o organismo, memorizar a experiéncia adquirida e coordenar as agées da pessoa em seu ambiente. Portanto, as atividades do sistema ner- ‘voso permitem, entre outras coisas, a organizagio dos dados sensoriais, a imposi¢ao de um sentido ao caos sensorial. fi gragas ao SNC que estas fun- (bes serdo realizadas. Corte mediano do eérebro humano. Apercepeio 63 © SNC, que chamamos habitualmente de cé- ebro, é de fato responsdvel pelas fungées sens6- rio-motrizes e pelas funges mentais. Suas ativi- dades permitem, fundamentalmente, a coleta e 0 tratamento da informacao, seu armazenamento na meméria e a organizagao das agées adequadas as condigées do meio. # gragas a esse sistema que a pessoa pode entrar em relagdo com o que a circun- da e se adaptar ao seu ambiente, adaptando-o a suas necessidades (LABORIT, 1974) A principal fungaio do SNC é, por conseguinte, permitir a ago do individuo em seu meio, quan- do isso ¢ possivel. Ele tem por finalidade a preser- vagio ou a manutengdo da estrutura do organis- ‘mo ow, dito de outra forma, a busca do equilibrio. Este sistema se compe de varias estruturas, como © tronco cerebral, o sistema limbico e 0 neocértex. ‘A Figura 2.3 apresenta um corte mediano do cére- bro humano. ees sensorial “ovoca Joes env Area visual Cortex cerebral ‘04 neocértex Sistema limbieo 64. Psicologia e gesio * Morin Aube O tronco cerebral: o cérebro limbico Segundo Laborit (1974) ¢ Omstein e Thompson (1987), 0 tronco cerebral corresponde & regio muito primitiva do cérebro. Ele é responsével pe- los comportamentos instintivos, que garantem a sobrevivéncia do individuo e da espécie. 0 tron: co cerebral intervém em comportamentos vitais, tal como a motricidade, a respira determina, igualmente, 0 nivel geral de vigiléncia participa da transmissao dos dados do exterior para os centros nervosos superiores; na verdade, tudo passa pelo tronco cerebral. io € 0 sono, Ele O sistema limbico: 0 cérebro mamifero sistema Itmbico, que abrange o hipotéla- mo, esta situado na parte mediana do cérebro. Ele tem papel importante na organizagaio das respos- tas emocionais que regem as condutas. Ele exerce igualmente um papel essencial no estabelecimento da meméria de longo prazo, que permite ao orga- nismo repetir as experigncias que considera agra- daveis e evitar as que julga desagradaveis (LABO- RIT, 1974). Comum aos primeiros mamiferos, esse sistema torna poss{vel certa forma de civilidade a0 permitir a expresso das emoges. © hipotalamo compde-se de uma série de mi- cleos sensiveis no interior do organismo; ele tem papel importante na regulagio do sistema endé- crino e da temperatura, na interago das emogdes © das necessidades vitais como a fome, a sede e 0 sono. Essa estrutura é responsdvel pela organiza- do da reagio fisiolégica a um estimulo, logo, pela Tesposta efetiva a esse estimulo. 0 sistema nervoso auténomo (SNA), contro- lado principaimente pelo hipotdlamo, garante de sua parte a regulagdo das fungées viscerais, 0 co- mando dos miisculos involuntétios tais como 0 co- ago, os pulmées e as visceras. £ este sistema que permite a regulag&o das necessidades vitais como o sono e a vigilia, a fome, a sede e o desejo sexual; © SNA assegura também a regulagao das emogées como 0 medo, a célera e o prazer. E este sistema que intervém quando das situagbes urgentes, pre- parando pessoa para agir rapidamente, Gragas as atividades desse sistema, a pessoa tem condicio de fugir quando sente medo, ou de lutar, quando sente raiva (LABORIT, 1974) 0 cértex cerebral ou neocértex: 0 novo cérebro Por fim, o cértex cerebral ou neocértex, estru- tura comum as espécies evoluidas, é indispensavel a0 tratamento e & memorizacio de longo prazo da informagao, a integragéo das mensagens sensoriais © em particular & consciéncia, ao conhecimento € a imaginagao criativa (LABORIT, 1974). ‘Trés categorias de dreas corticais caracteri- zam 0 neocértex (CHANGEUX, 1983; LABORIT, 1974): 1. reas sensoriais primArias, que recebem 08 dados sensoriais; 2. reas sensoriais secundérias, situadas na proximidade das éreas primérias; elas permitem o reconhecimento; 3. reas associativas, preparadas para com- binar e recombinar os elementos memo- tizados de um modo original, portanto capazes de imaginacao e de criatividade. £ um pouco como um centro de tratamento de dados. As informagées provenientes dos recepto- res sensoriais sao acolhidas, em primeiro lugar, nas reas sensoriais primérias, onde se transformam em sensagSes elementares. Desde a chegada delas, carregados da percep¢ao”, que se encontram nas proximidades (nas éreas sensoriais secundétias), tentam identificar essas informagées ¢ organizé-las de tal sorte que seja possivel saber o que elas signi- ficam para o organismo. A interacao das sensacdes elementares e dos “encarregados” cria 0 percebido (© percepto), isto é, uma imagem, uma estrutura figurativa, Para fazer corretamente sett trabalho, os “encarregados" enviam e recebem simultaneamente mensagens procedentes das dreas associativas até 0 momento em que o sentido da informagao sensorial & descoberto e 0 percebido é completado. - Essas estruturas tornam possivel a percepcao pelo sistema nervoso. Os Destaques 2.2, 2.3 ¢ 2.4 ilustram as atividades deste tiltimo por meio de exemplos de reconhecimento. Exemplo de reconhecimento (contato). Michel ganhou rapidamentea rua ese diigiv para a Livraria das Cinco Partes do Mundo, um imenso atmazém situado na rua “del Pas” e digi por um ato funcionsrio do Estado, “Todas as produgées do esprto humano devem estat escondidas 8" diz para si mesmo 0 jover (p. 57) I. O linciro,acordado de supetdo, ahou 0 audaciosojover, lew o bihete que este trourerae pareceu surpreso com 0 Pediio, Depois de ter relletidolangamente, para grande ‘espanto de Michal, ele o encaminhou para um furcondsia subalterno, que trabalhava perto de sua jansia, em um equeno escritrio sori, Apercepséo 65 Michel se encontrou na presenca de ur homem de 70 anos, se aha vio, rostosoridente, com o semblante de un sabio allio a tudo, Este modesto funcionavio pagau o blhete © 0 leu atentamente, "Vocé pede autores do século dezenove — dise ele —0 que é uma honta para eles. so val permite que voce os desem Poeire. Veamos... Michel Duténoy? Diante desse nome, o anc levantou viamente 2 cabeca @.62) Fonte: vera (1954), Como podemos ver simbolicamente no exem- plo retratado no Destaque 2.2, os estimulos exter- nos (0 nome “Michel Dufrénoy” escrito no bilhete entregue pelo jovem) sto captados pelos recep- tores especializados (os olhos), que os codificam em um influxo nervoso. Percorrendo as vias sen- soriais (0s nervos), eles atravessam dois relés, 0 primeito no nivel do tronco cerebral e o segundo no nivel do télamo, antes de serem langados nas reas sensoriais primérias, onde nascem as sensa- g6es elementares (M-i-c-h-el D-u-fr-én-o-y), re- conhecidas gracas & mobilizago quase simulta- nea das areas secundarias (“Michel Dufrénoy”) Entdo, nasce 0 percebido (“E Michel Dufrénoy!”). Changeux (1983) explica o fendmeno do seguinte modo: Pode-se conceber a formacio do perce- bido primério como resultante da entrada simultanea em atividade, por meio dessas diversas vias paralelas, das representagées primérias ¢ secundérias do cértex, enquan- to as vias hierérquicas participam do “fe- chamento” destas varias representagdes do objeto. A interacdo recfproca das diversas reas que entraram em atividade permite, Exemplo de reconhecimento (evocagio). por conseguinte, que analise e sintese sejam feitas ao mesmo tempo (p. 185) Seo contato direto & uma condigio da percep- ‘do, seu contetido pode ser colocado na meméria pelas dreas associativas, primeiramente sob a for- ‘ma de imagens, em seguida sob a forma de concei- tos, tornando assim possivel 0 reconhecimento, a evocacéo, a combinagao e a criagao de conceitos e, portanto, tornando possivel o desenvolvimento da linguagem e da inteligéncia (CHANGEUX, 1983) (ver o prosseguimento do fenémeno de reconheci- mento no Destaque 2.3). O cérebro humano tem a capacidade de evo- car conceitos out imagens, de combind-los, de ima- gindslos, de crid-los (CHANGEUX, 1983; LABORIT, 1974). O eérebro também funciona como um si- mulador, o que confere & pessoa o poder de ante- cipar os acontecimentos e prever os resultados de sua agiio. Nesse contexto, a linguagem desempe- nha papel fundamental na relago que se estabele- ce entre a pessoa ¢ seu ambiente, Segundo Chan- geux (1983): De acordo com esse esquema, a lingua: gem, com seu sistema arbitrdrio de sinais ¢ "Vocé & Michel Duténoy ~ git 0 vlho, ‘Com efit, eu nio 0 tinha olhado ainda. (p, 62) Fonte: Verne (1934) 66 Psicologia egestio * Morin © Aubé simbolos, serve de mediador entre esta “lin- guagem do pensamento” e 0 mundo exte- rior, Ela serve para traduzir os estfmulos ou 08 acontecimentos em simbolos ou concei- tos internos para, a seguir, a partir dos no- vos conceitos produzidos, traduzi-los mais uma vez, desta vez em processos externos (p18). Como a pessoa pode saber se 0 que ela per- cebe é verdadeiro, real, ¢ niio uma pura fiegio? Na realidade, é provavel que seja impossivel saber. Segundo os ensinamentos de Changeux (1983), psicologicamente o eérebro age como um compa- rador, procurando relacionar um conceito ou uma imagem (no exemplo que demos, a lembranga que o velho tem de Michel) com um percebido (0 nome de Michel no bilhete ¢ seu rosto). Quando um conceito (0 conhecimento de Mi- chel), produzido por um grupo de neurénios nas reas associativas (isto &, 0 conjunto dos neuré- niios que participaram da configuragio do conheci- mento “Michel Dufrénoy”), € confrontado com um percebido (0 nome e 0 rosto), produzido por ou- tro grupo de neurdnios nas areas sensoriais (isto 6,0 conjunto dos neurdnios que participaram da estruturacio das sensagdes elementares provindas dos olhos), isso ocasiona uma potenciacdo da ati- vidade cortical (ou seja, uma consondncia ou uma concordancia), € 0 teste é positivo (“Eo meu sobri- nho!”). Quando essa confrontacao acarreta, pelo contrério, uma extingio da atividade (isto é uma Exemplo de reconhecimento (reencontros) dissonancia), 0 teste é negativo. Changeux expres- sa isso da seguinte forma: ‘A comprovagio da realidade consiste na ‘comparacao de um conceito ou de uma ima: gem com um percebido. O teste poder se resumir em “entrada em concordancia” ou, pelo contrario, por entrada “em dissondn- cia” de dois grupos de neurénios confron- tados. A concordncia se manifestaré por uma potenciagao da atividade, a dissondn- cia pela extingao dela. Desse procedimento pode resultar a selecdo do que ¢ considera- do “concordante” ~ adequado ao real, logo “verdadero”. & evidente que este compara- dor funcionara também de maneira “inter- na” entre objetos de meméria, percebidos € imagens (p. 188). © cérebro nio faz nenhuma distingéo entre um objeto percebido ¢ um objeto imaginado, de onde a dificuldade de se determinar o que € real = no sentido positive ~ ¢ 0 que nao é. Fisiologicamente, a pessoa € capaz de sentir gracas a seus varios receptores sensoriais ¢ a seu sistema nervoso; ela é capaz de perceber e de reco- nhecer os fenémenos por meio das atividades das reas sensoriais primérias e secundirias; ela & ca- paz de memorizar gracas ao sistema limbico; ela é capaz de conhecer, de imaginar e de se lembrar gracas as atividades das areas associativas do neo- cértex. O Destaque 2.4 fornece um exemplo das capacidades de meméria e de imaginacao. oct me conhece? Se eu 0 conheco! (0 valho nao pode continua, uma real emosio se pintova Sobre seu rosto bondaso Ee estendou a mio a Micha teste, sem hestagao, a apertou afetuosamente — Eu s0U seu tio—falou finalmenteo velhote- seu vlho tio. Huguenin, mao de sua pobre mae. = Meu to! Voct! - exlamou Michel, comovido, = oct nao me conhece! Mas eu o conhexo, meu fhol Eu ‘estava presente quando voc! ganhou seu magnifico premio. pelos versos latinos! Meu coragio batia bem forte, e voce ‘nao desconfiava disso! = Meu to! = Nao é culpa sua, meu caro filho, eu se disso! Se eu me ‘mantiveafastado, longe de wor, foi pare nao preuicso junto 3 fail de sua tia mas eu seguia seus estudos, paso. 1 passa, dia a dia! (. 62-63) Forte: Verne (1994), yr Enquanto sistema de relagées, a linguagem permite & pessoa entrar em contato com os outros e adquirir a cultura de seu meio. Porém, a lingua- gem no é apenas um sistema de comunicagao, ela 6 também um sistema arbitrério de sinais (pala vras que designam objetos, ideias, pessoas etc.) de simbolos (imagens, figuras, metaforas, alego- rias ete.) que fornece ideias e conceitos “prontos para o uso”, Ela é ainda um sistema que permite & pessoa tomar uma distancia em relagao & experién- cia concreta, ¢ refletir, e dar a si mesma uma ex- plicagéo sobre 0 que observa. Ela permite & pessoa ampliar seu campo perceptual gragas a0 aumento das possibilidades de combinagdes novas, e desen- volver sua imaginagio criativa. O desenvolvimento da linguagem esté, de resto, estreitamente ligado a0 desenvolvimento das habilidades intelectuais e, como consequéncia, ao amadurecimento do siste- ‘ma nervoso (PIAGET, 1967). Dessa perspectiva, pode-se dizer que a percep- ao é uma atividade de simbolizacdo (que utiliza sinais e simbolos, na génese da linguagem) que as sume um caréter simbélico (ja que ela produz.ima- gens e formas). A percepciio é um fenémeno ativo, que recorre ao sistema nervoso, & inteligéncia e & linguagem para encontrar um sentido na experién- cia que vive a pessoa, aqui e agora (CHANGEUX, 1983). As representagdes mentais que ela permite construir estéo intimamente ligadas as atividades cognitivas, que séo da algada da inteligéncia, as atividades afetivas, que sao da algada da motiva- ‘cdo, ¢ &s atividades culturais, que sdo da algada da linguagem. As representagées e as operagées mentais Quando percebemos um acontecimento, nao nos vem a cabeca duvidar da autenticidade de nos- sas impresses. Este é, alids, 0 postulado do empi- rismo: os dados que nossos sentidos nos fornecem stio sempre reais; so os julgamentos que fazemos deles que falseiam nosso conhecimento. Poder-se- ia concluir dai que, para sermos objetivos, deve- mos nos esforcar por quedar passivos quando ob- servamos um fendmeno? Isso € possivel? Apercersio 67 O progresso da psicologia cognitiva nos per- mitiu descobrir que € impossivel para um obser- vador permanecer passivo, 0 fato de perceber j4 sendo uma ago em si. Alids, foi constatado que frequentemente ha discrepancias, as vezes gran- des, entre a estrutura e 0 contetido de um estimu- lo ea configuragao perceptiva da pessoa a respeito dele (HASTIE, 1981). Na verdade, a percepgéo contém em si uma organizacio ativa das experiéncias passadas, se- jam elas recentes ou remotas, que, incorporadas a experiéncia imediata, transformam os dados dos sentidos em uma s{ntese original, nova e sobretudo significativa no que respeita a finalidade da aco. Quando a pessoa percebe um objeto, ela nao 6 portanto, passiva, muito pelo contrrio. Como vimos precedentemente, esquemas preexistentes so postos em atividade nas areas associativas do neocértex, eles transformam os dados dos senti- dos nas dreas sensoriais impondo-Ihes uma forma que € 0 aspecto cognitivo do ato, e um valor, que corresponde a seu aspecto afetivo. O ato de per- cep¢iio comporta, entao, decisdes e pré-inferéncias que atestam as atividades da inteligéncia (PIAGET, 1975b). Do ponto de vista da biologia, a inteligén- cia € vista como 0 conjunto das atividades do neo- cértex, que elabora respostas originais, adequadas 4s condigées do ambiente. Do ponto de vista psi- colégico, a inteligéncia é o conjunto das atividades de adaptacdo do individuo a seu meio, Os esquemas: sua natureza e suas funcées Imaginemos uma situagio: so 15 horas, Clau- de trabalha sem descanso desde 0 meio-dia. Ele no viu 0 tempo passar, tanto sua tarefa o absor- ve. Seus olhos ardem e sua garganta est seca. Ele toma consciéncia de sua fadiga. Ele olha em tomno, vé sua cadeira, seu porta-documentos, ele se recor- da de ter colocado ali seu lanche esta manha. Ele ara. O que aconteceu? Claude tomou consciéncia de que devia des- cansar um pouco e recobrar forgas antes de termi- nar sua jornada de trabalho. Ele tomou consci cia de suas necessidades gracas aos sinais emitidos Por seu organismo. Quase ao mesmo tempo, to- fazer suas ne- mou consciéncia dos meios de s: 68 Picologn « gerto » Aube cessidades, uma intengo se formou no campo de sua consciéncia, a intengao de fazer uma pausa. Essa intencéo vai orientar suas condutas. Ela im- plica um plano de aco (onde procurar seu lanche, onde repousar, durante quanto tempo etc.) ¢ pre- visdes (se ele comer ¢ descansar um pouco, terd condigdes de ser mais eficiente do que se tentar terminar sua jornada de outro modo). Em outras palavras, mais ou menos conscientemente, Clau- de formula hipéteses quanto ao melhor modo de atender suas necessidades, dadas as condigdes nas quais se encontra, As hipéteses ¢ as inferéncias dependem das intengdes da pessoa, de stias expectativas e de seus preconceitos (TAYLOR; CROCKER, 1981). Aconte- ce que as atividades da percepcao sao invariavel- mente dirigidas por hipdteses produzidas pelas ati- vidades intelectuais. A pessoa ndo tem consciéncia dessas hipéteses, a nao ser que faca um esforco grande de introspeccao. Na verdade, podemos nos tornar conscientes de nossas hipéteses quan- do elas so invalidadas pela experiéncia. A frus- traci pode levar um individuo a questionar suas expectativas e suas conviegdes no que diz respeito a situagao e, por meio de reflexio, mudé-las para adquirir novas. ‘As hipéteses encontram-se permanentemen- te sujeitas ao controle da experiéncia consciente; em outros termos, o individuo espera perceber coi- sas em uma situagéo e, mais ou menos consciente- Niveis Estruturas nervosas mente, compara o que percebe efetivamente com suas expectativas (NEISSER, 1976). Em psicologia cognitiva, as estruturas que fornecem tais hipéte- ses levam 0 nome de cognigéo ot de esquema de agio (PIAGET, 1975b). Distinguimos, no infcio deste capitulo, quatro niveis de consciéncia: 0 subconsciente, onde se si- tua a sensagio, a consciéneia imediata, onde se si- tua a percepgio, a consciéncia explicita, onde se si- tua a cognigao € a megaconsciéncia, onde se situa a megacognictio. A distinesio desses niveis nos per- ‘mite “localizat” as operages mentais e compreen- der os mecanismos do pensamento, No entanto, esta distingao é bem arbitrétia, jé que, de fato, a consciéncia deveria ser descrita preferencialmen- te como um continuum que varia em grau; ela vai do inconsciente a megaconsciéncia, as varias es- truturas mentais alargando-se e tornando-se mais flexiveis progressivamente (PIAGET, 1975b). Essa distingdo se baseia nas estruturas nervosas respon- sdveis pelas atividades conscientes, como mostra © Quadro 2.1. Esse quadro resume os varios niveis da consciéncia, bem como as estruturas nervosas correspondentes e também os tipos de estrutura mental e as operagdes que os caracterizam, Piaget (1975b) distingue dois tipos de estru- turas: as estruturas figurativas, produzidas pela percepcdo, e as estruturas operativas, empregadas pela inteligéncia. Segundo ele, as estruturas figu- rativas (da percepcao) esto necessariamente st Tipos de estrutura ‘Atividades Megacognicio (rmegaconsciencia) Neocértex (reas associatvas) Cognigso (conscitncia expla, express Neocértex (teas assocatvas) Estruturas operatvas rmegacitéros, megadinetizes Introspeccio, autoregulagso, indiviuacéo Estruturas opeatvas Transformar,conigit, completa, enriquecer, ‘compensa, soma, subtialr ote esquemas de acto, exqueras de rogulagao e de coordenagio das condutas conceltos: nocBes Percepgao (conscléncia Neocériex (reas sensorais implicit, cencomiténeia da_—_|secundsias) acto) Sensagao Gubconsciante) Neocértex (reas sensors priearias) Estrutuesfiguatvas Explorar, configuar,sinalizar, epresenlacbes,esquemas antecipae petcebidos, imagens Influx nerose eagir,informar F pordinadas as estruturas operativas (da inteligén- cia). Por que isso é assim? Porque, de um lado, sendo a exploracao eo re- gistro das formas e dos contetidos as principais ati- vidades da percepsao, dificilmente elas poderiam ser realizadas sem que certas condigdes estejam, previamente presentes; essas condicGes referem- se ao que explorar € como registrar. Essas condigées séo impostas pelas estruturas operativas. Dessa maneira, na presenga do obje- to, 0 papel fundamental das estruturas operati- vas consiste em guiar as atividades perceptivas em fungio das relagées previstas entre a ago ¢ a fi- nalidade. Por causa disso, a percepco é essencial- mente seletiva De outro lado, sem 0 auxflio das estruturas operativas (ou dos esquemas de aco), a pessoa As quatro iusées ético-geométrces Apercepsio 69 ficaria exposta a toda sorte de ilusdes sistematicas ¢ de impressées. Em psicologia da percepgaio nds, nos servimos, de resto, das ilusdes para compreen- der os fendmenos perceptivos e desvendar as ope- rages mentais necessarias para as transformar, A Figura 2.4 apresenta uma amostra dessas ilusdes. Como podemos ver, virias figuras parecem corre- tas. Lemoine (1995a) utilizou a ilusio de Miiller- Lyer para mostrar a atividade das pessoas quando colocadas em uma situacdo avaliativa. Com essa pesquisa, este professor provou que individuos co- locados em uma situacdo desse tipo prestam aten- cio ao que fazem, pois sua imagem esté em jogo. Por conseguinte, isso tem consequéncias nas situa- Ges de avaliagéo de rendimento. Evidentemente, nossa percepcio ndo nos en- gana sempre, certas estruturas figurativas seguin- Configuracéo lusio de Maller yer lusio de Poggendortt luséo de Hering Fomte: Richelle e Droz (1976, p. 194). lusio de Oelboeut oO oO Descrigao da ilusso Inscito em Bo ctculo A, parece maior que © dirculo A, (de fato, A, = A.) (0 comprimento de ume linha & por cunhas extemas (A) Subestinado no ease contro (defato, A= 8) © segmento B est stuado no 8 prolongamento do segmento A ‘embora pareca deslocado para cma As liohas Ae 8, embora paregam curva, S80 exatamente relas © patalelas 70. Pricologia e gestio + Morin e Aubé do verossimeis. Porém, na maioria das vezes elas ‘comportam erros, automaticamente cortigidos pe- Jas operagdes mentais. Essencialmente egocéntri- ca, a percepcao é deformadora e requer, portanto, corregdes das estruturas da inteligéncia, A percep¢ao, as estruturas figurativas e as representagies ‘A percepsio gera estruturas figurativas, ou seja, representagées que tém uma fungio de sina- lizacdo e de configuragio. O percebido e a imagem pertencem a esta categoria. Como pertencem & espécie cognitiva, as estru- turas figurativas tém uma génese, isto é, um de- senvolvimento que vai do indiferenciado ao mais diferenciado. Nesse sentido, pode-se dizer que a percepcao é uma habilidade que se desenvolve acompanhando os diversos estdgios da inteligén- cia (NEISSER, 1976). © desenvolvimento das es- truturas figurativas se dé por enriquecimentos sucessivos a partir das estruturas operativas e de suas interagdes com os dados sensotiais. Exercicios de deteccAo, de diferenciagio e de identificacéo podem ajudar o desenvolvimento perceptivo. Da mesma maneira que as estruturas da inteligéncia, elas constituem formas de equilibrio, caracteriza- das pelas leis de totalidade (PIAGET, 1975). A principal lei de totalidade bem conheci- da: o todo é diferente da soma de suas partes ou, em outros termos, 0 conjunto das partes tem pro- priedades que nao se reduzem & soma das proprie- dades das partes. O exemplo da mesa, que vimos anteriormente, ilustra bem esta lei da forma: a pessoa que percebe uma mesa Ihe atribui imedia- tamente uma forma e uma fungéo. Dessa maneira, ‘uma estrutura figurativa possui uma estabilidade que provém da organizacao dos dados sensoriais; a forma percebida nao muda, a ndo ser que as re- lagées entre os dados sensoriais sejam modifica- das. Por exemplo, nao podemos perceber ao mes- ‘mo tempo a mesma mesa de pé ou caida no chao, ‘como nao podemos perceber ao mesmo tempo um, ‘mesmo livro aberto e fechado. Do mesmo mods, a forma percebida € indisso- cidvel de seu conteiido: nao percebemos, primei- ro, sensagées e em seguida um objeto mas, em vez disso, percebemos um objeto sensivel que se des- taca de seu contexto (PIAGET, 1975b). No exem- plo da mesa, esta é percebida em sua totalidade no aposento em que se encontra. E 0 caso cléssico da imagem que se destaca sobre um fundo: em um, ‘campo sensorial, os estimulos estéo estruturados de tal modo que reunidos compéem uma imagem sensivel (forma e contetido) que se destaca dos ou- tros estimulos potenciais, indefinidos, que consti- tuem 0 fundo. A forma percebida tem um sentido, que se destaca do fundo no qual até entéo se en- contrava. A forma é diferenciada e possui uma sig- nificago, enquanto o fundo segue pouco nitido, indefinido, indiferenciado, sem limites precisos, sem valor. A Figura 2.5, que mostra um vaso ou um duplo perfil humano, ilustra esse prine‘pio. 7 eas av dnl perf amare. yr ‘Além disso, as estruturas figurativas, que de- pendem da percepgéio, possuem certas particula- ridades que permitem distingui-las das estruturas operativas, que dependem da inteligéncia. A percepcao é positiva A percepcio € positiva, isto é, se percebe o que 6, sendo indiferente que os estimulos sejam inter- nos ou externos. $6 a estimulacdo dos receptores sensoriais pode ocasionar a percepcao. A presen- ca dos estimulos é necesséria para que a pessoa 0s perceba; as estruturas da inteligéncia, pelo con- trdrio, fazem com que a pessoa possa representa los na imaginagao. Por conseguinte, a imaginagéo sempre se encontra ligada ao campo sensorial; ela fornece um conhecimento dos estimulos por meio da ligagdo imediata com eles. 0 fato de percebermos apenas o que esta pre- sente, 0 que Piaget chama de os observaveis po- sitivos, constitui por outro lado um incitamento a0 desenvolvimento das estruturas intelectuais: a assimettia dos observveis positivos e negativos (algo que se espera perceber mas que néo se deixa ver) compromete o equilibrio das estruturas men- tais, de onde o desencadeamento dos processos de regulagio (ages € operagoes) que visam restau- rélo, A tomada de consciéncia da auséncia de um objeto s6 € possivel apés a acto de uma estrutura operativa (por compensacéo) e s6 se produz em fungio das antecipagées ou das expectativas da pessoa, que dependem igualmente dessa estrutura (PIAGET, 1975b). A percepgao € sensivel A proximidade dos estimulos: ela é irreversivel Além de estar subordinada A presenca dos esti- ‘mulos, a percepcao € limitada pelas condigdes espa- iais e temporais. Por exemplo, dificilmente pode- ‘mos ver, simultaneamente, objetos colocados diante de nés ¢ atrés de nds, Tampouco podemos ver um Evento que acontecew ontem; em contrapartida, po- demos evocé-lo, 0 que é um feito da inteligéncia. Este titimo exemplo demonstra ademais que a per- cepcio é uma atividade irreversivel. a Apercepgio 71 Por outro lado, a proximidade dos estimulos cria entre eles relagdes que também sero percebi- das pela pessoa. A proximidade dos estimulos con- ceme tanto sua similitude quanto sua aproximactio Ro espago ou no tempo. As relagées criadas a partir da proximidade dos estimulos dificilmente podem, ser ignoradas pela pessoa, a ndo ser que uma estru- tura operativa as subtraia do campo de consciéncia dessa pessoa. A percepgio das interagdes entre esti- mulos préximos uns dos outros é uma fonte de erros de julgamento, em particular de erros de atribuigso no que toca a causalidade de um evento (JASPARS; HEWTONE, 1984; PIAGET, 1975b). ‘Um exemplo permitira compreender essa par- ticularidade da percepcio. Quando dois eventos stio semelhantes e acontecem préximo um do ou- tro, um deles pode ser percebido como causa do outro. Imaginemos uma classe de estudantes aten- tos durante um curso de contabilidade financei ra que comecou as 9h. S40 10h15, os estudantes pousam 0 lépis e comegam a se agitar em suas ca- deiras. © professor olha a hora e © comportamen- to dos estudantes e conclui que é chegada a hora da pausa. A proximidade dos estimulos (a hora e © comportamento dos estudantes) sinaliza para 0 professor que é tempo de fazer uma pausa, Nes- te exemplo, nao ha erro de atribuicéo, dado que os estudantes procuram efetivamente sinalizar para seu professor que chegou o momento de fa- zer uma pausa, ¢ isso em virtude de acordo técito entre eles. Porém, hi situagéies em que a proximi- dade dos estimulos gera erros de julgamento; isso acontece, notadamente, nos casos em que pessoas testemunham acidentes. A percepcao é egocéntrica A percepcfio é essencialmente egocéntrica: a pessoa percebe os acontecimentos de sua prépria perspectiva. (O egocentrismo nao deve ser confun- ido com egofsmo; so dois estados muito diferen- tes; 0 segundo corresponde & tendéncia de tudo subordinar a seu proprio interesse pessoal.) A per- cepeio é egocéntrica por varias razées. Em primeiro lugar, o que a pessoa percebe depende de sua posi- ‘cdo em relago ao objeto percebido, o que tem re- ago com a focalizacao da atengao. A forma perce- ; ae 72. Psicologia e gestdo * Morin e Aubé ida serd diferente de acordo com 0 ponto de vista adotado pela pessoa. Por exemplo, imaginemos um, homem que assiste a um match de futebol. O jogo que ele vé serd percebido de modo diferente se ele estiver sentado atras do gol do time dos visitantes ou se estiver sentado préximo do meio do campo. Em segundo lugar, a percepgdo € egocéntrica porque suas atividades sto determinadas pelas ex: pectativas e pelas antecipagées da pessoa na situa- io em que se encontra, que é 0 foco de sua atencii Por exemplo, o espectador do jogo de futebol pen- sa que o time dos visitantes far’ mais pontos que a equipe local. Disto se segue que sua atengio estaré voltada para 0 jogo ofensivo do time dos visitantes € para as vulnerabilidades da defesa do time local. Em terceiro lugar, a percepcio é egocéntrica no sentido que 0 que a pessoa percebe é estrita- ‘mente pessoal e dificilmente pode ser comunicado aos outros (PIAGET, 1975b). Alids, & por essa ra- zo que se pode dizer que o conhecimento sensivel 6 puramente subjetivo. 0 egocentrismo da percepcéo é uma fonte de erros de julgamento. Sao muitos os exemplos dis- so. O da imagem da mulher jovem/idosa, ilustrado na Figura 2.6, mostra a influéncia do foco da aten- co sobre a forma percebida. Além disso, frequen- temente, o egocentrismo leva a equivocos: cada -Mulher jovertidos pessoa tem sua opiniio sobre dado acontecimento ¢ é levada a crer que os outros também pensam como ela, 0 que pode ter efeitos embaragosos nas relagées profissionais. ‘A percepgao se limita 4 aparéncia das pessoas e das coisas ‘Como os prisioneiros da caverna de Platéo, a percepgio se atém as “sombras” dos objetos, das pessoas e dos acontecimentos. Bla esta centrada es- sencialmente no que se passa no organismo (esti- mulos internos) ou no meio ambiente (est{mulos externos), e isso da perspectiva da pessoa que per- cebe (egocentrismo). Segue-se que a percepciio per- mite ao individuo adquirir um conhecimento senso- rial sobre si mesmo e sobre o meio ambiente, mas nio faculta ir além dos dados sensoriais. Para tanto, as atividades da inteligéncia se tormam necessérias. ‘A percepciio comporta uma significacdo imanente Se 0 dado perceptivo tem uma significacao para a pessoa, essa significagao néo ultrapassa os limites de indicio. Todavia, este ind{cio serve de si- nal e leva a inteligéncia a selecionar determinado esquema de ago dentre outros possiveis (PIAGET, 1975b). A percepgdo enseja atividades de explo- racdo para melhorar a forma percebida. Portanto, ela implica alguns processos de inferéncia, anteci- pagées que sdo imediatas e nao domindveis pela pessoa. Como afirmou Piaget (1975b): “A percep- go se situa hic e nunc e tem por fungéo inserir cada objeto ou acontecimento particular nesses quadros de assimilacao possiveis” (p. 445). A percepgio enquanto processo tem entéo por funcéo alimentar as estruturas da inteligéncia com os dados exteriores que ela transforma, com a me- nor deformagdo possivel, em estruturas figurativas ou representacées, Por conseguinte, ela garante continuamente 0 contato entre as agées da pessoa (estruturas operativas ou esquemas de ago) e 0 ambiente (0s acontecimentos, os objetos, as pes- soas ete.) (PIAGET, 1975b). As atividades perceptivas Segundo Neisser (1976), a percepcao € um processo circular que recorre a cognigées, 0s es- 0 cico percentual Apercepgio 73 quemas de ago. Estas estruturas so interioriza- das pela pessoa, modificadas pela experiéncia e sio préprias as configuracdes perceptivas, que le- vam 0 nome de “esquema” na teoria apresentada por Neisser. Desse modo, segundo este tiltimo, o processo 6 circular porque é deflagrado pela construcao de um esquema que dirige as atividades perceptivas, as quais, por sua vez, vaio modificar 0 esquema, As atividades perceptivas tém por objetivo a bus. ca da informagao necesséria para que a pessoa possa satisfazer suas necessidades e realizar seu projeto. O conhecimento que elas fornecem se in- tegra ao esquema inicial (por assimilaga0), mo dificando-o (por acomodago). A Figura 2.7 re- trata o ciclo perceptual tal como Neisser (1975) o descreve. As atividades perceptivas so ademais sens6- rio-motrizes porque comportam, além da organi- zacio dos dados sensoriais, uma intervencao da motricidade nesses mesmos dados por meio de ati- vidades de exploragao, de selegao ou de configu- ragio, {rior aGB0 pessivy disponivel Confers Fonte: Adaptada de Neisser (1976, p. 112).

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