FREUD o Futuro de Uma Ilusão

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QuaNno LcueM viveu um bom tempo em de- terminada cultura e fez esforgos frequentes no estudo de suas origens e do percurso de seu desenvolvimento, chega 0 dia em que também sente a tentagao de voltar o olhar na outra di- regio e’perguntar qual o destino que aguarda essa cultura e por quais transformagGes ela esté destinada a passar. Logo notard, porém, que o valor de semelhante investigagao sera deprecia- do de antemao por varios fatores. Sobretudo pelo fato de haver apenas poucas pessoas que podem abranger a atividade humana em to- dos os seus desdobramentos. Para a maioria, tornou-se necesséria alimitago a um tnicooua poucos campos do saber; porém, quanto menos alguém sabe do passado e do presente, tanto mais inseguro seré o seu juizo sobre o futuro. Também porque, precisamente em tal juizo, as expectativas subjetivas do individuo represen- tam um papel dificil de avaliar; elas se mostram dependentes de fatores puramente pessoais de 35 Stcarunp Prev sua experiéncia particular, de sua atitude mais ‘ou menos esperangosa em relagdo a vida, tal como Ihe foi prescrita através do temperamen- 10, do éxito ou do fracasso. Por fim, entra em agio 0 fato notavel de que, em geral, os homens vivem o presente como que ingenuamente, sem conseguir apreciar seus contetidos; primeiro precisam se distanciar dele, ou seja, o presente precisa ter se transformado em passado caso se queira tirar dele pontos de referéncia para 0 juizo sobre o futuro. Assim, quem’cede & tentagao de se mani- festar sobre o futuro provavel de nossa cultura fara bem em se lembrar das dificuldades que acabamos de indicar, bem como da incerteza geralmente ligada a toda previsto. Disso se segue, no que diz respeito a mim, que, em fuga apressada diante de tarefa tao grande, logo passarei a investigar o pequeno campo que até hoje mereceua minha atencio, depois de apenas determinar a sua posigao no grande todo. Como se sabe, a cultura humana—me refiro a tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de suas condigdes animais e se distingue da vida dos bichos; e eu me recuso a separar cultura e civilizagao — mostra dois lados a0 36 (© roruno pe usta nusio observador. Ela abrange, por um lado, todo 0 sa- ber e todaa capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forcas da natureza e obter seus bens para a satisfagio das necessida- des humanas e, por outro, todas as instituigdes necessdrias para regular as relagbes dos homens entre sie, em especial, a divisio dos bens acessi- veis. Essas duas orientacdes da cultura nao sio independentes uma da outra, em primeiro lugar, porque as relagdes muituas entre os homens so profuindamente influenciadas pela medida de satisfagao dos impulsos! possibilitada pelos bens existentes ¢, em segundo lugar, porque 0 proprio individuo pode se relacionar com outro na condigdo de um bem, na medida em que este utiliza a forga de trabalho do primeiro ou © toma como objeto sexual; porém, em terceiro lugar, porque todo individuo é virtualmente um inimigo da cultura, que, no entanto, deve ser um interesse humano geral. E notavel o fato de 0s seres humanos, por mais que nao possam viver em isolamento, considerarem opressivos 68 sactificios que Ihes sdo exigidos pela cultura com 0 propésito de possibilitar uma vida em 1. “Impulso” foi a nossa opedo para traduzir Tri, Para mais detalhes sobre esta escolha, ver Apendice, p. 17. (N.T.) Stearn Fn comum. A cultura, portanto, precisa ser defen- dida contra 0 individuo, e as suas disposigoes, instituigges e mandamentos se colocama servigo dessa tarefa; nao apenas objetivam estabelecer certa divisdo de bens, mas também manté-la, € precisam, inclusive, proteger dos arroubos hostis dos homens tudo aquilo que serve para dominar anatureza e para a produgdo de bens. As criagoes humanas sao ficeis de destruir, e a ciéncia ea técnica que as construiram também podem ser empregadas na sua aniquilagao. Fica-se assint com a impressio de que a cul- tura é algo imposto a uma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se apropriar dos meios de poder e de coercao. Obviamente, éfécil supor que essas dificuldades nao estao ligadas & natureza da propria cultura, mas que sio condi- cionadas as imperfeigdes das formas de cultura até agora desenvolvidas. Nao € dificil, de fato, indicar esses defeitos. Enquanto a humanidade fez progressos continuos no que diz respeito dominagio da natureza e pode esperar outros ainda maiores, nao € possivel constatar com se- guranga um progresso andlogo na regulacao dos assuntos humanos, e é provavel que em todas ‘as épocas, tal como ocorre agora novamente, 38 x (© rorono px usta musio = muitas pessoas tenham se perguntado se vale mesmo a pena defender essa parcela da aquisigao cultural. £ de se acreditar que teria de ser possivel uma nova regulagao das relagdes humanas que fizesse secar as fontes do descontentamento com cultura, na medida em que esta renunciasse & coergao 4 repressao dos impulsos, de modo que oshomens, sem serem perturbados por disputas interiores, pudessem se dedicar & obtengio de bens ¢ ao seu usufruto. Seria a Idade do Ouro, ficando apenas a pergunta se tal estado pode se tornar realidade. Parece, antes, que toda cul- tura tem de ser construida sobre a coergao ea rentincia aos impulsos; nao parece nem mesmo assegurado que a maioria dos individuos esteja preparada para assumir o trabalho necessirio & obtengio de novos bens vitais caso cesse a coer- ‘do. Acho que é preciso contar com o fato de que em todos os homens ha tendéncias destrutivas, ou seja, antissociais e anticulturais, e que num grande mimero de pessoas elas sao fortes 0 bas- tante para determinar o seu comportamento na sociedade humana. Esse fato psicolégico possui uma signifi- cacao decisiva para o juizo acerca da cultura humana. Se de inicio se podia pensar que o 39 Stomunn Fav essencial nela era a dominagao da natureza para a obtengao de bens vitais e que os perigos que a ameagavam poderiam ser eliminados por meio da adequada divisio desses bens entre os ho- mens, agora o centro de gravidade parece ter se deslocado do material para o psiquico. Torna-se decisivo se e em que medida se é bem-sucedido em reduzir a carga de sacrificio dos impulsos imposta aos homens, em reconeilié-los com a necesséria carga restante € compensé-los por isso. Assim como nao se pode prescindir da coer- 0 ao trabalho da cultura, tampouco se pode prescindir da dominagao de uma minoria sobre a massa, pois as massas sio indolentes e insen- satas, nao gostam de renunciar aos impulsos, nao podem ser persuadidas com argumentos da inevitabilidade dessa reniincia e seus individuos se fortalecem mutuamente na tolerancia aos desregramentos que praticam. Apenas através da influéncia de individuos exemplares que as ‘massas reconhegam como seus lideres € que elas podem ser movidas ao trabalho e as rentincias de que depende a continuidade da cultura, Tudo anda bem se esses lideres forem pessoas dotadas de uma compreensio superior acerca das necessidades da vida e tenham se resolvido 40 © rvruno ns usa wusio a dominar seus proprios desejos impulsionais. Mas hé o risco de que, para nao perder sua influéncia, fagam mais concessoes & massa do que esta a eles, e por isso parece necessério que disponham de meios de poder que thes per- mitam ser independentes dela. Para resumir, eu diria que hé duas caracteristicas humanas amplamente difundidas responséveis pelo fato de as instituigoes culturais apenas poderem ser mantidas através de certa medida de coergao, a saber, que’0s homens nio sio espontaneamente inclinados a0 trabalho e que argumentos nada podem contra stias paixOes. Conheso as objegdes que serio colocadas a essas explicagdes. Seri dito que o cardter aqui descrito das massas humanas, que deve demonstrar a indispensabilidade da coergao para o trabalho da cultura, é ele proprio apenas a consequencia de instituigdes culturais imper- feitas que tornaram os homens rancorosos, vin- gativos e intrataveis, Novas geragves, educadas com carinho e para valorizar 0 pensamento, que cedo tenham experimentado os beneficios da cultura, terdo uma relagao diferente com ela, considerando-a como a sua posse mais autén- tica, e estario preparadas para Ihe oferecer os 4 Siesta Pas sacrificios necessérios a sua conservagio, tanto em trabalho como em rentincia a satisfagao dos impulsos, Elas poderao prescindir da coergao € pouco se distinguirao de seus lideres. Se até agora no houve massas humanas dessa quali- dade em nenhuma cultura, isso é consequencia de nenhuma cultura ter encontrado ainda as instituig6es para influenciar os homens, desde a infancia, dessa maneira. Pode-se duvidar se é mesmo possivel, ou se € possivel no estgio atual de nossa dominagio da natureza, produvir tais instituigdes cultu- rais; pode-se perguntar donde devem provir esses lideres superiores, firmes e abnegados ‘que deverao atuar no papel de educadores das geracoes futuras; pode-se ficar assustado diante do extraordindrio dispendio de coergao que sera inevitavel até a realizagao desses propésitos. A sgrandiosidade desse plano, sua significagao para 6 futuro da cultura humana, nao poder ser contestada, Ele repousa seguramente na com- preensio psicoldgica de que o homem é dotado das mais variadas disposigoes de impulsos, cuja direcdo definitiva ¢ apontada pelas primeiras vivéncias infantis. Por isso, as limitagdes da educabilidade do homem também impoem seus litnitesa eficdcia de semelhante mudanga cultural. 2 (O rureno ne ua nso Pode-se por em diivida se e em que medida um outro ambiente cultural seria capaz de extinguir as duas caracterfsticas das massas que tanto dificultam a condugao dos assuntos humanos. A experiéncia ainda nao foi feita. E provavel que certa percentagem da humanidade ~ em consequéncia de uma disposigao patolégica ou de uma forga excessiva dos impulsos ~ sempre permanega associal, mas caso apenas se consi- ga reduzir a uma minoria a maioria que hoje é hostil a cultiara, ja se teré conseguido bastante, talvez tudo b que seja posstvel conseguir. Nao gostaria de despertar a impressio de que me afastei muito do caminho que tracei para minha investigagdo. Por isso, quero asse- gurar expressamente que nao tenho interesse em julgar 0 grande experimento cultural que esta sendo feito atualmente na vasta nacido situada entre a Europa e a Asia. Nao possuo 0 conhecimento de causa nem a capacidade para julgar sua exequibilidade, examinar a adequagao dos métodos empregados ou medir a extensio do inevitavel abismo entre as intengdes ea sua realizagao. Por estar incompleto, 0 que lé est ‘em preparo escapa a consideragdes para as quais nossa cultura, hd tempos consolidada, oferece o material. 4B IL Dr Mopo INEsPERADO, deslizamos do Ambito econdmico ao psicolégico. De infcio, estavamos tentados a buscar o patriménio da cultura nos bens existentes e nas instituigoes que regulam a divisdo desses bens. Ao reconhecermos que toda cultura repousa sobre a coer¢ao ao trabalho ea rentincia aos impulsos, e que por isso produz inevitavelmente uma oposigdo daqueles que sio afetados por elas, tornou-se claro que os préprios bens, os meios para a sua obtengao e as disposigées para a sua divisio ndo podem ser oessencial ou tinico elemento da cultura, Pois cles sd0 ameagados pela rebeliao e pela tendéncia destrutiva dos membros dessa cultura. Ao lado dos bens, temos agora os meios que podem ser- vir para proteger a cultura, os meios de coergao € outros que devem ser capazes de reconciliar os homens com ela e recompensé-los pelos seus sa- ctificios. Tais meios, porém, podem ser descritos como o patriménio psiquico da cultura. “4 (© ruruno ne usta nsko Para que nos expressemos de maneira uni- forme, chamemos de frustragio o fato de um impulso nao poder ser satisfeito, de proibigiio a instituigdo que a estipula e de privagao o estado produzido pela proibigio. O passo seguinte é distinguir entre privagbes que atingem a todos eaquelas que nao atingem a todos, mas apenas ‘grupos, classes ou mesmo individuos. As pri- meiras so as mais antigas: as proibigbes que as institufram deram inicio ao afastamento da cultura em relagao ao estado animal primitivo, nao sabemos exatamente hé quantos milhares de anos. Para nossa surpresa, descobrimos que cessas privagdes ainda esto ativas, que ainda constituem o amago da hostilidade a cultura. (Os desejos impulsionais que se ressentem de- las nascem de novo com cada crianga; hé uma classe de pessoas, os neuréticos, que ja reagem a essas frustragées com associabilidade. Esses desejos impulsionais sio os do incesto, do ca- nibalismo e do prazer de matar. Soa estranho ‘comparar tais desejos, que todos os homens parecem unanimes em rejeitar, com aqueles outros por cuja permissdo ou frustragdo se luta to intensamente em nossa cultura; psicologi- camente, porém, é legitimo fazé-lo. E de modo 45

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