Texto 02 - Matthew Restall

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eeiru02 Nem remunerados, nem forgados O mito do exército do rei “Se os romanos subjugaram tantas provincias, foi com maior ou {gual nero de homens, em territrios conhecidos, contando com ‘0s suprimentos habituais e com capities e exércitos remunerados. [Nossos espanhéis, entrementes, (.) jamais passaram das duas ou trés censenas, ou mesmo menos. (. E, em todas as ocasi6es em, {que viajaram, nfo foram nem remunerados, nem forgados, mas foram por vontade prépria e por sua prépria conta.” Francisco de Jerez (1534) “Entao, alguns dias depois do falecimento [do Governador Pedrarias), recebemos a noticia de como 0 Governador Francisco: Pizarro se tornaria 0 préximo governador deste reino de Nova Castela, Tendo sido assim informados e em vista da escassez de perspectivas na Nicarigua, diigimo-nos para este distito, onde ‘bd mais ouro e prata que ferro em Biscaa.” Gaspar de Marquina (1533) “Encreguei ao adelantado [meu marido, Francisco de Montejo) uma «enorme quantia em dinheiro para os custos dos homens ¢ da frota Gque vieram a estas provincia para sua conguista € pacificagio — tuxilio esse que 0 adelantado accitou e assim The permitiu ‘concretizar tal dominagéo, conforme € de conhecimento comum.” Dona Beatriz de Herrera (1554) Quando Colombo rerornou em sua segunda viagem & ilha earibenha aque batizara de Hispaniola, estava acompanhado de um exército espa- hol, Pelo menos é essa a impresso que se tem a partir de uma cena 67 SETE MITOS OA CONQUISTA ESPANHOLA espetacular do filme 1492: A conquista do paraiso, de 1992, em que soldados espanhéis uniformizados alinham-se na praia em fileiras dis- iplinadas, portando armas padronizadas e com os estandartes tremu- lando ao vento, enquanto aguardam o rufar dos tambores para avangarem em sua marcha. A mesma impressio é repetida em filmes, ilustragées, livros di- déticos e publicagdes académicas. A julgar por essa imagem recor- rente, 0s primeiros invasores e colonos hispanicos buscaram todos carreiras “militares” e constitufam “forgas” que “marchavam” sob ‘0 “comando” de seus capities, que por sua vez planejavam e execu- tavam “operagbes militares”. Todos faziam parte da “maquina de guerra espanhola” — ou, numa referéncia mais constante, eram “soldados”. Cortés partiu com “trezentos soldados de infantaria”. Dirigiu-se aos “seus soldados”, e abdicou de sua intérprete e aman- te, Malinche, em beneficio de “um de seus soldados”. Além da pre- dominancia da terminologia militar na descrigio das expedigdes hispanicas e do emprego onipresente do termo “soldados” para re- ferir-se aos conquistadores, costuma-se atribuir ao Estado-mo- narquico espanhol um papel diretivo monolitico na expansio de seu pais.? A soma de todos esses fatores € 0 que denomino “mito do exército do rei”. GH No relato que Francisco de Jerez faz. dos acontecimentos de que foi testemunha ocular em Cajamarca, em 1532 (o encontro entre Pizarro ¢ Atahuallpa e o subseqiiente massacre dos andinos), 0 conquistador recorda aos leitores que os espanhiéis ndo con: m um exército. onto de referéncia de Jerez era nao o Exército da Espanha, entidade de definigio ainda imprecisa mesmo na Europa da década de 1530, ‘mas o exército romano da Antigiidade. O triunfo dos espanhéis lide- dos por Pizarro — no que Jerez, de modo bastante prematuro, cha- ma de “conquista do Peru” — € pois apresentado como uma faganha 1a NEM REMUMNERADOS. HEM FORCADOS ainda mais extraordinéria e impressionante na medida em que nao foi Jevada a cabo por “capities ¢ exércitos remunerados”? ‘Outras narrativas de espanhéis que tomaram parte das campanhas da Conquista confirmam a assercio de Jerez. Alguns dos historiadores modernos que se referem aos “soldados” que invadiram o Império ‘Asteca citam as cartas de autoria do préprio Cortés, conferindo assim toma aparente autoridade a0 uso do termo. Na realidade, contudo, tal palavra foi sempre introduzida por historiadores ou pelos tradutores dde Cortés para o inglés; onde a edigio de Pagden* menciona “trezen- tos soldados de infantaria”, por exemplo, o proprio Cortés escreve trescientos peones, “trezentos homens a pé”.* Cortés nao sé.evita a palavra “soldado” como revela em suas cartas ao monarca (apesar de seus esforyos para retratar-se firmemente no comando) que seus segui- dores no passam de um bando diversificado de individuos — tanto ‘quanto os compatriotas de Jerez. em Cajamarca deviam ser. Se os préprios conquistadores deixavam claro, nas décadas de 1520 e 1530, que 0 soberano espanhol no enviou exército algum para as Américas durante esse perfodo, qual é a origem do mito? Esearfamos simplesmente sofrendo a influéncia de nossa prépria per- cepgdo do que sio 0s exércitos atuais? & indubitével que sim, essa imagem guarda uma certa relagio com a perpetuagao do mito. Estamos habituados a ver a atividade armada legal sendo monopélio de forcas nacionais altamente institucionalizadas; para ‘compreender- mos as expedicées hispinicas do século XVI, € preciso. um certo.es- forgo de imaginagao. ; “Pnerctanto, o mito tem rafzes também nas transformagbes softidas pelas forgas armadas na Espanha entre meados ¢ fins. do século XVI, bem como nas modificagées terminol6gicas. que. as-acompanharam. “Assim, a ilustragio de 1615 que mostra a captura de Atahuallpa (no cexpecialists Tyron refere-se a Anthony Pagden, considerado um dos mais destacados espei Te himoria das migragbes humanas, que traduzi para o inglés €editouas cartas de Cortés, em edigto ‘da Yale University Press. (N. da T) SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA alto da Figura 5), por exemplo, parece desmentir o relato de Jerez como testemunha ocular e apresenta os homens em Cajamarca como soldados. Aqui, tragar um hist6rico da utilizacéo da palavra soldado em espanhol pode ser esclarecedor. Cortés nao faz uso do termo na década de 1520, como tampouco o faz Pedro de Alvarado ao escrever sobre a invasio da Guatemala, por ele conduzida na mesma década; a palavra também nao aparece no relat6rio oficial de 64 paginas que d& conta da divisio do ouro e da prata entre os homens em Cajamarca em 1533 (nem numa cépia de 1557 desse mesmo documento).5 No relato que o frei franciscano Diego de Landa faz da tomada de Yucatén, a expresso soldados espeafioles surge uma Gnica ver. Uma ver que aver sio desse relato que chegou até nés é uma compilagio de excertos € sumérios de fins do século XVII, pode muito bem se tratar de um acréscimo posterior; por outro lado, como o manuscrito original de Landa, hi muito perdido, foi escrito por volta de 1566, essa uilizagSo isolada da palavra “soldados” poderia outrossim refletir as modifica- ‘¢6es graduais sofridas tanto pela terminologia quanto pela percep¢io «que os espanhéis tinham de quem eram os conquistadores.¢ Numa coletinea de caras escritas por conquistadores ¢ outros colonos his- inicos nas Américas entre 1520 ¢ 1595, 0 termo “soldado” € encon- trado em apenas um dos 36 documentos — sigificaivamente, 0 que foi escrito em data mais tardia (1556) pela espanhola Dona Isabel de Guevara, que acabara de chegar & recém-fundada cidade de Assungio, no Paraguai” : _Bernal Diaz usa soldado com freqiéncia em sua narrativa da Con- quista do México, mas seu livro foi esbogado em torno de 1570, con- cluido em 1576 e editado para primeira publicagao em 1632.* Aquela altura, um século depois de Jerer ter escrito sobre 08 acontecimentos de Cajamarca, ja estava avangado 0 processo de transformagzo dos conquistadores em soldados; pelo menos é isso que parecem ser nas ilustragdes da folha de rosto de Herrera (ver Figura 5), bem como nas pinnaras da Conquista que eva na moda no México do séulo I. Na Figura 6, por exemplo, Cortés € mostrado a frente de uma NEM REMUNERADOS, NEM FORCADOS tropa militar bem organizada e aparelhada que inclui gale6es, cavala- tiae artilhcria. Os conquistadores ja nao eram nada além de soldados quando Tlaione da Bergamo soube da Conquista espanhola do Méxi- gonos anos de 1760?, época em que as gravuras e quadros de Colombo ‘e dos demais conquistadores hispanicos ja costumavam retratd-los com toda a sua pan6plia e cercados de soldados uniformizados.'? No sécu- lo XIX, oemprego dos termos “soldado” e “exército” nao era question nado (ainda que uma leitura atenta das narrativas de Prescott — paseadas que eram, em grande parte, em relatos dos primérdios do perfodo colonial — revele um vasto conjunto de indfcios da verdadei- ta natureza dos invasores). No principio do século XX, os livros sobre ‘a Conguista tendiam a inclur ilustragées que ajudavam a perpetuat mito, Por exemplo, 0 frontisp{cio de 1923 do “dicionério biografico” dos conquistadores, de autoria de Francisco de Icaza, descreve os pri- meiros colonos pisando em terra firme como uma unidade de solda- dos profissionais, com trajes e equipamentos padronizados." ‘A paulatina adogio da denominagio soldado no final do século XVI — acompanhada imediatamente pela consolidagao da premissa dde que os primeiros conquistadores eram soklados — estava relacio= nada a mudangas mais amplas do estilo europeu de guerrear. Nao por ‘acaso, os espanhdis — seguidos de perto por seus arquiinimigos de entdo, os franceses — foram os pioneiros na criagio.do.que os histo~ riadores vieram a chamar de “revolugio militar”. Esta assumiu diver- sas formas. Em primeiro lugar, 0 tamanho das forgas militares apresentou um crescimento exponencial: enquanto Fernando ¢ Isabel haviam tomado Granada, em 1492, com 60 mil homens, seu neto, Carlos ¥sitiou a cidade germanica de Metz em 1552 com 150 mil. No fim do século, 0 exército espanhol (¢ 0 francés) jé tivera outra vez seu contingente mais que duplicado. ‘Ademais, a evoliigao da artilharia fez com que a quantidade de armas, a tonelagem de pélvora usada ¢ 0 niimero de atiradores do- brasse trés vezes em cem anos. A artilharia, contudo, foi apenas um dos aspectos da revolugio na tecnologia de armas de fogo ¢ nas titicas ” SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANNOLA estratégias com que estas eram usadas. No fim das contas, as campa- ‘has ampliaram-se em dura¢io, volume e complexidade, de modo que ‘a guerra tornou-se uma situacio permanente: houve apenas nove anos de paz na Europa do século XVI. Fruto do expansionismo castelhano, a Espanha no passava de uma nagio de contornos ainda imprecisos no apagar das luzes do século XV; em décadas, porém, seus governantes Habsburgos conquistaram um império europeu que se estendia da Ité- lia as ilhas Canérias, passando pelos Pafses Baixos. Desse modo, no sendo a Espanha a tinica preocupagio de seus monarcas, estes nio tiveram alternativa senao manter grandes foras espalhadas por varias frentes — que, durante boa parte do século XVII, dedicaram-se a es- ‘magat as oposigdes protestantes germénica, francesa, holandesa e in- slesa a hegemonia dos Habsburgos sobre a Europa. Todos esses elementos podem ser interpretados como indicadores de que os conquistadores de fato eram soldados de uma maquina de guerra espanhola. Todavia, no era esse 0 caso. Durante as décadas iniciais da expansio hispanica — das primeiras colénias caribenhas dos anos de 1490 a disseminacéo das expedigdes de conquista por grande parte do continente americano, na década de 1530 —, a revo- lugao militar ainda engatinhava. A maior parte das mudangas tecnolgicas relevantes — a invengdo do mosquete, 0 uso de técnicas de rajada, a construgéo de navios mais velozes, maiores e mais bem armados — s6 sobreviria na segunda metade do século; ¢,s¢ o niimero de homens armados aumentou drasticamente no século XVI, tal cres- imento foi ainda maior no XVIL, Em 1710, eram 1,3 milhio os euro- Peus em atividade militar. No entanto, talvez.scja mais significativo o fato de que os exércitos rofissionais permanentes, no sentido que hoje associamos.a denomi- nagio “exército”, 6 foram criados no século XVIL. Essas forcas,leais mais a um Estado que a um lider individual, foram se desenvolvendo & medida que surgiam os Estados-nagées e se delineavam os conceitos de cidadania. Portanto, foi nao muito depois do auge dos conquista- dores que os Estados curopeus, inclusive a Espanha, atingiram os nf- 72 NEM REMUNERADOS, NEM FORGADOS veis de centralizagio ¢ institucionalizagio necessérios para porem em campo forgas compostas em sua maioria por soldados veteranos trei- nados, assalariados e permanentes, ostentando uniformes ¢ armamen- tos padronizados. Ainda assim, essa imagem nao passava ainda de um ideal, que estava longe de realizar-se em todos os casos.” ‘Além disso, tais transformagées foram deflagradas pelos contflitos armados travados na Europa, onde por sua vez 0s novos exércitos € mudangas eram implementados. No século XVI, a Espanha nao dispu- nha de recursos para enviar grandes tropas. armamentos em.quantids- de significativa para o outro lado do Atlantico, O sistema de navegacio formal a interligar Sevilha e as col6nias americanas s6 estaria bem es- tabelecido nos anos de 1550. Faltava também motivacio para tanto, uma vez que a competi¢ao européia mais acirrada nas Américas s6 se desenvolveria no século seguinte. Ademais, 0 envolvimento hispanico nas disputas européias foi crescendo em complexidade e dificuldade no decorrer do século XVI. Embora a resposta dos espanhéis as de- mandas titicas, logisticas e tecnolégicas desses conflitos em geral seja saudada pelos historiadores militares como notivel e arrojada, as proe- zas da conquista espanhola nas Américas foram periféricas a esse proceso e ndo podem ser atribuidas is contribuig6es reconhecidamente fundadoras da revolugio militar européia.” Por fim, os hisp&nicos nao tardaram a perceber que o Novo Mun- do requeria outros métodos militares. Em seu livro de 1599, As forgas armadas e descrigéo das Indias, 0 capitio espanhol Bernardo de Vargas Machuca argumentava que, nas Américas, as praticas e padrées béli- cos europeus eram irrelevantes. Considerado por um proeminente toriador militar “o primeiro manual de guerra de guerrilha a ser publicado”, tratado propunha 0 abandono das formagées lineares, unidades hierarquizadas e guarnig6es permanentes em prol de peque- nas unidades de agio dissimulada, que se dedicassem a misses de rastreio e eliminagio realizadas ao longo de varios anos. ‘Vargas Machuca parecia ignorar que boa parte de suas propostas j4 se havia institufdo como priticas correntes entre os espanhéis nas Amé- 73 SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA ricas havia um século. Os 500 homens de Cortés e os 168 em Cajamarca constitufam regimentos relativamente avultados de conquistadores; fora das regiGes centrais da Mesoamérica e Peru, as expedigdes eram em sua ‘maioria compostas por menos de cem espanh6is (quase sempre em me- nor niimero que os escravas e servos africanos e 0s “aliados” nativos americanos). Entre suas téticasfiguravam as demonstragdes de violencia 0 tratamento traigoeiro aos governantes nativos. As. ameagas de aten- tados eram freqtientes, e costumavam ser cumpridas. Ademais, quando asautoridades imperiais hispnicas comegaram a constituir de fato uma rede de guarnigées permanentes e outros recursos de um exército pro- fissional, no século XVII, seu objetivo nfo era reforgar.o dominio colo- nial sobre os americanos nativos, mas defender o império dos piratas ingleses, franceses e holandeses, As novas tropas tampouco eram com- postas pelos descendentes dos conquistadores; pelo contrétio, tratava- sede milicias eminentemente negras ou pardas — ou_seja, pequenas companhias de africanos livres e escravos ¢ “mulatos” livres (mestigos de descendéncia afro-hispanica)." Em suma, a Conquista espanhola nio foi realizada por soldados enviados pelo rei, como bem sabiam os préprios invasores. Foi a revo- lugao militar ocorrida na Europa dos séculos XVI e XVII que alterou a maneira como os espanhéis mais tarde imaginariam os primeiros con- quistadores — ¢ 0s historiadores modernos os seguiriam, igualmente influenciados por pressupostos acerca do perfil dos combatentes. Foi assim que 0s conquistadores, muito depois de sua morte, converte- ram-se todos em soldados. 7} Se os conquistadores possufam armas ¢ eram de alguma mancira orga- nizados e experientes em assuntos militares, nao seria correto chama- los desoldados? £ 0 que argumenta um historiador militar, que entende que, embora “poucos dos que lutaram (...) na conquista do Peru fos- sem soldados, (..) 0s talentos, valores e padres de socializagio com NEM REMUNERADOS, KEM FORGADOS utilidade milizar eram tio arraigados e disseminados na sociedade es- panhola do principio do século XVI que a distingSo, do nosso ponte vf vista, nfo tem relevancia em termos funcionais”.' Em certa medi- ‘dasé verdade. Nao hi dévida, contudo, de que tais habilidades ¢ valo- rezeram igualmente difundidos tanto entre os demais europeus quanto entre grupos nativos como os astecas. ; "Ademais,o conquistador adquiria seus dotes marciais nao por meio de um treinamento formal, mas das sinuagSes de conflito com que se deparava nas Américas Os expedicionarios tendiam a ser recrutados ‘em col6nias recém-fundadas, engendrando assim um sistema de revezamento para a conquista que garantia que a maioria dos partici- pantes tives alguma experiencia prévia no Novo Mundo. Por excm- plo, dos 101 espanhéis em Cajamarca de cuja historia pré-1532 hé registro, 64 tinham experiéncia anterior na Conquista ¢ $2 estavam hhavia pelo menos cinco anos nas Américas” — sem que nada disso importasse algum tipo de treinamento convencional. "a falta de treinamento oficial dos invasores tinha como paralelo a inexisténcia de organizagao formal da tropa, Na época, as forcas his panicas na Europa eram encabegadas por comandantes oritindos da vita nobreza e organizadas em postos (cujos nomes, aliés, deram ori- gem a denominacio de diversas patentes militares em inglés, como cabo de colonela para “colonel” [“coronel”}, por exemplo, ou sargen- to mayor para “sergeant major” [primeiro-sargento])."" Em con- trapartida, os grupos de conquistadores eram liderados por “capities” oS nico titulo diferenciado — em némero variado, com os demais homens dividindo-se tio-somente entre cavaleiros ¢ pe6es. Para que cs dessa segunda categoria ascendessem & primeira, bastava-lhes com- prat um cavalo. O registro da divisio dos despojos em Cajamarca ar ola os homens em apenas duas classes: gente de a cavallo (homens montados) e gente de a pie (homens a pé).” Se of invasores identificavam-se no como soldados, mas como combatentes montados ou a pé, de que outras formas se viam? Como se tornaram conquistadores? E como foram parar nas ‘Américas? 7s SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA __Encontramos um principio de resposta para esses ques- tionamentos implicito no comentario de Jerez de que os invasores do Império Inca no eram “nem remunerados nem forgados”. J4 uma resposta mais completa é sugerida pelas palavras de um dos compatriotas de Jerez, um jovem basco de nome Gaspar de Marquina, que remeten de Cajamarca a seguinte carta ao seu pai, na Espanha, em julho de 1533: Senhor, gostaria de narrar-he a hist6ria de minha vida desde que aqui porte. Jé sabeis como cheguei a Nicargua com 0 governador Pedrarias, nna fungio de seu pajem, tendo permanecido em sua companhia até que a Deus aprouve levi-lo deste mundo. Fle faleceu em profunda pentiria, de modo que todos os seus agregados [criados] ficamos tam- ‘bém n6s na miséria, como bem vos pode confirmar o portador desta missiva quando vos encontrar. Alguns dias ap6s seu desaparecimento, recebemos a noticia de como o governador Francisco Pizarro se torna- ria 0 novo governador deste reino de Nova Castela. Tendo sido assim informados ¢ em vista da escassez de perspectivas na Nicarégua, dirigimo-nos para este distrito, onde ha mais ouro e prata que ferro em Biscaia, mais carneiros que em Soria, vastos suprimentos de todos 0s tipos de viveres, muitos tecidos da mais alta qualidade ¢ as melho- res pessoas jd vistas em todas as indias —e, entre estas, muitos gran- des senhores. Um destes, cujos dominios estendem-se por mais de ‘quinhentas léguas, temo-lo prisioneiro em nosso poder —e, tendo-o prisioneiro, um homem pode percorrer sozinho quinhentas léguas sem ser morto; pelo contriio, fornecem-nos tudo de que necessitamos € carregam-nos em liteiras sobre os ombros.2" © prisioneiro a que o missivista faz tio casual referéncia é ninguém ‘menos que o Inca em pessoa, Atahuallpa, mas Marquina est mais preo- cupado em relatar ao pai a enormidade da reviravolta de sua propria sorte. Assim, omite meses de viagem, vicissitudes, incertezas e uma grande batalha, a fim de marcar o contraste, num mesmo pardgrafo, entre a precariedade de sua situagio apés a morte de Pedrarias e sua 76 NEM REMUNERADOS, NEM FORCADOS opuléncia naquele momento. A carta deixa claro que Gaspar de Marquina nao é um soldado profissional, mas um pajem— um criado letrado e de alta graduacio, empregado a principio no servigo do go- vernador da colénia da Nicarégua e depois no do governador do Peru (territério que, apesar dos eventos em Cajamarca, nao fora conquista- do de fato e sem divida nao estava ainda colonizado em 1533). Marquina encontra-se nas “{ndias” por sua livre e espontinea vonta- de, a caga de oportunidades —com 0 objetivo, como revela o restante da carta, de voltar para junto do pai na Espanha como um homem rico ¢, com grande probabilidade, seguir carreira como notério ou merca- dor. Para tanto, lana mao da ligagio com patronos importantes, vin- ‘culando-se com éxito a outro por ocasiio do falecimento do primeiro, que aparentemente nao Ihe ocasionara maiores beneffcios. (Inci- dentalmente, quando seu pai recebeu a carta ¢ a barra de ouro que a acompanhava, Gaspar jé fora morto numa escaramuca com natives andinos.)" (Os espanhis, pois, ingressavam em expedig6es de conquista ndo em troca de uma remuneragio specifica, mas na esperanga de ad- quirir riqueza e status. Nas palavras do historiador James Lockhart, eram “agentes livres, emigrantes, colonos; detentores, sem salérios nem uniformes, de encomiiendas e cotas de tesouro”.” As encomiendas ‘eram concessées de mao-de-obra americana nativa. A seus detento- res, ou encomenderos, era conferido o direito de tributar, em bens € trabalho, os indigenas de determinada comunidade ou grupo de al- deias. Tais concess6es possibilitavam a seus beneficifrios desfrutar de um status elevado e, com freqiiéncia, de um estilo de vida superior a0 dos demais colonos. Os primeiros encomenderos eram homens que haviam lutado para conquistar seus privilégios, mas nio se trata- vva de soldados. Haja vista que nunca havia encomiendas em niimero suficiente para todos, as concessbes mais lucrativas eram destinadas Aqueles que mais haviam investido em cada campanha. Aos investi- dores menos relevantes eram outorgadas licengas de menor monta, SETE MITOS DA CONQUISTA ESPANHOLA ou uma mera participagao nos despojos de guerra.” Se Gaspar de Marquina tivesse vivido mais, talvez obtivesse uma encomienda modesta. No mfnimo, sua cota futura no esp6lio da conquista teria duplicado em fungio do cavalo comprado com sua fortuna recém- adquirida em Cajamarca (em cujo dorso foi assassinado). Em certa medida, todos os membros eram investidores em empreendimentos comerciais que importavam grandes riscos mas também, potencial- mente, os mais elevados retornos. Os espanhis intitulavam de “com- panhias” tais empreitadas. Embora patronos poderosos tivessem uma patticipagio significativa como investidores, eram seus capities que basicamente as financiavam e esperavam obter os maiores retornos. Como o governador do Panamé, Pedrarias de Avila, disse a0 Rei Carlos acerca das primeiras expedig6es de Conquista a se langarem contra a Nicarégua e a Colémbia, “tudo foi feito sem tocar no régio tesouro de Vossa Majestade”.*' Assim, foi o espitito do comercialismo que infundiu as campanhas de conquista do principio ao fim, com_os envolvidos vendendo servigos e trocando bens entre si ao longo de todo o empreendimento. Em outras palavras, os conquistadores eram empreendedores armados. ‘Marquina se autodenomina pajem (paje) e agregado (criado). Um inglés da época té-lo-ia chamado de “servant” (“servo”) ou “creature” (“subordinado”), conquanto nenhuma expressio inglesa transmita A perfeigdo a idéia de que 0 criado era ao mesmo tempo tum subordinado e um membro efetivo da familia. A identidade dos patronos de Marquina e outros detalhes de sua biografia ajudam a nos dar uma nogio do status social de que ele gozava dentro da ampla categoria de criado. O levantamento completo dos dados referentes a cada conquistador, portanto, pode exigir foptes diver- sas de informagio. Os conquistadores tinham varios motivos para se identificarem por escrito, mas as caracteristicas que se auto-im- putavam nao s6 nem sempre coincidiam com as que hes eram atri buidas por terceiros como se modificavam de acordo com as 78 NEM REMUNERADOS, NEM FORGADOS circunstancias. Ademais, os diferentes contextos em que as peculia- ridades de cada companhia de conquistadores eram assinaladas ra~ ramente se repetiam; ainda assim, tais registros ajudam-nos a conhecer melhor os conquistadores. Por exemplo: apés a fundagao da cidade do Panamé, em 1519, solicitou-se que os 98 conquistadores-colonos espanhéis contribuis- sem para essa espécie de recenseamento, ao que 75 responderam (ver Tabela 1). Apenas dois deles afirmaram ser soldados profissio~ nais, ao passo que 60% se declararam profissionais de outros offcios ¢ artesios, ocupagées das camadas medianas da sociedade. Uma ‘anilise similar dos conquistadores do Novo Reino de Granada (a Colémbia dos nossos dias) € menos precisa com relagio as profissGes © provavelmente exagera 0 tamanho da populagio intermediaria. Nio obstante, os dados apontam para o evidente predomfnio de homens de certos meios ou posses, profissionais e empreendedores de algum tipo. Se comparsiveis sobre 0s conquistadores do Peru sao igual- mente desencontradas, mas bastante reveladoras. Dos 47 dos 168 ho- mens em Cajamarca que informaram suas ocupagées, fica claro que no se tratava de soldados profissionais, mas artesdos e especialistas ‘em outros offcios que haviam adquirido valiosas habilidades marciais experiéncia em batalha. Entre 05 17 artestos figuravam alfaiates, ferradores, carpinteiros, trombeteiros, um tanoeiro, um espadeiro, um pedreiro, um barbeiro ¢ um tocador de gaita de foles/pregociro."* Os ‘mesmos tipos de artesios haviam acompanhado também Francisco de Montejo em sua primeira marcha contra Yucatén em 1527, além dos habituais mercadores, médicos, alguns sacerdotes ¢ um par de enge- nheiros de artilharia flamengos. Um ntimero indeterminado dos artesios ce demais profissionais a investirem na empreitada estava seguro 0 bas- tante de seus resultados para fazer-se acompanhar das préprias espo- sas (embora, seguindo a prética comum, essas senhoras espanholas provavelmente permaneceram com os mercadores no iiltimo porto caribenho antes de chegar a Yucatén).”

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