1955 QuixeramobimSuaVidaReligiosa

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QUXERAMOBIM E A SUA VIDA RELIGIOSA : ANDRADE FURTADO © passado de um povo marca a sua posicdo para sempre na Histé- ria... Essa cidade, nascida entre as matas verdejantes das margens de belo rio, numa planicie onde, ao longe, se recortam as cumeadas alta- neiras da Serra de Santa Maria, e, bem préximo 4 sbertura do Boquel- ro, por onde as guas vazam, no seu extenso curso, em direcéo ao mar, essa cidade de clima tao saudével e de habitantes generosus, foi o cen- tro de um agrupamento cristéo, que honra e enaltece o patriménio da Nacionalidade. Quando se comemora a data, ocorrida em 15 de novembro do cor- Tente ano de 1955, do segundo centenario da criagio da Paréquia, na transcendéncia de uma festa da mais alta significagdo religiosa e pa- tridtica, reuniram-se os filhos de tSo fecunda terra, agradecendo a Deus os beneficios de dois séculos de trabalho e de progresso para dignifica~ ¢éio do Brasil. As origens da urbe sertaneja fluem, como se vé, de uma era remota, tudo se tendo feito & custa de labor intenso e meritério, que geraces e geracées, perseverantemente, despenderam, para con- quista de um lugar ao sol, capaz de perpetuar as impertérritas virtudes da raga. Ld, realmente, se encontram os troncos de familias de assinalada linhagem cfvica. Os grandes movimentos politicos e soviais tiveram eco REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 89 nessas paragens, onde ainda repercutem os estrépitos de lutas passa- das, em prol da emancipagéo e da liberdade. © escritor de maior ressonaneia na literatura brasileira, Jos¢ de Alencar, refere-se, em nota memorével, regiao onde se aldearam os primetros colonos lusitanos que aqui chegaram... © indio Batuirité, alquebrado e trépego, a quem as cataratas da velhice haviam apagado a luz dos olhos, quis terminar os dias da sua cansada existéncia no re- canto feliz onde nascera... Conduzido do litoral pela mao de tenro rebento da sua tribo, de- pois de muito andar, sentiu o rumor das 4guas borbulhando nas ca- choeiras, 0 cheiro agreste do mofumbo, 0 pio dos gavides selvagens e, cheio de enternecidas reminiscéncias da juventude, exclamou: — Qui- wera-mobim! — Ai! meus tempos de outrora! A mocidade the transcorrera, nesses largos campos, em meio de lances audazes e de aventuras temerérias. Legara aos descendentes uma heranca de valentia, que os anos alquebraram e, agora, rebentava em lagrimas de viva emocéo. Essa fidelidade ao amor da terra é bem o traco dominante dos que ali viram a luz e, tangidos pelos designios da Providéneia, se dispersa- ram pelo mundo em fora. # que 14 palpita o coracdo do Ceard, requei- mado pelo sol dos trépicos ¢ batido pelos vendavais da a‘versidade — forja de uma témpera inquebrantavel na peleja contra os elementos. ee A sociedade que emergiu da genealogia mesclada do branco, do indio e do africano humanizou 0 solo bérbaro e inspirou a férca dos empreendimentos destemerosos -para as dsperas jornadas do Porvir entrelacamento das resisténcias fisicas e das ascensées das almas gerou ésse prodigioso alento de esperanca, que f&z 0 destino de uma cristandade, no meio das florestas virgens, em condigdes hostis, man- ter-se alcandorado e consciente des suas responsabilidades, diante do consenso undnime da Patria. Clareiras se foram abrindo no extenso territério e paréquias flo- rescentes, em tdrno de placidas ermidas, transformadas em majestosos templos, surgiram sob as béncdos da Igreja-Matriz, ponto de partida da prosperidade de to vasta regio. Quixad4, Senador Pompeu, Mom- baga, Boa Viagem, Pedra Branca, Solonépole, Piquet Carneiro, Mada- lena, Choré, Socorro, desprenderam-se do micleo geratriz da possante aglomerag3o de comunas que hoje constelam o Mapa dessa fértil e ope- rosa latitude nordestina. H4 motivo de orgulho para os que lavraram o chéo, segundo a lin- 90. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA guagem eterna do Evangelho, regando-o com o sor e as légrimas, e colheram a messe abundante, cantando a alegria da sua felicidade, Nos santudrios levantados com verdadeiro espirito de fé, foram os habitantes dessas plagas dispersas render 0 culto de gratidio e de pie- dade, num doce e mistico enlévo, reconhecendo a protegao da Provi- déncia, no éxito dos seus empreendimentos denodados. O heroismo in- compsravel e desmedido dos nossos avoengos foi uma escola de robus- tecimento moral da fibra varonil dessa forte e brava gente Ainda agora, experimentamos espontaneo sentiinento de veneracdo, ante a tenacidade inflexivel dos que recomegaram, apds periddicas ca- tastrofes climaticas, a constitui¢éo da sua economia, agindo com intre- pidez e perseveranga, em cada emprésa restauradora dos destrocos das sécas. O desalento ou a falta de animo nao imobilizeram, diante dos hor rores da calamidade, 0 lutador inexpugndvel, confiante no poder da misericérdia divina. Chamam os sociélogos esta qualidade surpreendente do homem que ali nasceu, a adaptacdo psicolégica ao ambiente em que aiva Mas temos de lealmente reconhecer que paira sébre a sua missio civiliza~ dora o patrocinio da bondade irfinita de um Deus, que nao se deixa jamais vencer em generosidade e amor B isto o que sente, no intimo do peito, o cidadio que, cercado de tantas hostilidades do meio e do tempo, vence as renhidas batalhas, em prol do desenvolvimento do cendrio magnifico em que labuta! EK © segrédo desta formacao histérica memoravel, dentro do “habitat” sertanejo, podemos descobrir na participagdo constante de geracées sucessivas, num trabalho de congracamento de tédas as reservas dis- poniveis em bem da comunidade regional Cessam as desavencas, extinguem-se os desentendimentos, que- bram-se as arestas de tricas naturais, quando se trata de um esforco ‘benemérito para elevar 0 nivel moral ou promover a valorizagéo dos recursos invocados. Esta homogeneidade edificante dos fatores, que determinam o de- senvolvimento crescente de tio querida parceta do “hinterland” cea- vense, manifesta-se, sob a Mderanca imprescindivel da Igreia, através de dois séculos de ininterrupta evolug’o social. A realidade af est, dignificando as idéias e os empreendimentos REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 91 que transmudaram o meio agreste e dspero da época distante de uma catequese colonial, onerosa e diffell, na amenidade de acolhedora con- vivéneia humana, refigio dos forasteiros advindos, em busca de res- tauracio da saide e de repouso do espirito. Os fundadores da Paréquia tiveram, de inicio, a inspiragéo de con- fiar o patrocinio da cidade a inclito Doutor da Igreja, ligado pelo sangue pela cultura, ao génio da Nacionalidade. © orago da terra, Santo Anténio de Lisboa, foi prodigio de virtude, de saber, de atividade apostélica. Pregou com a palavra luminosa convenceu com o exemplo de uncéo e de ternura incompardaveis... 4 sua alma, enriquecida de comunicativa piedade, afirmada em prodigios maravilhosos, foi confiada a protegéo de um povo, que bem sabe avaliar os méritos désse taumaturgo de téo preciara eminéncia, como guarda dos seus tesouros sobrenaturais. A sua clarissima inteligéncia, o seu verbo fascinador, a li¢éo impe- recivel dos atos herdicos da sua vida, déle fizeram 0 advogado mais po- pular dos fiéis, em todo 0 grande Mundo Latino. A éle coube, por disposigéo da munificéncia sem limites de Nosso Senhor, 0 patrocinio dessa freguesia, que tanto se honra de vé-lo, no altar da Igreja-Mae, abencoando, no curso dos dias, que se contam por séculos, 0 destile das turbas que dobram os joelhos diante da sua ve- nerada imagem Nestes duzentos anos decorridos, conquistou, cada vez mais, o pres- tigio e a fama irradiantes, na gratiddo dos que receberam favores inau- ditos das suas mos, cheias de lirios, simbolo da inocéncia, da candura e pureza da sua alma, cercada dos esplendores da bem-aventuranca. eK Para as nossas invioldveis conviecGes religiosas, a devogdo ao glo- rioso Santo Anténio, protetor daquela cidade, é uma tradi¢ao abengoa- da, que enche de enlévo, de gentileza e confianca 0 coragéo da familia conterranea. Disse alguém que é quase uma imortalidade a dos mortos que os vivos continuam... Realmente, nunca se extinguiu, na jornada em direcSo a Eternida- de, 0 sentimento de afetoe de gratidfo para com ésse peregrino- apéstolo, tio jovial e cativante, que, deltando a terra do seu berco, para entregar-se a0 ministério de santificago das almas, se tornou um 92 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA santo de todo o Universo, no conceito lapidar do grande Pontifice Leao x10 Conforme explica, em verso classico, 0 poeta lusitano, com o ter Santo Antonio deixado o Tejo, empreendendo a jornada do Mediterra- neo, quis Deus tornar maior o seu dedicado servo: “Por mil e mil grandezas, em mit partes, Soando vai a nobre e gri Lisboa, Em armas tanto, quanto em boas artes, Em pureza de fé muito mais soa... Mas o que mais realca as suas partes E the concede a palma e dé coroa S6bre tantas no Mundo a Fama canta, ~~ & ser jardim onde nasceu tal planta”. nee Quixeramobim também se ufana de haver partilhado da gléria do destemido cavaleiro andante da divina graca... A querida paréquia, no recesso do Nordeste, neste Pais da Vera Cruz, vem permanentemente compartindo, na Mansio Celestial, da vida beatifica do extraordinério minorita, que um apologista chamou — depésito da ciéncia contida nas Escrituras... Bem maior ainda que a sua sabedoria é, sem divida al- guma, a excelsitude da sua profunda piedade O seu culto, abrangendo o Globo, de um a outro extremo, continua a ganhar para a Religiao, para a Igreja, para o Céu, uma infinidade de almas levadas para o caminho da perfeicéo pelo dominador atrativo da sua simpatia. fsse despertar para a luz de tantos que se enfeiiicam da beleza da sua vida, tao breve quanto admiravel, constitui o valor de um ministé- rio excelso, aue se tem envolvido na aura da maior popularidade e do melhor prestigio. Quem pode, em verdade, imaginar a extensfo sem limites do bem, transfundido nos espfritos, pelo ardor votivo, dessa fiel e magnanima parcela da familia patricia, no afortunado Padrociro, a quem se deve a seiva cristé, genuina ¢ auténtica, de uma devogio téo cheia de pujanca e de esplendor! EE Disse, ha pouco, emérito pensador da culta e velha Europa, que a poténcia de uma coletividade reside unica e tao somente nos coracdes e na inteligéncia dos seus, homens. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 93 His uma sentenga incontrastavel, reveladora do manancial de bén- gaos, que é a floragio de beatitude e de benemeréncia do pontificado, duas vézes secular, do Catolicismo, naquela boa terra. Os trés ultimos vigarios falecidos, a quem a Hierarquia da Igreja confiou a diregdo da vida cristé da pardquia, revestida de galas para comemorar dois séculos de existéncia, comprovam elogiientemente a exatidio da afirmativa citada. © padre dr. Antonio Elias Saraiva Ledo, meu tio avd, pelo’lado materno, e meu padrinho de batismo, a quem rendo respeitosa home- nagem de aprégo e veneragho, nasceu, em 8 de dezembro de 1808. Eram seus pais Luis de Brito Lira, filho de Cosme Leitéo e de d. Laura Té- vora, naturais de Pernambuco, e cujos progenitores foram, segundo in- formagées do historiador eminente, Bardo de Studart, vitimas do des- potismo rancoroso do Marqués de Pombal — e de d. Julia de Santana Maria da Encarnagio, filha do tenente-coronel de milicias Anténio Sa~ raiva Leao, opulento fazendeiro em seu tempo. Recebeu as ordens sacras em 1836, obtendo depois a laurea de ba- charel em Direito pela Academia de Olinda em 1842. Eleito deputado em duas legislaturas, nunca arredou pé do meio humilde em que viveu. Ainda na afirmagio do maior conhecedor da Historia do Cearé, era um homem de sentimentos nobres e filantrépicos. No periodo da grande calamidade de 1877 e 1879, salientou-se pela caridade, na assis~ téncia aos flagelados. Possufa bons livros de Ciéncia e de Religifio, tendo-se dedicado, como o célebre Padre Ibiapina, @ advocacia, no féro da comarca, onde depois exerceu as fungées paroquiais, Em face de setenca que julgou injusta e ilegal, contra um cliente seu, fez protesto de se retirar definitivamente das lides forenses, ja- mais quebrando ésse compromisso. Morreu na fazenda Mont’Alverne, & margem do Banabuid, onde celebrava em seu oratério, passando o tempo recolhido na meditagdo e no estudo. Deixou uma meméria ina- pagavel nos fastos da comunidade, a que serviu com a abnegacéo ¢ 0 sacrificio de um benfeitor do povo. Foi um padre de apostolado recéndito, fugindo das honras da terra, tendo preferido a um pésto de relévo, na sede do Bispado, a soliddo da Barra do Sitié, onde modestamente viveu para os livros e para os pobres. eee Substituiu o padre dr. Anténio Elias Saraiva Leo, no paroqulato de Quixeramobim, Monsenhor Salviano Pinto Brando, exemplo de aus- 94 REVISTA DO_INSTITUTO DO CEARA teridade e de sabedoria, de mortificacio e de desprendimento, figure de asceta a lembrar um monge medieval, um cenobita iluminado, como tantos a Igreja tem produzido para edificagio da Humanidade. Jungido ao dever, foi sacerdote modelar, recolbido ao presvitério, isolado do mundo, dentro da cela do que poderiamos chamar o seu si- lencioso mosteiro paroquial... Dedicou-se ao servico de Deus e ao bem das almas, como lampada acesa, a iluminar e a aquecer, até se extin- guir, afinal... Grande vulto que bem merece apologia inesquecivel nos anais da nossa Fé! Seguiu os seus passos, na trilha do ministério apostélico, 0 cénego ar. Aureliano Mota, formado no centro de maior projecéo da cultura latina, na inclita Universidade Gregoriana de Roma Orador insigne, a sua palavra elegante ¢ fascinadora encheu de en- lévo e de arrebatamento quantos tiveram a fortuna de ouvi-lo, do pil- pito sagrado, exortar as consciéncias ao cumprimento das normas do Evangelho. Ante a sua magica influéncia, as organizagées religiosas assumiram a felgéo dindmica moderna, com que os Iideres catélicos, em nossos Gias, mobilizam as massas para as largas conquistas da Verdade e do Bem. A visio de uma ortodoxia integral, na doutrina e na pratica, atraiu os homens para os movimentos de ampliacio da atividade espiritual ambiente. Ainda repereutem, na lembranca dos seus paroquianos, que por éle tiveram tio profundo respeito, os sinais da sua predestinada capa- cidade de comando, na febre de renovamento das almas segundo as ne- cessidades da época. Avulta em nossa meméria a sua majestade sacerdotal, dirigindo 0 rebanho com a tatica e a técnica de um habil psicéloge social. aK A formiddvel férga de determinag&io.do cénego dr. Aureliano Mota, aliada a suave e esclarecida disciplina, ditada pela virtude da prudén- cla, foi o segrédo do éxito com que levou a bom térmo a execucio do programa de tudo instaurar em Cristo Singularizou-se pelo talento ¢ pela agio no proveito dos mais altos interésses da vida sobrenatural. Homem consagrado a Igreja, viveu para ela, recebendo da sua in- tensa vida interior a substdncia de-tudo o que empreendia, em prol da magistratura apostdlica REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 95 Os virtuosos e incans4veis continuadores dos trés valorosos chefes espirituais da grei cleita, naquela terra de £6 intrépida, os vigarios modelares, padre dr. Antonio Elias Saraiva Leio, monsenhor Salviano Pinto Brandéo e eénego dr. Aureliano Mota, que, agora, da Mansio Altissima, contemplam a seara lourejante, santificada pelas fadigas quotidianas, que éles bem sabem quanto custam, terao inefavel rego- zijo, ante a realidade de um patriménio, em que colaboraram com tio subido merecimento, fasse padrao de gléria af esté, como monumento imperecivel, teste- munhando, através dos tempos, a perene vitalidade da Igreja, farol uni- versal da Civilizagio, a projetar, sejam quais forem as circunsténcias, a beleza, a magnitude e a dignidade da sua missio redentora do género humano. Diante de nés destilam, no-curso de dois séculos, desde o Carmelita Frei Manuel de Jesus Maria que, por provisio de Dom Francisco Xavier Aranha, Bispo de Olinda, instalou a Pardquia, tendo como primeiro vi- gario o sacerdote Jodo Pais Maciel de Carvalho, até o revmo. Padre Raimundo Nonato Camelo, que congregou o seu querido rebanho para bendizer a felicidade do grande dia do bi-centenario da Paréquia de Quixeramobim! aste 6, em verdade — bem o sentimos —- um instante inauferivel de expansées gratulatérias, em que evocamos um passado luminoso, & altura dos mais nobres predicamentos, que exaltam a Nacionalidade!

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