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MARTIN HEIDEGGER QUE E ISTO - A FILOSOFIA? IDENTIDADE E DIFERENGA Tradugfo, introdug#o ¢ notas de Eanttpo SraIN, Revisilo de José Grratvo Nocusiea Mourn LIVRARIA DUAS CIDADES 1971 Qu’sst-ce QUE LA PHMosopHte ? (*) QUE £ ISTO — A FILOSOFIA? Com esta questo tocamos um tema muito vasto. Por ser vasto, permanece indeterminado. Por ser in- determinado, podemos trat-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo. En- tretanto, pelo fato de, na abordagem déste tema to amplo, se interpenetrarem t6das as opinides possiveis, corremos 0 risco de nosso didlogo perder a devida ‘concentragao. Por isso devemos tentar determinar mais cxata- mente a questio. Desta maneira, levaremos 0 didlogo para uma diregio segura. Procedendo assim, o did- logo € conduzido a um caminho. Digo: a um cami nho. Assim concedemos que éste nao € 0 tinico ca- minho. Deve ficar mesmo em aberto se o caminho para o qual desejaria chamar a atengio, no que se- gue, € na verdade um caminho que nos permite le- vantar @ questio © respondé-la ‘Suponhamos que seriamos capazes de encontrar ‘um caminho para responder mais exatamente & ques- ‘Go; entio se levanta imediatamente uma grave obje- ©) im fran no texto original. Go contra 0 tema de nosso encontro. Quando per- guntamos: Que é isto — a filosofia?, falamos sabre a filosofia, “Perguntando desta maneira, permanece- mos num ponto acima da filosofia e isto quer dizer fora dela. Porém, a meta de nossa questdo é penetrar na filosofia, demorarmo-nos nela, submeter nosso com- portamento as suas leis, quer dizer “filosofar”. O ca- minho de nossa discussio deve ter por isso nfo apenas uma diregio bem clara, mas esta diregdo deve, ao mes- mo tempo, oferecer-nos também a garantia de que nos movemos no Ambito da filosofia ¢ nao fora e em témo dela. © caminho de nossa discussio deve ser, portan- to, de tal tipo e dirego que aquilo de que a filosofia trata atinja nossa responsabilidade, nos toque (nous touche) (*), e justamente em nosso ser. ‘Mas nio se transforma assim a filosofia num obje- to de nosso mundo afetivo e sentimental ? “Com os belos sentimentos faz-se a mé literatura”. “Crest avec les beaux sentiments que Von fait la mau- vaise literature”. Esta palavra de André Gide nao vale s6 para a literatura; vale ainda mais para a filo- sofia. Mesmo os mais belos sentimentos nio perten- cem & filosofia, Diz-se que os sentimentos sao algo de inracional. A filosofia, pelo contririo, nio é apenas algo racional, mas a prépria guarda da ratio. Afir- mando isto decidimos sem querer algo sébre 0 que a filosofia. Com nossa pergunta j& nos antecipamos resposta. Qualquer uma terd po: certa a afirmagao de que a filosofia é tarefa da ratio. E contudo, esta (1) Palavras ¢ citagdes grexns, latinas e francesa, que ‘correm no original alemio sio'mantidag no texto portugues 18 afirmagio é talvez uma resposta apressada e descon- trolada’ A pergunta: Que é isto — a filosofia? Pois a esta resposta podemos contrapor novas questées. Que ¢ isto — a ratio, a razio? Onde ¢ por quem foi decidido 0 que é a razio? Arvorou-se a ratio mesma em senhora da filosofia? Em caso afirmativo, com que direito? Se negativa a resposta, de onde recebe ela sua missio e seu papel? Se aquilo que se apre- senta como ratio foi primeiramente ¢ apenas fixado pela filosofia e na marcha de sua histéria, entio nao € bom alvitre tratar a priori a filosofia como negécio da ratio. Todavia, tio logo pomos em suspeigiio a ca- racterizagio da filosofia como um comportamento ra- cional, torna-se, da mesma maneira, também duvido- so se a filosofia pertence & esfera do irracional. Pois quem quiser determinar a filosofia como irracional, toma como padréo para a determinagio o racional ¢ isto de um tal modo que novamente pressupde como Sbvio 0 que seja a razio. Se, por outro lado, apontamos para a possibi dade de que aquilo a que a filosofia se refere concer- ne a nés homens em nosso ser ¢ nos toca, entdo pode- ria ser que esta maneira de ser afetado nfo tem abso- lutamente nada a ver com aquilo que comumente se designa como afetos e sentimentos, em resumo 0 irracional. Do que foi dito deduzimos primeiro apenas isto: necess4rio maior cuidado se ousamos inaugurar um encontro com 0 titulo: “Que é isto — a filosofia?” Um tal cuidado exige primeiro que procuremos situar a questio num caminho claramente orientado, para nfo vagarmos através de representagées arbitré- tias € ocasionais a respeito da filosofia. Como, porém, 19 encontraremos 0 caminho no qual poderemos deter- minar de maneira segura a:questio? © caminho para o qual descjaria apontar agora, esth imediatamente diante de nds. E_ precisamente pelo fato de ser 0 mais préximo 0 achamos dificil. Mesmo quando o encontramos, movemo-nos, contudo, ainda sempre desajeitadamente néle, Perguntamos: Que é isto — a filosofia? Pronunciamos assaz.freqiien- tes vézes a palavra “filosofia”. Se, porém, agora no mais empregarmos a palavra “filosofia” como ‘um térmo gasto; se em vex disso escutarmos a palavra “filosofia” em sua origem, entio cla soa philosophia. A palavra “filosofia” fala agora através do grego. A palavra grega é enquanto palavra grega, um caminho. De um lado, ésse caminho se estende diante de nés, pois a palavra j& foi proferida h4 muito tempo. De outro lado, éle j4 se estende atrés de nés, pois ouvi- mos pronunciamos esta palavra desde os primérdios de nossa civilizagao. Desta maneira, a palavra grega philosophia & um caminho sObre o qual estamos a ca- minho. Conhecemos, porém, éste caminho apenas confusamente, ainda que possuamos muitos conheci- mentos hist6ricos sObre a filosofia grega e os possamos difundir. A palavra philosophia diz-nos que a filosofia & algo que pela primeira vez ¢ antes de tudo vinca a existéncia do mundo grego. Nao $6 isto — a philo- sophia determina também a linha mestra de nossa his- t6ria ocidental-européia. A batida expresso “filoso- fia ocidental-européia” é, na verdade, uma tautolo- gia. Por que? Porque a “filosofia” é grega em sua esséncia —, ¢ grego aqui significa: a filosofia & nas origens de sua esséncia de tal naturera que ela pri- 20 meiro se apoderou do thundo grego e s6 déle, usan- do-o para se desenvolver. ‘Mas, a esstncia originariamente grega da filoso- fia é dirigida e dominada, na época de sua vigéncia, na Modernidade Européia, por representagdes do cris- tianismo. A hegemonia destas representagdes é me- diada pela Idade Média, Entretanto, nao se pode di- zer que por isto a filosofia se tornou crista, quer dizer, uma tarefa da f€ na revelagio e na autoridade da Igreja, A frase: a filosofia é grega em sua esséncie nao diz outra coisa que: 0 Ocidente e a Europa, ¢ sdmente éles, so, na marcha mais intima de sua his- t6ria, originariamente “filos6ficos”. Isto € atestado pelo surto ¢ domfnio das ciéncias. Pelo fato de clas brotarem da marcha mais intima da hist6ria ociden- tal-européia, 0 que vale dizer do processo da fi- losofia, sio' clas capazes de marcar hoje, com seu cunho’ especifico, a histéria da humanidade pelo orbe terrestre. Consideremos por um momento o que significa © fato de caracterizarmos uma era da histria huma- “ ica”. A energia atémica descoberta cias € representada como aquéle poder que deve determinar a marcha da hist6ria. En- tretanto, a ciéncia munca existiria se a filosofia nio a tivesse precedido e antecipado. A filosofia, porém, &: he philosophia, Esta palavra grega liga nosso dit Jogo a uma tradigio historial. Pelo fato de esta tra- digo permanecer tinica, ela é também univoca. A tra- digdo designada pelo nome grego philosophia, tradicao nomeada pela palavra historial philosophia, mostra- chos a direcio de um caminho, no qual perguntamos: Que € isto — a filosofia? 2 A tradigio nfo nos entrega & prisio do pasado ¢ irrevogével, Transmitir, délivrer, (*) € um libertar para a liberdade do diélogo com 0 que foi continua sendo. Se estivermos verdadeiramente atentos & pa- lavra ¢ meditarmos 0 que ouvimos, 0 nome “filosofia” nos convoca para penetrarmos na historia da origem grega da filosofia. A palavra philosophia esta, de certa maneira, na certidio de nascimento de nossa propria historia; podemos mesmo dizer: ela esta na certido de nascimento da atual época da histéria uni- versal que se chama era atémica.’ Por isso simente podemos levantar a questo: Que é isto — a filosofia?, ‘se comegamos um diélogo com 0 pensamento do mun- do grego. Porém, nio apenas aquilo que esti em questio, a filosofia & grego em sua origem, mas também a ‘maneia como perguntamos, mesmo a nossa mancira atual de questionar ainda é grega. Perguntamos: que é isto...? Em grego isto é: tf estin. A questio relativa ao que algo seja permane- ce, todavia, multivoca. Podemos perguntar, por exem- plo: que é aquilo 14 longe? Obtemos entio a respos- ta: uma Arvore. A resposta consiste em darmos 0 no- me a uma coisa que nao conhecemos exatamente. Podemos, entretanto, questionar mais: que & aquilo que designamos “Arvore”? Com a questo ago- ra posta avangamos para a proximidade do ## estin grego. & aquela forma de questionar desenvolvida por Sécrates, Platio ¢ Aristételes. Rstes perguntam, \por exemplo: Que é isto — 0 belo? Que € isto — 0 co () Bim frances, no text, 2 Inhecimento? Que é isto — a natureza? Que & isto — 0 movimento? Agora, porém, devemos prestar atencio para o fato de que nas questdes acima nao se procura ape- nas uma delimitagio mais exata do que é natureza, movimento, beleza; mas é preciso cuidar para que 20 mesmo tempo se dé uma explicagao sébre 0 que sig- nifica 0 “que”, em que sentido se deve compreender © ti, Aquilo que 0 “que” significa se designa 0 quid est, 10 quid: a quidditas, a quididade, Entretanto, a quidditas se determina diversamente nas diversas épo- cas da filosofia. Assim, por exemplo, a filosofia de Plato € uma interpretacdo caracteristica daquilo que quer dizer o tt. Ble significa precisamente a idéa. fato de nés quando perguntamos pelo tf, pelo quid, nos referirmos & ‘“idéa”, nao é absolutamente evidente. Aristételes d4 uma outra explicacao do ti que Plato. Outra ainda da Kant e também Hegel explica o tf de modo diferente. Sempre se deve determinar novamen- te aquilo que € questionado através do fio condutor que representa 0 tf, 0 quid, 0 “qué”. Em todo caso: quando referindo-nos 3 filosofia, perguntamos: que é isto?, levantamos uma questo originariamente grega. Notemos bem: tanto o tema de nossa interroga- gio: “a filosofia”, como 0 modo como perguntamos: “que € isto....?” — ambos permahecem gregos em sua proveniéncia. Nés mesmo fazemos parte desta ori- ‘gem, mesmo entio quando nem chegamos a dizer a palavra “filosofia”. Somos prdpriamente chamados de volta para esta origem, re-clamados para cla ¢ por ela, tio logo pronunciemos a pergunta: Que é isto —'a filosofia? nfo apenas em seu sentido literal, mas meditando seu sentido profundo. 23 [A questio: que é filosofia? no € uma questéo que uma espécie de conhecimento se coloca a si mes- mo (filosofia da filosofia). A questio também no é de cunho histérico; no se interessa em resolver como comegou € se desenvolveu aquilo que se chama “filo sofia”. A questio é carregada de historicidade, é his- torial, quer dizer, carrega em si um destino, nosso des- tino. Ainda mais: cla nao é “uma”, ela é a questéo historiel de nossa existéncia ocidental-européia). Se penetrarmos no sentido pleno e originério da questo: Que é isto — a filosofia ?, entdo nosso questio- nar encontrou em sua proveniéncia historial, uma dire- fo para nosso futuro historial. Encontramos um cami- nho. A questio mesma € um caminho. Ele conduz da existéncia prOpria ao mundo grego até nés, quan- do no para além de nés mesmos. Estamos — se per- severarmos na questio — a caminho, num caminho claramente orientado. Todavia, nfo nos da isto uma garantia de que jé, desde agora, sejamos capazes de trilhar éste caminho de maneira correta. Ja desde h& muito tempo costuma-se caracterizar a pergunta pelo que algo € como a questio da esstncia. A questio da essincia torna sempre entio viva quando aquilo por cuja esséncia se interroga, se obscurece ¢ confun- de, quando ao mesmo tempo a relagio do homem para com o que & questionado se mostra vacilante ¢ abalada. A questo de nosso encontro refere-se & esséncia da filosofia. Se esta questo brota realmente de uma indigéncia e se nfo est fadada a continuar apenas um simulacro de questo para alimentar uma conver- sa, entio a filosofia deve ter-se tornado para nés pro- blematica, enquanto filosofia. f isto exato? Em caso afirmativo, em que medida se tornou a filosofia pro- 24 blemética para nés? Isto evidentemente s6 podemos declarar se ja langamos um olhar para dentro da filo- sofia. Para isso é necessério que antes saibamos que € isto — a filosofia. Desta maneira somos estranha- mente acossados dentro de um circulo. A filosofia ‘mesma parece ser éste circulo. Suponhamos que nao nos podemos libertar imediatamente do cérco déste circulo; entretanto, énos permitido olhar para éste circulo. Para onde se dirigira nosso olhar? A palavra grega philosophia mostra-nos a diregio. Aqui se impGe uma observagdo fundamental. Se és agora ou mais tarde prestamos atenco as palavras da lingua grega, penetramos numa esfera privilegiada. Lentamente vislumbramos em nossa reflexio que a Ungua grega no & uma simples Iingua como as euro- péias que conhecemos. A lingua grega e sdmente cla, & ldgos. Disto ainda deveremos tratar ainda mais pro- fundamente em nossas discusses. Para 0 momento sirva a indicagio: o que é dito na lingua grega é de modo privilegiado, simultineamente aquilo que em di- zendo se nomeia. Se escutarmos de maneira grega uma palavra grega, entio seguimos seu légein, 0 que ‘expe sem intermediérios. O que ela expde € 0 que esté af diante de nés. Pela palavra grega verdadeira- mente ouvida de maneira grega, estamos imediatamen- te em presenca da coisa mesma, ai diante de nés, nao primeiro apenas diante de uma simples significa- ao verbal. A palavra grega philosophia remonta & palavra philésophos. Origindriamente esta palavra € um adjet vo como phildrgyras, 0 que ama a prata, como phildt ‘mos, 0 que ama a honra. A palavra philécophos foi pre- sumivelmente criada por Heréclito. Isto quer dizer que 25 para Herdclito ainda nao existe a philosophia, Um. anér phildsophos no é um homem “filos6fico”. O adjetivo grego phildsophos significa algo absolutamen- te diferente que os adjetivos filoséfico, philosophique. ‘Um anér philésophos € aquéle, hdz philei td sophén, que ama a sophén; philein significa aqui, no sentido de Herdclito: homologein, falar assim como 0 Légos fala, quer dizer corresponder ao Légos. ste corres- ponder esté em acérdo com o sophén. Acdrdo é har- ‘monia. O elemento especifico de philein do amor, pensado por Heraclito € a harmonia que se revela na recfproca.integragio de dois séres, nos lacos que os unem origindriamente numa disponibilidade de um para com 0 outro. O anér phildsophos ama o sophén. O que esta palavra diz para Herdclito ¢ dificil traduzir. Podemos, porém, elucidé-lo a partir da prépria explicagio de Hericlito, De acérdo com isto t6 sophdn Hén Panta “Um (é) Tudo”. Tudo quer dizer aqui: Pénia ta énta, a totalidade, 0 todo do ente. Hén, 0 Um, designa: 'o que € um, 0 ‘nico, 0 que tudo une. Unido é, entretanto, todo o ente no ser. O sophén sig- nifica: todo ente € no ser. Dito mais precisamente: o ser é oente, Nesta locugio o “é” traz uma carga transitiva e designa algo assim como “recolhe”. O ser recolhe 0 ente pelo fato de que €0 ente. O ser € 0 recolhimento — Légos. Todo o ente é no ser. Ouvir tal coisa soa de mo- do trivial em nosso ouvido, quando nao de modo ofen- sivo, Pois, pelo fato de o ente ter seu lugar no ser nin- guém precisa preocupar-se. Todo mundo sabe: ente € aquilo que é. Qual a outra solucdo para o ente a nio ser esta: ser? E entretanto: precisamente isto, que 0 26 ente permanega recolhido no ser, que no fenémeno do ser se manifesta 0 ente; isto jogava os gregos, ¢ a éles primeiro tinicamente, no espanto. Ente no ser: isto se fornou para os gregos 0 mais espantoso. Entretanto, mesmo os gregos tiveram que salvar € proteger o poder de espanto déste mais espantoso — contra 0 ataque do entendimento sofista, que dispu- ha logo de uma explicacio, compreensivel para qual- cuer um, para tudo ¢ a difundia. A salvagio do mais expantoso — ente no ser — se deu pelo fato de que alguns se fizeram a caminho na sua diregio, quer di- zer do sophén. Rstes tornaram-se por isto aquéles que tendiam para 0 sophén e que através de sua propria aspiragio despertavam nos outros homens 0 anseio pelo sophén eo mantinham aceso, © philein t0 sophén, aquéle acérdo com o sophén de que falamos aci- ma, a harmonia, transformou-se em drecsis, num as- tirar pelo sophén. O sophin —o ente no ser — é agora prdpriamente procurado. Pelo fato de o philein nao ser mais um acdrdo origindrio com o sophén, mas um singular aspirar pelo sophén, o philein td sophén torna-se “philosophia”. Esta aspiragio € determina- da pelo Eros. Uma tal procura que aspira pelo sophér, pelo én pdnta, pelo ente no ser se articula agora numa questio:que é 0 ente, enquanto é? Sémente agora © pensamento torna-se “filosofia”. Herdclito © Par- ménides ainda nio eram “filésofos”. Por que nao? Porque eram os maiores pensadores. “Maiores” nao designa aqui o célculo de um rendimento, porém apon- ta para uma outra dimensio do pensamento. Hera- dito e Parménides eram ‘“maiores” no sentido de que ainda se situavam no acérdo com 0 Légos, quer dizer 2 com o Hén Pénta. O paso para a “filosofia”, prepa- rado pela soffstica, s6 foi realizado por Sécrates ¢ Plato, Aristételes entdo, quase dois séculos depois de Herdclito, caracterizou éste passo com a seguinte afir- macio: Kai dé kai td pélai te kai nyn kai aci zetot- menon kai aci aporotimenon, ti td én? (Met. Z 1, 1028 b 2 sgs). Na tradugdo isso soa: “Assim pois, € aquilo para o qual (a filosofia) est em marcha j& desde os primérdios, e também agora e para sempre € para 0 ‘qual sempre de ndvo nfo encontra acesso (e que € por isso questionado) : que € 0 ente? (ti 1® dn).” A filosofia procura 0 que & 0 ente enquanto 6. A filosofia esta a caminho do ser do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser. Aris. t6teles elucida isto, acrescentando uma explicacio 20 ti £0 én, que & 0 ente?, na passagem acima citada: touté esti tis he ousia? ‘Traduzido: “Isto (a saber ti 12 én) significa: que & a entidade do ente?” O ser do ente consiste na entidade. Esta porém, — a ousia — € determinada por Plato como idéa, por Aristéte~ es como enérgeia. De momento ainda nfo é necessério analisar mais exatamente 0 que Aristételes entende por enérgeia e em que medida a ousia se deixa determinar pela enérgeia. importante por ora que prestemos atencio como Arist6teles delimita a filosofia em sua esséncia. No primeiro livro da “Metafisica” (Met. A2 982 b 9 sz) © fil6sofo diz 0 seguinte: A filosofia € epistéme ton proton archon kai aition theoretiké. Traduz-se facil- mente epistéme por “ciéncia”. Isto induz a0 érro, porque, com demasiada facilidade, permitimos que se insinue'a moderna concepeao de “ciéncia”. A traducio de epistéme por “cigneia” & também entio enganosa 28 quando entendemos “ciéncia” no sentido filos6fico que tinham em mente Fichte, Schelling e Hegel. A pala~ va epistéme deriva do participio epistémenos. Assim se chama o homem enquanto competente e habil (competéncia no sentido de appartenance) (*). A filosofia & epistéme tis, uma espécie de competéncia, theoretiké, que € capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com 0 olhar aquilo que perscruta. & por isso que a filosofia € epistéme theore- tiké, Mas que é isto que ela perscruta? ‘Aristételes di-lo, fazendo referéncia as protai archai kai aitai, Costuma-se traduzir: “as primeiras razées e causas” — a saber do ente, As primeiras ra- z6es € causas constituem assim o ser do ente. Apés dois milénios e meio me parece que teria chegado 0 tempo de considerar o que afinal tem o ser do ente a ver com coisas tais como “razio” ¢ “causa”. Em que sentido & pensado o ser para que coisas tais como “razéo” “causa” sejam apropriadas para caracterizarem ¢ assumirem o sendo-ser do ente? ‘Mas nés dirigimos nossa atengao para outra coi- sa. A citada afirmagio de Aristételes diznos para onde esta a caminho aquilo que se chama, desde Pla- tio, “filosofia”. A. afirmagio nos informa sobre isto que é — a filosofia. A filosofia é uma espécie de com- peténcia capaz de perscrutar o ente, a saber sob 0 pon to de vista do que éle é, enquanto é ente. ‘A questo que deve dar ao nosso didlogo a inquie- tude fecunda ¢ 0 movimento e indicar para nosso en- contro a direcio do caminho, a questio: que é filo- sofia? Aristételes j4 a respondeu. Portanto, no é mais necessario nosso cncontro. Esté encerrado antes de () im francés, no texto, 29 ter comegado, Revidar-se-& logo que a afirmagio de Aristételes sobre 0 que é a filosofia nfo pode ser abso- Tutamente a Gnica resposta & nosia questio. No me- Ihor dos casos, é ela uma resposta entre muitas outras. Com 0 auxilio da caracterizacio aristotélica de filoso- fia pode-se evidentemente representar e explicar tan- to o pensamento antes de Aristételes e Platdo quanto a filosofia posterior a Aristételes. Entretanto, facil- mente se pode apontar para o fato de que a filosofia mesma ¢ a maneira como ela concebe sua esséncia, assou por varias transformagées, nos dois milénios que seguiram o Estagirita. Quem ousaria negé-lo? Mas nao podemos passar por alto o fato de a filosofia de Aristételes a Nietzsche permanecer a mesma, precisa~ mente na base destas transformagées ¢ através delas. Pois as transformagGes sio a garantia para o paren- tesco no mesmo. De nenhum modo afirmamos com isto que a de- finigio aristotélica de filosofia tenha valor absoluto. Pois ela € j4 em meio & histéria do pensamento grego uma determinada explicagio daquele pensamento e do que Ihe foi dado como tarefa. A caracterizagio aristotélica da filosofia nao se deixa absolutamente re- traduzir no pensamento de Herdclito e de Parméni- des; pelo contrario a definicao aristotélica de filosofia certamente é livre continuagio da aurora do pensa- mento ¢ seu encerramento. Digo livre continuagio, porque de maneira alguma pode ser demonstrarla que as filosofias tomadas isoladamente ¢ as épocas da fi- losofia brotam umas das outras no sentido da neces- sidade de um processo dialético. Do que foi dito, que resulta para_nossa tentati- va de, num encontro, tratarmos a questfo: Que € isto 30 — a filosofia? Primeiramenté um ponto: nfo pode- mos ater-nos apenas A definicio de Aristételes. Disto deduzimos 0 outro ponto: devemos ocupar-nos. das primeiras e posteriores definigdes de filosofia. E de- pois? Depois alcancaremos uma férmula vazie, que serve para qualquer tipo de filosofia. E entéo? En- tao estaremos 0 mais longe possivel de uma resposta nossa questo. Por que se chega a isto? Porque, pelo provesso h& pouco referido, ssmente reunimos histd camente as definigdes que estio ai prontas ¢ as dis- solvemos numa férmula geral. Isto se pode realmente fazer quando se dispoe de grande erudigao ¢ auniliado por verificagées certas. Nesta emprésa nio_ precisa mos, nem em grau minimo, penetrar na filosofia de tal modo que meditemos sébre a esséncia da filosofia. Procedendo daquela maneira nos enriquecemos com conhecimentas muito mais variados ¢ sélidos e até mais titeis sobre as formas como a filosofia foi repre~ sentada no curso de sua hist6ria. Mas por esta via nunca chegaremos a uma resposta auténtica, isto é legitima, para a questio: Que é isto — a filesofia? A resposta sdmente pode ser uma resposta filosofan- te, uma resposta, que enquanto res-posta filosofa por ela mesma. Mas como compreender esta afirmagio? Em que medida uma resposta pode, na medida em que que € res-posta, filosofar? Procurarei esclarecer isto agora provisdriamente por algumas indicagdes. Aqui- Jo que tenho em mente ¢ a que me refiro, sempre per- turbard novamente nosso didlogo. Sera até a pe- dra de toque para averiguar se nosso encontro tem chance de se tornar um encontro verdadeiramente filos6fico. Coisa que nfo esti absolutamente em nos- so poder. 3M Quando é que a resposta a questio: Que é isto — a filosofia? € uma resposta filosofante? Quando filotofamos 6s? Manifestamente apenas ento quan- do entramos em didlogo com 0s filésofes. Disto faz par- te que discutamos com éles aquilo de que falam. Este debate em comum sébre aquilo que sempre de névo, enquanto 0 mesmo, é tarefa especifica dos fil6sofos, é © falar, 0 Légein no sentido do dialégesthai, o falar como didlogo. Se ¢ quando o diflogo é necessdria- mente uma dialética, isto deixamos em aberto. Uma coisa é verificar opinides dos fildsofos ¢ des- crevé-las. Outra coisa bem diferente & debater com les aquilo que dizem, ¢ isto quer dizer, do que falam. Supondo, portanto, que os filésofos so interpe- lados pelo ser do ente para que digam o que o ente 6 enquanto é, entio também nosso didlogo com 0s fi \sofos deve ser interpelado pelo ser do ente. Nos ‘mesmos devemos vir com nosso pensamento ao encon- tro daquilo para onde a filosofia esta a caminho. Nos- so falar deve cor-responder Aquilo pelo qual os filéso- fos so interpelados. Se formos felizes neste cor-res ponder, res-pondemos, de maneira auténtica & ques- to; Que é isto — a filosofia? A palavra alema “antworten”, responder, significa propriamente a mes- ‘ma coisa que ent-sprechen, cor-responder. A resposta A nossa questo no se esgota numa afirmacio que res-ponde A questo com uma verificagio sobre o-que se deve representar quando se ouve 0 conceito “filo- sofia”, A resposta ndo € uma afirmagio que replica (n'est pas une réponse), a resposta € muito mais a cor-respondéncia (la correspondance), que correspon- de ao ser do ente. Imediatamente, porém, quiséra- ‘mot saber 0 que constitui o elemento caracteristico da 32 cesposta, no sentido da correspondéncia. Mas primei- ro que tudo importa chegarmos a uma correspondén- cia, antes que sébre ela levantemos a teoria, A resposta & questio: Que & isto — a filosofia? consiste no fato de correspondermos aquilo para onde a filosofia esta a caminho, E isto é: 0 ser do ente, Num tal corresponder prestamos, desde 0 comégo, atencao Aquilo que a filosofia j4 nos inspirou, a filosofia, quer dizer a philosophia entendida em sentido grego. Por isso sdmente chegamos assim & correspondéncia, quer dizer, A resposta A nossa questo, se permanecemos no didlogo com aquilo para onde a tradigio da filosofia nos remete, isto é, libera. Nao encontramos a respos- ta A questo, que é a filosofia, através de enunciados hist6ricos sobre as definigdes da filosofia, mas através, do didlogo com aquilo que se nos transmitiu como ser do ente, Este caminho para a resposta & nossa questo néo representa uma ruptura com a historia, nem uma ne- gagio da histéria, mas uma apropriagio ¢ transforma- $0 do que foi transmitido. Uma tal apropriagio da historia é designada com a expressio “destrui¢ao”. sentido desta palavra é claramente determinado em “Ger ¢ Tempo” (§ 6). Destrui¢ao nio significa rul- na, mas desmontar, demolir e por-de-lado — a saber, as afirmagées puramente hist6ricas sObre a histéria da filosofia. Destruigo significa: abrir nosso. ouvido, torné-lo livre para aquilo que ma tradiggo do ser do ente nos inspira, Mantendo nossos ouvidos déceis a esta _inspiragdo, conseguimos situar-nos na corres- pondeéncia. ‘Mas enquanto dizemos isto, j& se anunciou uma objecio. Eis 0 teor: Sera primeiro necessirio fazer B ‘um esférgo para atingirmos a correspondéncia ao set do ente? Nao estamos nés homens j sempre numa tal correspondéncia, e nfo apenas de fato, mas do mais fntimo de nosso ser? Nao constitui esta correspondén- cia 0 trago fundamental de nosso ser? Na verdade esta é a situagio. Mas se a situagio € esta, entdo no podemos dizer que primeiro nos de- vemos situar nesta correspondéncia. E, contudo, dize- mos isto com razio. Pois, nés residimos, sem divida, sempre € em téda parte, na correspondéncia ao ser do ente; entretanto, s6 raramente somos atentos & ins- piragio do ser. Nao h4 divida que a correspondéncia a0 ser do ente permanece nossa morada constante. ‘Mas 36 de tempos em tempos ela se torna um compor- tamento propridmente assumido por nés e aberto a um desenvolvimento. 6 quando acontece isto, cor- respondemos propriamente aquilo que concerne 2 fi- losofia que est a caminho do ser do ente. O corres- ponder ao ser do ente € a filosofia; mas ela o é sdmen- te entio © apenas entio quando esta correspondén- cia se exerce propriamente e assim se desenvolve ¢ alar- ga éste desenvolvimento. Bste corresponder se dé de diversas maneiras, dependendo sempre do modo como fala o apélo do ser, ou do modo como é ouvido ou no ouvido um tal apélo, ou ainda do modo como é dito e silenciado 0 que se ouviu. Nosso encontro pode dar oportunidade para meditar s6bre isto. Procuro agora dizer apenas uma palavra preli- minar ao encontro. Desejaria ligar, 0 que foi exposto até agora Aquilo que afloramos, fazendo referéncia & palavra de André Gide sébre os “belos sentimentos” Philosophia € a correspondéncia prdpriamente exerci- da, que fala na medida em que é décil ao apélo do 34 ser do ente. corresponder escuta a vor do apélo. © que como voz do ser se dirige a nés, dis-pde nosso corresponder, “Corresponder” significa entio: ser dis- =posto, éire disposé (*), a saber a partir do ser do ente. Dis-posé significa aqui literalmente: ex-posto, ilumi- nado ¢ com isto entregue ao servico daquilo que & O ente enquanto tal dis-pde de tal maneira o falar que 1 dizer se harmoniza (accorder) com o ser do ente. (© corresponder é, necessariamente ¢ sempre ¢ no ape- nas ocasionalmente ¢ de vez em quando, um corres- ponder dis-posto.| Ble esta numa dis-posigio, E 6 com base na dis-posicao (dis-position) 0 dizer da cor- respondéncia recebe sua preciso, sua vocagio. Enquanto dis-posta e con-vocada a correspondén- cia € essencialmente uma dis-posi¢ao. Por isso 0 nos- so comportamento & cada ver dis-posto desta ou da- quela maneira. A dis-posigéo néo € um concérto de sentimentos que emergem ‘casualmente, que apenas acompanham a correspondéncia. Se caracterizamos a filosofia como a correspondéncia dis-posta, nio é abso- tamente intengGo nossa entregar o pensamento as mu- dangas fortuitas ¢ vacilagées de estados de Anim. An- tes trata-se tinicamente de apontar para 0 fato de que @)_ Disposicio (Stimmung) 6 um origintrlo modo, de, ser o serat, vinculado ao sentimento de situuclo (Befindiohlat) ‘que. aconipanha a. derelieglo (Geworfonhett).” Pela disposigto Ge nada. tom a ver com tonalidades psicelgicas), 0 ‘Smnubdp € radicalmente aberto.” Esta abertura antecede © cer €-0 querer ¢ ¢ condigho do possiblldade de qualquer ortentar- “So, ‘para, proprio Gu Intenclonalidade (velacte. "Ser @ Tempo” $29). ‘ogando’ com 9. riqueza. semanticn das derivagoes de Btimmung'beatimmt,_gestinnt, adstimmen, Gestinmthett, Bes Himmiholt, Heidegger’ procure tornar claro como esta disposigle G'uma abertura que determina q corroapondencla a0 s0r, na me- (ida em que é insteutadn pela vor (Slimme) do ser. 0 flésafo toon agul nas raizes do comportamento flosctice, da atitude ort= inante do filocoter 3B téda precisio do dizer se funda numa disposicao da correspondéncia, da correspondance, digo eu, & escuta do apélo. Antes de mais nada, porém, convém notar que a referéncia & essencial dis-posic¢do da correspondéncia nao é uma invencao apenas de nossos dias. Ja os pen sadores gregos, Platéo e Aristételes, chamaram a aten- Gio para o fato de que a filosofia e 0 filosofar fazem parte de uma dimensio do homem, que designamos dis-posigio (no sentido de uma tonalidade afetiva que nos harmoniza € nos convoca por um apélo). Platdo diz (Teeteto 155 d): mdla gar philoséphou touto 18 pathos, t0 thaumézein, ou gar dile arche phi- losophias he hatte, “f verdadeiramente de um filé- sofo éste pathos — o espanto; pois nZo ha outra ori- gem imperante da filosofia que éste”. © espanto 6, enquanto pathos, a arché da filoso- fia, Devemos compreender, em seu pleno sentido, a palavra grega arché. Designa aquilo de onde algo surge. Mas éste “de onde” nao é deixado para tras no surgir; antes a arché torna-se aquilo que € expresso pelo verbo archein, 0 que impera. O pathos do espan- to no esta simplesmente no comégo da filosofia, como, por exemplo, o lavar das mios precede a operagio do cirurgido. © espanto carrega a filosofia e impera cm seu interior. Axistételes diz o mesmo (Met. A 2, 982 b 12 egs) : did gar t6 thaumdzein hoi énthropoi kai nyn kai pré- ton éresanto philosophei. “Pelo espanto os homens che- gam agora ¢ chegaram antigamente & origem imperan- te do filosofar” (Aquilo de onde nasce o filosofar € que constantemente determina sua marcha). 36 Seria muito superficial ¢, sobretudo, uma atitu- de mental pouco grega se quiséssemos pensar que Pla- ‘Go ¢ Arist6teles apenas constatam que o espanto € a causa do filosofar. Se esta fosse a opiniso déles, entio diriam: um belo dia os homens se espantaram, a sa- ber, sdbre o ente ¢ sdbre o fato de éle ser ¢ de que éle seja. Impelidos por éste espanto, comegaram éles a filosofar, Tio logo a filosofia se pés em marcha, tor- now-se 0 espanto supérfluo como impulso, desapare- cendo por isso. Péde desaparecer j& que fora apenas um estimulo. Entretanto: 0 espanto & arché — éle perpassa qualquer passo da filosofia. O espanto é ‘pathos. Traduzimos habitualmente péthos por pai- xo, turbithdo afetivo. Mas pathos remonta & pdschein, sofrer, agiientar, suportar, tolerar, deixar-se levar por, deixar-se con-vocar por. £ ousado, como sempre em tais casos, traduair pathos por dis-posigao, palavra com que procuramos expressar uma tonalidade de humor que nos harmoniza ¢ nos con-voca por um apélo. De- vemos, todavia, ousar esta tradugio porque s6 cla nos impede de representarmos pathos psicologicamente no sentido da modemidade. Sdmente se compreen- dermos pathos como dis-posigio (dis-position), pode- mos também caracterizar melhor 0 thaumdzein, 0 ¢s- panto. No espanto detemo-nos (étre en arrét). como se retrocedéssemos diante do ente pelo fato de ser e de ser assim e no de outra maneira. O espanto também nfo se esgota neste retroceder diante do ser do ente, mas no préprio ato de retroceder e manter-se em suspenso é a0 mesmo tempo atrafdo € como que fascinado por aquilo diante do que recua. Assim 0 espanto é a dis-posicio na qual e para a qual o ser do ente se abre. O espanto é a dis-posi¢io em meio 7 A qual estava garantida para os fil6sofos gregos a cor- respondéncia ao ser do ente. De bem outra espécie & aquela dis-posigio que Jevou 0 pensamento a colocar a questo tradicional do que seja o ente enquanto é de um modo ndvo, e a comegar assim uma nova época da filosofia. Descar- tes, em suas meditagdes, nao pergunta apenas ¢ em primeiro lugar #f 0 dn — que é 0 ente, enquanto é? Descartes pergunta: qual & aquéle ente que no sen- tido do ens certum € 0 ente verdadeiro? Para Des- cartes, entretanto, se transformou a esséncia da cer- titudo. Pois na Idade Média certitudo nao significava certeza, mas a segura delimitagio de um ente naquilo que He 6 Aqui certitudo ainda coincide com a signifi- cago de essentia, Mas, para Descartes, aquilo que ver- dadeiramente é se mede de uma outra maneira. Para ale a diivida se torna aquela dis-posicfo em que vibra © acérdo com o ens certum, o ente que é com tdda certeza. A certitudo torna-se aquela fixagio do ens qua ens, que resulta da indubitabilidade do cogito (ergo) sum para 0 ego do homem. Assim 0 ego se transforma no sub-iectum por exceléncia, , desta ma- neira, a esséncia do homem penetra pela primeira vez na esfera da subjetividade no sentido da egoidade. Do acérdo com esta certitude recebe o dizer de Des- cartes a determinagio de um clare et distincte perci- pere. A dis-posicao afetiva da divida ¢ 0 positive acér- do com a certeza. Dai em diante a certeza se torna a medida determinante da verdade. LA dis-posicio afetiva da confianga na absoluta certeza do conheci- mento a cada momento acessivel permanece 0 pathos com isso a arché da filosofia moderna.) 38 Mas em que consiste 0 télos, a consumacio da filosofia moderna, caso disto nos seja permitido falar? £ Aste térmo determinado por uma outra dis-posigo? Onde devemos nés procurar a consumagio da filoso- fia moderna? Em Hegel ou apenas na filosofia dos, liltimos anos de Schelling? E que acontece com Marx ¢ Nietasche? Ja se movimentam éles fora da érbita da filosofia moderna? Se no, como determinar seu lugar? Parece até que levantamos apenas questdes his- téricas. Mas na verdade meditamos o destino essen- cial da filosofia. Procuramos pér-nos & escuta da voz do ser. Qual a dis-posigio em que ela mergulha 0 pensamento atual? Uma resposta unfvoca a esta per- gunta é praticamente impossivel. Provavelmente im- pera uma dis-posigio afetiva fundamental. Ela, po- rém, permanece oculta para nés. Isto seria um sinal para o fato de que nosso pensamento atual ainda nio encontrou seu claro caminho. O que encontramos sio apenas dis-posiges do pensamento de diversas tona- lidades, Diivida e desespéro de um lado € cega pos- sesio por principios, néo submetidos a exame, de outro, se confrontam. Médo e angistia misturam-se com esperanca ¢ confianga. Muitas vézes e quase por téda parte reina a idéia de que o pensamento que se guia pelo modélo da representacio e cAlculo puramen- te légicos é absolutamente livre de qualquer dis-posi- cdo. “Mas também a frieza do célculo, também a so- briedade prosaica da planificacSo sio sinais de um ti po de dis-posicio. Nao apenas isto; mesmo a razio que se mantém livre de tda a influéncia das paixées, & enquanto razo, pre-dis-posta para a confian- 39 ga na evidéncia légico-matemitica de seus princi- pios e regras (*). A correspondéncia propriamente assumida e em processo de desenvolvimento, que corresponde ao apélo do ser do ente, € a filosofia. Que é isto — a filosofia? sdmente aprendemos a conhecer e a saber, quando ex- perimentamos de que modo a filosofia é. Ela ¢ ao mo- do da correspondéncia que se harmoniza ¢ pie de acdr- do com a voz do ser do ente. Bste cor-responder € um falar. Esté a servigo da linguagem. © que isto significa ¢ de dificil compre- enséo para nés hoje, pois nossa representagio comum. da linguagem passou por um estranho processo de transformagées. Como conseqiiéncia disso a lingua- gem aparece como um instrumento de expressio (*). @)_J& em “Sor e Tempo” (4 28) s0 alnde A dteposieto que acompanna a teorla”e se afirma que “o eonecimente avido por eterminagoes ligieas se ‘enratea ontoldgica e existencialmente fo sentiment de situacko, caracteristica, do sersno-mundo” (D. 38s). Apontando para 0 falo do que a propria razo esd pre- “dlerpouta para. conflar ‘a evidtncia. logloo-matematien de els Pnciploe « regrns, Heldegger fere um tabs gus on nicessow da Técnica eibda mais sscraiizam, Mas, desde que Habermas, em Seu veo “Conheclmonta ¢ Intoréese” (id. Shurkamp, Praakcturt M1968), mestrou gue atrka de todo" conhecimento existe 0 nterésee gue 0 dirige, que a eoria quanto main pura 20 quer Ils ae Wdeclogisa, pode-ne deacobrir, nar afirmagiaa de Heldeg- Her, urna antecipacto das razdea ontoldglenexistencials. dam {ura de conheclmento ¢ interéege, "Nho hi conhecimento inane Ao processe de ideoiogizacto; dle nilo escaps nem mesmo 0 co- ‘hecimerin clentifica, por main sxate, Tigoracn # nestto. qua Ae roclame, (4) A tien da, instrumentatizago da linguagem visa & reteger 9 eeida, dimenako conotadora « amasicn contre, & Foduglo. da Tinguagem no nivel a denotagio, do. simpleamente ‘operative, " Nig se trata apenas de salvar 4 mensagem linglis= Heads ameaca Sn pure semiotickiade, 0 ‘loaofo descobre a Tingutgem 0 poder do légoe, do dizer como processo aportatico: entreve na ‘inguagem @ casa do ser, onde © homem mora nas 40 De acdrdo com isso, tem-se por mais acertado dizer que a linguagem esta a servigo do pensamento em vez de: © pensamento como cor-respondéncia est& a ser- vigo da linguagem. Mas antes de tudo, a representa- Go atual da linguagem est tio longe quanto possi- vel da experiéncia grega da linguagem. Aos gregos se manifesta a esséncia da linguagem como o Iégos. Mas © que significa Idgos e Iégein? Apenas hoje comesa- mos lentamente, através de miiltiplas interpretagées do légos a descerrar para nossos olhos o véu sobre sua origindria esséncia grega. Entretanto, nés nao somos capazes nem de um dia regressar a esta esséncia da Jinguagem, nem de simplesmente assumi-la como he- tanga. Pelo contrario, devemos entrar em diélogo com a experiéncia grega da linguagem como légos. Por que? Porque nés, sem uma suficiente reflexo sobre a linguagem, jamais sabemos verdadeiramente 0 que é a filosofia como a cot-respondéncia acima assi- nalada, o que ela € como uma privilegiada maneira de dizer. alzee Go humano. Se lembrarmos es trés constantes que a trax figho apresenta ta flosofin da lnguagem — a legica da lingua gem, 0 humanismo da linguagem e a teologia da_linguager — Werifcamos que o filésofo assume ® segunda, radicalizaa pela IRermendutice extstencal,.carrega-a de historicidade ¢ transfor- eg lneungemem.ceniv de ance, pa dng 42g ontologia tradicional, a partir de sua teosltura cat Heldegges uma. cnllogia Je imponevel € aubetcude’ pela. cee Gada fingungem, sume antecipagao du inoderna wnaiiien Oe isgem. "Vejese esta admoestagho do fldsofo que abre um tex fo ised,” saldo. no Jornal “News Zurcher Zoltung” ("Zolchon", 21-91060): “A Iinguagem representada como pura semioticida- Ge (Zeiehengebung) oferece o Ponto de. partide para. a. tecnict Felego do homem com # linguagem quo parte desler pressu- ppostos, reetiza, da maneira mais inquletante, a exigéncia de’ Kar] Mare: “Trate-se de transformar mundo.” a ‘Mas pelo fato de a poesia, em comparagio com © pensamento estar de um modo bem diverso e privi- legiado a servigo da linguagem, nosso encontro que medita s6bre a filosofia € necessdriamente levado a discutir a relagdo entre pensar ¢ poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a servigo da linguagem, intervém por ela e por cla se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se abre 20 ‘mesmo tempo um abismo, pois “moram nas montanhas mais separadas”. Agora, porém, haveria boas razies para exigir que nosso encontro se limitasse A questi que trata da filosofia, Esta restri¢ao seria s6 entio possivel até necessiria, se do didlogo resultasse que a filosofia do € aquilo que aqui the atribuimos: uma correspon- déncia, que manifesta na linguagem o apélo do ser do ente, Com outras palavras: nosso encontro no se pro- poe a tarefa de desenvolver um programa fixe. Mas @le quisera ser um esférco de preparar a todos os par- ticipantes para um recolhimento em que sejamos terpelados por aquilo que designamos 9 ser do ente. Nomeando isto, pensamos no que j& Aristételes diz: “O sendo-ser torna-se, de miiltiplos modos, fe- némeno,” To on légetai pollachds. 2

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