A Jóia Na Ferida by Rose-Emily Rothenberg

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A JOIA NA FERIDA O corpo expressa as necessidades da psique e oferece um caminho para a transformagao Rose-Emily Rothenberg Colegéo AMOR E PSIQUE Ofeminino + Aborto - perda e renovacao, Eva Patis * A feminilidade consciente: Entrevistas. com * A mulher modema em busca da alma: Guia Junguiano do mundo visivel e do ‘mundo invisivel, June Singer * A prostituta sagrada, N. Q. Corbett * As deusas ea mulher, J. S. Bolen + A virgem gravida, Marion Woodman * Camino para a iniciagao teminina, S.B. Perera * Destino, amor e éxtase, J. A. Santord * Os mistérios da mulher, Esther Harding + Omedo do feminino, &. Neumann s Variagdes sobre o tema mulher, J. Bonaventure O masculine * A busca félica, J. Wyly * A tradi¢ao secreta da jardinagem, G. Jackson * Castracao e flria masculina, ©. Monik + Curando a alma masculina, G. Jackson * Falo, a sagrada imagem do masculino, E. Monik * Hermes e seus filhos, R. L. Pedraza ‘+ Os mistérios da sala de estar, G. Jackson + Sob a sombra de Satumo, J. Hollis * Os deuses eo homem: Uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos, Jean Shinoda Bolen Psicologia e religiso * A alma celebra: Preparacao para anova religido, Lawrence W. Jaffe + A doenga que somos nés, J. P. Dourley + Ajomada da alma, J. A. Sanford * Biblia e Psique, E. F. Edinger * Deus, sonhos e revelaco, M. Kelsey * Doinconsciente a Deus, E. van der Winchel * Uma busca interior em Psicologia e religiao, J. Hillman * Rastreando os Deuses, J. Hollis Sonhos * Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach * Breve curso sobre 0s sonhos, R. Bosnak * Os sonhos @ a cura da alma, J. A. Sanord * Sonhos de um paciente com AIDS, R. Bosnak * Sonhos e gravidez, M. R. Gallbach * Sonhos @ ritual de cura, C. A. Meier Envelhecimento * Apassagem do meio, J. Hollis + Asolidao, A. Storr * Avetha sabia, R. Weaver * Despertando na meia idade, * Envelhecer, J. R. Protat + Mela-idade @ vida, A. Bermann * Menopausa, tompo de A. Mankowitz aii * Ovelho sabio, P. Middetkoop Contos de tadae * A individuapao nos contos de fada, MAL. von Franz * A interpretagaio dos contos de fada, ML. von Franz * A sombra e 0 mal nos contos de tada, M.-L. von Franz + Gato, M-L. von Franz + Oque conta 0 conto?, J. Bonaventure * Osigniticado arquetipico de Gilgamesh, R. S. Kluger © puer * Olivro do puer, J. Hillman * Puer aetemus, M.-L. von Franz Relacionamentos + Amar, trait, A. Carotenuto + Eros e pathos, A. Carotenuto * Incesto e amor humano, R. Stein * Nao sou mais a mulher com quem vood se casou, A. B. Filenz * No caminho para as nipcias, L. S. Leonard * Os parceitos invisiveis, J. A. Santord ‘Sombra * Mal, o lado sombrio da realidade, J.-A. Santord * Os pantanais da alma, J. Holis * Psicologia protunda e nova ética, E. Neumann Outros + Ansiedade cultural, R. L. Pedraza | * Alimento e transformagao, G. Jackson * Conhecendo a si mesmo, 0. Sharp Consciéncia solar, consciéncia lunar, M. Stein Meditagdes sobre 0s 22 arcanos mares 00 tard, andnimo No espelho de Psique, E. Neumann CO caminho da transtormagao, E. Perot O despertar de seu fiho, C. de Truchis Psicoterapia, ML. von Franz Psiquiatvia junguiana, HK. Frere Rustoand 08 douses, Nas apia do jogo de areda: Imagens sa ee Sao Ruth Ammann Dioniso no exiio: Sobre emoy: @ 9 compe FL O projeto Eden, James Hollis Reina tert ose ly Rothenberg a roprossto da aza ROSE-EMILY ROTHENBERG AJOIA NA FERIDA O corpo expressa as necessidades da psique e oferece um caminho para a transformagao PAULUS (Dados internacionas de Catalogarso na Pubicagso (Camara Brasiioira do Livo, SP. Brasiy (CH) Rothenberg, Rose-Emiy, 1939. ‘A ia na ferida: 0 corpo expressa as necessidades da ‘¢ olerece um caminho para a pon / Rose-Emiy Rothenberg: [vraduao de Gustave Gerhoin) — Sto Paulo: Paulus, 2004. — (Amor e psique) Titulo original: The Jewel in the Wound fia ISBN 85-349-2177-6 1. Mente e corpo 2. Psicandlise 3. Psicologia junguiana 4, Rothe berg, =I. Titulo, IL Série "9: Rosemiy 1839 geoaer CDD-150.1954 {indices para catalogo sistematico: 1. Psicandlise: Psicologia 150.1954 Colegao AMOR E PSIQUE coordenada por Or. Léon Bonaventure, Pe. Ivo Storniolo, Ora. Maria Elci Spaccaquerche Titulo original The Jewel in the Wound © 2001 Rose-Emily Rothenberg ISBN 1-888602-16-3 Imagem da capa Fulgentiuns Metatorallus, Johannes Ridevallus Biblioteca Apostolica Vaticana Tradugao Gustavo Gerheim Editoragao PAULUS Impressao e acabamento PAULUS. © PAULUS ~ 2004 Rua Francisco Cruz, 229 + 0417-091 Sao Paulo (Brasil) Fax (11) 5579-3627 « Tel. (11) 5084-3066 www.paulus.com.br « editorial @ paulus.com.br ISBN 85-349-2177-6 INTRODUGAO A COLEGAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, 0 homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu préprio espago interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes cami- nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em lugar de buscar causas, explicagées psicopatolégicas as nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri- das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realizacao de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida carrega em si um sentido, 0 de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao é 0 espiritual que aparece primei- ro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. E a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen- tido, o que significa que a psicologia pode de novo esten- der a m@o para a teologia. Esta perspectiva psicolégica nova é fruto do esforco para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si 5 i. eu de Tefle, Omegan, mesma, 4 sua propria originalidade. Ela nage, xdes durante a pratica psicoterapica, e esta c renovar o modelo e a finalidade da Psicoterapia f dog nova visdo do homem na sua existéncia cotidiana d : tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dim sdes diferentes de nossa existéncia para podermos a contrar a nossa alma. Ela podera alimentar todos ie les que sao sensiveis a necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente colegao é precisamente res. tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geragio de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem da alma”, como C. G. Jung 0 desejava. Léon Bonaventure Para a minha mée, porque ela nao chegou a me conhecer. “..0 que a joia significa: éum Deus salvador, uma renovacdo do sol... O Deus renovado significa uma atitude renovada, uma nova possibilidade de vida, uma recuperacdo da vitalidade...” C.G. Jung Psychological types, CW6 (Tipos Psicoldgicos] Princeton, NJ: Princeton University Press, pars. 297, 301, 1971. CW refere-se a The Collected Works of C.G. Jung, trad. por R.F.C. Hull, ed. H. Reak, M. Fordham, G. Adler, Wm. McGuire, Bollingen Series XX (Princeton: Princeton University Press, 1953-1979). PREFACIO Cada um de nés recebe uma tarefa que deve ser de- sempenhada nesta vida: carregar e transformar nossa parte individual do universo. A perda da minha mae, logo ap6és meu nascimento, criou a ferida que me possibilitou realizar minha tarefa. Fui guiada nesse processo por sonhos e visdes que me abriram as portas do inconsciente coletivo,! a cama- da mais profunda do inconsciente e 0 reino que subjaz a mae pessoal. Ao trabalhar com essas dadivas do incons- ciente, bem como com pintura e argila, mantive a chama que nunca foi completamente extinta entre eu e minha mae. Mais importante ainda, esse trabalho permitiu-me criar e depois fortalecer uma conexAo consciente conti- nua com uma camada mais profunda da psique. Essa co- nexAo supriu o que minha mae nao me péde dar e, simul- taneamente, trouxe um caminho para que eu pudesse encontra-la. Em épocas de transigao ao longo de minha jornada, cicatrizes espont4neas surgiram em meu corpo. Nasci- das das feridas psiquicas e dos desafios dessas passagens, 10 inconsciente coletivo 6 0 estrato do inconsciente que, por ser comum a toda a humanidade, funciona como manancial dos simbolos universais. Seu centro, o Si-mesmo, unifica a psique e funciona como prinefpio organizador da vida psicolégica. 9 as cicatrizes — que, @ principio, eu abominava _ for, no final das contas, minha salvacao. Por espelharem nha condigao psicolégica no mundo exterior, elag me Fin tigaram a investigar seu significado. As Cicatrizes ter me inspirado ao longo de toda minha vida, trazendo » tona as partes latentes de minha psique. a Meu espirito de vida nao morreu com minha mie- ao invés disso, fez sua morada nas feridas. Apos anos de in. vestigacao, vejo agora que elas foram os objetos sobre og quais eu projetava” o sofrimento advindo do caos de mi- nha infancia; ao mesmo tempo, continham a numinosi- dade da joia que eu muito desejava encontrar. Elas eram tangiveis e reais e, no entanto, ofereciam-me também uma experiéncia do eterno que ligava corpo e espirito, vida e morte, eu e minha mae. Minha curiosidade sobre a evolucao das cicatrizes levou-me a andlise. La trabalhei com minha psique, 0 solo de onde as cicatrizes germinavam. Seriam necessérias muitas experiéncias de vida, incluindo casamento, ma- ternidade e doen¢a, para concentrar meu trabalho inter- no o suficiente para a promocao da cura e da totalidade. O sofrimento e o trabalho criaram um caminho que eu podia tomar para encontrar minha mae, demonstrando que a renovacao é possivel mesmo nas condicdes mais desfavordveis. Minha mae, ao retornar através de um sonho, satisfez um desejo de toda uma vida, desejo este tao intenso, que nao creio que eu tivesse a determina¢a0 de seguir com minha vida e meu trabalho sem esse e?- contro. _ Com o propésito de manter uma conexao viva com minha mde, mantive uma relacao ativa com 0 inconsciente- 2, 8650 6 0, ontedo ‘A Projecdo é 0 “proceso por meio do qual uma qualidade ou um conteude moss «lente de si mesmo ¢ percebido em um objeto externo, com 0 qual Passe” moe id interagir”. Edward F. Edinger, Melville's Moby-Dick: A Jungian Ce ‘entary (Nova York: New Directions, 1978), p. 149. 10 Aenergia criativa que fluia daquela relagdo acabou levan- do-me para a Africa, onde cicatrizes sao criadas proposi- talmente pelos indigenas no ritual da escarificacéo. Entre- vistei xamAs e adquiri uma compreensao mais profunda da natureza espiritual que sabia estar viva em minhas proprias cicatrizes. Dessa forma, fui capaz de me reco- nectar 4 camada coletiva da psique que existe antes do ma- terno: 0 que os alquimistas chamavam de prima materia, os ingredientes psiquicos (literalmente, a primeira ma- téria) que influenciam os desdobramentos de nossa vida. Precisei de muitas experiéncias estimulantes, inter- nas e externas, que me ajudassem a integrar e a trans- formar minha relagao com as realidades sombrias da vida. Passei a compreender que tudo 0 que surge do corpo e do inconsciente tem uma forma sombria a principio. Psico- logicamente, essas realidades sombrias marcam 0 nasci- mento de algo que esta lutando para sair do inconsciente e atingir a consciéncia; simbolicamente, elas represen- tam a joia que foi perdida e que carrega 0 novo potencial. A Acapa d deste | livro ‘ilustra esse evento arquetipico. A pintura é uma versao alquimica da tela de Boticelli “O nascimento de Vénus”. Nessa pintura, “Vénus esta de pé em sua concha, seu corpo todo rosas: as vermelhas flores- cendo das brancas”.® A pérola que cresce da concha éa base dessa representagao simbélica.* Vénus nasce do caos dos | primérdios do m mundo, do Si-mesmo nascente — um comeco sombrio que é é freqiientemente te esquecido e ne- gado quando a beleza se torna tao presente. Mas o ne- gro € 0 comeco da obra ¢ alquimica (0 trabalho de vida de um alquimista, ou, na nomenclatura junguiana, a indivi- *Stanislas Klossowski de Rola. Alchemy: The Secret Art (Londres: Thames and Hudson, 1973), fig. 61. ‘C.G. Jung e C. Kerényi, Essays on a Science of Mythology (Nova York: Harper & Row, 1963), p. 103. ee ae duagao). O embranquecimento é a Classificacag ~formagao e a integracdo da prima materia, final saindo da escuridao para 0 vermelho dog sentime nite Esse € 0 principio que sustenta a vida, Passando Sd incubagao no sombrio para poder vir a tona, ama Amedida que dava nova forma a minha vida eami mesma, as cicatrizes fisicas comecaram a tomar uma f a ma diferente. Minha consciéncia em expansiio eas rere tidas experiéncias de renovaciio do caos continuaram Sen: do refletidas em meu corpo. Psicologicamente, tornei-me capaz de transitar de maneira mais tranqiiila pelo mey mundo interno e depois, literalmente, no mundo externo, como € mostrado nas paginas que seguem, Neste livro exponho, a luz do dia, uma parte muito pessoal e privada da individuagéo. Uma jornada dessa natureza é sagrada, merecendo cuidado e protecao para que nenhum dano seja causado a alma. A principio, le- vou-me a responder a pergunta: ao tornar essa jornada publica, sera que estarei violando a alma? Tive que pesar isso contra o sentido que minha jornada pessoal poderia ter para pessoas que tiveram experiéncias similares e estado procurando respostas. Entao me lembrei de um so- nho que tive muitos anos atras, e isso me ajudoua resol- ver a questao. No sonho, o prédio onde eu tratava de mi- nhas cicatrizes havia se tornado a “Bollingen Press” (uma referéncia 4 Bollingen Foundation, que tornou possivel publicagdo em inglés das obras completas de Jung). Toda pessoa que vai fundo no sofrimento pode trazer uma revelagao para nossa realidade. Para mim, a forma priméria de revelacao foi a aparigéo espontanea das ce catrizes, uma “escarificagdéo espontanea”. Essas en zes sao lembrangas permanentes das feridas que e tam da luta e do desafio de se ter uma relagao “ross consciente com Deus, e das recompensas divinas Be relacdo. Somos todos feitos A imagem de Deus; de’ > trang. ssa for- 12 ma, nosso sofrimento é um reflexo do sofrimento divino. Ao carregarmos o sofrimento dEle em sua variedade de formas, contribuimos com 0 inconsciente coletivo, assim como com a consciéncia coletiva de nosso tempo. Contar essa histéria do sofrer a ferida e encontrar a jéia que ela esconde foi um empreendimento através do qual o espirito curador tornou-se uma realidade cons- ciente para mim. Escrevi este livro para devolver o que me foi dado através da oportunidade de participar desse drama divino. Essa dadiva também me possibilitou, como analista junguiana, ajudar outros, através do trabalho analitico, a encontrarem a jéia em suas préprias e singu- lares feridas, a j6ia que espera por resgate. Meu proprio trabalho continua. Rose-Emily Rothenberg Julho de 2001 13 AGRADECIMENTOS Muitas pessoas me acompanharam e desde 0 princi- pio apoiaram este livro. Meu manuscrito contou com o be- neficio da excelente assisténcia editorial de Judy Ross, que leu varios rascunhos de meus escritos, até tomar a forma de um livro. Versdes iniciais foram editadas por Priscilla Stuckey e Kate Smith Hanssen. Muitos comentarios uteis vieram das revisdes de George Elder, Janet Dallett, Louise Mahdi e Susan Rublaitus. Lore Zeller e Nancy Mozur, da biblioteca e livraria do C. G. Jung Institute de Los Angeles ofereceram pesquisa e apoio graciosos. Betty Meador, Dennis Slattery, Donald Sandner, Meredith Sabini e Su- zanne Wagner deram orientagées importantes ao longo do caminho. Deborah Wesley e Michael Gellert ajudaram-me a criar o manuscrito com grande sensibilidade e discer- nimento psicolégico. Logicamente, assumo total responsa- bilidade pelo produto final, que é somente meu. Devo um agradecimento especial a Susan Dworski por suas 6timas sugestées na preparacao do manuscrito. Minha gratidao vai também para o diretor Edouard Yé de Burkina Faso, por capturar com suas habilidades fo- tograficas a maioria das fotos das pessoas, cenarios © ce- riménias na Africa e a Marcel Ouattara, Edouard Yé e Théophane Thou por tornarem nossa visita a Burkina Faso tanto possivel quanto incrivelmente significativa. 15 Quero também agradecer a Reed Hutchinson da UG, Photographic Services e a Susan Einstein Por prep; varias das transparéncias para as ilustragdeg do in Minhas aventuras para dentro do mundo intimo q meus sonhos e visdes, e as conseqiientes amplificagse,. surgiram de discussdes com meus analistas, mentores : colegas: Max Zeller, Hilde e James Kirsch, Edward Edi © ger, Theodore Abt e Hermann Strobel. Minhas incursées no mundo exterior da arte, da cultura e a viagem Para a Africa foram auxiliadas por Doran Ross, diretora do UCLA Fowler Museum of Cultural History e por Malidoma Some, um anciao e adivinho do povo Dagara do oeste africano, conhecido escritor e professor. Também sinto profunda gratidao por todas as pessoas na Africa que tiveram resso- nancia com meu motivo para estar la e que compartilha- ram abertamente seu espirito e sua sabedoria comigo. Minha gratidao vai para Murray Stein por reconhe- cer a mensagem do livro e tornar possivel sua publicagao pela Chiron. O design e a producao deste livro refletem as habilidades de Susan Kress Hamilton da Phineas, ea excelente orientagao editorial de Jane LeCompte. Quero também agradecer a meu filho, Joshua, e sua esposa, Pam, pelo apoio durante meu trabalho neste projeto. Finalmente, pelo amor, apoio e assisténcia inigua- laveis, e pela generosidade com seu tempo, sua paciéncia e sua profunda compreensao do meu processo, estou em divida com meu marido, Les, que ficou a meu lado duran- te todo o longo processo de preparacao deste livro. Todo esforco possivel foi feito para localizar os Pro- prietarios dos direitos das obras previamente publicadas que foram citadas aqui. Reconhecemos gratamente a per- miss4o para citar as seguintes obras: C.G. Jung, Collected Works e Nietzche’s Zarathusre Notes of the Seminar Given in 1934-1939. © Prinee 16 University Press, em varias datas. Foram reeditadas com a permissao da Princeton University Press e da Routledge. Jolande Jacobi (ed.), Paracelsus: Selected Writings. © Bollingen Foundation em 1951; renovada pela Prince- ton University Press. Em 1979. Reeditada com permis- sao da Princeton University Press. Joseph Campbell, The Mythic Image. © Princeton University Press em 1981. Reeditada com a permissado da Princeton University Press. A autora e a editora gostariam de agradecer tam- bém aos curadores das obras de arte e das fotografias (identificadas nos créditos das ilustragées) pelo forneci- mento e pela permissdo para usé-las. 17 INTRODUGAO TRABALHANDO COM UM SINTOMA CORPORAL Explorar um sintoma corporal é entrar nele, assim como ele entrou em nés, e tomar parte em um mistério sagrado. E com grande respeito e humildade que aceitamos essa tarefa. Este livro refere-se ao processo de individuagao ini- ciado por um sintoma corporal e aos multiplos beneficios obtidos quando se explora os sintomas em varios niveis, como aconteceu com meus queldides. Tornar-se mais cons- ciente 6 um dos principais objetivos desse trabalho, e tal- vez esta seja uma das intengées da Psique ao nos apre- sentar um sintoma corporal. Sintomas fisicos, em seu sentido mais positivo e metaférico, sao como jéias no cor- po esperando serem descobertas. Eles criam um impeto no paciente para realizar o trabalho interno, e trazem consigo o ponto central para a cura. O sintoma corporal serve a um propésito bem definido nesse ponto, _levando 0 individuo a fonte da doenga ou da desordem que a criou e, conseqiientemente, a cura. Existem varias influéncias | que contribuem para a evolucao, o significado e a cura do mal ou da doenga. Estru- tura genética, condigoes ambientais é . componentes psi- col6gicos sao alguns dos aspectos a serem “considerados. Cada desordem é singular 4 pessoa que a possui. Ao se 19 determinar 0 componente psiquico do diagng, fr pre ha um componente psiquico), deve-se oh ACO (@ Sem. dos os aspectos da vida do individuo (isto 6a ati Para to. te o corpo e suas manifestagoes, as condicses ae Peran. da doenga e suas recorréncias etc.), Seria diffe a ferida se nao se enxergasse seus aspectog globattar eventos literais permeando seu inicio, og spacaae ~or desenvolvimento, suas bases arquetipicas. A dea de sey do arquétipo’ por tras de um sintoma corporal a 0 momento decisivo da jornada pessoal, na medida em 0 1a revela s 2a mM que o sintoma revela seu lugar no mito pessoal. Os sintomas corporais, normalmente, emergem das profundezas para a luz do dia de forma bastante inespe- rada. Quando irrompe a doenga, 0 individuo defronta-se de maneira abrupta, com a realidade de que nao 60 ini. co senhor de sua propria casa. O individuo é forcado a prestar atencdo na psique, porque ela se tornou real. Quando um sintoma fisico aparece, alguma coisa inter- na, que nao pode alcangar a consciéncia diretamente, manifesta-se de forma fisioldgica. Ao fazé-lo, auxilia o Eu ao carregar 0 contetido que ele nao pode absorver tao fa- cilmente. Um sintoma pode ter muitos niveis de significados. A profundidade do insight que pode ser obtido através do sintoma vai depender de onde a psique esta em sua evo" lugdo e da tenacidade do Eu para comprometer-se com essa exploracdo. Ao se adentrar nas profundezas do sin- toma e seguir sua natureza simbélica, 0 individuo é ae do para a camada arquetipica® da psique, onde transfor macaéo e renovacao sao possiveis. ecot- arsais € FeO nte as imagens univers” miticos: nda do incor gs, contos Um arquétipo é a forma inata subjace rentes, aos padrées de comportamento e aos tema ®A camada arquetipica é a camada mais pro! Ela ¢ a geradora dos simbolos universais nos sonhos, mite religido, ete. 20 Se coletiv fe fada, 1 Os sintomas corporais s40 portadores de memérias essoais € coletivas, arquétipos e instintos dos quais fo- mos desconectados. F necessdrio um grande esforco al se reconectar a esses elementos perdidos ¢ eaanieciiog e para perceber 0 significado da doenga. Uma atencao dili- gente aos sonhos e visdes que se centram em um sintoma corporal, especifico pode ser util, por revelar as camadas mais profundas do significado do sintoma. A reuniao de associagoes pessoais e arquetipicas favorece a andlise ¢ a compreensao dos componentes psicolégicos e simbélicos de um sintoma fisico. A base arquetipica dos sintomas re- vela o nivel coletivo do inconsciente, as raizes mais profun- das da psique. Ao alcangar esse nivel, uma dimensao mais ampla e um significado simbélico sao revelados no sinto- ma individual. Esse contexto maior da ao Eu um lugar onde trabalhar e integrar a experiéncia da doenga. Da sentido a experiéncia de sofrimento. Um sentido signifi- cativo é ter de se relacionar com a realidade como ela é. Jung disse: “O Si-mesmo tem suas raizes no corpo, de fato, nos elementos quimicos do corpo”.’ Segundo Jung, “o Sicmesmo é 0 nome dado a totalidade da psique, o arqué- tipo central do inconsciente coletivo, o centro unificador da psique. O Si-mesmo traz consigo a imagem de Deus. Na doenca, um aspecto do Si-mesmo torna-se manifesto no corpo, na matéria. Por meio do trabalho analitico, 0 Eu cconsciente pode dar um sentido simbélico relevante a manifestacao fisiolégica do Si-mesmo. Na doenca, 0 Si- mesmo est4 tornando o Eu consciente dele mesmo. Ao fazé-lo, traz para o sofrimento da enfermidade uma in- tensidade e uma numinosidade, como se os deuses esti- vessem se encontrando com 0 individual e tornando-se manifestos, Os sintomas e as imagens que Sa0 numinosos de maneira persistente contam uma historia que deve ‘Jung, Alchemical Studies, CW 13, § 242 21 ser ouvida. O poder oe est por trig ae espirito vivo, dentro deles. a Originalmente, pensava-se que a doenga a da por uma possessao espiritual ou pela perda or 7 Em decorréncia disso, a cura ocorria através da vam cagaoe expulsiio do(s) espirito(s) maligno(s). Como avane da biologia e da ciéncia, a atengao foi focada nag a 5 nos processos de cura que residem exclusivamente ig corpo. Com isso, a psique e 0 corpo experimentaram um, separacao decisiva, & qual Jung ¢ a psicologia Profunda yém tentando se referir. Como disse Jung, figpeehee nao ha tais coisas como corpo e mente na realidade ab. corpo e mente, ou alma, sao a mesma coisa, a identi, a vida, estando sujeitos As mesmas leis, e o qu corpo faz esté acontecendo na mente”.* Em sua concei- tuacao da psique e do corpo, a psicologia profunda con- tém tanto a dimensao espiritual quanto a material. Com- preende-se que 0 que se expressa no corpo tem um equivalente psicolégico. Na medida em que a psique encarna, ela nasce como carne. Ajudamos a trazer a psique mais para dentro do mundo através da contemplacao, da introspecgao, dos ques- tionamentos e das pesquisas do mundo externo, médico, assim como do mundo interno da alma e do inconsciente. Como resultado desse processo, algo muda na psique, mes- mo que o sintoma fisico néo mude. O Eu ajuda a ativar 0 processo de cura e se esforca para alcangar as for¢as des- conhecidas no meio do caminho. A propria naturez@ a reflexao e da integracao traz luz e energia, fortalecendo ° Eu. A mesma atitude analitica pode ser usada tanto no ne balho com sintomas corporais quanto com sintomas pai légicos. Deve-se considerar a manifestacao do sintoma " 1928-1930 °C.G. Jun; jiven in inet une Dream Analysis: Notes of the Seminar Given IP (Princeton NJ: Princeton University Press, 1984), p. 20. 22 nivel literal (como funciona organicamente) bem como identificar seus componentes psicolégicos e simbdlicos, O simbolismo alquimico 6 muito titil na andlise dos sintomas corporais, Para 0 alquimista medieval, 0 traba- Iho alquimico iniciava-se com a contengao do material bru to no Vaso alquimico, havendo depois uma descida as pro- fundezas sombrias dessa materia para encontrar 0 valor serdido escondido dentro dela. Metaforicamente, um indi- yiduo aprofunda-se em certa doenga como se fosse um al- quimista 4 procura do espirito preso na matéria. Esse é um comprometimento heréico. A amplificagao do processo de adoecimento através da andlise e do trabalho com imagens que fagam um para- lelo e sejam um reflexo do sintoma ajuda a revelar 0 sen- tido do sintoma. Via de regra, um aspecto perdido ou es- condido vem a tona. Tornar-se consciente dessa dinamica sugere a possibilidade de algum controle, nao importan- do se um aspecto mais sombrio ou mais positivo vai ser descoberto. A investigagao pode, entao, levar a uma mudan- ga na _personalidade total, favorecendo seu desenvolvi- mento. O trabalho analitico nao muda, necessariamente, 0 sintoma fisico, mas p aior profundida- um guia. sentido, e 0 senti macao corrobora 0 principio alquimico de que o produto final e seu material inicial sao “um” e que 0 um “possui tudo o que necessita”. Paracelso, médico e alquimista do século XVI, também escreveu sobre esse conceito: Mesmo quando ainda esta no utero, por nascer, 0 homem 6 oprimido pelas potencialidades de todas as doengas, ¢ esta sujeito a elas. E porque toda doenga € inerente as natureza, ele nao poderia nascer vivo e saudavel se um médico interno nao estivesse escondido nele... cada doen- ‘a natural carrega seu proprio remédio dentro de omem recebeu da natureza tanto o destruidor da quanto o preservador da satide... 0 que o primeiro tenta 23 ua Fee: i truir, 0 médico inato re ativan aa, pode se encontrar as raze il Od Pois & satide deve crescer da mesma raiz que a ¢ Satide ra onde quer que @ satide se direcione, para |, ae . ‘a doenga deve se direcionar. Bee exal Os sintomas devem < jevaos a Sério, pois carne. zi mensagens urgentes lo fundo le NOSSO ser, fant, mais profundo o sintoma, quanto mais severo ou Cronicg mais globalizante ele é dentro do mito pessoal. A doen: parece estar entre os principals eventos que ajudam revelar o mito pessoal. Meu mito pessoal € 0 do érfag que comeca Sua Vida em solidao ou abandono e depois, como g heréi arquetipico, aceita as tarefas que 0 levarao a deseo. prir sua identidade real. Uma ferida tao precoce — a per. da da mae ou do pai, ou a experiéncia de abandono — requer um consideravel processo de cura. Esse rito de passagem envolve a morte do velho e 0 nascimento do novo, e cria, de maneira inevitavel, uma ferida. Se a feri- da for muito profunda, é necessario um enorme processo de cura. O orfao, em especial, necessita de algo onde projetar a mae ou 0 pai ausente. Os queldides que desenvolvi na minha juventude tornaram-se esse objeto para mim. Eles surgiram de maneira espontanea em meu corpo, marcan- do minhas lesées fisicas e psicolégicas, refletindo meu ser singular. Eles foram super zelosos em sua recorréncia em épocas de transigdo, e eu sempre me questionei: qual foi a intencao da psique ao crid-los? Por muitos anos achel que as cicatrizes eram uma injustica que eu tinha des portar, mas através desse trabalho posso agora percebet que elas me protegeram de tudo o que tive que enfrent? Tenho grande divida para com elas. 8 aa, WY necuande Jacobi (ed.), Paracelsus: Selected Writings (Princetet niversity Press, 1951), pp. 76, 78 24 Yr Fiz analise por trinta anos, com quatro analistas jun- : Iniciei meu processo de analise no comeco de guiane® ralmente com uma sessao - meus yinte anos, ge - por sema.- Terminei minha analise quando meu ultimo analista " ntou-se, muitos anos antes de eu ir para a Africa, meados de meus cinquenta anos. Muitos dos antigos sonhos e imagens incluidos neste livro foram levados pa- a : andlise. Os insights e as amplificagdes sobre eles estao baseados no que eu aprendi a partir das inter- pretacdes de meus analistas. Nos anos seguintes, adqui- ri amplificagdes adicionais de consultas ocasionais com colegas analistas, juntamente com minha propria pesquisa continua, principalmente, mas nao sé, das Obras Completas de Jung e de varios livros de simbolos. Sinte- tizei esse material com meus insights recentes e refle- xoes sobre as interpretagdes anteriores, e 0 resultado esta apresentado nas paginas que seguem. A amplificagao das imagens oniricas, e 0 ato de medi- tar e escrever sobre elas, levou-me a novos niveis de de- senvolvimento. Sentimentos que, a principio, nao conhe- cia, ajudaram-me a coagular e integrar os significados mais profundos desses sonhos, imaginagdes ativas™ e imagens. Quando refleti sobre os livros, contes de fada e mitos que tiveram enorme impacto sobre mim, insights adicionais vieram a tona. Quando consegui deixar minha imaginac4o misturar-se nessa equacao, uma sintese muito maior aconteceu. Todo esse material, interno e externo, trouxe-me até aqui, levando-me a contar esta histéria. em “O método de imaginac&o ativa implica em participar ativamente de um Eu, com as imagens que surgem do inconsciente. Uma resposta direta do escrts, Delo de algumas formas de expresséo, tais como angila, pintura ou elena Stabelece uma relacko viva com o mundo interne. Uma discussie ex- Ep Len iasimagnacho ativa pede ser escentrade on Bites Hannah. ieee ‘Active Imagination as Developed by C-G. Jung (S Monica: Sigo Press, 1981). - - os 25 CAPITULO I ACHEGADA DAS CICATRIZES A questao decisiva para 0 homem é: Esté ele relacionado a algo infinito ou nao?! Eu tinha seis dias de idade quando minha mae mor- reu. Meu nascimento foi sua terceira cesariana. Pouco ‘depois do parto, ela desenvolveu uma infeccéo e morreu de septicemia. Onze dias depois, fui levada do hospital para casa, a fim de ficar com meu pai e minhas duas ir- mas, uma de doze anos e outra de um ano e meio. Uma baba cuidou de mim por nove meses. Depois outras vie- ram e se foram. Meu pai casou-se novamente um més antes de eu completar dois anos de idade. A primeira cena de que me lembro aconteceu alguns anos mais tarde. Estavamos em frente ao armario do cor- redor e minha madrasta insistia para que eu e minha irma vestissemos nossas polainas para sair no frio. Minha irma nao queria usé-las e gritava: “Eu nao preciso te obedecer. Vocé nao é nossa mae de verdade!” Foi a primeira vez que me conscientizei desse fato, e fiquei muda de espanto. Essa declaragaéo prenunciava dificuldades sem fim. A partir dai, fiquei paralisada pelo medo de ser abando- "C.G. Jung, Memories, Dreams, Reflections [Memérias, Sonhos, Reflexdes) ‘Nova York: Random House, 1963), p 27 oe e as meuper Pectatiy, ontén * Para tay, ae NA ¢o, A iconscien, me a © Primeiro go, ig lembrar, Toda de ensada negge ns e Estou de pé no centro da casa de minha infancia, Atrds de mim hé uma Grvore morta com galhos sem folhas. £2008 ¢ Cobras negras nascem de meus antebragos. nada de novo, caso ndo correspondegg, de minha madrasta e As exigéncias de porta que dava acesso a expressiio esp se fechar, mas a porta para 0 poder do j nuou aberta. Através dessa porta veio minha infancia do qual consigo me ] nha experiéncia de orfa estava cond Hoje em dia, entendo esse sonho da seguinte mangj. ra: no centro de meu ser estava a morte de minha mie e eu me sentia seca sem ela. A arvore 6, com n freqiiéncia, um simbolo do espirito eterno que deixa cair suas folhas, morrendo para poder viver. A arvore morta em meu so- nho, como cheguei a conclusao mais tarde, continha a alma de minha mae, e a cobra representava penas a reacdo de minha psique a esse trauma inicial, mas tam- bém, no fim das contas, uma forma de ultrapassé-lo. Simbolicamente, as cobras sAo portadoras de ener- gias poderosas. Essas energias podem ser usadas como veneno ou panacéia. As cobras sao um -exempl anto do_ que ha de mais inferior quanto de mais superior na! hu- Imanidad a destruigéo ou a sabedoria divina. As cobras simbolizam o nivel mais primitivo da vida, assim como® renascimento earessurreigao. Podem também represen: tar a encarnagao dos mortos e, quem sabe, no sonho, fos- sem um receptaculo para 0 espirito de minha mae. Além disso, as as cobras que surgiam estavam ligadas as cicatri- zes que estavam prestes a anunciar-se. Eu viria a com preender essa ligacao anos mais tarde. . Antes de entrar para a escola, com cinco anos, tome! avacina obrigatéria contra variola. Minha madrasta P&” 28 i ico que retir: é diu ao médico que retirasse, também, uma pequena ver- ruga no meu outro braco. Tudo parecia dentro da norma- lidade, até que cicatrizes comecaram a aparecer em meus dois bragos. Ao invés de cicatrizes planas e da cor da pro- pria pele, como era esperado, minhas cicatrizes ficaram vermelhas € elevaram-se mais ou menos meio centime- tro acima da pele. Em termos médicos, tais cicatrizes sao chamadas de queldides, um crescimento auténomo do tecido que forma as cicatrizes. Todos estavam chocados mas a reagao de minha madrasta foi excessiva. Antes mesmo que eu pudesse ter minhas proprias impressdes sobre 0 que estava acontecendo, sua reagéo inundou mi- nha psique porosa. Ela estava claramente angustiada e minhas cicatrizes disformes tornaram-se alvo de enorme atencéo, nao somente na busca de aconselhamento médi- co sobre como reduzi-las ou remové-las. Ela comegou a vigiar todos os meus movimentos, para que eu nado me machucasse de uma forma que criasse outras cicatrizes. Ela também insistia, sem trégua, para que eu escondes- se dos outros as cicatrizes. Comecei a absorver sua ver- gonha das cicatrizes, 0 que s6 aumentou a minha ja en- tranhada vergonha de nao ter minha prépria mae. A perda da minha mie e 0 fato de ter de me relacio- nar com uma madrasta foi 0 que me foi dado, e essa era a realidade que eu devia enfrentar. Como que para refor- car a dolorosa realidade, a psique logo criou uma visdo que me ajudasse a aceita-la. Deitada na cama de minha mae, a cama que minha madrasta tomou para ela, deli- rando com febre alta, eu vi Do outro lado da rua, sentado a uma mesa de cartas, Um cigano mostrando um baralho. quatro anos de idade nao sao dizia 0 se- uu. Vocé tem de 29 Apesar de minha psique de ‘ ter compreendido seu significado, ess@ V guinte: essas sao as cartas que vocé recebe aceitar o destino que the foi detorminado — yivoy mundo sem sua mae e ser criada por onsa madras” Por volta dessa época ganhei um pequono |iy : eu adorava. Estava encantada com a Historia, » ian bém me ajudou a aceitar meu destino, Wee Finhio contava a historia de um pequeno peixe negro « transformava em um lindo peixe dourado. No livro quenas contas douradas e prateadas estavam colada peixe. Elas ficavam em alto-relevo ¢ criavam um ofvitg arredondado que dava para sentir ao tocar suas ptiginns, O peixe negro era uma figura plana no papel, may Apdn se aventurar pelo mundo afora em busca de si mesmo, Wee Fishie Wun ganhava pequenas contas douradas bri. lhantes, substituindo sua cor negra original. Bu amava tocar as pequenas contas. Embora nao estivesse cons. ciente disso naquela época, eu estava me identificando com o processo de transformagao que elas representavam e.com o qual eu tanto ansiava. As contas do pequeno pei xe, ou minha atragao por elas, podem ter também pre. nunciado a chegada das cicatrizes. Uma profunda escuridao me invadiu e foi por mim internalizada. Como resultado, sentia-me totalmente ina- ‘ceitavel e, o que é muito pior, responsavel por braver tudo isso a tona. A culpa que eu sentia teve seu inicio quando eu era ainda muito jovem, pois um tio meu disse, aberta- mente, que era por minha causa que minha mie havia rrido. Apesar de meu pai ter replicado: “Nunca mais diga isso!”, esse comentario instilou em mim uma culpa que teria posteriormente profundo efeito. Conveneida de que havia causado a morte de minha mae, acreditava que viveria o resto de minha vida em um arrependimen- to sem fim. "0 que 0 Lan Wun 1U0 4g i ii SI pryan (Nov "Kira Melisarato, Wee Fishie Wun, ilustrado por John V. SchwarZ York: Cupples & Leon Company, 1945). 30 Quando nossa madrasta chegou com suas malas na porta de casa, ela ofereceu a promessa de carinho e con- forto. Contudo, sua presenga cobria-me de continuas ex- periéncias de abandono. Toda vez que as coisas nao saiam do seu jeito, ela ameagava fazer as malas e ir embora. Eu ficava com tanto medo de que ela fosse embora e de que eu mais uma vez levasse a culpa, que enterrei meus pré- prios desejos e comecei a me moldar aos desejos dela. Tornei-me sua favorita, pois em mim ela encontrou 0 re- flexo externo de sua prépria 6rfa interna. Minha madrasta estava pronta para assumir o papel de madrasta. No fun- do, ela tinha um medo da vida que ampliava meu proprio medo. Ela nao suportava ver suas préprias limitagdes refletidas nos outros, especialmente em mim. Em vez dis- so, queria que eu fosse o que ela havia planejado para si mesma. Despejava sua energia em mim, 0 que me trouxe um senso de propésito, embora nao fosse 0 meu proprio. O ambiente em nossa casa vivia carregado de ten- sao. Seus acessos de raiva iam e vinham, como se ela esti- vesse carregando uma multiplicidade de pecados e temes- se que nosso mau comportamento pudesse revela-los. Seus complexos!’ eram ativados pelos nossos e os nossos, esti- mulados pelos dela. Juntas, experimentamos uma peri- gosa combinacao das for¢as sombrias que foram langadas sobre nos. Eu me encontrava enfeiticada por seu olhar atento, e minha psique tentava integrar a mensagem portentosa de seus olhos. Essa mesma tensio apareceu no consultério médico no dia de minha vacinagao, quan- do minha madrasta pediu que a verruga fosse retirada para que ela nado incomodasse ninguém. Um complexo 6 uma entidade inconsciente, carregada de afetos, compos- ‘a por um nimero de idéias associadas ¢ agrupadas em volta de um nucleo central, sendo esse niicleo uma imagem arquetipica. Pode-se pereeber que um complexo foi ativado quando uma emogao desarranja 0 equilibrio psiquico ¢ Perturba o funcionamento normal do Bu. 31 A atengao de minha i sa madrasta; ja a dela, en voltada Para nog goes daqueles que estavam a sua volta, Tinh Pert nos encaixar em sua verséo das normas coletivann que qualquer coisa que pudesse suscitar a euposta de Vitar vagao de seus amigos. Numa festa, usando 4 desapre com lago de fitas nas costas, se eu dissesse a Vestid, desaprovasse, sentiria um puxao no laco do ven ela A constituigao psicolégica de minha madira i Thava a minha propria, fazendo com que o ar asta espe. “6rfao”4 florescesse com forga total. Uma vez -- tipo do zou um bazar de caridade em prol do nosso tem; re oe dou algumas roupas doadas por pessoas que advai ae encorajando-me e, também, a minha irma mais vel” usd-las. A mensagem era clara: eu deveria ser co wa mulheres das quais ela buscava reconhecimento Ne, e tanto, esses “presentes” de pano vieram com an ae eu tinha agora uma divida para com ela. me Sua presenga intensificava meus sentimentos de menos valia. Ela me comparava constantemente com minhas duas irmas. Quando fazia algo que ela conside- rava tolo, eu era como minha irma mais velha, que nao se impunha como deveria. Quando eu fazia algo inteli- gente, era como minha outra irma, extrovertida, esperta e brilhante. Minha madrasta mostrava-se mais inibida pela agressividade dessa irma do que capaz de domina- la e eu me mirava nela por causa disso. Aceitando o que sugeria minha madrasta, eu projeta- va meus aspectos sombrios e luminosos em minhas irmas. Vivia sob a sombra de ambas, porém minha auto-image? encaixava-se melhor com a menos extrovertida. Sent@ “The Orphan 181-194 shild (LS em meu artigo, no de 1983): inner C 44Uma versio anterior desse material aparece\ Archetype”, Psychological Perspectives, 14, n° 1 (Outo! reimpresso por Jeremiah Abrams (ed.), Reclaiming the I Angeles: Jeremy P. Tarcher, Inc., 1990), pp. 87-97. $2 ciumes de minha irma mais admirada, mas estava ligada emocionalmente mais velha. A atengao negativa que ela suscitava era, apesar de tudo, atengao, e eu adotei muitos de seus tragos. Quando minha madrasta a criticava, eu me sentia aliviada por ela direcionar sua raiva e frustra- ao a outra pessoa. Minha posicao subserviente tornou-se habitual, o que se repetiu nos relacionamentos futuros. Suprimi minha individualidade criativa em respeito as demandas de poder e dominio de minha madrasta. Minha irma mais velha nao conseguia sobreviver dentro de casa com o tormento pelo qual estava passan- do. Ela foi embora muitos anos depois que nossa madras- ta chegou e, com a ajuda de meu pai, foi viver com uma tia. Com isso, passei a ser 0 alvo da agressao de minha madrasta. Minha outra irma, um ano e meio mais velha que eu, sobrevivia muito bem por causa de sua extro- versao. Ela se expressava abertamente, negando-se a fa- zer 0 que nao achava correto. Meu pai era apaixonado por ela. Eu, também. Diziam que ela tinha “puxado” nos- sa verdadeira mae, 0 que a elevou ainda mais em meu conceito. Porém, isso era uma fonte de dores enormes para mim. Eu queria ser a favorita de meu pai. Uma brincadeira que eu fazia com essa irma quando tinha mais ou menos oito ou nove anos de idade trouxe a vida minha versdo particular do complexo de érfao. Esse jogo revelava nossa identificagao com os lados opostos da dinamica do 6rfao. Antes de irmos para a cama 4 noite, participavamos de um drama ritualizado em nosso quar- to escuro. Eu saia do quarto e batia na porta. Minha irma abria a porta e me encontrava em um estado miseravel. Ela ficava com pena de mim, convidava-me para entrar, perguntava meu nome e de onde eu vinha. Eu lhe dizia que era vitiva e que meu marido havia morrido na guer- ra. Eu havia ficado sem casa e arrasada. Ela me convida- va para sentar a uma mesa imaginaria e me servia uma 33 generosa refeicao. Eu nunca nate _ ee dels, cias como as que me foram servidas. Eu caira finalment,, nas m4os de uma senhora benevolente e digna, que me concedia sustento e carinho, a ace) ‘a deveria mostrar gratidéo infinita. Durante ° dia, a divida era cobrada, Eu ficava sob o poder de minha irma. Quando ela inventaya historias para brincarmos, eu tinha de representar 0 pa. pel que ela escolhesse € seguir o enredo que ela ia reye, lando aos poucos. : Minha irma tornou-se a mae a qual eu podia perten. cer, Ela se agarrava as suas idéias de grandeza para pre. encher 0 vazio deixado pela morte de nossa mie. O as. pecto sofredor do érfao perdido cabia a mim. Eu vivia 0 Jado inferior dos opostos do érfao, ficando 0 lado positivo (autonomia € independéncia) relegado ao inconsciente, Eu achava que ndo tinha o direito de estar viva. A im- presséo que eu tinha (embora nao em um nivel conscien- te) era a de que eu nao deveria estar aqui; minha mae, sim. O que quer dizer que eu vivia no lugar dela. Sentia que nunca estaria a altura da imagem que eu fazia dela, nem poderia substitui-la de maneira satisfatoria. Minha relacao com meu pai era 0 unico lugar onde eu me sentia recebida e aceita, em virtude de nosso sofri- mento mituo. Eu sentia que ele era impotente perante a forca dominadora de minha madrasta e, quando ela era dura com ele, minha reagéo era proteger seus sentimen- tos delicados como forma de me proteger de meus pré- prios sentimentos. Mesmo quando era crianga, eu tenta- va protegé-lo das forcas sombrias que nenhum de nés conseguia controlar — do lado de fora, a ira de minha madrasta e, internamente, a depressao e 0 luto dele. Es- tavamos ambos paralisados pela escuridao que nos ro- deava. Embora nao fosse capaz de fazer uma mudan¢a substancial ¢m nossa situagdo, ele era solidério com mi- nha triste condicao, Variag vezes trazia presentes para 34 4

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