CAOS JamesGleick

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JAMES GLEICK CAQS A CRIACAO DE UMA NOVA CIENCIA Tradugao Waltensir Dutra Revisor Técnico Hélio Fernando Verona de Resende Doutorando em Fisica pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Fisicas Editora Campus ain cnace — Making New Sconce Capyrgie© 1087 by James Glock © 1000, Ettora Campus Lida, Todos ot doles resaraos epotogdos pola Ll $968 da 14/1279, Nentura parte Goste le, sum eutorzagao Prva po ero o ‘eiora, poder ser reproduea cu transmis slam quis rem 08 Tnelcs erprepados: satis, mecanicoe, latg acon, ravarso Projate Graco attora Campus Lida. (Cualada rtomacionl a sev 3oauor# do ltr nacional. "ium Barao oe 83 Re Carpio “oletone: (21) 298 6443 Plan: (021) 32806 EDCP BR Fax (21) 299 5083 20081 lode Janata Ra Bras Ender Tolgrifea: CAMPUSRIO Isat 85. 7001-806-1 (so gina: ISBN 0870-81176-5, nn Pepuim nc, Canes) Frna Cotalogrsfea Cip-seaa cs Siecate Nacional soe Ediores de Untos, Pl Glick, James {G4eac “Caos: a erarto de uma nova citeia/ James Gleick; Tradugo de Waltensr Duta Med — 4 od. — Flo de Janeiro: Campa, 101 “TradugSo de: Chaos — Meking 2 new cinco, 1SBN'85-701.594-1 1. Comportanento eadtce ros stones. 2, iénea | Tho. eotss 0 — $00 Gou=ss wore 8765 (Cam mes ene) ‘Cortona SANTUARIO "Seances Se CmeAsOreS) O Efeito Borboleta Os fisicos acham que tudo 0 que temos de fazer é dizer: estas sao as condigdes, o que acontece em seguida? — RICHARD P. FEYNMAN to nuvens. Os ventos varriam uma terra to lisa quanto 0 vidro. A noite nao cafa nunca, ¢ 0 outono nunca dava lu- gar ao inverno. Nunca chovia. As condicdes atmosféricas simuladas' no novo computador eletrOnico de Edward Lorenz va- riavam de maneira lenta mas segura, atravessando um constante meio de estacaoseca, como se o mundo se tivesse transformado em Ca- melot, ou numa versio particularmente amena do sul da California. Pela janela, Lorenz via o tempo que realmente fazia do lado de fora, acerragio de principio de manhaarrastando-se pelo campus do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, ou as nuvens baixas deslizando sobre os telhados, vindas do Atlantico. Cerragdo e nu- ‘ens nuncasurgiam no modelo do seu computador. A maquina, um Royal McBee, cra uma floresta de ios e valvulas eletronicas que ocu- pava uma parte desajeitadamente grande do escrit6rio de Lorenz, fazia um barulho surpreendente ¢ iritante, ¢ enguicava quase to- das as semanas. Nao tinhaa velocidade nem a memoria necessarias auma simulagao realista da atmosfera ¢ dos oceanos terrestres. N30 ‘obstante, Lorenz criou um tempoatmosférico de brinquedo em 1960 que conseguiu fascinar seus colegas. Acadaminutoa maquina mar- cava passagem de um dia, imprimindo uma série de ntimeros nu- ma pagina. Quem soubesse 1é-los, veria um vento predominante- ‘mente Oeste passar ora para norte, ora parasul, ¢ outra vez para norte, Ciclones digitados giravam lentamente em volta de um globo idea- O sol castigava, percorrendo um céu que nunca tinha vis- lizado. Quando a noticia se espalhou pelo departamento, os outros meteorologistas passaram ase reunir em volta da maquina com alu- nos de pos-graduacdo, fazendo apostas sobre como se apresenta- ria, em seguida, 0 tempo atmosférico de Lorenz, onde, de alguma forma, nada se repetia. Lorenz gostava do tempo — 0 que nao écondigao necessaria um pesquisador meteoroldgico, Gostava da sua instabilidade. Apre- ciava as configuracdes que se formam e desaparecem na atmosfe: ra, familias de redemoinhos e ciclones, obedecendo sempre a re- gras matematicas, porém nunca se repetindo. Quando olhava para as nuvens, acreditava ver nelas certa estrutura, Outrora, ele tinha receado que estudar a ciéncia das condi¢des meteoroldgicas fosse ‘como mexer numa caixa de surpresas com uma chave de parafusos. Agora, ficava imaginando se a ciéncia seria realmente capaz de des- vendar a magica. O tempo tinha um sabor que nao se podia expressar falando de médias. A temperatura maxima do dia em Cambridge, Massachusetts, €em média 25° Cem junho. O numero de dias chu- vosos em Riad, na Arabia Saudita, é em média de 10 por ano. Isso cram estatisticas. A esséncia estava na maneira pela qual as confi- guragdes atmosféricas se modificavam com o passar do tempo, ¢ €ra isso 0 que Lorenz conseguia captar com 0 Royal McBee. Ele era o deus desse universo de maquina, livre para escolher as leis da natureza que quisesse. Depois de certo ntimero de tenta- tivas ¢ erros que nada tinham de divino, cle escotheu 12. Eram re- gras numéricas? — equacdes que expressavam as relagoes entre temperatura e pressdo, entre pressao ¢ velocidade do vento, Lorenz compreendeu que estava colocando em pratica as leis de Newton, ferramentas adequadas para um deus mecanico que podia criar um. mundo ¢ colocé-lo em funcionamento para cternidade. Gracas a0 determinismo da lei fisica, no seriam necessirias novas interven- oes. Os que faziam tais modelos tinham como certo que, do pre- sente para o futuro, as Ieis do movimento proporcionayam uma pon- te de certeza matemdtica. Compreendendo as leis, compreendia- se ouniverso, Era essa. filosofia por tras da criagao de um modelo de tempo atmosférico num computador. Realmente, se Os filsofos do século XVIII imaginassem o seu ctiador como um no-intervencionista benigno, satisfeito em ficar nos bastidores, poderian ter imaginado alguém como Lorenz. Ele cra um meteorologista estranho. Tinha 0 rosto marcado de um fa- zendeiro ianque, com ollhos surpreendemtes, brilhantes, que lhe da- vam a aparéncia de estar rindo mesmo quando nao estava. Raramente falava de si, ou do seu trabalho, mas ouvia, Perdia-se, com freqiién- cia, num reino de calculos ou sonhos que era inacessivel 40s cole- 10 gas, Scus amigos mais proximos achavam que Lorenz passava boa parte do tempo num remoto espaco sideral. Quando menino, fora um apaixonado do tempo, a ponto de manter tabelas bastante exatas das temperaturas maxima ¢ minima durante 0 dia, acusadas pelo termometro do lado de fora da casa dos pais, em West Hartford, Connecticut. Passava, porém, mais tem- po dentro de casa, brincando com livros de problemas matemati- cos do que olhando o termémetro. Por vezes, resolvia os proble- mas junto como pai. Certa vez os dois depararam com um proble- ma particularmente dificil que se revelou insoltivel. Isso era aceita- vel, disse-Ihe o pai: sempre se pode resolver um problema provan- do que nao ba solucdo. Lorenz gostou disso, como sempre gostava da pureza da matematica,* € quando se formou no Dartmouth Col- lege, em 1938, achava que a matemitica era asua vocacdo. As cit- cunstincias interferiram, porém, sob a forma da Segunda Guerra Mundial, que o levou atrabalhar como meteorologista paraa Forca Aérea. Depois da guerra, Lorenz resolveu continuar na meteorolo- gia, investigando-Ihe a teoria, dando um pouco mais de destaque Amatemitica. Adquitiu renome publicando trabalhos sobre proble- mas ortodoxos, como circulagao geral daatmosfera. Enquantoisso, continuava a pensar na previsdo do tempo. ¥ Paraamaioria dos meteorologistas sérios, a previsdondoche- gavaaser uma ciéneia. Era uma coisa mais instintiva ou pratica, fei- tapor técnicos que precisavam de certa capacidade intuitiva para Jer 0 tempo dodia seguinte nos instrumentos e nas nuvens. Erauma adivinhacao. Em centros como 0 M.LT.,ameteorologia preferia os problemas que tinham solugdes. Lorenz compreendeu melhor do que ninguém a confusao que havia na previsao do tempo, da qual tinha experiéncia direta, trabalhando pata pilotos militares. Conti- nuava, porém, interessado no problema —um interesse matemitico. Nao s6 os meteorologistas desprezavam a previsio, como tam- bém, na década de 60, praticamente todos 0s cientistas sérios des- confiavam dos computadores. Aquelas calculadoras incrementadas nao pareciam instrumentos para aciéncia te6rica. Por isso, os mo- delos meteorolégicos numéricos eram uma espécie de problema bastard. Seu momento, porém, tinha chegado. A previsdo do tempo esperava hd dois séculos por uma maquina que pudesse repetir mi- Ihares de céleulos, muitas vezes pela forga bruta. S6 um computa dor poderia explorar a promessa newtoniana de que o mundo se desdobrava de maneira determinista, tao governadio porleis quan- to 0 planetas, tio previsivel quanto os eclipses ¢ as marés. Teori- camente, o computador permitia aos meteorologistas fazer aquilo que 0s astrnomos vinham fuzendo com lapis ¢ régua de c4lculo: prever o futuro do universoa partir de suas condigées iniciais,e as, I leis fisicas que guiama sua evolugao. As equagoes que descreviam © movimento do ar € da 4gua eram tao bem conhecidas quanto as que descreviam o movimento dos planctas. Os astronomos no al- cangarama perfeicio, e nuncaa alcancarao, nao num sistema solar as voltas com as gravidades de nove planetas, dezenas de luas ¢ mi- Ihares de asterdides, mas os c4lculos dos movimentos planetarios eram tio precisos que as pessoas se esqueciam de que eram previ- ses. Quando um astronomo dizia: “O cometa Halley voltara por aqui dentro de 76 anos”, isso parecia um fato, ¢ njo uma profecia. ‘A previsio numérica determinista calculava rotas precisas para na- ves espaciais ¢ misseis. Por que ndo para os ventos ¢ as nuvens? O tempo era muitissimo mais complicado, mas era governa- do pelas mesmas leis, Talvez um computador suficientemente po- tente pudesse constituir-se na inteligéncia suprema imaginada por Laplace, 0 fil6sofo matematico do século XVIIT que, mais do que ninguém, foi atacado pela febre newtoniana: “Essa inteligencia’ es- creveu ele, “abarcaria* na mesma formula os movimentos dos maiores corpos do universo € 0s do menor atomo; para ela, nada seria incerto, ¢ o futuro, como o passadlo, estaria presente aos seus olhos.” Nestes dias da relatividade de Einstein ¢ da indeterminacao de Heisenberg, Laplace chega quase a parecer ridiculo em seu oti- mismo, mas grande parte da ciéncia moderna vem perseguindo 0 seu sonho. Implicitamente, a misao de muitos cientistas do sécu- lo XX — biGlogos, neurologistas, economistas — tem sido decom- por o universo em seus dtomos mais simples, que obedegam a re- gras cientificas, Em todas essas ciéncias, uma espécie de determi- nismo newtoniano tem influido. Os pais da computagao moderna tiveram sempre Laplace em mente, e a historia do computador ea historia da previsao do tempo estiveram ligadas desde queJohn von Neumann inventou suas primeiras maquinas no Instituto de Estu- dos Avangados, em Princeton, Nova Jersey, na década de 50. Von Neumann reconhecia que a criagao de um modelo de previsdo do tempo podia ser a tarefa ideal do computador. Havia sempre uma pequena ressalva, tao pequena que os cien- tistas praticos em geral se esqueciam da sua presenca ali, num can- to de suas filosofias, como uma conta a ser paga. AS mensuracdes nunca podiam ser perfeitas. Os cientistas que marchavamsob a ban- deira de Newton na realidade agitavam também uma outra bandei- ra, que dizia algo mais ou menos assim: Dado um conhecimento aproximado das condicdes iniciais de um sistema ¢ um entendi- mento da lei natural, pode-se calcular 0 comportamento aproxi- mado desse sistema. Tal suposi¢ao estava no coragio filoséfico da ciéncia, Como um te6rico gostava de dizer aos seus alunos: “A idéia bisica da ciéncia ocidental € que nao temos de levar em contaa que- 12 dade uma folha em algum planeta de outra galaxia quando estamos tentando explicar 0 movimento de uma bola de bilhar numa mesa de bilhar, na terra, Influéncias muito pequenas podem ser postas de lado. Hé uma convergéncia na maneira pela qual as coisas fun- cionam, e influéncias arbitrariamente pequenas nao crescem a ponto. de ter efeitos arbitrariamente grandes.” Classicamente, a crenca na aproximagao € na convergéncia estava bem justificada. Funciona: va. Um pequeno erro na fixacao da posicio do cometa Halley em 1910 provocaria apenas um pequeno erro na previsao de sua che- gacla em 1986, € o erro continuaria sendo pequeno por milhdes de anos futuros. Os computadores basciam-se na mesma suposi¢ao, ao guiarem naves espaciais: um insumo aproximadamente exato da uum resultado aproximadamente exato. As previsOes econdmicas baseiam-se nessa suposi¢zo, embora seu sucesso seja menos eviden- te. Eo mesmo fizeram os pioneiros na previsio global do tempo. ‘Com o seu computador primitivo, Lorenz tinha reduzido otem- po atmosférico aos elementos essenciais. Nao obstante, linha por linha, os Ventos eas temperaturas dos resultados impressos pelo seu ‘computador pareciam comportar-se de uma maneiraterrena reco- nhecivel. Eles correspondiam a sua querida intuigao sobre o tem- o, Sua sensacdo de que ele se repetia, revelando padroes conheci- dos, a pressio aumentando ¢ caindo, as correntes de ar oscilando entre norte e sul. Descobriu que quando uma linha passava do alto para baixo sem um salto, ocorreriaem seguida um salto duplo, ¢ dis- se: “E esse 0 tipo de regra que um meteorologista pode usar." Mas as repeticdes nunca eram perfeitamente iguais. Havia um padrio, com alteraces. Uma desordem ordenada. Para tornar evidentes os padrdes, Lorenz ctiou um tipo de gra- fico primitivo. Em lugar de imprimir as séries habituais de digitos, fazia a maquina imprimir certo ntimero de espagos em branco, se- guidos da letra a. Tomava uma variavel — talvez a diregao da cor- rente de ar. Gradualmente, os “as” deslizavam pelo rolo de papel, oscilando de um lado para outro numa linha ondulada, formando uma longa série de morros¢ vales que representavam.a maneira pela qual o vento oeste oscilaria para norte e sul, através do continente. Aordem que havia nisso, os ciclos identificaveis repetindo-se sem nunca ser precisamente iguais duas vezes, tinham um fascinio hip- notico, O sistema parecia estar revelando, lentamente, 05 seus se- gredos aos olhos do meteorologista. Certo dia, no inverno de 1961, querendo examinar mais deta- thadamente uma sequéncia, Lorenz tomou um atalho. Em lugar de refazer toua a sequéncia, comecou pelo meio, Para dar Amaquina suas condicGes iniciais, digitou os nameros diretamente da impre: sio anterior. Depois deu uma volta pelo corredor, para fugir do ba- 3 rulho e tomar um café. Ao voltar, uma hora depois, viu algo inespe- rado, algo que plantou a semente de uma nova ciéncia. sa nova seqiléncia deveria ter sido uma repeticao exata da anterior, Lorenz tinha copiado os nuimeros na maquina, pessoalmen- te, O programa ndo fora modificado, Nao obstante, ao olhar paraa nova impressdo, Lorenz viu seu tempo divergindo tio rapidamen- te do padrio da tiltima seqiiéncia que, em poucos meses, todaa se- melhanga desaparecera. Olhou para uma série de nimeros, depois novamente paraa outra. Bem podetia ter escolhido, aleatoriamen- te, tirando de um chapéu, duas condigdes meteorolégicas, Seu pri- meiro pensamento foi que uma valvula eletrOnica tivesse queimado. De repente, percebeu a verdade.” Nao havia enguico. O pro- blema estava nos nameros que tinha digitado. Na memoria do com- putador, seis casas decimais estavam armazenadas: 0,506127. Naim- pressio, para poupar espaco, apenas trés apareciam: 0,506. Lorenz tinha colocado na maquina numeros mais curtos, arredondados, supondo quea diferenga— um para mil — nao tinha importancia. Era uma suposigdo sensata. Se um satélite atmosférico pudes- se ler a temperatura dos mares com uma variacao de um para mil, seus operadores podiam considerar-se felizes. O Royal McBee de Lorenz estava implementando o programa clissico, Usou um siste- ma de equa¢des puramente determinista. Dado um determinado ponto de partida, as condigdes meteorol6gicas se desenvolveriam ‘exatamente da mesma maneira, a cada vez. Dado um ponto de par- tida ligeiramente diferente, o tempo se desdobraria de uma manei ra ligeiramente diferente. Um pequeno erro numérico eracomo uma pequena brisa passageira — sem chivida as pequenas brisas desa- pareciam ou se neutralizavam mutuamente antes que pudessem al- terar aspectos importantes, em grande escala, do tempo. Mas, no sistema especifico de equagdes de Lorenz, os pequenos erros mostravam-se catastr6ficos.* Resolveu examinar mais atentamente a maneira pela qual duas seqiiéncias de tempo quase idénticas se distinguiam. Copiou uma das linhas onduladas numa transparéncia ¢ a colocou sobre a ou- tra, para ver como divergiam. Primeito, duas curvas ascendentes equivaliam-se, detalhe por detalhe. Depois, uma linha comegava a ficar ligeiramente para tris. Quando as duas seqiiéncias chegavam: curva ascendente seguinte, clas estavam claramente defasadas. Na terceira ou quarta curva ascendente, toda semelhanga tinha desaparecido. Era apenas uma falha de um computador desajeitado. Lorenz, poderia ter suposto que havia alguma coisa errada com aquela ma- quina, ou com aquele modelo — provavelmente devia ter suposto. 4 I ll I) i i Wt \) \ Ul EM (COMO DOIS PADROES DE TEMPO DIVERGEM — Partindo quase do mes- ‘mo ponto, Edward Lorenz viu seu computador de previsdo do tempo produzir padrées quesedistanciavam cada vezmais, até que todasemelhancadesapa- recesse. (Das saidas impressas de Lorenz, de 1961). Nao era como sc ele tivesse misturado s6dio com cloro e conseguido ouro. Mas, com sua intuicdo matematica que os colegas s6 come- ¢ariam a compreender mais tarde, Lorenz teve um sobressalto: al- ‘guma coisa estava errada, do ponto de vista filos6fico. As consequén- cias priticas disso podiam ser tremendas. Embora suas equacoes fossem par6dias grosseiras das condiges meteorolégicas na terra, tinha a convicgao de que encerravam a esséncia da atmosfera real. Naquele primeiro dia,? ele achou que a previsao do tempo a lon- go prazo estava condenada. “Certamente, de qualquer modo nio vinhamos tendo muito sucesso nisso, ¢ agora tinhamos a desculpa’, disse ele." “Creio que uma das raz6es pelas quais as pessoas achavam ser possivel prever tempo com tanta antecedéncia ¢ a existéncia de fendmenos fisi- os reais para os quais se podem fazer excelentes previsdes, como ‘os eclipses (nos quais as dinamicas do sol, da lua e da terra sao bas- tante complicadas) ¢ como as marés ocednicas, Nunca pensei nas tabuas de marés como previsdes — para mim, eram fatos consuma- dos — mas é claro que sao previsdes. As marés sao na realidade t@o complicadas quanto a atmosfera. Ambas tém componentes perid- dicos — pode-se prever que o proximo verao sera mais quente do que este inverno. Com 0 tempo, porém, tomamosaatitude de que j4sabemos disso. Comas marés, 0 que nos interessaé a parte previ- sivel, ea parte imprevisivel € pequena, a menos que haja uma tempestade. 15 “As pessoas comuns, vendo que podemos preveras marés com, alguns meses de antecedéncia, perguntam por que no podemos fazer 0 mesmo com a atmosfera, trata-se apenas de um sistema de fluidos diferentes, as leis sao quase igualmente complicadas. Mas compreendi que qualquer sistema fisico que se comportasse de ma- neira nao-periddica seria imprevisivel”” [As décadas de 50 € 60 foram anos de um otimismo pouco realista'' em relagao a previsao do tempo. Jornais ¢ revistas estavam esperangosos coma ciéncia meteoroldgica, nao apenas com a pre- ‘visdo, mas com a modificagdo eo controle do tempo. Duas tecno- logias amadureciam ao mesmo tempo, o computador digital € 0 sa- télite espacial, Um programa internacional estavasendo preparado para utilizacao de ambas, o Programa de Pesquisa da Atmosfera Global. Tinha-se a idéia de que a sociedade humana iria libertar-se da desordem meteorolégica e dominé-la, em lugar de ser sua viti- ma. Cupulas geodésicas cobririam os milharais. Avides pulveriza- riam as nuvens, Os cientistas aprenderiama fazer chover € a parar achuya. (© pai dessa idéia popular foi Von Neumann, que construiuseu primeiro computador coma intencio precisa de, entre outras coi sas, controlar o tempo, Cercou-se de meteorologistas ¢ fez, para a comunidade dos fisicos, em geral, emocionantes palestrassobreseus planos. Tinha uma razdo matemitica especifica para esse otimismo. Reconhecia que um sistema dinamico complicado podia ter pon- tos de instabilidade — pontos criticos nos quais um pequeno em- purro pode ter grandes conseqéncias, como acontece com uma. bola equilibrada no alto de um morro. Com o computador fun- cionando, Von Neumann imaginava"? que os cientistas calculariam as equacdes do movimento dos fluidos para os dias seguintes. De- pois, uma comissao central de metcorologistas enviariaavides pa- ra espalhar cortinas de fumaga ou pulverizar as nuvens, para levar o tempo as condigdes desejadas. Von Neumann tinha, porém, ¢s- quecido a possibilidade de caos, com a instabilidade em fodos os pontos Na década de 80 uma enorme ¢ cara burocracia's dedicava-se Arealizacao da missdo de Von Neumann, ou pelo menos sua parte relacionada com a previsdo. Os mais importantes meteorologistas americanos operavam num edificio simples, em formato de cubo, numa pequena localidade de Maryland, perto da rodovia de con- torno de Washington, com antenas de radar ¢ radio no telhado. O supercomputador que usavam era um modelo que s6 no espirito fundamental se assemelhava ao de Lorenz. Enquanto 0 Royal McBee era capaz.de realizar 60 multiplicagdes por segundo, a velocidade 16 de um Control Data Cyber 205 era medida em megaflops, milhdes de operaces em pontos flutuantes por segundo. Enquanto Lorenz, se satisfazia com 12 equacdes, omodelo global moderno calculava, sistemas de 500.000 equacdes. Esse modelo compreendia a maneira pela qual a umidade aumentava ou diminufa o calor do ar quando se condensavae evaporava. Os ventos digitais eram modelados por cadeias de montanhas digitais. Torrentes de dados chegavam a ca- da hora de todas as nagdes do globo, vindas de avides, satélites ¢ navios. O Centro Meteorol6gico Nacional produzia as segundas me- Ihores previs6es do mundo. ‘As primeiras vinham de Reading, na Inglaterra, uma pequena cidade universitiria a uma hora de Londres. O Centro Europeu de Previsao do Tempo a Médio Prazo ocupava um modesto edificio a sombra de arvores, do estilo geral das NagOes Unidas, de uma ar- quitetura de tijolose vidros, decorado com doagdes vindas de muitas terras. Tinha sido construfdo no auge do espirito de unio européia do Mercado Comum, quando a maioria das nagdes da Europa oci dental resolveram combinar seus talentos € recursos para a causa da previsio do tempo, Os europeusatribuiam o seu sucesso aequipe jovem e rotativa — nio havia funcionarios —€ ao seu supercom- putador Cray, que parecia estar sefnpre um modelo’ frente do com- putador americano correspondente. ‘A previsio do tempo foi o comego, mas estava longe de sero fim, da utilizacao dos computadores para formular sistemas com- plexos. As mesmas técnicas serviam a muitos tipos de cientistas fi- sicos e cientistas sociais que alimentavam esperangas de fazer pre~ visGes sobre tudo, desde os fluxos de fluidos em pequena escala, de interesse dos projetistas de hélices, até os enormes fluxos finan- ceiros, de interesse dos economistas. Realmente, nas décadas de 70 80a previsio econémica pelo computador tinha uma semelhan- ¢a real coma previsdo de tempo global. Os modelos processavam teias complicadas, e um tanto arbitririas, de equacdes, que preten- diam transformar as medicdes das condigoes iniciais — pressdoat- mosférica ou oferta de dinheiro— numa simulagao de tendéncias futuras. Os programadores tinham esperangas de que os resultados nao fossem demasiado deformados pelas muitas ¢ inevitaveis sim- plificagdes, Se um modelo fazia alguma coisa flagrantemente estra- nha — inundasse o Sara ou triplicasse as taxas de juros —, 0s pro- gramadores reviam as equacGes para colocar o resultado em har- monia com as expectativas. Na pratica, 0s modelos econométricos revelavam-se desanimadoramente cegos sobre o futuro, mas mui- tagente que deveria ter mais senso agia como se acreditasse nos re- sultados. Previsdes de crescimento econémico ou de desemprego ram apresentadas com uma precisio implicita de duas ou trés ca- 7 sas decimais.! Governos e instituigdes financeiras pagavam por ¢s- sas previsdes ¢ agiam dle acorco com elas, talvez por necessidade ou falta de coisa melhor. Presumivelmente, sabiam que variaveis ‘como “otimismo do consumidor” nao eram tio mensuriveis quanto a umidade” que equacoes diferencias perfeitas ainda nao tinham sido escritas para o movimento da politica ¢ da moda. Poucos, po- rém, davam-se conta de como era fragil o proprio processo de criar modelos de fluxos nos computadores, mesmo quando os dados eram razoavelmente fidedignos c as leis eram puramente fisicas, co- ‘mo na previsao do tempo. ‘A criago de modelos no computador tinha, na verdade, con- seguido transformara meteorologia, de uma arte, numa ciéncia, As avaliacdes do Centro Europeu indicavam que o mundo tinha pou- pado bilhdes de délares anualmente com previsGes que, estatisti- camente, eram melhores do que nada. Mas, além de dois ou trés dias, as melhores previsdes do mundo eram especulativas, calém de seis, ou sete, nada valiam. A tazao disso ert o Efeito Borboleta. * Para pequenas condi- ‘es meteorolégicas — ec para um meteorologista global, pequeno pode significar tempestades ¢ nevascas —. qualquer previsao per- deo valor rapidamente. Os erros eas incertezas se multiplicam, for- mando um efeito de cascata ascendente através de uma cadeia de aspectos turbulentos, que vo dos demdnios da pocira ¢ tormen- tas até redemoinhos continentais que s6 os satélites conseguem ver. Os modernos modelos das condi¢des meteorolégicas operam ‘com uma rede de pontos da ordem de 96 km de distincia, ¢ mes- mo assim, alguns dados de partida tém de ser supostos, ja que as estacdes de terra € 0s satélites naio podem ver tudo. Mas suponha- ‘mos que a terra pudesse ser coberta com sensores colocados a 30 centimetros uns dos outros, elevando-se a intervalos de 30 centi- metros até 0 alto da atmosfera, Suponhamos que cada sensor for- nega leituras perfeitamente precisas de temperatura, pressio, umi- dade ¢ qualquer outra quantidade que o meteorologista possa de- sejar. Exatamente ao meio-dia um computador infinitamente potente recebe todos os dados e calcula o que acontecera em cada ponto as 12:01, depois 12:02, depois 12:03... Ainda assim, 0 computador nao sera capaz. de prever se Prin- ceton, em Nova Jersey, terd sol ou chuva dentro de um dia ou de um més. Ao meio-dia os espacos entre os sensores ocultario osci lagdes que o computador nao conheceri, pequenos desvios dame: dia, As 12:01 essas oscilagdes ja terdo criado pequenos erros a 30 centimetros de distancia. Em pouco tempo os erros se terao multi- plicado na escala de 10 x 30, e assim por diante, até o tamanho do globo. 18 Até mesmo para os meteorologistas experientes, tudo isso se opoe dintuigao. Um dos mais antigos amigos de Lorenz era Robert White, também meteorologista do M.LT., que mais tarde seria che- fe do Departamento Oceanico ¢ Atmosférico Nacional. Lorenz falou- Ihe do Efeito Borboleta e o que, na sua opinido, ele significava para aprevisio do tempo a longo prazo. White deua resposta de Von Neu- mann, ‘Que previsdo, que nada’, disse ele."” “Isso é 0 controle do tempo." Sua idéia era que as pequenas modificagSes, perfeitamen- te dentro da capacidade humana, podiam causar desejadas mudan- gas em grande escala. Lorenz viu as coisas de maneira diferente. Sim, era possivel mo- dificar o tempo. Podia-se leva-lo a fazer alguma coisa diferente do que ele fatia, se no houvesse interferéncia. Mas, feito isso, no sa- beriamos entao 0 que teria acontecido. Seria como dar mais uma baralhadanum baralho jé bem misturado. Sabemos que isso modi- ficard a nossa sorte, mas no sabemos se para melhor, ou para pior. A descoberta de Lorenz foi um acaso, mais um numa linha de acasos que remonta a Arquimedes ¢ sua tina de banho, Lorenz nao era do tipo de sair gritando Eureka. O acaso feliz. apenas 0 levou a0 ponto em que sempre estivera, Estava pronto para explorar as consequiéncias da sua descoberta, desenvolvendo 0 significado que ela deveria ter para o entendimento, pela ciéncia, dos fluxos de to- dos os tipos de fluidos. Se tivesse ficado apenas no Efeito Borboleta, uma imagem da previsibilidade substituida pelo simples acaso, Lorenz teria produ- zido apenas uma noticia muito ruim. Mas ele viu algo mais do que aleatoriedade em seu modelo do tempo. Percebeu nele uma bela estrutura geométrica, a ordem mascarada de aleatoriedade, Era um matemitico vestido de meteorologista, afinal de contas, ecomecou entaoa levar uma vida dupla. Escrevia trabalhos que eram pura me- teorologia. Mas escrevia também trabalhos que eram pura matemd- tica, com uma dose levemente enganosa de conversa meteorolégi- ca como preficio. Os prefacios acabaram por desaparecer totalmente. Sua atengio voltou-se cada vez mais paraa matemitica de sis- temas que nunca encontravam um regime estaciondrio, sistemas que quase se repetiam, mas nunca exatamente. Todos sabiam que otem- poatmosférico era um desses sistemas —aperi6dico, A natureza pos- ‘sui muitos outros: populagdes animais que aumentam ¢ diminuem quase regularmente, epidemias que vao ¢ vém em tantalizantes €s- quemas quase regulares. Se o tempo chegasse alguma vez a um re- gime exatamente como o atingido antes, em que todos os ventos enuvens fossem os mesmos, entio presumivelmente ele se repeti- ria para sempre € o problema da previsao se tornaria trivial. 19 Lorenz viu que devia haver um elo'$ entre a recusa do tempo em repetir-se ea incapacidade dos metcorologistas de prevé-lo — um elo entre aperiodicidade e imprevisibilidade. Nao era facil en- contrar equacdes simples que produzissem a aperiodicidade que ele buscava. A principio seu computador tendia a fechar-se em ci- clos repetitives. Lorenz, porém, tentou diferentes tipos de compli- cagOcs menores, ¢ finalmente conseguiu, quando usou uma equa- 40 que variava a quantidade de calor de leste para oeste, corres- pondendo a uma variagio no mundo real entrea maneira pela qual 0 sol aquece o litoral leste da América do Norte, por exemplo, e a maneira pela qual aquece 0 oceano Atlantico. A repetic¢ao desapareceu O Efeito Borboleta nao era um acidente- era necessario. Supo- nhamos que as pequenas variagoes permanecessem pequenas, ta- ciocinou ele, em lugar de se avolumarem pelo sistema. Entio, quan- do 0 tempo se aproximasse arbitrariamente de um regime pelo qual ja tinha passado antes, permaneceria arbitrariamente proximo dos padroes seguintes, Para finalidades praticas, os ciclos seriam previ- siveis — eacabariam perdendo o interesse. Para produzir 0 rico re- pertorio do tempo real da terra, a sua bela multiplicidade, dificil- mente poderfamos desejaralguma coisa melhor do que um Efeito Borboleta. O Efeito Borboleta recebeu um nome técnico: dependéncia sensivel das condig6es iniciais. E a dependéncia sensivel das con- digdes iniciais nao era uma nogio totalmente nova. Tinha lugar no folclore: “Por falta de wm prego, perdeu-se a ferradura; Por falta de uma ferradura, perdeu-se 0 cavalo; Por falta do cavalo, perdeu-se 0 cavaleiro; Por falta do cavaleiro, perdeu-se a batalba; Por falta da batalha, perdew-se 0 reino!" Sabe-se muito bem, tanto na ciéncia como na vida, que uma cadeia de acontecimentos pode ter um ponto de crise queaumen- te pequenas mudangas. Mas 0 caos significava que tais pontos esta- vam por toda parte. Eram generalizados. Em sistemas como o tem- po, a dependéncia sensivel das condi¢Ges iniciais era conseqiién- cia inevitavel da maneira pela qual as pequenas escalas se combi nayam com as grandes. Seus colegas ficaram espantados por ter Lorenz imitado tanto a aperiodicidade como a dependéncia sensivel de condicdes ini- ciais em sua versa de brincadeira do tempo: 12 equacdes, calcula- 20 das repetidas vezes com impiedosa eficiéncia mecinica, Como podia essa riqueza, essa imprevisibilidade — esse caos —surgit de um sis- tema determinista simples? Lorenz pés de lado o tempo e procurou modos ainda mais sim- ples de produzir esse comportamento complexo, Encontrou um, ‘num sistema de apenas trés equagOes. Eram nio-lineares, signiican- do isso que expressavam relacOes que nao eram rigorosamente pro- porcionais. As relages lineares podem ser estabelecidas com uma linha reta num grifico. Asrelac0es lineares S40 de compreensao fa- cil: quanto mais, melbor. As equacoes lineares so resolviveis, o que as torna adequadas para os manuais. Os sistemas lineares tm uma importante virtude modular: podem ser desmontados ¢ novamente montados — as pegas se encaixam. Os sistemas nio-lineares nio podem, em geral, ser soluciona- dos endo podem sersomados uns 20s outros. Em fluidos ¢ em sis- temas mecAnicos, os termos lineares tendem a ser os aspectos que as pessoas querem deixar de fora quando tentam compreendé-los bem, de uma maneira simples. O atrito, por exemplo. Sem atrito, uma equacio linear simples expressa a quantidade de energia ne- cessiria para acelerar um disco de borracha do jogo de hoquei. Com © atrito, a relacio se complica, porque a quantidade de energia se modifica, dependendo da rapidez com que 0 disco ja se esta mo- vendo. A ndo-linearidade significa que 0 ato de jogar 0 jogo modi- fica, de certa maneira, as regras. Nao se pode atribuir uma impor- tincia constante 20 atrito, porque sua importincia depende da ve- locidade. A velocidade, por sua vez, clepende do atrito. Essa muta- bilidade dependente torna dificil o célculo da nao-linearidade, mas também cria tipos de comportamento de grande riqueza, que nun- caocorremem sistemas lineares. Na dinimica dos fluidos, tudo se resume a uma equacao candnica, a equacao de Navier Stokes. Eum milagre de brevidade, relacionando velocidade, pressio, densida- dee viscosidade do fluido, mas € ndo-linear. Assim, a natureza des- sas relagdes €, com freqiiéncia, dificil de ser precisada, Analisar 0 comportamento de uma equagio nao-linear como a de Navier- Stokes é como caminhar por um labirinto cujas paredes modificam Sua disposicZoa cada passo que damos, Como disse proprio Von Neumann; “O carater da equagao (...) varia simultaneamente em to- dos os aspectos relevantes: tanto a ordem como o grau se modifi- cam. Portanto, devemos esperar grandes dificuldades matemati- cas."2" O mundo seria diferente — € a ciéncia nado precisaria de caos — se a equa si Jo de Navier-Stokes nao contivesse 0 demonio da no linearidade. Um tipo especifico de movimento dos fluidos inspirouas tés equagdes de Lorenz: a ascensio do gis ou liquido quente, conhe- au cida como convecedo. Na atmosfera, a conveccio agita o ar aque- cido pela terrabanhada de sol, ¢ ondas de conveceao, tremeluzen- tes, sobem como fantasmasacima do asfalto e dos radiadores quen- tes. Lorenz tinha‘a mesma satisfacao em falar sobre a convec¢ao nu- ma xicara de café quente.?! Como dizia, este era apenas um dos inumerdveis processos hidrodindmicos em nosso universo cujo comportamento futuro gostariamos de prever. Como calculara ra- pidez com que uma xicara de café esfriard? Se o café estiver apenas morno, seu calor se dissipard sem qualquer movimento hidrodina- mico. O café permanece em regime constante. Mas, se estiver quente o bastante, uma rotagao convectiva, ou propagadora, levar’ o café quente do fundo da xicara para a superficie mais fria. A convec¢a0 no café torna-se claramente visivel quando um pouco de creme é pingado na xicara. Os movimentos giratérios podem ser compli- cados, mas a longo prazo 0 destino desse sistema € evidente. Co- mo calorse dissipa, € como 0 atrito retarda o fluido em agitagio, ‘movimento terd de parar, inevitavelmente. Lorenz disse secamente aum grupo de cientistas: “Poderiamos ter problemas em prever a temperatura do café com um minuto de antecedéncia, mas nao te- remos dificuldades em prevé-la com uma hora de antecedéncia."=? ‘As equacdes do movimento que governa uma xicara de café que es: fria devem refletir o destino do Sistema. Devem ser dissipantes. A temperatura deve pender para a temperatura do ambiente, ea ve- locidade, para zero. Lorenz tomou uma série de equacdes* para a convecgio € reduziu-a ao essencial, eliminando tudo 0 que pudesse ser irrele- vante, tornando-a de uma simplicidade pouco realista. Quase nada do modelo original permaneceu, mas ele deixoua nao-linearidade. Para os fisicos, as equacOes pareciam simples. Olhavam-nas — mui- tos cientistas olharam, nos anos seguintes — e diziam; Eu posso resolué-las. “Sim, dizia Lorenz tranqililamente. “Ha uma tendéncia a pen- sar assim, a0 vé-las. H4 alguns termos nao-lineares nelas, e parece haver alguma maneira de contorna-los. Mas nao ha” (O tipo mais simples de convec¢a0 mostrado nos manuais ocor- re numa célula de fluido, uma caixa com um fundo liso que pode ser aquecido e uma tampa lisa que pode ser resfriada. A diferenga de temperatura entre o fundo quente ea tampa fria controla o flu- x0. Sea diferenca € pequena, o sistema permanece estivel. O calor se movimenta para 0 alto pela conducao, como acontece numa barra de metal, sem superar a tendéncia natural do fluido a permanecer em repouso. Além disso, 0 sistema é estivel. Quaisquer movimen- tos fortuitos que possam ocorrer quando, digamos, um aluno es- barra no aparelho tendem a desaparecer, voltando o sistema a um regime estavel. 2 \ ROLAGEM DE UM FLUIDO. Quando um liquido ou gas ¢ aquecido por bai- ‘x0, ofluido tende a onganizar-ae em rolos cilindricos (esquerda). Ofluido quente Sobe de um lado, pere oalor ¢ desoe do outro lado —o proceso de convecgaio. Quando 0 calor aumenta (direita), ocorre uma instabilidade, e os rolos apre- sentam uma ondulagdo que vai e vem ao longo dos cilindros. Em temperatu- rag ainda mais elevadas, o fluxo se torna descontrolado e turbulento. Aumente-se, porém, o calor, eum novo comportamento se ma- nifesta. Quando esquenta, 0 fluido do fundo se expanide. Ao se ex pandir, torna-se menos denso. Ao se tornar menos denso, torna-se mais leve, o suficiente para superar o atrito, ¢ sobe para a superfi- cie, Numa caixa cuidadosamente projetada, desenvolve-se uma ro- tagdo cilindrica, com 0 fluido quente subindo de um lado € 0 flui- do frio descendo do outro. Visto de lado, o movimento faz um cir- culo continuo. Fora do laborat6rio, também a natureza faz, com fre- quéncia, suas células de convec¢%o. Quando o sol esquenta 0 cho de um deserto, por exemplo, 0 ar que ondula pode provocar for- mas sombreadas nas nuvens, 4 no alto, ou na areia, embaixo. ‘Aumente-se ainda mais 0 calor, e © comportamento se torna mais complexo. Os movimentos ondulatérios comecam a oscilar. As equacdes simplificadas de Lorenz eram demasiado simples pa- ractiar um modelo desse tipo de complexidade. Elas abstraiam ape- nas um aspecto da convec¢do no mundo real: 0 movimento circu- lai do fluido quente elevando-se como uma roda-gigante. As equa- _gbes levavam em conta a velocidade desse movimento ca transfe- réncia de calor. Os processos fisicos influenciavam-se mutuamen- te. Quando qualquer poreto de fluido quente subia num movimento circular, entrava em contato com o fluid mais frio € com isso co- megava a perder calor. Se o circulo girava com rapidez suficiente, a bola de fluido nao tinha perdido todo o seu calor extra no mo- mento em que chegava ao alto, e comegavaa descer novamente pelo outro lado da camara, de modo que comecavaa pressionar contra 0 impulso do outro fluido quente que vinha atras dela. 2B ¥ fayto 1S A RODA DAGUA LORENZIANA. O primeiro ¢ famoso sistema caétion des ‘coberto por Edward Lorene corresponde exatamentea um aparelie mectn: co, uma rodadiagus. Base aparelio simples mostra ee capaz de ur compor tamento surpreendentemente complicado. ‘Arotagio da toda diagua tem oortas propriodades em comm comosci: Lindros rotativon defluidono prooessode convoogo. A oda dl@gus é coro umn corte no cilindre. Ambos os sistemas so impulsionados constantemente — ‘pela 4grua ou pelo calor — eambos dispersam energia, O fluido perde calor, as palhetas da roda perdom agua. Tim ambos os sistemas, o comportamento «lon i0 prazo depende da forga da cnergia propulsors. ‘Aaguacal doalto, mim escoamento constant. Seo fluxe da dgrua for len to.apalhetaou cagamba doalto nko se enchers nunoao suficientepare supe raroatrito,e@ rode nunea comegaré a girar (Da mesma forma num fuido, ‘Se ocalor for demasiado baixo para superar a viscomidade, nao movimentare ofluide) ‘Soo fluxo for mais nipido, o peso da palheta superior ooleca a rods em movimento (esquerda). A roda d’égua pode estabilizar-se numa rotagao que con tinug em ritma constante (oentro). ‘Se, portm,o fluxo for mais rapido ainda (direita), a rotagtopode tornar se caétioa, em virtude dos efeitos nao lineares embutidos no sistema. Quai? os palhietas passam sobo jorred'égua, as proporgios em que senchem do- penidem da velocidade de rotagdo Se esta for rapida, as palletas tam poueo tem ‘po para se encherem. (Da mesma forma, o fluido no role de convecgfio que ei Fa rapidamente tem pouco tempo para abmorver calor)E ainda, wea Toda eata girando depresea. as palhetas podem comegar a subir do outro lado antes de Se cevaziarem, Conseqtientemente, palhetas pesadas do lado que sobe poder rovocar dimintigao da velocidade e inverter o movimento, ‘De fata, Lorenz deecobriu que ern periodos prolongados arotagao deve reverterse mullas vezes, sem se estabilizar nunca nim ritmo constante © sem repetir nunca um padrao previsivel. Embora o sistema de Lorenz ndo reproduzisse totalmenteacon- vec¢ao, tinha andlogos exatos em sistemas reais. Por exemplo, suas equagdes descrevem com precisao um velho dinamo elétrico, pre- cursor dos modernos geradores, no qual a corrente fluiatravés de um disco que gira num campo magnético. Em certas condices, 0 dinamo pode reverter asi mesmo. E, depois que as equagdes de Lo- renzse tornaram mais conhecidas, alguns cientistas afirmaram que 4 O ATRATOR DE LORENZ (acima). Essa imagem magica, que se assemelha imascara de uma corujaot As anas de tima borbolets, tormou-se um emble- ‘ma para os primeiros investigadores do caos, Revelava a estrutura fina oc {adentro deum fluxo desordenadodedados, Tradicionalmente, os valores os cilantes de qualquer variavel podiam ser vistos na chamada série ternporal (a0 alto), Para mostrar aa mudazigas de relagéos entre trés variaveisénocessdria ‘uma igentoa diferente. Em qualquer instante do tempo, a irés variavels fixam ‘localizaggo de um ponto no espaga tridimensional: quando sistema semo- difica, o movimento do ponto representads variagées que se medificam conti nuamento. ‘Como o sistema nunca se repete exatament a trajetbrianunca se ru za, Em lugar disso, faz loop ciroulares. Omovimento do atrator éabstrate, mas tranamiteo abor domovimentodo sistema real, Forexemplo, ocrazamento {de uma asa do atrator para aoutracorrespondea uma inversaona direpao da rotago da roda dagua au do fluido em conveogao. 25 © comportamento desse dinamo poderia oferecer uma explicagao. para outro fendmeno singular de reversao: 0 campo magnético da terra, Sabe-se que o “geodinamo” inverteu-se muitas vezes ao lon- go da historia da terra, em intervalos que parecem irregularese inex- plicaveis. Frente a essa irregularidade, em geral os tebricos procu- ram explicac6es fora do sistema, propondo causas como choques de meteoritos.* Mas talvez 0 geodinamo tenha seu proprio caos. Outro sistema descrito com precisao pelas equagOes de Lorenz € um certo tipo de roda d’'4gua, engenho mecanico andlogo ao citculo rotativo da conveccio. Noalto, agua cai constantemente em recipientes pendurados na estrutura da roda. Cada recipiente vaza constantemente por um pequeno buraco, Se a corrente d’agua for lenta, o recipiente doalto nunca se enche com rapidez bastante pa- fa superar oatrito, mas se for mais r4pida, o peso comeca a girar a roda. A rotacio pode tornar-se continua. Ou, sea correnteza for io rapida que os recipientes pesados oscilem durante todo o percur- so para baixo ¢ comecem a subir do outro lado, a roda pode dim nuir de velocidade, parar e inverter sua rotacio, girando primeiro num sentido, depois no outro. A intuicdo do fisico em relagao a um sistema mecinico sim- ples assim — sua intuig%o pré-caos — Ihe diz que a longo prazo, se a corrente d’4gua nunca variar, surgira uma condicao estatica. Ou aroda girard com firmeza, ou oscilara com regularidade numaeem outra diregio, girando primeiro numa, depois na outra, em inter- vals constantes. Lorenz constatou o inverso, ‘Tres equagdes, com trés varkiveis, descreviam totalmente omo- vimento desse sistema.” O computador de Lorenz imprimiu os va- lores instiveis das trés varidveis: 0-10-0; 4-12-0; 9-20-0; 16-36-2; 30-66-7; 54-115-24; 93-192-74. Os trés ntimeros subiam ¢ desciam enquanto intervalos imaginarios de tempo passavam, cinco inter- valos, cem intervalos, mil. Para formar um quadro dos dados, Lorenz usou cada grupo de trés ntimeros como coordenadas para especificar a localizacio de um ponto no espace tridimensional. Assim, asequenciade nime- ros produziu uma seqiiéncia de pomtos que tragavam umalinhacon- tinua, um registro do comportamento do sistema. Essa linha podia Jevar a determinado lugar e parar, significando que o sistema se fi- xara num regime constante, no qualas variaveis da velocidade ¢ tem- peratura jd nao mudavam. Ou podia formar um /oop, indo sempre em circulo, significando isso que o sistema se fixara num padrao de comportamento que se repetiria periodicamente. ‘Osistema de Lorenz nao fez nenhuma das duas coisas. Em lu- gar delas, o mapa mostrou uma espécie de complexidade infinita. Ficava sempre dentro de certos limites, nunca saindo da pagina, mas 26 também nunease repetindo. Tragava uma forma estranha, caracte- ristica, uma espécie de espiral duplaem trés dimensdes, como uma borboleta com as duas asas. A forma assinalava a desordem pura, j@ que nenhum ponto ou padrao de pontos jamais se repetiu. Nao obstante, também assinalava um novo tipo de ordem. Anos depois, Os fisicos tinham olhares brilhantes ao falar do trabalho de Lorenzsobreessas equac \quela bela maravilha de trabalho’ Ja entao falava-se dele comose fosse um pergaminho antigo, guardando segredos da eternidade. Nos milhares de artigos que constituiam a bibliografia técnica do caos, poucos eram mais citados do que “Fluxo Determinista Nao-peri6dico”: Durante anos, nenhum objeto isolado inspiraria mais ilustragdes, até mesmo fil- mes, do que a misteriosa curva tragadaao final, a dupla espiral que se tornou conhecida como o atrator de Lorenz. Pela primeira vez, as imagens de Lorenz mostravam o que ele queria dizer: “Isso €com- plicado”. Toda a riqueza do caos encontrava-se ali Na €poca, porém, poucos a conseguiam ver. Lorenz descreveu- aa Willem Malkus, professor de mlatematica aplicada no M.UT., um cientista cavalheiresco com grande capacidade de apreciar 0 traba- Tho dos colegas. Malkus riu € disse: “Ed, nos sabemos —sabemos mui- to bem — que a convec¢ao dos fluidos ndo se comporta assim.""” A complexidade seria certamente eliminada, disse Malkus, ¢ 0 sistema se fixaria em movimento constante, regular. 7" “E claro que nao percebemos do que se tratava’, disse Malkus, uma geragdo depois — anos depois de ter construido uma roda «'4gua lorenziana real em seu laborat6rio no pordo para mostrar a0s descrentes. “Ed ndo estava pensando absolutamente emtermos de nossa fisica. Pensava em termos de algum modelo generalizado ou abstrato que evidenciava um comportamento que ele, intuitivamen- te, sentia ser caracteristico de alguns aspectos do mundo exterior. Ele, porém, ndo nos podia dizer bem isso. $6 depois do fato consu- mado € que percebemos que devia ter essas opinides.” Poucos leigos percebiam o quao departamentalizada a comu- nidade cientifica se tinha tornado, um navio de guerra com ante- paras para evitar vazamentos. Os bidlogos tinham muito o que ler sem procurar acompanhara bibliografia da matemdtica — e até mes- mo 05 bidlogos moleculares tinham muito o que ler sem se preo- cupar coma biologia populacional. Os fisicos tinham melhores ma- neiras de empregar seu tempo do que folhear revistas de meteoro- Jogia. Alguns matematicos se teriam entusiasmado com a descoberta de Lorenz; em uma década, fisicos, astronomos ¢ bidlogos estavam procurando alguma coisa semelhante a ela, € por vezes redescobrindo-a sozinhos. Mas Lorenzera um meteorologista, enin- a guém pensou em procurar 6 caos na pagina 130 do volume 20 do Journal of the Atmospheric Sciences.** Notas 1 - Lorena, Malkus, Spiegel, Farmer, O Lorenz essencial € um triptico de artigos ccuja pega central € “Deterministic Nonperiodic Flow", Journal of the At- ‘mospheric Sciences, 20 (1953), pp. 130-41; 20 lado dele éstio “The Mechan- ics of Vacillation’, Journal of the Atmospheric Sciences, 20(1963), pp. 448-64, “The Problem of Deducing the Climate from the Governing Equations’; Tel~ Jus, 16 (1964), pp. HL Constiruem um trabalho enganosamente elegante, que continua influenciar matematicos efisicos, 20 anos depois, Algumas das re- Cordagbes pessoais de Lorenz sobre seu primeito modelo de computactor da atmosfera enconiram-se em “On the Prevalence of Aperiodicity in Simple tems, em Global Analysis, Mgrmela e J. Marsden, orgs. (Nova York, Springer- Verlag, 1979), ppS3-75. 2 Uma descrigao contempordnea legivel, escrita por Lorenz, do problema do tuso dle equagdes para ctiar modelos da atmosfera é “Large-Scale Motions of the Atmosphere: Circulation’, em Advances an Barth Science, PM. Hurley. org. (Cambridge, Mass., The M.L-T. Press, 1966), pp. 95-109. Uma andlise mais an- tiga, einfluente, dese problemaé L.F Richardson, Weather Prediction by Nu merical Process (Cambridge, Cambridge University Press, 1922) 3- Lorenz, Ver também uma exposi¢ao das tendéncias conflitantes da matema- tica e meteorologia em seu pensamento, em “Irregularity: A Fundamental Property ofthe Atmosphere’, Crafoord Prize Lecture apresentada na Real Aca- demia Sueca de Ciencias, em Estocolmo, 128 de setembro de 1983, em Tel- us, 36-4 (1984), pp. 98-110, 4 Pierre Simon de Laplace, a Philosophical Essay on Probabilities (Nova York, Dover, 1951) 5- Winfree. 6- Lorenz. 7-On the Prevalence’, 8 - Detodas os fisicos e matemiticos clissicos que se ocuparam dos sistemas di- ‘ndmicos, o que melhor compreendeu a possibilidade do caos foi Jules Henri Poincaté. Ele observou em Ciencia e Método: “Uma causa muito pequena, ‘que nos passa despercebida, determina um efeito considerivel que nao po- ‘demos deixar de ver, ¢ entio dizemos que 0 efeito € devido ao acaso. Se co- nhecéssemos exaramente as leis da natureza ea situacio do universo no mo- ‘mento inicial, poderiamos prever exatamente a situay0 desse mesmo universo ho momento seguinte. Contudo, mesmo que as leis naturais ji ndo tivessem ‘segredos para nds, ainda assim poderfamos conhecer a situagio aproxima: damenite, Se isso nos permitisse prever asituagio seguinte comamesmaapro: ximagdo, seria tudo 0 que precisarfamos, ¢ dirfamos que 0 fendmeno tinha sido previsto, que ¢ governado por leis. Mas nem sempre é assim: pode acon: tecer que pequenas diferencas nas condigoes iniciais produzam diferencas muito grandes nos fendmenos finais. Lum pequeno erro nas primeiras produ- 28 CrAO*sS Revolucgéo Decerto, todo o empenho é para nos colocarmos Fora do ambito usual Daquilo que chamam de estatistica. — STEPHEN SPENDER historiador da ciéncia Thomas S. Kuhn desereve uma perturbadora experiéncia realizada por uma dupla de psi- cOlogos na década de 40. Mostravam-se rapidamente 20s pacientes cartas de baralho, uma de cada vez, pedindo-Ihes que as identificassem. Havia, ¢ claro, um estratagema. Algumas das cartas ¢ram anormais: por exemplo, havia um seis de espadas vermelho ou uma dama de ouros preta. Com a rapidez, os pacientes enganavam-se facilmente, Nada podia ser mais simples. Eles nao percebiam as anomalias. Quando um seis de espadas vermelho Ihes era mostrado, diziam “seis de co- pas” ou “seis de espadas”. Quando, porém, as cartas eram mostra- das por mais tempo, os pacientes comegavam a hesitar, Tornavam- se conscientes deum problema, sem ter Certeza de qual era. Um pa- ciente podia dizer que alguma coisa lhe parecia estranha, como uma margem vermelha em volta de um coragio preto. Por fim, quando o ritmo era ainda mais lento, a maioria dos pacientes se dava conta do que acontecia, Viam as cartas erradas ¢ faziam a necessaria transferéncia mental para ndo errat no jogo. Nem todos, porém. Alguns experimentavam uma sensacdo de de- sorienta¢ao que provocava um sofrimento verdadeiro. ‘N30 con- sigo identificar esse naipe, qualquer que seja’, disse um deles. “Nem sequer parecia uma carta de baralho, desta vez, Nao sei agora de que cor é, nemse € espadas ou copas. Nao tenho nem mesmoacerteza de como sio as espadas. Meu Deus!"”? 31 Ao terem visOes breves e incertas do funcionamento da natu- reza, os cientistas profissionais nao so menos vulneriveis @angustia A confusio quando se véem frente a frente coma incongruidade. Ea incongruidade, quando modifica a maneira como 0 cientista vé, torna possiveis os avancos mais importantes. £ o que diz Kuhn, € ‘© que mostra a hist6ria do caos. As idéias de Kuhn sobre a maneira como os cientistas traba- Iham e as revolugdes ocorrem provocou tanto hostilidade quanto admiracio, ao serem publicadas em 1962, ¢ a controvérsia no se encerrou nunca. Ele deuuma boa alfinetadana idéia tradicional de queaciéncia progride pela acumulacdo de conhecimento, somando- se cada descoberta 4 anterior, € que as novas teorias surgem quan- do novos fatos experimentais as exigem. Fle esvaziou 0 conceito da ciéneia como um processo ordenado de fazer perguntas € en- contrar as respostas. Enfatizou o contraste entre a maior parte da- quilo que os cientistas fazem, trabalhando com problemas legiti- mos, bem compreendidos, dentro de suas disciplinas, ¢ 0 trabalho excepcional, n4o-ortodoxo, que criaas revolugGes. Nao foi por acaso que ele fez os cientistas se parecerema racionalistas nada perfeitos. ‘Na visio de Kuhn, aciéncia normal consiste, em grande parte, em operagées de limpeza.} Experimentalistas realizam verses mo- dificadas de experiéncias feitas muitas vezes antes.‘ Os tedricos acrescentam um tijolo aqui, refazem uma cornija ali, num muro de teoria. Dificilmente poderia ser de outro modo. Se todos os cien- tistas tivessem de comegar do comego, questionando pressupos- tos fundamentais, teriam dificuldades em atingir 0 nivel de sofisti- cago técnica necessario a realizagio de trabalho util. Na época de Benjamin Franklin, o punhado de cientistas que tentavam com- preenderaeletricidade podiam escolher os seus principios iniciais —naverdade, tinham de escolhé-los.’ Um pesquisador podia jul- gar aatracdo o mais importante efeito elétrico, considerando a cle- tricidade uma espécie de “eflvio” que emanava das substancias. Outro poderia vé-la como um fluido, transmitido por material con- dutor. Esses cientistas podiam falar com 0s leigos quase que com amesnia facilidade com que conversavam entte sim, porque ainda no tinham chegado a fase na qual podiam ter uma linguagem espe cializada, comum, para os fendmenos que estudavam. Em contraste, um especialista do século XX nia dinamica dos fluidos dificilmente pode pretender um avanco no conhecimento de seu campo sem adotar primeiro uma terminologia ¢ uma técnica matematica. Em troca disso, ele estard, inconscientemente, abrindo mao de uma gran- de margem de liberdade de questionar as bases de sua ciéncia. De importincia capital paraas idéias de Kuhn é visio da cién- cia normal como a solugio de problemas, dos tipos de problemas 2

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