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1. Introducio: A Performance de um Sonho Na manhi de 8 de agosto de 1984, sete velhos' da aldeia xavante Eténbiritipa - conhecida em portugués como Pimentel Barbosa? ~ saem Aiscretamente e, um a um, tomam a trilha que passa atras do semicirculo de casas. Dirigem-se todos a0 mard, uma clareira na mata)algo afastada da aldeia e utilizada na preparacdo de rituais, Contara-me Warodi, na noite anterior, que a celebracio ocorreria naquele dia. Enquanto bebericamos © saboroso café que trouxe comigo, sinto-me ansiosa, & espera de algum. sinal do infclo dos preparativos. Warodi deixa seu assento perto do fogo, apronta-se para sair e acena para que eu o siga. Apresso-me em juntar caderno de anotacdes ¢ equipamento, as ferramentas de meu oficio de etndgrafa. Gravador ¢ maquina fotografica em mios, acompanho-o até a clareira. Sibupa, Waza’e, Eduardo, Raimundo, Daru, Ai’rere e Etépa esto senta- dos em circulo, a0 redor de uma pequena foguelra que ameniza a cortante friagem matinal do Planalto Central) Com os raios de sol a despontar “vathos" & como os préprios Xavante te referem, em portughs, 2 seu Iota; sem conotasio ‘ejratra alguma, nie, 20 contro, o pertencimento aut categoria de homens experiente, de grande sabedorae profunde conhecimento das tral Na intesiocugo com quer e fora, os Kavante referem-se 3 sua comunidad pelo nome que cts ‘tem em porcugus. Seguinde esa pitica, refiro-me &aldla costo Pimentel Barbosa, De modo ndlogo, quando se rata de usar nomes propos de pessoas xavante, companho as formas pe- 1s quats clas proprasesclhem ser conhecidas por foraseiros, que implica apresetar alguns ‘nomes em portuyués e outros em lingua savance. Para evita a evocaca0 de nemes de fleldos, conforme costume yavante,refiro-me aqueles que morteram no intervalo entre realiaagie da, pesgulsa ea publiagio [do original] dest lize por sua afliagSo a lates deidade~exceto nos eases de Warde de se pa Abn, possuidres de status excepcionais, cima das drvores, Warodi toma lugar entre os demais velhos. O encontro ‘ha clareira retine pouca gente, porque estamos na estagao seca, quando ‘varias familias saem em longas excursées de aca, tipicas do tradicional tatilo de vida semindmade dos Xavante, Visto que ndo ha previsio de realizar-se naquele ano grande celebracéo alguma como as ceriménias de inictacZo masculina & vida adulta ou o complexo ritual do wai'a) 2 volta dos grupos em excursio no deve ocorrer antes de setembro. Na clareira, entretanto, esto alguns dos mais idosos comprometides lideres da vida ‘cerimonial de Pimentel Barbosa. Os oito homens conversam em vor baixa, sem prestar atengio aos rapazes tecém-iniciados & vida adulta que, cor ‘tando mato nas redondezas, trabalham para aumentar 0 espago aberto no ‘cerrado, Nenhum dos oito da importincia & minha iniciativa de Instalar entre eles, no centro do circulo, gravador € microfone. (0 leve murmiirio da conversa mistura-se 20s sons do despertar da floresta. © alarido continuo das cigarras é pontuado, de tempos em tem- pos, pelo canto de algum pissaro. De repente, Warodi pigartela firme, cospe e comeca a cantar baixinho, entoando algo que em um primetro” ‘momento mal se escuta. A medida que Warodi repete suavemente as frases padronizadas que compSem a canclo, os demais presente, também com vozes veladas, vao entrando no coro. Finalizada a peca, hé um instante de siléncio; para romper a quietude, somente o ruido dos jovens no mato €0 canto matinal dos passaros. Depois de uma breve pausa, Warodi recomeca a miisica, desta vez 2 pleno volume; 05 outros se juntam a ele, ¢ um conjunto de vozes graves maduras, passa a ressoar na clareira. Estancado o canto, Warodi sussurra “isso é do Swawé-'wa [aquele que fez 0 mar]; € dele” (CD, 1), € logo prosseguc, cantando duas outras pecas (CD, 2 € 3). Comesa baixinho, mas o volume vyvai aumentando conforme os demais se juntam a ele. Quando, segundo esse pao, os velhos aprenidem as trés cang6es, sio conduzides por Warod! tna repeti¢do do conjunto todo em volume maximo, Warodi Ihes esté ensi- nando, dessa maneira, cangBes que ele aprendeu em um sonho. ‘Logo apés 0 terceiro canto, comeca a falar, bem baixinho. Para captar ‘sua voz suave, assim como as cadéncias ritmicas de sua fala, aproximo dele o microfone e ajusto o nivel da gravacio (figura 1). Cada vez mais vores se agregam 3 dele, ¢ é frequente que varios velhos intervenham yo mesmo tempo. O murmiirio que se produz na clareira é suave, mas scusticamente espetacular: sao falas simultdneas, frases entrecortadas ¢ sobtepostas, tudo pontuado por estalides e sons glotais de énfase. Come resultado, é difill entender 0 que diz Warodi: sua voz, que por si s6 mal se escuta, é constantemente abafada pelas dos outros (CD, 4). Performance de Sonhos Acompanhado por perguntas, apartes, afirmagdes e comentarios alheios, Warodi conta seu sonho aos velhos, Em um discurso verdadeira~ mente polifénico*, relata como foi sua participagao em um encontro de imortais, a0 qual compareceram os ancestrais responsdvels pela criacdo xavante: 0s dois parinai’a) garotos criadores de animais, insetos, peixes e alimentos; 0 jwedehu date da-wa’re)(aquele cujo pé foi perfurado por um pedaco de pau), responsével pelo aumento da populacdo xavante; ¢ 0 wavré-‘wa, menino cujo estémago explodiu e que criou o mar ¢ os bran- cos*. Os cantos desses criadores, diz Warodi, foram-Ihe transmitidos como dadivas para os vivos, com o objetivo de que, a0 executé-los, os Xavante continuem Xavante para sempre, ; ‘Assim se inicia uma celebracdo {mpar: a performance de um sonho de Watodi.|Naquela manha de 1984, sentado entre os velhos de Pimentel Barbosa & semelhanga do que fez, no éncontro on‘rico, com os ancestrais, ele ensina as cangdes dos criadores ¢ compartilha os pensamentos destes com os vivos do mesmo modo que os criadores compartilharam seus pen- samentos com ele, Enquanto relata sua visio, ele ¢ os demais fazem planos para a performance do sonho, evento que deve envolver toda 2 comunida- de, O planejamento mescla-se & narracio do sonho, borrando a distingao entre 0 tempo presente eo tempo dos criadores miticos que apareceram a Warodi. Os velhos projetam uma celebracdo que venha a representar nos minimos detalhes 05 episédios onfricos relatados por Warodi./Assim como fizeram os ancestrais, os velhos discutem, por exemplo, a pintura corporal, escolhendo padrées graficos que reproduzam os utilizados pelos imortais no sonho. Com esses padres, os participantes da performance virdo a ser 8 préprios imortais, conforme aponta na ocasio Sibupa, irmao de Warodi, Em seguida, os velhos chamam trés dos homens jovens da comuni- dade. Com pinturas corporais ¢ vestimentas feitas com fibra de buriti, transformam os trés nos personagens do sonho de Warodi res, que se Ihe haviam apresentado como passaros.»Dois jovens, um de cada metade exogamica, representam os criadores parinai’a. Seus olhos so enegtecidos com carvao e, em seguida, circundados com o vermelho do urucum. Olhos pintados, vestimentas de buriti e, ainda, adornos de cabeca dio a eles a aparéncia de jaburus.\A forma do jaburu, dentre todas as transformagGes por que passaram os parinat'a ao realizarem suas cria- 0 criado- 3. ode-se diner que a nareagio do sonbo €polifnles, no sentido bakhtintano, por construe de modo colaborativ, coma centebuigio de mltipls ves, 4. Nalinguaxavante 0 terme queseaplied ano fais é wares, eos priprios Kavanteotraduzem para portugues coma "brancos. rata ie de rna categoria qe Inelaldeseendents de africanos fede akties Introdugio Figura 1, No mard (claveira da mata), Warodi (8 exquerda) conta seu sono 208 velhes. ‘Ao seu lado esti Etépa, Fotografia de Laura Graham, 1984, Bes, & aquela que os Xavante associam com a encarnacio dos criadores no tempo presente (parinai’a é 0 nome do ninho de certo tipo de vespas, uma das tantas metamorfoses desses criadores), Para tornar o terceiro jovem parecido com o criador que Ihe cabe representar, 0s velhos aplicam_ apenas um pouco de tintura vermelha sobre seu corpo jé untado de éleo; vestido com o traje de buriti, também ele aparece, de acordo com a viséo onirica de Warodi, na forma de um péssaro’. ‘Quando os criadores ficam prontos e os homens concluem seus prepa- rativos, dando-se por adequadamente pintados, as mulheres so chamadas a juntar-se ao grupo. Uma vez reunidos todos os membros da comunidade (exceto as criancas pequenas, os doentes ¢ os muito velhos), Warodi faz com que ensaiem os cantos de seu sonho. Conta novamente como foi 0 encontro onfrico e orienta a pintura dos corpos, de modo a se adotarem. padres graficos conformes a sua visio. Com a ajuda dos outros velhos, dirige os membros da comunidade na preparagao, enfim, de uma perfor- mance do seu sonho = uma performance que traga as vozes ¢ as imagens Corporificadas dos imortais, dos criadores, ao mundo dos vivos. Somente és indviduos da eategoria de dade dos jovens homens adultos estavam éispenives por ‘eas da performance. Como at velhos nfo consderavam apropviado que rpazes ou menlnos mais nowor desempenhassem or papeis dos exladeres, um deste, “aquele eu pé fal perfurade ‘or umm pedago de pau, no fo representado, Calhou de todos o ovens que tepresentaram os crinores pertencerem familia extensa de Warod. Performance de Sonor sol segue seu tracado no céu, € as atividades preparatérias vo ganhando intensidade. Os participantes entregam-se a praticas expressivas variadas, como(narraao, canto,idanca’e ornamentagio corporal, tratando de gestar, pouco a pouco, 0 momento de climax! sua transformagio nos imortais do sonho de Warodi. Por volta das quatro horas da tarde, tudo fica pronto. O entusiasmo acumulado ao longo de oito horas de preparativos toma conta definitivamente dos participantes ¢ os leva ao patio central da aldeta, palco da performance piiblica em que logo culminardo os eventos do dia, Em seus trajes de passaros, as figuras dos criadores postam-se no centro de um grande circulo de dangarinos, Sob a lideranca de Warodi, os que formam o circulo dao-se as mos ¢ comecam a executar as trés pecas, cantando e dangando, Enquanto isso, os criadores movem os bracos, imi- tando obater de asas do jaburu. Ali, em plena performance, os participantes tornam-se ento os imortais do sonho. A performance cristaliza as trans- formagées desabrochadas das varias praticas expressivas que se ensaiaram durante o longo dia. O passado funde-se com o presente. Mediante as aces, dos vivos, vivem os imortais: 0s vivos, com seu canto ¢ sua danca, trazem 6s imortais ao presente, ao seu mundo. A Performance Expressiva de Sonhos £ em tomo dessa performance de caréter extraordinério, ocorrida pouco depois de meu segundo retorno a Pimentel Barbosa, que se estru- tura este livro, Nao me resta diivida de que Warodi orquestrou 0 evento, em parte, por conta da minha presenca: foi um meio de tentar ensinar a mim, uma forasteira, algo que ele considerava extremamente importante. Poreim, se tivesse preparado a performance apenas em meu proveito, nao hhaveria conseguido 0 apoio dos demais velhos e membros da comunida- de, que se engajaram na performance porque ela compartilhava contett- dos e convengSes com outras performances. Para os participantes, essa performance singular adquiria significado por intermédio das praticas expressivas nela contidas: canto € danga da-nho're, discurso ¢ narracio de mito. Meu préprio entendimento do evento, por sua vez, dependeu da compreensio dos significados assumidos por essas priticas tanto nesse contexto especifico como em outros. Construir um entendimento do papel central dessas préticas na sociedade xavante, bem como dos processos por meio dos quais os significados revelam-se em uma performance ~ nesta, em particular -, € o objetivo deste livro. Os capitulos 2 e 3 fornecem a moldura histérica e etnografica para os capftulos seguintes, que se dedi- Introdugio 37 cam A anélise das praticas expressivas contidas no ensaio do sonho e na performance propriamente dita. ‘Tomo a performance e seus preparativos como um todo, entendendo que o ensaio ¢ a execugZo do evento, conforme sublinhado por Richard Bauman e Richard Schechner, devem ser considerados em conjumto, como uum tinico complexo'. Na preparacio da performance, Warodi valeu-se do discurso, da narraco de mitos, do canto ¢ da danga para compartilhar seu sonho com os membros da comunidade. Depois, na prépria perfor- mance, essas pessoas re(a)presentaram o sonho de Warodi, Nesse processo, Warodi péde exteriorizar sta experiéncia onfrica, para que ela pudesse ser experimentada por outros’. Tanto na performance como nos preparativos, Warodi socializou seu sonho. "Ao considerar as formas por meio das quais individuos como Warodi escolhem re(a)presentar publicamente seus sonhos, encaro 0 comparti- Ihamento de experiéncias oniricas como uma forma de ago social. Em. um sentido propriamente bakhtiniano, as formas representacionais dis- poniveis no ambito de determinada comiutildade influenciam os modos pelos quais “experiéncias internas”, como 0s sonhos, so exteriorizadas. Essas formas expressivas de circulacao piiblica talvez cheguem mesmno a influenciar 0 modo como a experiéncia onfrica ¢ trazida & consciéncia (ver capitulo 4). Minha abordagem dos sonhos reflete uma mudan¢a hofe em curso no tratamento antropolégico da matéria, deixando de centrar-se nos contetidos (como na perspectiva freudiana dominante), para assu- mir uma perspectiva que toma(os sonhos como processos comunicativos'. Essa reorientagdo torna possivel que eu considere casos de compartilha- mento de sonhos como atos expressivos potencialmente multifuncionais. (© compartilhar de sonhos pode, por exemplo, tanto estabelecer como refletir uma espécie de(laco de confianca'entre os que dele participam, a “ exemplo do que ocorre nia prética Ocidental da psicanilise, ou no caso de jovens homens xavante que cantam e dancam uns 0s sonhos dos outros. O compartilhamento de sonhos pode, ainda, ser um mefo (nao 0 tinico, cer- tamente) para a aquisicio de prestigio social: um melo de disseminar mais, de si mesmo, por assim dizer, em uma determinada comunidade. ‘A performance do sonho de Warodi e seus preparativos fornecem amostras das préticas expressivas que os Xavante utilizam para estabelecer ‘Rlchacd suman, “Transformation ofthe Word inthe Production of Mexican Festival Drama" 1996; Rlchazd Schechner, Between Thester and Antvopoogy, 1985, Ver Gilbert Herd, *Seftiood and Discourse fn Samia Drestn Sharing" 1987, p72 ssa mudanga ¢sugerida por Bazbara Tadlock, em sew excelente apanbado sobre abordagensaca- Aémsleasceidentais do tema és sonhos, ‘Dreaming and Dream Research’, 1987, pp. 20-30, Performance de Sonhos identidades individuais e socials, crengas relativas ao mundo e concepsbes, sobre como nele atuar - praticas que, em meio a circunstancias histéricas de mudanca, promovem um sentido de continuidade cultural: As formas expressivas que compéem a performance (canto ¢ danga da-nho're, nat- ragio de eventos ¢ relato mitico) sdo meios pelos quais os participantes constroem e expressam sua nogio de identidade na qualidade de indi- viduos € como membros de grupos sociais. Por meio dos movimentos € dos sons que constituem essas formas expressivas, os participantes criam ¢ reafirmam seus vinculos com agueles que se expressavam do mesmo modo no passado. £ assim que a performance gera um sentido subjetivo de continuidade: ao conectar-se aos performers de outrora, os individuos se dio conta da continuidade de uma identidade propriamente xavante, de um modo de ser € de atuar no mundo, Moldado e reafirmado pela performance expressiva, esse sentimento de continuidade permite que os Xavante tenham uma sensagio de controle sobre as circunstancias do pre- sente. Trata-se de um sentido de ligac3o com o passado que, além do mais, fortalece os Xavante em seus movimentos rumo ao futuro. ‘Ao lidar com priticas expressivas, é importante distinguir entre 0 contetido de uma mensagem ou expressio e a prética discursiva, isto é, a forma pela qual a mensagem se expressa no processo de transmissio cultural. Ao me alinhar a muitos outros estudiosos do uso da linguagem ¢ da performance expressiva’, meu interesse Incide sobre enunciacdes efe- tivas ~ casos de uso da linguagem ¢ do canto, por exemplo = que considero 9. O midmero desss estdlosos prande demats para que todos posiam ser menclonades neste Contexto, Fare universo inclul autores que, apoiados nas sugest8es de John Gumperse Dell Hynes, prodaziram trabalhos nas linhas di etnogratia da fla (Richard Bauman c Jel Sherzer (Gers, Explorations in the Ethnography of Speaking, 1988 John J, Gumperae Del Hymes (res) ‘The Ethnography of Certmuneation, 1964; Dell Hyoses, Foundations in Socicingustes, 19745 Joel Shere, Kuna Ways of Speaking, 1983), da etnopodtics (Dell Hymes, “Breakthrough into Performance”, 1975: “Discovering Oral Peformance and Measure Verse in American Indlan Narrative", 1977; "I Vatu [Tried To Tell You", 1981; Dennis Tedlock, “Toward Oral Poetics 197 The Spoken Word and the Werk of Interpretation, 1983), do estuto dx performance (Richard Bauman, Verbal Arts as Performance, 1977; Donald. Brenneis, “The Matter of Talk, 1978; Shared Territory", 1986; "Performing Passions, 1987; Charles L. Briggs, Competence iv Performance, 1988; Steve Caton, “Peaks of Yemen I Summon, 1990; Alessandro Durant, “The Audience as Co-Author", 1986; "Intention, Language, and Secll Action tna Samoan Contest 1988; Jol Kuipers, Power in Performance, 1990) e, mais recentemente, das andlises entradas fo diseurs (Ellen Basso (org), Native Latin Americar Cultures through Their Discourse, 1990; Elinor Ochs, Culture end Language Development, 1988; Joel Serzer, "Poetic Structuring of Kuna Discourse", 1987, Greg Uiban, A Discourse Cetera Approach to Culture, 1997). Tamberm incl futorcs qu trabalharam no imblto da tradicdo da sociolosia da linguagem, com abordagens ‘tnometodolégeas (Charles Goodwin, "Conversational Organization’, 198%; Charles Goodwin {Marjorie H. Goodwin, "Axsesments and the Construction of Content’, 1992; Harvey Sack [Emanuel Schegoif e Gal Jefferson, "A Simplest Systmatis fr the Organization of urn-Takine Conversation”, 1974; Emanuel Scheploff, "Sequencing in Conversational Openings", 1972). Introdugio 39 como sendo, em si mesmos, formas de aco social. Essa perspectiva dife- re daquelas que privilegiam um ponto de vista cognitivo, de acordo com © qual a transmissio da cultura consiste na circulagio de um conjunto de crencas, valores e ideias relativas ao mundo, que, quando socialmen- te compartilhados, estariam encarnados no contetido de determinadas mensagens, como no contetido de um mito, por exemplo. A mensagem assume, nesse caso, extrema importancia, ao passo que o modo como € comunicada ¢ praticamente irrelevante. Em contraste, a0 adotar uma perspectiva que focaliza a pratica discursi- vva, posso postular que processos de transmisséo cultural implicam a reprodu- fo de formas discursivas ao longo do tempo. A transmissdo de um conjunto de formas discursivas de uma geracio seguinte é uma pratica que promove sentimentos de continuidade cultural, ainda que as mensagens codificadas nessas formas possam mudar com o passar do tempo. Isso no significa que © contetido de uma mensagem seja desimportante: trata-se de enfatizar 0 importante papel da pritica discursiva em processos de transmissio cultural. A continuidade da forma promove sentimentos de permanéncia, ¢ isso vale até mesmo para sociedades que experimentam profundas mudangas em. seus modos de vida tradicionais, a exemplo dos préprios Xavante, conforme veremos no capitulo 2. Ademais, ao direcionar a atencdo para ocorréncias efetivas de com- portamento discursivo ¢ expressivo, rejeitando a opgao analitica de tratar exclusivamente de mensagens desencarnadas de seus contextos de expres- so, podemos notar que o processo de construcio de identidades, crensas, valores € ideias relativas ao mundo tem lugar em atos expressivos, dos quais os mais importantes so os atos discursivos", De fato, s6 é possivel dizer que a cultura, como um sistema de significados, categorias sociais, crengas, valores e mitos, existe independentemente de suas manifestacdes expressivas se ela for entendida como a histéria de performances expres- sivas pretéritas que persistem no plano da meméria. O “sistema” é um condensado de performances expressivas pretéritas; é a sedimentacio de performances do passado incrustadas na meméria, criando a iluséo de um conjunto sistematizado de crencas, valores, ideias e assim por diante. Porém, o “sistema” em si é efémero: para que exista de fato, depende de ocorréncias efetivas. O sistema saussuriano da lingua, por exemplo, nada mais é que um condensado de realizagdes de fala que sc sedimentaram. na meméria. 10. Ver Greg Urban, op ot, 1991,» 1. Performance de Sonhos Cada performance discursiva ¢ expressiva é interpretada por um indi viduo por meio de associagSes ou movimentos interpretativos entre os comportamentos situados naquele contexto imediato, bem como entre estes € outros por ele vivenciados ao longo do tempo. Para analisar 0 pro- esso por meio do qual atores sociais realizam esses movimentos inter- Pretativos, atribuindo significados a ages ¢ a eventos discursivos, adoto 0 referencial da semiética de Peitce, com base nos trabalhos de autores como ‘Michael Silverstein e Greg Urban, que introduziram e incorporaram esse paradigma aos estudos da linguagem e de outros fenémenos culturais" Segundo a semistica peirceana, atores sociais interpretam signos com base nas relagdes que percebem entre um signo € seu objeto, ou significado”, A nocao de “movimentos interpretativos” ~ ou de “redes de associacio”, que a ela se assemelha ~ no é exclusividade dos que trabalham na tradi- ao pelrceana”. No entanto, quando se trata de explicar os processos por meio dos quais os eventos discursivos operam como signos complexos, multifuncionais, o quadro tedrico peirceano, tal como tem sido adotado, oferece um paradigma mais preciso em termos analiticos do que outras abordagens interpretativas. Expostas a comportamentos significantes ao longo da vida, as pes- soas Constroem quadros interpretativos que Ihes permite atribuir sig- nificado a aces, palavras ¢ objetos materiais. A existéncia de um arca- bouco desse tipo, bem como sua forma particular, depende da histéria do individuo como intérprete de signos. Assim, cada pessoa possui um guadro interpretativo singular, produto de sua histéria de vida. Vale notar que a capacidade individual de interpretar os significados de com- portamentos muda com o passat do tempo. Jovens tém vivencias que os diferencia dos mais velhos, ¢ 0 mesmo se aplica a homens e mulhe- res, bem como a cada individuo em relagio aos demais. Se ninguém interpreta uma acto exatamente do mesmo modo que qualquer outro membro da sociedade em que vive', individuos expostos a comporta- mentos significativos semelhantes ¢ a interpretacdes também seme- 11, Ver Michae Sverstein, “Shifters, Linguistic Categories, and Cultural Description”, 1976: Greg Urban, op. ct, 199%; Milton Singer, Ma's Glassy ence, 1984; Joven J. Etrngton, “On the Nature ofthe Sociolinguistics Sign, 1985. 432, Deacondo com Charles S. Petre (Collected Papers of Chare Sanders ere, 1931-1935), as relagécs entre um signa ese objeto podem se de rs tporbiscos, Quando a ela ¢ de semelhanca sea, da-se que sign cbnigoO signo€Indical wea rela é de contigudade spage-temperal ‘Quando lgagio entre o signo e seu objeto basela-se em uma tetra mental signné simbiico, 13. Ver, por sxemplo, Steven Feld, “Sound Structure and Socal Stacture, 198% Marina Roseman, Heating Sounds from the Malaysian Rainforest, 1991, 14, Parauma dscussio sobre realidadessoclais muilipls, vr Alfred Sehit, Collected Papers, 1962, Introdusto a Ihantes acerca deles, acabam por compartilhar quadros interpretativos similares. A meméria social depende do compartilhamento de vivéncias, c estas variam, inevitavelmente, no interior de qualquer grupo social", Entre os Xavante, jovens ¢ velhos, homens e mulheres tém diferentés experiéncias de mundo e diferentes modos de entender o que significa nele estar e agir, e, portanto, diferentes modos de conceber ¢ vivenciar a realidade que, por sua vez, sio diferentes dos meus. \. » Cada nova performance sé adquire significado para seus participan- tes porque necessariamente reflete\a histéria de performances expres- sivas precedentes. Nesse sentido, a performance, como aponta Richard Schechner, nao se faz “nunca pela primeira vez", Ao mesmo tempo, contudo, uma nova performance é, em si mesma, um ato criativo. Sua esséncia reside no processo de descontextualiza¢ao recontextualiza- gio, na tensio dindmica entre o que j “vem pronto” eo que est sendo crlado®. Cada ocorréncta de performance expressiva abre a possibilidade, portanto, para uma mudanga. ‘Ao centrar a observacao em performances especificas, podemos exa- minar processos de mudanca ¢ adaptagio criativa tal como ocorrem em niveis verdadeiramente “micro”. Quando colocamos em foco, por exem- plo, ocorréncias de narragio mitica, podemos compreender que um mito ndo é uma entidade que existe na mente, de modo abstrato, apartada de qualquer ligacdo com narragSes ja efetuadas. A vida de um mito esta em suas narragSes, ¢ cada nova nartacio tem o potencial de variar em rela- sao a qualquer detalhe de narracGes anteriores. Cada relato pde em jogo a tensio entre descontextualizacZo ¢ recontextualizacio do discurso, no processo de extrair um discurso dado em um contexto prévio e inseri-lo em outro, Essa tensio, como afirma Richard Bauman, é um mecanismo essencial da continuidade social ¢ cultural”. Os capitulos 4 a 6, adiante, apresentam microanalises das formas expressivas que Warodi incorpora 3 performance do sonho, com o intuito de mostrar os significados a que os participantes da performance recorrem para interpreté-la e de demonstrar, adicionalmente, que o emprego dessas formas, por Warodi e seus colabo- radores, visa atingir objetivos tanto pessoais como comunitérios. . Ver Paul Connerton, How Societies Remenner, 1989; George Lipsite, Time Passages, 1990; Paul Seller, “Embodying Cultural Memory in Songhay Sprit Possession”, 1992 Embodying Colonial ‘Memories, 1995; Richard Terdiman, Discouse/Counter-Discourse, 1985. Ver Richard Schechner, op iy 1985, pp. 36 Ver Richard Bauman, op. ct, 1996; Joel Kulpers op. cit, 1990; Greg Urban, “Entextuallzation, Replication, and Powe", 1996. Richard Bauman, op cit, 1996, No capitulo 6, por exemplo, examino detalhes das narragées de mito inseridas ou recontextualizadas por Warodi no relato de seu sonho. Ao com- Parar essas ocorréncias de narra¢ao de mito com outras, ilustro como Warodi varia suas narragdes conforme as caracteristicas do contexto — a audiéncia, em Particular. © foco nos detalhes revela que, embora certos elementos parecam formar um nticleo comum, sempre repetido entre uma performance de nar- ta¢ao de mito e outra, hd bastante variacao. Velhos que acompanharam a narracao de Warodi trouxeram perspectivas individuais ao desenvolvimento polifénico\da histéria, ¢ chegaram até a contestar detalhes do que estava sen- do contado. A variagio de opiniGes entre os presentes, assim como a variacio entre relatos feitos por um mesmo narrador, mostra que um mito ndo é uma entidade estatica, nem homogénea. Mitos sao dinamicos precisamente porque ganham existéncia por meio de narragdes: a atividade de narrar permite que as pessoas mudem e adaptem a novas circunstancias os mitos que tém a contar, que os recontextualizem com o passar do tempo e que os utilizem para alcancar metas pessoais. Ao mesmo tempo, porém, o ato de narrar implica repetir formas utilizadas em narrag6es pretéritas, o que dé origem a.um sentido subjetivo, dinamico, de continuidade. As cang6es sonhadas da-nho're (capitulo 4) manifestam claramente a tensio entre formas j4 existentes no ambito de uma comunidade e a inovaco criativa prépria 4 composi¢io individual. A maneira como as cangées sdo aprendidas e em seguida remodeladas pela acdo individual, passando a expressar a subjetividade de cada um, ilustra a dialética entre discurso interior ¢ exterior, tal como proposta por Voloinov". Embora as composig6es individuais se modifiquem ao longo do tempo, as repeti¢des das formas em performances regulares conferem continuidade & paisagem sonora xavante. Porém, dado que cada nova composicao é uma cria¢io individual, reflexo da subjetividade de seu autor, a prética social do canto ‘manifesta a clasticidade dindmica das formas expressivas xavante. A performance do sonho de Warodi reflete uma hist6ria prévia de narragdes de mitos, representagGes de sonhos, performances de canto ¢ danca € reunides do conselho dos homens em que ocorreram narracées € debates (capitulo 6), ¢ por isso os participantes puderam atribuir sig- nificado & performance, Ela expressa, portanto, continuidade. Porém, aquela performance era também uma adaptacao criativa, projetada em’ parte para mim e para aproveitar o potencial tecnolégico que Warodi e outros perceblam em meus instrumentos de etndégrafa: minha capacidade 48, Valentin N, Volotin, Marston and the Philosophy of Language, 1973 Introdugio de registrar o evento com a maquina fotogréfica e o gravador, e por escrito. A performance expressa, assim, uma resposta criativa a novas oportuni- dades ¢ a novos metos de promogao da continuidade, Essa capacidade de adaptagio criativa a novas circunstancias é a forga que tem permitido aos Xavante manter 20 longo do tempo o sentido de quem sio; é ela que Ihes da seu notavel senso de continuidade cultural. A adaptacao criativa é na verdade, a chave de sua sobrevivéncia cultural, de sua capacidade de continuar sendo Xavante para sempre. Warodi Conhect Warodi em minha primeira viagem de campo as terras Xavante, em 1981-1982, Estabeleci um relacionamento pessoal com cle e ‘com os membros de sua familia, o que ajudou a dar forma a meu trabalho de campo. Na realizagio de pesquisa de campo, ha muito de negociaczo entre o etndgrafo ¢ os membros da comunidade em que escolhe traba- Ihar®. Essa negociacio é um processo continuo, que comeca no minuto em {que se chega & comunidade e dura até o fim da estadia nela - em muitos casos, prossegue para além desse momento. Warodi acabou envolvido, de um modo ou de outro, na maioria das escolhas que fiz. Seus préprios, objetivos pessoais, espirituais e politicos, ¢ 0 modo como se empenhou em satisfazé-los por meio da minha presenga na comunidade influenciaram tanto o curso da pesquisa como, em tiltima andlise, o entendimento que hoje tenho dos Xavante € de suas visdes de mundo. Ademais, devido as dificuldades que desde cedo tive com agentes governamentais em Pimentel Barbosa, talvez eu nao tivesse conseguido dar prosseguimento & minha pesquisa sem o apoio de Warodi ainda durante a primetra viagem a campo. Quando o conheci, ele era um calmo e tranquilo senhor de idade, Era o filho mais velho do grande chefe Apdwé, que foi o responsével pelos primeiros contatos pacificos entre os Xavante e os representantes da sociedade nacional brasileira, em 1946; Poucos anos depois, David Maybury-Lewis chegaria aos Xavante para conduzir aquela que viria a ser a primeira pesquisa antropolégica entre eles, e fol ApSwe quem o acolheu. ‘Maybury-Lewis, que conheceu Warodi ainda jovem, descreveu-o como bastante rude ¢ esperto; na verdade, chegou a suspeitar que ele pudesse 20, Ver, por exemaplo, Lila Abu-Lushod, Vell Sentiments, 1986; Steven Feld, Sound and Sentiment, 1990; Catherine Luts, Uinatnal Emotions, 1986; Kiin Narayan Storyteller, Saints, and Scoundrels, 1989; Poul Stole, Fusion of the Worlds, 1989, Performance de Sonhos ter sido responsével pelo desaparccimento de certas méscaras de danga (wammhoro), que muito apreciava, embora Warodi jamais tenha admitido sua participagio no episédio*. O Warodi que vim a conhecer, contudo, havia se tornado um lider maduro, um respeitado guardido de conheci mentos histéricos, espirituais e culturais. Tanto 0 Xavante como os brasileiros nao indios consideram-no um astuto lider politico de seu tempo. No final da década de 1970, ele liderou. os Xavante de Pimentel Barbosa em uma impressionante luta pela recupe- ragio de terras que haviam sido ilegalmente tomadas deles. Na condica0, de representante da comunidade, fez varias e Arduas viagens a Brasilia, para negociar com ditigenteS da Funda¢io Nacional do {ndio (Funai). Quando, ao final, essas negociagées se revelaram iniiteis, os Kavante de Pimentel atacaram € quelmaram fazendas da regio. Warodi convocou, entio, representantes ¢ lideres das demais comunidades xavante, Ao se reunirem, todos se dirigiram a uma drea de floresta e trataram de derrubar drvores ¢ de enfileiré-las no solo, produzindo o que deveria ser, segundo sua reivindicacdo, a linha de demarcacao da terra em disputa®. Por ter sido a primeira a¢do coordenada entre representantes das diferentes terras xavante, essa reuniéo convocada por Warodi consolidou sua reputagio individual de ator politico arrojado. Em julho de 1982, médicos diagnosticaram-Ihe um céncer de présta- ta. David ¢ Pia Maybury-Lewis, em visita & comunidade naquela ocasiao, acompanharam-no a Goiania, onde fol submetido a uma cirurgia®. Apés 2 operagao, continuow a desempenhar um papel de destaque nas vidas politica e cerimonial da comunidade, embora ja nao tivesse a mesma ener- gia de outrora. Em 1985, Milton, irmao mais novo e um dos assistentes (conhecidos como “secretérios’, em portugués) de Warodi, substituiu-o nas posigdes de lider, sendo reconhecido oficialmente para tratativas com a Funai, e de gerenciador de questdes financeiras da comunidade. Com a doenca, Watodi passou a comparecer apenas raramente nas, reunides noturnas do conselho dos homens, mas nao deixou de ser uma figura central na vida politica da comunidade. Desde cedo até o anoite- cer, recebia em sua casa visitas de outros homens, que iam até ele para discutir assuntos comunitarios e temas privados. Seus dois secretirios, Milton e Sérupredu, procuravam-no diariamente pata informé-lo dos 21, Ver David Maybury-Levis,Alo-Shovanté Society, 1974, p, 253-254. 22, Questes relatiras a relvndlcaces teritovaisyavante sao dscutidas mais detahadamente no capitulo 2 dest ira pessoals de Warodi, David Maybury-Lewis e Pia Maybury Lewis 23. Introdusto 45 debates do conselho dos homens ocorridos na noite anterior € para pla- nejar 0 que fazer na sesso seguinte daquele foro de discussao. Os fre- quentadores mais assiduos da casa de Warodi eram Sibupa, seu irmao classificatério mais préximo, ¢ 0 cunhado Ai’rere (irmao de sua esposa). “Sibupa e Ai'rere ficavam ao lado de Warodi por horas a fio, deitados e costas ~ posi¢do em que os homens costumam passar grande parte do dia conversando. Nesses encontros, os velhos tratavam de questoes politicas e assuntos relativos & Funai, e também compartilhavam seus pensamentos fntimos ¢ seus sonhos. A medida que fui conhecendo melhor Warodi, passe a apreciar tanto sua sabedoria e suas qualidades espirituais como sua perspicécia politica. Era impressionante o seu conhecimento da histéria e do passado xavante; de suas palavras ecoavam informag6es relativas a criacdo do mundo. Ele estava to imbuido do discurso do passado xavante que fazia de seu p prio relacionamento e do de sua comunidade com os primeiros criadores, arquitetos da criagéo xavante, uma espécie de filtro de sua experiéncia do presente. Em uma ocasifo em que ele ¢ o imo Sibupa discutiam os planos do governo para asfaltar a estrada que passa perto dos limites oci- dentais da area indigena, falou sobre como o projeto se encaixava na obra dos primeiros criadotes. A melhor caracterizacio de Warodi fol a de um de seus sobrinhos: "sua cabeca parece estar sempre com os criadores, os ancestrais hdimana’u’6 [sempre vivos)”. A Pesquisa de Campo como Processo de Colabora¢cao Quando planejei minha pesquisa entre os Xavante, imaginei um pro- jeto centrado em eventos discursivos que surgem no contexto de atividades correntes. As descricées de David Maybury-Lewis de uma “oratéria anti fénica” nas reunides do conselho dos homens haviam despertado minha curlosidade, o que me levou a pensar no que ela consistiria, com que se pareceria ¢ que tipo de informacdo social os falantes comunicariam por seu intermédio, Eu tinha curiosidade de saber com que outros recursos iguisticos os falantes dessa sociedade jé de pequena escala podiam con- tar € como esses recursos poderiam ser comparados a padres de discurso ‘observados por etndgrafos de outros grupos jé*. 2A, Ver, por exemplo, Roberto Da Matta, A Divided Worl, 1982; Jules Henry, Jungle Pople, 1981; Anthony Seeger, Why Sud SIng, 987; Greg Urban, op ct, 1991 Estudos anteriores relativos aos Xavante, em especial sobre sua orga- niza¢io social, ofereciam uma base sdlida de conhecimentos, o que tornow. atraente a tarefa de investigacao entre eles®. © trabalho com a tematica discursiva em um grupo jé apresentava um atrativo adicional: prometia ser um campo para potenciais ¢ bem-vindas andlises comparativas, como haviam demonstrado o Projeto Harvard-Brasil Central e os estudos pos- terlores sobre a organizacao social dos Jé". Na época de planejamento de ‘minha pesquisa, as possibilidades para anélises comparativas no campo da cultura expressiva estavam amadurecendo. Desidério Aytai concluia um estudo pioneiro a respeito dos aspectos formais do sistema musical xavan- te; Anthony Seeger trabalhava com a analise da miisica dos Suid (povo setentrional); Greg Urban dedicava-se a estudar os padrées discursivos dos Xoclengue (grupo jé meridional)”. Trabalhar com discurso e performance expressiva entre os Xavante, afiliados aos Jé centrais, permitiria tracar um panorama comparativo quanto a esses temas. Uma vez em campo, frustrei-me, porém, quando Warodi logo come- cou a requisitar a mim e a meu gravador para fazer discursos ou contar historias. Meu entusiasmo pela documentacao do discurso espontaneo 25, David Maybuty-Lewis, (ep cit, 1974) fot quem primeiro mapeou os tacos gerals do complex ststema de orzanizacdo socal xavante. Aracy Lopes da Silva (Nomes¢ Amigos, 1986), a enfocar 2 prtieas de nolnagio pessoal eo sistema de amizade formal, efinw ainda mas oentendl- ‘eto antropoligco da organzagio cial deste povo. Outros trabalhoe que contelburam para { conhiecimento sobie os Xavante foram ot de Oswaldo Ravagnani, A Experi Xavante com 0 Mundo dos Branos, 1978; Nancy Flowers, Foreer-Farmers, 1983; ¢ Regina MAller, A Pntura do CCorgo¢ os Ornamentos Nevintes, 1976. Vitis estudoe descritivos foram compilados por mi siontiosslesanos que trabalharam entre os Xavante (Bartolome Gizearia ¢ Alberto Hel Kavane, 1972; ernino Conta, 1975; Jerdnimo Sona, 975; Guglielmo Guaziglia, Gli Xavete fr Fes Acculturatvg, 1973) ea propria stuaczo dos missionios fol ebeto deestude antropolico (Claudia Menezes Meine fis em Mato Grose, 1985), Umea equipe do Summer Ineitite of Linguistics também elaborou uma desericlo linguistics prliminar (Ruth McLeod e Valerie Mitchell, Arpectos de Lingus Xevarte, 197) eum dleiondrlo de xavante (Joan Kall, Ruth MeLeod Valerie Mitchell, Pequeno Dicondra, 1987 26, Extudor condsios not mareos comparativos do Projto Harvard-Brasil Centra, organizado or Maybory-Lewie, emonstraram como cada socledade jd manifesta varlagdes Cobre 0 com Dlexo tema dos sistemas dualistas que se entreerusam. Ver artigos em David Maybury-Lewis (ore), Dialectica Societies, 1979 ¢, também Toan Bamberger, Environment and Cuurl Clasifca tion, 1967; Jon C. Crocker, Vital Souls, 1985; Roberto Da Matt, op. cit, 1982; Jean Lave Social Taxonomy among the Kikai (Ge) of Central Beall, 1967; julo C. Melati, O Sistema Soil Krahd, 1970; Terence Tarn, Social trutureand Poicl Organization among the Norther Kayape, 1966, Estudos porteriores entre oJ staram and mals principio de vantago~ porexcmple, quan- to30e sistemas de nominagio pesoal ede amizade cerimanial (Manuela Carnlto da Cunha, Os Morte os Oxtrs, 1978 Mara Elisa Laeira,ATroa de Nemes ea Trove de Cues, 1982; Vanesa Lea, Nomese NekretsKeyepé, 1986; Aray Lopes daSilva, ot, 1986). 1, por exemplo, Desiderio tai, O Mund Sonore Xavete, 1985; Anthony Seeger ("What Can ‘We Learn When They Sing?" 1979: “Sing for Your Sister”, 1980; op. ct, 19873; Greg Urban (Speath about Speech in Speech about Action", 1984; “The Semlsice of Two Speech Styles in Shokleng", 1985; op. ci, 1991) Imtrodugse 7 levou-me, inicialmente, a desmerecer tudo aguilo que parecesse preme- ditado. A principio, recusava os convites de Warodi ou eventualmente concordava em realizar a gravacao; de todo modo, nao me dava conta do valor excepcional daqueles discursos. Conforme percebi posteriormente, ‘Warodi adaptava um padro tradicional de interacdo a uma nova situacéo e & tecnologia que eu trazia, Como um homem xavante que convida o filho 2 sua esteira de dormir, & tarde, para Ihe fazer algum relato ou contar uma ‘passagem da historia da familia, era com o objetivo de comunicar-me um pouco de seu conhecimento que Warodi me chamava, Ele queria que eu gravasse ¢ registrasse por escrito esse conhecimento, que eu levasse para outras pessoas as informagSes sobre seus pensamentos e sua comunidade. No final das contas, eu acabaria pedindo a Warodi e outros velhos, tanto homens como mulheres, que me contassem histérias. Desse modo, procurava entender as tnuitas referencias indiretas a narrativas tradicio- nais xavante que apareciam alhures nas falas espontaneas ¢, em especial, no telato do sonho. Pude perceber, por fim, que os objetivos de Warodi € 0s meus se complementavam. Suas atitudes para comigo e com meu trabalho criavam oportunidades para que eu alcancasse minhas metas. Era frequente, por exemplo, que eu Ihe fizesse uma pergunta buscando apurar minha compreensio da narracio do sonho ou de outros compor- tamentos, ¢ ele, em resposta, desatasse a contar histérias. Meu trabalho de gravacio sonora e registro escrito, em contrapartida, atendia 20s obje- tivos de Warodi, Com o passar do tempo, e por caminhos sutis, acabamos desenvolvendo um entendimento miituo que atendeu as necessidades de ambos, Sem duivida eu era uma outsider naquela comunidade, mas meus interesses coadunavam com os dos velhos ¢, em especial, com os de Warodi. Comparada com a maioria dos ndo Xavante, eu era vista pelos membros da comunidade como alguém de dentro. Minha posicZo, como a de tantos antropélogos, era algo parecido com a de um outsider/insider*. Desde que Warodi ¢ 05 membros de seu grupo doméstico me adotaram, em 1982, tenho sido considerada um membro de sua familia. Por extensio, estou situada em uma rede de parentesco e pertenco a uma classe de idade. Toda vez que retorno a Pimentel Barbosa, integra-me ao grupo doméstico de Warodi. Ao inserit-me na vida didria da comunidade, uso, cada vez mais, a lingua xavante. 28, A expresso alderoutsider fo neste cantenta mantida cm inglés por tratarse de um jogp de P= Javrasintraduzvel,cuo sentido & parce incegrante do texto (NT). Ritin Narayan ('How Naive {sa Native’ Anthropologist”, 1993, p 678) nets os anteopélogosutrapseazem a dcotomis “de dntro/de fora, examinande @ modo coma somos stuados na telagdo com as pesoas que ‘studams, . Performance de Sonos E bem possivel que eu tenha dado a impressio de dispor de um estoque infindavel de fitas cassetes e baterias, visto que acionava o gravador em todas as situages: empenhava-me em registrar desde misicas e discursos formais até conversas cotidianas, sem deixar de lado os sons do ambiente, como os de grilos ¢ de ras. Todas as vezes chegava a Pimentel Barbosa mui- to carregada, com uma bagagem pesadissima em razéo do equipamento ara gravacio e, posteriormente, das placas para captacdo de energia solar, além de bastante café e acticar. Warodi ¢ todos os membros da comunidade me incentivavam a apren- der e a praticar o xavante, e se orgulhavam de meus progressos no dom nio da lingua. Minha capatidade de escrever em xavante impressionava, em particular, Warodi, ele conferia enorme importancia & escrita e aos documentos escritos, jé que no trato com a burocracia governamental da Funai, os funciondrios, com o objetivo de justificar suas politicas, cos- tumam exibir uma volumosa papelada aos Iideres indigenas, que vém de sociedades de tradicio oral. Consciente do poder de sua prépria assinatura, praticava-a quase todas as tardes, depois de afastar uma das protecdes de palha de sua casa, para que formasse uma janela, e de apanhar 0 caderno ea caneta que mantinha cuidadosamente guardados. Quando comecei a constituir um corpus de discursos gravados, surgiu © problema de encontrar alguém para ajudar-me a traduzi-los. A solu- lo nfo se apresentou imediatamente, Warodi e eu, juntamente a outros membros da comunidade, tivemos de negociar em torno dos varios nomes possiveis, Sobretudo no inicio, eu precisava trabalhar com alguém que tivesse um dominio ao menos razoavel do portugués, requisito que redu- zla bastante a gama de candidatos, uma vez que apenas um punhado de jovens de Pimentel Barbosa (nenhuma mulher) tinha alguma fluéncia nessa lingua. Durante minha primeira visita, Warodi sugeriu os nomes de dois rapazes, mas eles se recusaram a ajudar: pertenciam ao grupo que o ento chefe do posto local da Funai, por motives mencionados no preficio, havia influenciado contra mim e meu trabalho. Diante da falta de coopera dos jovens, Warodi ¢ eu ficamos frustrados e desanimados. Ninguém que tivesse as capacidades necessdrias concordou em auxiliar- me a transcrever e traduzir a performance de um mito realizada por ele € seus familiares em 1982”. Mais tarde, quando estava fora de Pimentel Barbosa, encontrei alguém entustasmado, disposto e capaz de fazer esse tipo de trabalho: Lino 29, Ver Laura 8. Graham, Performance Dynamics and Soil Dimensions tm Navante Narrative, 1983 Invoauczo 49

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