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CAPITULO VIII A LINGUAGEM A linguagem e¢ 0 mito s4o parentes préximos. Nos pri- meiros estdgios da cultura humana, sua relago é to in- tima e sua cooperagao tao ébvia que € quase impossivel separar um do outro. Sao dois brotos diferentes de uma nica e mesma raiz. Sempre que encontramos 0 homem, vemo-lo em possessao da faculdade da fala e sob a in- fluéncia da fungao de fazer mitos. Logo, para uma an- tropologia filos6fica, é tentador colocar essas duas carac- teristicas especificamente humanas sob um mesmo titu- lo. Tentativas nesse sentido foram feitas com freqién- cia. F. Max Miiller desenvolveu uma teoria curiosa, na qual o mito era explicado como um simples subproduto da linguagem. Ele considerava o mito como uma espé- ie de doenca da mente humana, cujas causas devem ser procuradas na faculdade da fala. A linguagem, por sua propria natureza e esséncia, é metaforica. Incapaz de des- crever as coisas diretamente, ela recorre a modos indire- 182 SAIO SOBRE 0 HOMEM tos de descrigio, a termos ambiguos € equivocos. E a esta ambigiiidade inerente a linguagem que o mito, se- gundo Max Miller, deve a sua origem, ¢ na qual sem- pre encontrou sua nutri¢o mental. ‘A questo da mi tologia’”’, diz Miiller, tornou-se de fato uma questiio de psicolog ia, €, como a nossa mente torna-se objetiva para nés principal nte através da linguagem, tornou-se uma questo da Ciéneia da Linguagem. Isso explica por que... chamei [o mito] de Doenga da Lingua- gem em vez de do Pensamento.... A linguagem ¢ 0 pensamen- to sio inseparaveis, ¢... uma doenga da linguagem € portanto ‘a mesma coisa que uma doenga do pensamento... Represen- tar o deus supremo cometendo todo tipo de crime, sendo en- ganado pelos homens, ficando irado com sua esposa ¢ violen- to com seus filhos, € com certeza prova de uma doenga, de uma condigo incomum de pensamento, ou, para falar mai claramente, de verdadeira loucura... E um caso de patologia mitol6gica... A linguagem antiga é um instrumento dificil de manipu- lar, em especial com propésitos religiosos. Na linguagem hu- mana, é imposstvel abstrair idéias a no ser por metéforas, endo € exagero dizer que todo o dicionério da religiao antiga € feito de metéforas... Eis aqui uma fonte constante de mal- entendidos, muitos dos quais conservaram seu lugar na reli- gido e na mitologia do mundo antigo!. Considerar, porém, uma atividade humana funda- mental como uma mera monstruosidade, uma espécie de doenca mental, dificilmente pode passar por uma in- terpretagao adequada dessa atividade. Nao precisamos de teorias estranhas e forcadas como essa para ver que para a mente primitiva o mito e a linguagem sao, por O HOMEM E A CULTURA 183 assim dizer, irmaos gémeos. Ambos baseiam-se em uma experiéncia muito geral ¢ muito primitiva da humani- dade, uma experiéncia de natureza antes social que fi sica. Muito antes de aprender a falar, a crianga j4 des- cobriu outros meios mais simples de se comunicar com s pessoas. Os gritos de desconforto, dor ¢ fome, medo € susto que encontramos em todo 0 mundo organico co- mecam a assumir uma nova forma. Deixam de ser rea Ges instintivas simples, pois szio empregados de maneira mais consciente e deliberada. Quando é deixada sozi- nha, a crianca exige por sons mais ou menos articula- dos a presenca da baba ou da mae, ¢ percebe que essas exigéncias surtem 0 efeito desejado. O homem primiti- vo transfere essa primeira experiéncia social clementar para a totalidade da natureza. Para ele, natureza ¢ so- ciedade nao estZio apenas interligadas pelos mais fortes vinculos; formam um todo coerente e indistinguivel. Ne- nhuma linha clara de demarcagio separa os dois domi- nios. A prépria natureza nao passa de uma grande so- ciedade — a sociedade da vida. A partir desse ponto de vista, podemos entender facilmente 0 uso ¢ a funco es- pecffica da palavra magica. A crenca na magia est ba~ seada em uma profunda convicgao da solidariedade da vida?, Para a mente primitiva o poder social da pala- vra, experimentado em intimeras ocasides, torna-se uma forca natural, e até sobrenatural. O homem primitivo sente-se rodeado por todo tipo de perigos visiveis ¢ in- vistveis. Nao pode ter esperancas de superar esses pe- rigos por meios meramente fisicos. Para cle, 0 mundo no é uma coisa morta ou muda; ele pode ouvir ¢ en- tender. Logo, se 0s poderes da natureza forem convo- cados da maneira correta, nao poderao negar-se a aju- 184 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM dar. Nada resiste & palavra magica, carmina vel coelo pos- sunt deducere lunam. Quando o homem comegou a perceber que essa con- fianga era va — que a natureza era inexordvel nao porque relutasse em atender as exigéncias dele, mas por- que nao entendia a linguagem que cle falava — a des- coberta deve ter sido um choque. Nessa altura, ele teve de enfrentar um novo problema que marcou uma vira- dae uma crise em sua vida intelectual e moral. A partir desse momento, o homem deve ter descoberto em si mes- mo uma profunda solidao, ficando sujeito a uma sensa- cao de total abandono e de absoluta desesperanga. Difi- cilmente ele teria superado isso se nao tivesse desenvol- vido uma nova forca espiritual, que barrou o caminho da magia, mas ao mesmo tempo abriu outra estrada mais promissora. Toda esperanca de subjugar a natureza me- diante a palavra mgica fora frustrada. Mas, como re- sultado, o homem comecou a ver a relacao entre a lin- guagem e a realidade sob uma nova luz. A fungao mé- gica da palavra foi eclipsada e substitufda por sua fun- Ho semantica. A palavra deixa de ser dotada de pode- res misteriosos, nao tem mais uma influéncia fisica ou. sobrenatural direta. No pode mudar a natureza das coi- sas € ndo pode forcar a vontade dos deuses ou demé- nios. Nem por isso passa a nio ter sentido ou poder. Nao é simplesmente flatus vocis, um mero sopro de ar. Contudo, o aspecto decisivo nao 0 seu caréter fisico, mas 0 légico. Fisicamente a palavra pode ser declarada impotente, mas logicamente ela é clevada a uma posi- ¢4o mais alta, na verdade a mais alta de todas. O Logos torna-se o princfpio do universo e o primeiro prinefpio do conhecimento humano. O HOMEM E A CULTURA 185 Essa transig&o ocorreu nos primérdios da filosofia grega. Herdclito pertence ainda aquela classe de pensa~ dores gregos a que a Metafisica de Aristételes se refere como os “antigos fisiologistas’” ( c&pxciior puarddoyor). Todo o seu interesse concentra-se no mundo fenome- nal. Ele nao admite que acima do mundo fenomenal, o mundo do “‘devir””, exista uma esfera superior, uma ordem ideal ou eterna de puro ‘‘ser’’, Mas nao se con- tenta com o simples faéo da mudanga; ele busca o princi- pio da mudanga. Segundo Herdclito, esse princfpio nao pode ser encontrado em uma coisa material. Nao é no mundo material, mas no humano, que esté a chave pa- ra uma interpretacio correta da ordem césmica. Neste mundo humano, a faculdade da fala ocupa um lugar cen- tral. Portanto, precisamos entender 0 que a fala signifi- ca para entendermos 0 “‘significado”’ do universo. Se deixarmos de encontrar essa abordagem — a aborda- gem pelo meio da linguagem em vez de pelos fendme- nos fisicos — nfo enxergaremos a porta para a filoso- fia. Até no pensamento de Heréclito a palavra, 0 Lo- gos, nao é um fendémeno meramente antropolégico. Ela nao esta confinada aos estreitos limites de nosso mundo humano, pois possui a verdade césmica universal. Mas em vez de ser um poder mégico apalavra é entendida em sua funcio semAntica ¢ simbélica. ‘‘Nao dés ouvi- dos a mim”, escreve Herdclito, “mas a Palavra, e con- fessa que todas as coisas sio uma.” O pensamento grego primitivo passou assim de uma filosofia da natureza para uma filosofia da linguagem. Mas nesta ele deparou com novas ¢ graves dificuldades. & possfvel que no haja problema mais desconcertante € controvertido que 0 do “significado do significado””, 186 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM Mesmo nos nossos dias, lingiiistas, psicélogos e filéso- fos sustentam opinides amplamente divergentes sobre esse assunto. A filosofia antiga nfo podia enfrentar direta- mente esse intricado problema em todos os seus aspec- tos. Podia apenas dar uma soluco tentativa. Essa solu- co baseava-se em um princfpio que tinha aceitago ge- ral no pensamento grego primitivo, e que parecia estar firmemente estabelecido. Todas as diferentes escolas — tanto 0s fisiologistas como os dialéticos — partiam do pressuposto de que sem uma identidade entre o sujeito que conhece ¢ a realidade conhecida o fato do conheci- mento seria inexplicavel. O idealismo e o realismo, em- bora diferissem na aplicagao desse princfpio, concorda- vam no reconhecimento de sua verdade. Parménides de- clarou que nao podemos separar o ser do pensamento, pois so uma tinica e mesma coisa. Os fildsofos da natu- reza entendiam e interpretavam essa identidade em um sentido estritamente material. Quando analisamos a na- tureza do homem encontramos a mesma combinacio de elementos que ocorre por toda a parte no mundo fisico. O fato de 0 microcosmo ser uma exata contrapartida do macrocosmo torna possivel 0 conhecimento deste tilti- mo. ‘‘Pois é com terra’’, diz Empédocles, “que vemos a Terra, e a Agua com Agua; pelo ar vemos o Ar bri- Ihante, pelo fogo o Fogo destruidor. Pelo amor é que ve~ mos o Amor, ¢ 0 Odio pelo ddio atroz.’”* Aceitando essa teoria geral, qual é o “‘significado do significado”’? Antes de mais nada, o sentido deve ser explicado em termos de ser; pois o ser, ou substdncia, € a categoria mais universal que liga e une a verdade ea realidade. Uma palavra nfo poderia ‘‘significar”” uma coisa se nao houvesse pelo menos uma identidade par- 0 HOMEM E A CULTURA 187 cial entre as duas. as co sil ic Sem essa ligagio natural, uma palavra da linguagem hu- mana nfo poderia cumprir sua tarefa; tornar-se-ia inin- teligivel. Se admitirmos esse pressuposto, que tem sua origem mais em uma teoria geral do conhecimento que em uma teoria da linguagem, estaremos imediatamen- te diante de uma doutrina onomatopéica. Sé essa dou- trina parece capaz de langar uma ponte entre os nomes © as coisas. Por outro lado, essa nossa ponte ameaca ruir em nossa primeira tentativa de usé-la. Para Plato, bas- tou desenvolver a tese onomatopéica em todas as suas conseqiiéncias para poder refuté-la. No didlogo plat6- nico Kralylus, Sécrates aceita a tese & sua maneira irdni- ca. Mas essa aprovagio pretende apenas destruf-la por seu proprio absurdo inerente. O relato que Platao faz da teoria de que toda a linguagem tem origem na imi- taco de sons termina em farsa e caricatura. Mesmo as- sim, a tese onomatopéica predominou por muitos sécu- los. Nem mesmo na literatura recente ela est totalmente obliterada, embora nfo apareca mais nas mesmas for- mas ingénuas que no Kratylus de Plato. ‘A objegao ébvia a essa tese € 0 fato de que, ao ana- lisar as palavras da linguagem comum, ficamos na maior parte das vezes perdidos para descobrir a pretensa se~ melhanga entre os sons ¢ os objetos. No entanto, essa dificuldade pode ser removida assinalando-se que a lin- guagem humana, desde 0 inicio, tem sido sujeita A mu- danga e & deterioragao. Logo, no podemos contentar- nos com ela em seu estado presente. Devemos levar nos- sos termos de volta & origem se quisermos descobrir vinculo que os une a seus objetos. Das palavras deriva- 188 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM das devemos regressar as palavras primdrias; devemos descobrir o étimo, a forma verdadeira e original, de ca- da termo. De acordo com esse principio, a etimologia tornou-se no s6 0 centro da lingiifstica, mas também um dos princfpios basicos da filosofia da linguagem. E as primeiras etimologias usadas pelos gramaticos e fil6- sofos gregos nao sofriam de quaisquer escripulos te6ri- cos ou histéricos. Nenhuma etimologia baseada em prin- cfpios cientificos apareceu antes da primeira metade do século XIX°. Até ent&o, tudo era possivel, ¢ as expli- cages mais fantdsticas e bizarras eram prontamente acei- tas. Além das etimologias positivas, havia as famosas eti- mologias negativas do tipo lucus a non lucendo. Enquanto esses esquemas mantiveram o dominio, a teoria de uma relacio natural entre nomes e coisas pareceu ser filoso- ficamente justificdvel ¢ defensavel. Mas havia outras consideragdes gerais que desde 0 infcio militavam contra essa teoria. Os sofistas gregos, de certo modo, eram discfpulos de Herdclito, Em seu didlogo Theaetetus, Plato chegou a dizer que a teoria so- fistica do conhecimento nfo tinha qualquer direito a dizer-se original. Proclamou que era uma excrescéncia ¢ um corolério da doutrina heraclitiana do ‘‘fluxo de to- das as coisas’”. No entanto, havia uma diferenca nao- erradicavel entre Herdclito e os sofistas. Para o primei- ro a palavra, o Logos, era um principio metafisico uni- versal, dotado de veracidade geral, validade objetiv: Mas os sofistas nfo admitem mais a “‘palavra divina’”” que Herdclito afirmava ser a origem e o primeiro prin- cipio de todas as coisas, da ordem césmica e moral. A i i O homem tornou-se 0 centro O HOMEM E A CULTURA 189 do universo. Segundo 0 dito de Pitagoras, ‘‘o homem € a medida de todas as coisas, das que so, do que sio — ¢ das que nao sao, do que nao sao’’. Procurar por qualquer explicacao da linguagem no mundo das coisas fisicas €, portanto, vao e intitil. Os sofistas haviam en- contrado uma abordagem nova e muito mais simples pa~ ra a fala humana. Foram os primeiros a tratar dos pro- blemas lingiifsticos ¢ gramaticais de modo sistematico. Contudo, nao estavam preocupados com esses proble- mas em um sentido apenas teérico. Uma teoria da lin- guagem tem outras tarefas mais urgentes a cumprir. Pre cisa ensinar-nos a falar ¢ a agir em nosso mundo social ¢ politico real. Na vida ateniense do século V, a lingua- gem tornara-se um instrumento com propésitos defini- dos, concretos ¢ praticos. Era a mais poderosa arma nas grandes lutas polfticas. Ninguém podia ter esperancas de desempenhar um papel importante sem esse instru- mento. Era de vital importdncia us4-lo da maneira cor- reta, aprimoré-lo e afid-lo. Para tal fim, os sofistas cria~ ram um novo rumo de conhecimento. A retérica, € nao a gramitica ou a etimologia, tornou-se a principal preo- cupagao deles. Em sua definicfo de sabedoria (sophia), a retérica ocupa uma posigao central. Todas as dispu- tas sobre a ‘‘verdade”” e a ‘‘corregao”’ (6p86rns) dos ter- mos € nomes tornaram-se fiiteis e supérfluas. Os nomes nao servem para expressar a natureza das coisas. Nao tém quaisquer correlatos objetivos. Sua verdadeira ta~ refa nao é descrever as coisas, mas despertar emogdes humanas; nao transmitir meras idéias ou pensamentos, mas incitar os homens a certas aces. Vimos até aqui trés aspectos da fungao e do valor da linguagem: o mitolégico, o metafisico e o pragmati- 190 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM co. Mas todas essas explicagdes parecem de certo modo errar 0 alvo, pois deixam de notar uma das caracteristi- s mais evidentes da linguagem. As expresses huma- nas mais elementares niio se referem a coisas fisicas, nem sio sinais meramente arbitrérios. A alternativa entre ob ae by © Béaet by nao se aplica a clas, Sao ‘“‘naturais’””, e nfo “‘artificiais”’; mas nao tém qualquer relacio com a natureza dos objetos externos. Nao dependem da sim- ples convencio, do costume ou do habito; tém raizes muito mais profundas. Sdo uma expresso involuntria de sentimentos, interjeigdes ¢ exclamagées humanas. Nao foi por acaso que essa teoria interjecional foi introduzi- da por um cientista natural, o maior cientista dentre os pensadores gregos. Demécrito foi o primeiro a propor que a fala humana tem origem em certos sons de caré- ter meramente emocional. Mais tarde, a mesma posi- 40 foi defendida por Epicuro ¢ Lucrécio, baseados na autoridade de Demécrito. Ela exerceu uma influéncia permanente sobre a teoria da linguagem. Ainda no sé- culo XVIII ela aparece quase na mesma forma em pen- sadores como Vico ¢ Rousseau. Do ponto de vista cien- tifico, é facil entender as grandes vantagens dessa tese interjecional. Nela, aparentemente, nao precisamos mais apoiar-nos apenas na especulacao. Revelamos alguns fa- tos verificdveis, ¢ estes nao esto restritos a esfera hu- mana. A fala humana pode ser reduzida a um instinto fundamental implantado pela natureza em todas as cria- turas vivas. Exclamagoes violentas — de medo, raiva, dor ou alegria — nao sio uma propriedade especifica do homem. Encontramo-las por toda a parte no mundo animal. Nada mais plausfvel que atribuir o fato social da linguagem a essa causa biol6gica geral. Se accitamos O HOMEM E A CULTURA 191 a tese de Demécrito ¢ seus pupilos e seguidores, a se- mAntica deixa de ser uma provincia separada; torna-se um ramo da biologia e da fisiologia. No entanto, a teoria interjecional sé pode chegar & maturidade depois que a propria biologia encontrou uma base cientifica. Nao bastava ligar a fala humana a certos fatos biolégicos. Essa ligacio tinha de ser ba- seada em um principio universal, principio proporcio- nado pela teoria da evolugao. Quando 0 livro de Dar- win apareceu, foi 86 pelos cientistas e filésofos, mas também pelos lingii tas. August Schleicher, cujos primeiros escritos mostram- no como um adepto e pupilo de Hegel, tornou-se um convertido de Darwin®. O proprio Darwin havia trata~ do 0 seu tema estritamente do ponto de vista de um na- turalista. Mas 0 seu método geral era facilmente aplic4- vel a fendmenos lingiifsticos, e até mesmo nesse campo pareceu ter aberto um caminho inexplorado. Em The Ex- pression of Emotions in Man and Animals, Darwin mostra~ ra que os sons ou atos expressivos sfo ditados por certas, necessidades biolégicas e usados segundo regras biolé- gicas definidas. Abordado desta perspectiva, o enigma da origem da linguagem podia ser tratado de modo es- tritamente empirico e cientifico. A linguagem humana deixou de ser um ‘estado dentro do estado” ¢ tornou- se, a partir desse momento, um talento natural geral Ainda havia, porém, uma dificuldade fundamen- tal. Os criadores das teorias biolégicas sobre a origem da linguagem deixaram de ver o bosque por causa das Arvores. Partiram do pressuposto de que um caminho direto liga a interjeigao a fala. Mas isso é evadir a ques- to, e no solucion-la, Nao era apenas 0 fato, mas to- judado com 0 maior entus' 192 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM da a estrutura da linguagem, que precisava de uma ex- plicaco. Uma andlise dessa estrutura revela uma dife- renca radical entre a linguagem emocional ¢ a propos cional. Os dois tipos nao esto no mesmo nfvel. Mesmo que fosse possivel ligd-los geneticamente, a passagem de um tipo para o oposto nunca deixaria de ser logicamen- te uma metabasis eis allo genos, uma transigao de um g@- nero para outro. Tanto quanto eu saiba, nenhuma teo- ria biol6gica conseguiu jamais apagar essa distingao 16- gica e estrutural. Nao temos absolutamente nenhuma prova psicolgica de que algum animal atravessou ja- mais a fronteira entre a linguagem proposicional e a emo- cional. A chamada “‘linguagem animal’” nunca deixa de ser inteiramente subjetiva; ela expressa varios esta- dos de sentimento, mas nfo designa, nem descreve, objetos’, Por outro lado, nao hd qualquer prova hist6- rica de que 0 homem, mesmo nos est4gios mais primi- tivos de sua cultura, tenha jamais estado reduzido a uma linguagem puramente emocional ou a linguagem dos ges- tos. Se quisermos seguir um método empirico estrito, deveremos excluir todo pressuposto desse tipo como, se nao totalmente improvavel, pelo menos duvidoso ¢ hi- potético. Na verdade, um exame mais cuidadoso dessas teo- rias leva-nos sempre a um ponto em que o proprio prin- cfpio em que se baseiam torna-se questiondvel. Apés avangar alguns passos nesse argumento, os defensores dessas teorias so forcados a admitir ¢ a sublinhar as mes- mas diferengas que a primeira vista pareciam negar ou, pelo menos, minimizar. Para ilustrar esse fato, escolhe- rei dois exemplos concretos, o primeiro da lingiifstica € 0 segundo da literatura psicolégica ¢ filosdfica. Otto O HOMEM E 4 CULTURA 193 ‘Jespersen foi talvez o tiltimo lingiiista moderno a con servar um forte interesse pelo velho problema da ori- gem da linguagem. Ele no negava que todas as solu- Bes anteriores do problema haviam sido muito inade- quadas; com efeito, estava convencido de ter descober- to um novo método, que prometia mais éxitos. “‘O mé- todo que recomendo”, declara Jespersen, © que sou o primeiro a empregar cocrentemente, € remontar nossas linguas modernas to para trés no tempo quanto nos permitam a histéria e nossos materiais.... Se por esse proceso chegarmos finalmente & prontincia de sons de uma tal nature- za que nao mais possam ser chamados de linguagem verda- deira, mas de algo anterior & linguagem — ora, ento 0 pro- blema terd sido resolvido; pois a transformacao é uma coisa que podemos entender, ao passo que uma criaco baseada no nada nunca pode ser compreendida pelo entendimento humano. Segundo essa teoria, tal transformagao teve lugar quando as expresses humanas, que a princfpio no passavam de gritos emocionais ou talvez frases musicais, foram usa- das como nomes. O que fora originariamente um amon- toado de sons sem sentido tornou-se assim, repentina- mente, um instrumento de pensamento. Por exemplo, uma combinagao de sons, cantada segundo uma certa melodia ¢ empregada como canto de triunfo sobre um inimigo derrotado e morto, podia ser transformada em um nome préprio para aquele acontecimento peculiar ou até para o homem que matou o inimigo. E 0 desen- volvimento podia entdo prosseguir, mediante uma trans- feréncia metaférica da expresso, para situagdes seme- 194 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM Ihantes®. No entanto, € precisamente essa “‘transferén- cia metaférica’” que contém todo 0 nosso problema re- sumido. Tal transferéncia significa que os sons pronun- ciados, até ent&o meros gritos, descargas involuntarias de emocées fortes, estavam cumprindo uma tarefa in- teiramente nova. Estavam sendo usados como simbo- los para transmitir um sentido preciso. O proprio Jes- persen cita uma observacao de Benfey segundo a qual entre a interjeigao ¢ a palavra ha um abismo largo o bas- tante para que possamos dizer que a inte do Jespersen, a linguagem surgiu quando ‘“‘a communi catividade assumiu a precedéncia sobre a exclamativi- dade’’. & precisamente este passo, todavia, que a teoria nao explica, mas pressupoe. ‘A mesma critica vale para a tese desenvolvida no livro de Grace de Laguna, Speech, Its Function and Deve- lopment, Nele encontramos um enunciado muito mais de- talhado ¢ elaborado do problema. Os conceitos um tan- to fantasticos que encontramos &s vezes no livro de Jes- persen sao eliminados. A transigao do grito para a fala € descrita como um processo de objetivaciio gradual. As qualidades afetivas primitivas ligadas & situac’o como um todo foram diversificadas e ao mesmo tempo dife- renciadas dos aspectos percebidos da situagao. ‘... sur- gem objetas, que sio conhecidos em vez de sentidos... Ao mesmo tempo, essa condicionalidade ampliada assume uma forma sistematica.., Finalmente,... a ordem obje- tiva da realidade aparece e 0 mundo torna-se verdadei- ramente conhecido."”” Estas objetivacao e sistematiz co consistem, com efeito, na tarefa principal e mais im- 0 HOMEM E A CULTURA 195 portante da linguagem humana. Mas nfo consigo ver de que modo uma teoria meramente interjecional pode explicar esse passo decisivo. E na explicagio da Profes- sora de Laguna a separacao entre as interjeigdes ¢ os no- mes nao foi transposta; ao contrario, destaca-se com ain- da mais nitidez. F. um fato notdvel que esses autores que, de maneira geral, tém estado inclinados a crer que a fa- la desenvolveu-se a partir de um estado de simples in- terjeigdes tenham sido levados & concluséo de que, afi- nal de contas, a diferenga entre os nomes ¢ as interjei- des é muito maior e muito mais evidente que sua su- posta identidade. Gardiner, por exemplo, parte da afir- magio de que entre a linguagem animal ¢ a humana h4 uma “homogeneidade essencial”’. Mas ao desenvolver a sua teoria ele tem de admitir que entre as expresses animais e a fala humana hd uma diferenga tao vital que chega quase a encobrir a homogeneidade essencial"® Na verdade, a aparente semelhanca é apenas uma liga- cdo material que nao exclui, mas, ao contrério, acen- tua a heterogeneidade formal, funcional. ‘A questo da origem da linguagem exerceu em to- das as épocas um estranho fascinio sobre a mente hu- mana. Desde o primeiro vislumbre de intelecto 0 homem comecou a intrigar-se com esse assunto. Em muitos re- latos miticos ficamos sabendo que o homem aprendeu a falar com Deus em pessoa, ou com a ajuda de um pro- fessor divino. Tal interesse pela origem da linguagem seré facilmente compreensivel se aceitarmos as premis- 196 10 SOBRE 0 HOMEM sas bdsicas do pensamento mitico. O mito nao conhece outro modo de explicagio além de remontar ao passado remoto e derivar o estado presente do mundo fisico humano desse est4gio primevo das coisas. No entanto, € surpreendente ¢ paradoxal encontrar essa mesma ten- déncia ainda predominante no pensamento filos6fico Embora estivesse presente por muitos séculos, a ques- ‘Go sistematica foi obscurecida pela genética. Conside- rava-se como uma conclusao inevitavel que, uma vez resolvida a questo genética, todos os outros problemas seriam prontamente solucionados. A teoria do conheci- mento ensinou-nos que devemos sempre tracar uma li- nha clara de demarcagao entre os problemas genéticos € 08 sistematicos. A confusdo entre esses dois tipos é en- ganadora e perigosa. Como é que essa maxima meto- dolégica, que em outros ramos de conhecimento pare- cia estar firmemente estabelecida, foi esquecida no tra- tamento de problemas lingiifsticos? E claro que seria do maior interesse ¢ da maior importancia estar em posse de todas as provas historicas relativas & linguagem — ser capaz de responder & questo sobre a derivacio das Iinguas da terra de um tronco comum, ou de rafzes di- ferentes independentes, ¢ ser capaz de acompanhar pas- 80 a passo o desenvolvimento dos idiomas ¢ tipos lin- silisticos individuais. Mas nem isso bastaria para resol- ver os problemas fundamentais de uma filosofia da lin- guagem. Em filosofia, nao podemos contentar-nos com o simples fluxo das coisas e com a cronologia dos acon- tecimentos. Nela devemos, de certo modo, aceitar sem- pre a definico platénica segundo a qual o conhecimen- to filoséfico € um conhecimento do ‘‘ser’’, e nao do sim- ples “‘devir’”. E claro que a linguagem no tem qual- 0 HOMEM E A CULTURA 197 quer ser fora ¢ além do tempo; ela no pertence ao do- minio das idéias eternas. gem. Nao obstante, 0 estudo de todos esses fendmenos ni € 0 bastante para fazer-nos entender a funcio geral da linguagem. Dependemos de dados histéricos para a andlise de cada forma simbélica. A pergunta sobre o que “‘sio"’ o mito, a religido, a arte ¢ a linguagem nao pode ser respondida de maneira puramente abstrata, Por uma definigao légica. Por outro lado, ao estudar a religi zo, a arte e a linguagem, deparamos sempre com proble- mas estruturais gerais que pertencem a um tipo espe- cial de conhecimento. Esses problemas devem ser tra- tados separadamente; nao é possivel lidar com eles, nem solucioné-los, por meio de investigagdes meramente his- toricas _ No século XIX, ainda era uma opinio corrente € de aceitagfio geral que a histéria € a nica chave para um estudo cientifico da fala humana, Todas as grandes realizagbes da lingiifstica vieram de estudiosos eujo in- teresse hist6rico cra a tal ponto predominante que im- possibilitava qualquer outra tendéncia de pensamento. Jakob Grimm estabeleceu as primeiras fundagbes para ‘uma gramética comparativa das linguas germanicas. A gramética comparativa das linguas indo-curopéias fii ciada por Bopp ¢ Pott, ¢ aperfeigoada por A. Schleicher, Karl Brugmann ¢ B. Delbriick. O primeiro a leva a questio dos principios da hist6ria lingiifstica foi Her- mann Paul. Ele tinha plena consciéneia do fato de que sozinha a pesquisa hist6rica nio podia solucionar todos os problemas da fala humana. Insstia que o conhec- mento histérico tem sempre necessidade de um comple- 198 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM mento sistemético. A cada ramo do conhecimento his- t6rico, declarou ele, corresponde uma ciéncia que trata das condiges gerais sob as quais os objetos histéricos evoluem e que estuda os fatores que permanecem inva- ridveis em todas as mudangas dos fenémenos huma- nos!!. O século XIX nio foi s6 histérico, mas também Psicol6gico. Portanto, era bastante natural presumir, pa- recia até evidente, que os prinefpios da hist6ria lingifs- tica deveriam ser procurados no campo da psicologia, Estas foram as duas pedras fundamentais dos estudos lingtifsticos. “Paul e a maioria de seus contemporaneos”” diz Leonard Bloomfield, ; tratavam apenas das linguas indo-curopéias e, com o menos: prezo que tinham pelos problemas descritivos, recusavam-se a trabalhar com Iinguas cuja hist6ria fosse desconhecida. Essa imitagao afastou-os do conhecimento de tipos estrangeiros de estrutura gramatical, que teria aberto os olhos deles para o fa- to de que até os aspectos fundamentais da gramética indo- curopéia... no so de modo algum universais na fala huma- na... Paralelamente a grande corrente de pesquisa historica havia, contudo, uma corrente pequena, mas cada vez mais ace- lerada, de estudos lingifsticos gerais... Alguns estudiosos viam com clareza cada vez maior a relaco natural entre os estudos descritivos ¢ os histéricos... A fusio dessas duas correntes de ‘estudo, a hist6rico-comparativa ¢ a filoséfico-descritiva, escla- Feceu alguns principios que nao eram aparentes para os gran- des indo-europefstas do século XIX... Todo estudo hist6rico da linguagem bascia-se na comparagio de dois ou mais con- Juntos de dados descritivos. $6 pode ser tio preciso € to com- pleto quanto the permitam esses dados. Para descrever uma Iingua, nao é preciso absolutamente nenhum conhecimento histérico; na verdade, 0 observador que permita que tal co- O HOMEM E A CULTURA 199 nhecimento afete sua descricio est4 fadado a distorcer seus dados. Nossas descrigées nao deverdo ter preconceitos, se qui- sermos que sejam uma base sélida para o trabalho compara- Esse principio metodolégico havia encontrado a sua primeira expressio, talvez classica, na obra de um grande lingiiista e grande pensador filoséfico. Wilhelm von Humboldt deu o primeiro passo no sentido de clas- sificar as linguas do mundo e reduzi-las a certos tipos fundamentais. Para esta finalidade, no podia empre- gar métodos exclusivamente histéricos. As linguas que cle estudou jA nfo foram apenas as do tipo indo- curopeu. Seu interesse era verdadeiramente abrangen- te, ¢ inclufa todo 0 campo dos fendmenos lingiisticos. Ele fez a primeira descrig&o analitica das linguas ame- ricanas nativas, utilizando a abundancia de material que seu irmao, Alexander von Humboldt, trouxera de suas viagens exploratérias pelo continente americano. No segundo volume da sua grande obra sobre as va- riedades da fala humana!3, W. von Humboldt escre- veu a primeira gramatica comparativa das Ifnguas au tronésias, 0 indonésio e o melanésio. No entanto, nao existiam quaisquer dados histéricos para essa gramati- ca, sendo a hist6ria dessas Iinguas totalmente desco- nhecida. Humboldt teve de abordar o problema a par- tir de um ponto de vista inteiramente novo, ¢ abrir seu préprio caminho. ‘Mesmo assim, seus métodos eram estritamente em- piricos; baseavam-se em observacGes, nio em especu- laces. Mas Humboldt nao se contentava com a descri- Gao de fatos particulares. Extrafa imediatamente desses

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