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ti lie ESPECIAL O pensamento filoséfico-feminista DE SIMONE DE BEAUVOIR Obra da pensadora francesa permanece como ponto de interlocugao no debate atual sobre género MAGDA GUADALUPE DOS SANTOS esde o final dos anos 1980 verifica-se uma retomada de interesse pelas obras de Simone de Beauvoir, sobretudo no referente as quest6es floséficas, Relidos de distintas angu- lagbes, como a ética, « politica e a corporeidade, por pes- quisadoras de varias partes do mundo (Sara Heinémaa, M. Luisa Femenias e Carla Rodrigues), os textos de Beauvoir desvelam uma fenomenologia da experiéncia e da condicio das mulheres, em que se efetiva tanto a interlocusto entre o Eu e 0 Outro, a corporeidade e a sexualidade, quanto a desconstrucio identtiria de um suposto sujeito femninino. O que resulta é uma filosofia feminista bastante atual, pre- sente ndo apenas na sua mais conhecida obra, O segundo sexo, de 1949, como também no conjunto dos escritos de ficgio e ensaios, nos textos autobiogréficas ¢ de meméria, A fenomenologia tradicional, de Husserl a Merieau-Ponty e Sartre, investiga o corpo vivido sempre enquanto experiéncias genéricas, no sentido de se identificarem certas estruturas fundamentais, apresen- ‘tando uma perspectiva dita universal, numa dic¢ao bastante masculina Assim, a filosofia da primeira metade do século 20 néo parece se des- tacar do pensamento tradicional, jd que o sujeito masculino assume a vor da universalidade corpérea e essencial. Nesse contexto é que Simone de Beauvoir rompe com as bases tredicionais de pensar e fazer filosofia, ao adotar um ponto de vista feminino do corpo vivido, o que constitui uma auténtica fenomenologia da experiéncia de mulheres em sua especifcidade de gnero, como afirma Sara Heinimaa. Nos escritos de Beauvoir o termo que se usa como diferencial de experigncias vividas entre mulheres ¢ homens néo € género, mas sexo. Entretanto, a filosofia feminista dos anos 1970 em dante reconhece => e207 BOO ——— Jese-Pou Sartre, Senane de Base ——f] ir = ZF FA SF FT FA A FA EZ ZF FZ 7 FZ SF SF A ——+ SIMONE DE BEAUVONR as caractersticas de género que ela utiliza, dan- do inicio a duas correntes opostas a da diferen- a sexual e ada teoria do género.Se a teoria da dtiferenga sexual tem origem curopeia ea teoria do género procede do ambiente anglo-america- xno, ambas sto devedoras de O segundo sexo em seu entendimento do género como uma cons- tragio social e cultural Desse prisma, 0 femi- nismo da diferenca seul, com Hélene Cixous, Luce Irigaray e Rosi Braidotti, considera o ge- nero como um conceito produzide e encerrado nna ordem mascalinaefalogocéntrica da cultura patriaccal ocidental, O género é entendido ‘como tum produto cultural que se sobrepOe a uum sujeito corporal previamente dado, ou seja ‘© género é um suplemento, um significado acrescentado corporeamente. Nesse sentido, 0 sexo seria um dado nao acidental, auténtico, ‘que permanece sem representacdo, ou sea, se faz representar somente como a falta deinscri- 0 na linguagem e no dominio da ordem si bbolica masculina, que impoe a logica do nies- ‘mo, do uno, do ser, em face do outro, negado, 0 subordinado: a mulher. O sexo ferninino & assim 0 outro do Outro, escreve Irigaray, em Speculum de Faure femme (1975). Zia Gata na lea de So Franiaco am Sabor 1940 No variado espectro da teoria de g?nero, pensadoras ferainistas t8m discutido, a partir de Beauwoir, com opedes liberais, como as de Kate Millet, com alternativas igualitirias, co- mo as de Beity Friedan, e, com elaboragdes que transcendem ¢ marca do sexo, como em ‘Monique Wittig e Judith Butler, De modo bas- ‘ante critico, Butler, especialmente em Gender trouble (1990), enfatize as préticas sexuais aci- ‘ma da identidade de género ou sexual e separa sexualidades e género, de modo a revisar a opressdo sobre elas exercida por outros.ele- ‘mentos, inclusive o da regulacio sexual, ques- tionando as dissonancias entre identidades de ginero e priticas sexuais. Nesse debate atual sobre a problematizagéo do género, a obra de Simone de Beauvoir per- manece como ponto de interlocugéo e se abre anovasabordagens epistemolégicas. Repensar ‘lugar dos fetninismos nos discursos filossficos atuais €0 desafio que leva a novas indagagées sobre as possbilidades de identidades generi- zadas, Se io hd como destacar abstratamente “a mulher”, como falar de experiéncias de mu- Theres, individuadas e descritas por meio de uma situagao de muther? O que os escritos de ‘Beauvoir realgam é justamente essa dimensio paradoxal constituida pela experiéncia das, ‘mulheres em geral, num mundo registrado pe los homens, autotizado pelos cédigos e leis dos homens, abengoedo pelas religides e para- digas masculinos. E por Beauvoir saber transitar por uma expressiva variedade de generos, como os en- seios, 08 romances, o jornalismo politico e textos autobiogréficos, que uma multplicidade de vores ¢ trazida para seu projet filos6fico, cabendo salientar que ela sempre se conside- rou apenas uma escritora. Dizer isso, contudo, ‘io implica que abdique de abordar os varios contornos do mundo, as questdes da vida real ¢ 08 sexismos que perpassam teses e argumen- tos feministas. Seu método de trabalhar a realidade & sem diivida fenomenoligico, buscando estar sem- pre consciente de seu entorno ede suas viven- clas, mas leva em consideragdo sua situagao cultural ehistrica como uma nmuther francesa de meados do século 20. A interrogagio inaugural de O segundo sexo é “oque é uma mulher?” E o pressuposto de experiéncia que ela assume ‘éen sou uma malher”, Centrando-se sempre numa moral da ambi- guidade, em que se realga 0 apreco a vida e o questionamento de suas condigées de possiblidade, Beauvoir traz para os debates feministas a dimensio fenomenolégica de fornar-se mulher. Nesse sentido, ela tanto descrevea situagio de “mé-fé” enquanto um comportamento feminino ‘que se lange & histeria, narcisismo, abandono e violéncias, resultando za assungdo de um destino de “a mulher” e das mulheres como uma concepcdo social, quanto se vé ligada ao destino de todas as mulheres enquanto alguém que descreve a realidade, mas se percebe inserida no Contexto situacional e contingencial de sua vida. Beauvoir escreve em uma de suas obras de meméria, Tout compte fait (1972): “Aprisionando-a em frases, meu relat faz-de minha histéria ume realidade acabada que ela nio é”, Seu projeto de vida se orienta, sobre: tudo, para o relato da vida, ato no qual sujeito e objeto temitico se mes- clam em unidades ¢ interrupgées; tal como um sujeito que registra 0 mundo e que nele se insere para experimenté-lo corporalmente enguanto ‘uma mulher que discuteigualdade ediferenca,subjetividade ealteridade, cultura e suas determinagOes natualizantes e assimétricas. Levando em consideragao sua influencia nas correntes feministas, seu legado explicita-se como uma tenséo dialética entre 0 singular e ‘universal, a situagao historica das vérias mulheres em suas caracte- risticas de género, raga, etni classe social, participagio politica, vi- véncia sexuais ecorpéreas eas anélises¢ teses feministas sobre igual- dade e diferencas, opresslo ¢ alteridade. A partir de O segundo sexo, 9s feminismos puderam compreender que cada mulher passa por experiéncias individuais de opressio ¢ de exclusio, a articulagdo dia- lética entre o geral eo particular desenhando o quado valorativo das experiéncias vividas, Contudo, como se mosira em O segundo sexo, a questio acerca do “que & uma mulher” ea afirmagzo de no neutralidade epistemol6gica diante dessa pergunta levam Beauvoir, nesta obra e nas memiérias, a distinguir dois tipos de alteridade: aquela entre os iguais e uma outra entre os dife- rents, entre os quaisnao ha que falar em reciprocidade. Fo tragodialégico de suas obras que torna possivel&flosofa reconbecer aspectos das femi- nismos e problematizé-los sob enfoques sempre renovados. Nr207 Emm 13 ENTREVISTA Simone por Sylvie Herdeira e editora da obra da fildsofa, Sylvie Le Bon de Beauvoir analisa 0 legado intelectual deixado pela autora presento a0 piblico leitor Sylvie Le Bon de Beauvoir, tal como ela mesma gosta de se nomear: “herdeira ceditora de Simone de Beauvoir”. Bem mais do que sum filha escolhida e adotada pela ilbsofae escri tora, clase fez verdadeira guardia de suas obres. Entre as duas intelectuais, apesar da diferenca de idade, desenvolveu-se uma grande amizade, um firme vinculo de recfproca confianga e solidariedade, recontado numa das obras de autobiografia de Beauvoir, Tout compte fait (1972), tradwzida no Brasil como titulo de Balanco Final. Aposa morte de escritora, competiv.a Sylvie Le Bon de Beauvoir a edigdo de suas cartas, diario de juventude e escritos inéditos. LeBene Sione.de Beawoir ne feir Se Mulheres sm Vinesenes, 1972 14 BBL 207 TA HEH De que maneira a senhora compreende a recepciio de O segundo sexo hoje? A senhora ‘ré que nas diltimas décadas a condigio das ‘mulheres mudou tao radicalmente que 0 se- _gundo sexo tem pouco a nos dizer hojeem dia? Svivie tt 20n De neauvonr F inegével que, desde algumas décadas, muita coisa mudou para as utheres; em muitos paises elas adquiriram direitos que as colocam, no trabalho, na con- ‘vivencia conjugal e na familia, em igualdade com os homens, ¢ continuaram a conquistar sua independéncia econémica, fazendo serem reconhecidas e aceitas as suas competéncias ‘em muitas profissdes antes a elas vetadas. O acesso & contracepeao ea liberdade de aborto sto, na hist6rig da humanidade, uma revolu- ‘gio sem precedentes, fundamento concreto de todos os ontros progressos. O que mudou no Estado de direito nos iltimos trinta anos é que agora a vor das mulheres existe, mesmo quan- do ela é desrespeitada, abafada, ridiculatizada, Nao se poderd mais fazé-la calar. A posigio do ferninismo poderia ser defini da assim: “Nada se deve &s mulheres porque ‘eles sio mulheres, mas nada deve-Ihes ser proi- bido porque sdo mulheres”, Ora, essa reivindi- cago, que tem a simplicidade das grandes verdades, estélonge de ser ouvida em todos os lugares; as razdes, portanto, persistem e O segun- do sexo ainda tem muito que dizer as matheres. ( fato de que nao se para de traduzi-lo para as linguas mais variadas a0 redor do mundo é ‘uma prova indireta diss. Antes de tudo, os ganhos reais menciona- dos sio efetivos apenas em certos paises ricos ¢ desenvolvidos. Mesmo nesses casos privi- legiados, nenhum diteito se encontra total e definitivamente gerantido, todos podem ser ameagados - bastando lembrar o exemplo dos Estados Unidos, onde os oponentes do direito a0 aborto ndo se deixam desarmar, Quanto as, imensas regides do mundo onde reinam os fundamentalismos religiosos ow o puro ma- cchismo, 0 estatuto de ser humano ainda con- ‘nua negado as mulheres: desprezadas, opri- midas, violentadas, elas permanecem como seres inferiores e humilhados. Por outro lado, e disso se esquece com fre- quéncia, O segundo sexo nao reivindica apenas aemancipagio das mulheres, ele reivindica sua liberdade, duas coisas que no devem ser confundidas. Pode-se dizer que 1 liberdade sé comega onde a emancipacio é adquirida. A segunda con-

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