Uma Cena em Vermelho: Um Breve Estudo Iconológico Da Sessão de Pose de Veruschka, em Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni - Carlos Fernandes

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Uma cena em vermelho: um breve estudo iconológico da sessão de pose de


Veruschka, em Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni

Carlos Fernandes – UFRJ

“Um disco toca durante a sessão, e ‘a única coisa entre você e a


garota é a câmera’ […]” - Karl Miller apud Murray Pomerance
em Michelangelo red Antonioni blue (2011)1

1. O objeto de análise. Tentaremos descrever, analisar e interpretar uma das cenas da sessão de
pose da célebre modelo internacional Veruschka, presente no filme Blow-up, de 1966, dirigido por
Michelangelo Antonioni (1912-2007). Tal cena foi estampada tanto em capas de DVD quanto em
cartazes de divulgação do filme (figuras 1 e 2).

Figura 1: Capa de DVD em inglês de Blow-up (1966). Figura 2: Poster italiano de Blow-up (1966).

Nesse sentido, nossa análise recai sobre um objeto considerado menor, inferior e
aparentemente sem significado, em oposição às grandes obras de arte, como, por exemplo, as
pinturas e as esculturas, estas sim há muito consagradas pela história da arte e amplamente
estudadas. Logo, o que podemos esperar destes objetos manchados pela utilidade como um cartaz
comercial ou, coisa ainda mais insignificante, uma capa de DVD?

1 No original em inglês: “A record plays throughout the session, and ‘the only thing between you and the girl
is the camera’ […]”.
2. O cineasta e o filme. Michelangelo Antonioni (1912-2007) foi um cineasta italiano com uma
filmografia considerável. Seu primeiro sucesso de público foi a trilogia L’avventura (1960), La
notte (1961) e L’eclisse (1962), seguida por Il deserto rosso (1964), filmes que dialogam com o
conceito de alienação. Diferente de seus contemporâneos, a saber, os cineastas Federico Fellini e
Luchino Visconti, cujos filmes tem como estrutura básica da narrativa, respectivamente, a presença
obsessiva da infância ou a insistência em recordações literárias, os filmes de Antonioni giram em
volta sempre da busca, quase sempre associada a uma morte (Cf. MELLO E SOUZA, 2005).
Assim sendo, Blow-up2 não foge à regra. Apesar de ter alcançado grande sucesso de público
na época, trata-se também de um filme complexo. Inspirado no conto Las babas del diablo (versado
para o inglês Blow-up), do argentino Julio Cortázar, Blow-up narra um ou, no máximo, dois dias do
fotógrafo Thomas (David Hemmings), numa Londres de meados da década de 1960, tomada pelo
movimento Flower Power, pela liberação sexual, pelas drogas e pelo rock and roll.
Em resumo, após passar a noite fotografando operários de uma fábrica, Thomas retorna para
seu estúdio, realiza alguns ensaios fotográficos de moda e, posteriormente, dirige-se para um parque
público e, lá, fotografa por entre as árvores o que considera ser um casal romântico inicialmente. Ao
perceber que está sendo fotografada, a mulher (Vanessa Redgrave) corre em direção a Thomas,
proíbe os registros e lhe pede os negativos da câmera. Thomas se recusa a entregá-los, retorna para
seu estúdio, revela as fotografias e, a partir daí, nota que talvez tenha presenciado um crime, ao
invés de uma cena amorosa, passando a investigar o que realmente ocorreu naquela tarde no parque.

3. A metodologia. A cena da sessão de pose de Veruschka (figura 3) ocorre no início do filme e


pode ser considerada dispensável para a compreensão da narrativa principal. É, portanto, uma cena
periférica e, aparentemente, sem relevância. Entretanto, ela serviu, como já dissemos acima, de
imagem de promoção e circulação do filme. Assim sendo, perguntamo-nos o que poderia haver de
“invisível” por trás dessa cena “visível”: haveria algum significado? Se sim, qual?

2 O filme teve seu título modificado, insolitamente, na versão brasileira, como Depois daquele beijo e, na versão
portuguesa, como História de um fotógrafo.
Figura 3: Cena da modelo Veruschka (interpretando ela mesma) com o fotógrafo Thomas (David Hemmings) em Blow-up (1966).

Na tentativa de decifrar, talvez, algum significado velado a um olhar leigo e despreparado,


visto que o mundo é aquilo que vemos, como já dizia o filósofo Merleu-Ponty (2014, p. 18), e que,
no entanto, precisamos aprender a vê-lo, julgamos que seria mais proveitoso o “método” de leitura
visual proposto por Erwin Panofsky (2012), visto que este considera a iconologia como um
“exercício de leitura” capaz de explicitar e comunicar o significado das imagens. Portanto, assim
aparelhados, tentemos então ver com mais alento a cena da sessão de pose de Veruschka.
Primeiro nível: a descrição pré-iconográfica. Neste nível primário, no qual podemos
enumerar e descrever os “motivos artísticos” da cena, percebemos a existência de dois seres
humanos e de um “objeto”. (1) A figura humana deitada leva os braços soltos acima da cabeça; a
pele é branca e os cabelos longos são louros. Ela está vestida de preto com detalhes brilhantes e seu
olhar parece se dirigir para o “objeto”. Sua pose é, se assim podemos dizer, passiva. Em flagrante
oposição, no entanto, (2) a segunda figura humana está numa posição ativa e, entre seus joelhos,
tem sob domínio a outra figura. Sua pele é branca e seus cabelos também são louros, mas sua
vestimenta superior difere daquela, não só pelo tom azul, mas por estar aberta. Seu corpo pende
para o corpo deitado e, em suas mãos, segura o “objeto”, atolado em seu rosto e mirando,
perfunctoriamente, a outra face humana. Já do (3) “objeto” podemos dizer que ele é preto com
detalhes prateados e seu tamanho é próprio para ser manuseado. A atmosfera do ambiente, por fim,
é artificial.
Uma observação. Mas mesmo esta descrição que se pretende ser pré-iconográfica esbarra
em dificuldades e, por isso, podemos chamá-la também de pseudo-formal, na medida em que os
termos que utilizamos (mãos, cabeça, cabelos, pele, vestimenta, “objeto”, passiva, ativa etc.) não
são exclusivamente formais (“formas puras”) e dependem de certo conhecimento inteligível (não
sensível) para serem apreendidos. É o que Panofsky considera, talvez, quando nos fala que a divisão
em três níveis de seu método iconológico procura ser didático, pois se trata, antes, de um “processo
orgânico e indivisível”, isto é, de um método de síntese no qual estas três camadas se interpenetram.
Segundo nível: a análise iconográfica. Neste nível secundário, adentramos ao reino das
convenções, dos costumes e tradições, e, consultando as fontes literárias desta “imagem em
movimento”, descobrimos que se trata de uma sessão fotográfica na qual um homem, em exercício
de seu ofício de fotógrafo, com sua câmera registra em negativos as poses de uma mulher, ela
também desempenhando seu papel de modelo de revistas de moda. Vemos convenções típicas, por
exemplo, o cabelo mais curto (mas nem tanto) do fotógrafo e os cabelos longos da modelo, ambos
denunciando a sociedade sexista em que estão enraizados, apesar dos avanços progressistas da
época, os idos de 1960, retratados pela obra de Antonioni – sem falarmos da caricata camisa azul de
Thomas ou do vestido preto de gala de Veruschka (homem usa azul, mulher usa vestido). Já da
câmera fotográfica analógica sabemos que sua invenção data do início do século XIX e que sua
sobrevivência hoje, diante das inúmeras câmeras digitais, é irrisória. Por fim, podemos dizer que o
ambiente artificial onde estão é, na verdade, um estúdio fotográfico.
Terceiro nível: a interpretação iconológica. Neste terceiro nível, saímos do terreno
fenomênico e passamos para o da essência. Revendo a cena, nos ocorre que a posição do fotógrafo
em cima da modelo não é uma prática convencional numa sessão de fotografia. O que o cineasta
italiano quer então nos sugerir aqui? A nosso ver, tal posição é um sintoma cultural e possui um
valor símbólico. Mais do que denunciar, criticamente, a sociedade de consumo, em que toda
elegância e beleza “vira” mercadoria vulgar como qualquer outra mercadoria produzida pela
indústria, a cena simboliza uma posse amorosa, um ato sexual descarnado (não carnal) e mecânico.
Em outras palavras, a cena simboliza a ideia machista de submissão da mulher ao homem própria
das sociedades patriarcais. Eis aqui que o ambiente artificial do estúdio fotográfico transforma-se
então em um beco: encurralada na sala escura, fria e artificial, a modelo deitada no chão é
profanada, assediada, violentada pelo fotógrafo, sendo a câmera fotográfica, talvez, o elemento
central desta violência. Pois podemos dizer que a máquina fotográfica – que, aliás, o fotógrafo
segura firmemente nas mãos – é o substituto do falo que, metaforicamente, penetra a modelo.
Concluímos assim que a cena de sessão de pose de Veruschka possui ao menos um significado
oculto: o que vemos, na realidade, não é uma sessão fotográfica, mas sim uma sessão de violência
sexual.

4. Conclusão. Embora o filme retrate sua própria época moderna, um período marcado pelo
movimento hippie, que pregava a paz e o amor entre todos os seres terrestres, bem como a liberação
das drogas e da sexualidade, a representação da mulher, daquilo que performativamente é tido
como do gênero feminino – se quisermos aqui pensar com Judith Butler (2018) – permanece,
entretanto, conservadora, retrógrada e sexista. Se há talvez alguma liberdade, ela estava longe da
equidade de gênero. Como escrevem Goffman e Joy (2007, p. 327) sobre o movimento hippie e a
sociedade alternativa por eles idealizadas:
No vernáculo hippie, os homens normalmente se referiam às suas parceiras como
suas "velhas”: e chamavam a prática de ter múltiplas parcerias de "dividir as
mulheres" - como se as mulheres em questão fossem mercadorias e não
participantes ativas. A divisão de trabalho doméstica entre os sexos tendia a seguir
as linhas tradicionais, e os líderes reconhecidos eram exclusivamente homens.

A nosso ver, utilizando-nos da abordagem iconológica, chegamos, se não estamos


redondamente enganados, à conclusão interpretativa de que a cena da sessão de pose de Veruschka,
amplamente divulgada em cartazes e capas de DVD, inconscientemente, faz alusão, mais do que a
uma posse amorosa, à violência sexual, em sua apropriação do corpo da mulher como objeto para a
satisfação masculina. Apesar de ser um ato criminoso repudiado pelas sociedades democráticas, tal
representação foi e permanece sendo comercializada, nem tão silenciosamente, em novas versões,
nutrindo a cultura machista e falocêntrica, a qual, de maneira muito sutil, vai nos corroendo pelas
bordas e nos atingindo em cheio com suas artimanhas, ao manifestar-se entre aqueles que se diziam
os mais progressistas e que, ainda hoje, infelizmente, mesmo em um momento tão delicado e
vulnerável como uma guerra, encontramos abomináveis exemplares entre nós.

Referências bibliográficas

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 3ª Edição. 2 volumes. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira, 2016.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

CORTÁZAR, Julio. Las babas del diablo In: Las armas secretas. Libros Tauro, 2004, p. 25-32.

GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Capítulo doze: Quando você muda a cada novo dia: A contracultura
jovem, 1960-1967; Capítulo treze: Selvagens na rua: A contracultura jovem, 1968-1972 In:
Contracultura através dos tempos: Do mito de Prometeu à cultura digital. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2007, p. 271-309.

MELLO E SOUZA, Gilda Rocha de. Variações sobre Michelangelo Antonioni In: A idéia e o
figurado. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2005, p. 145-170.

MERLEU-PONTY, Maurice. Reflexão e interrogação In: O visível e o invisível. São Paulo:


Perspectiva, 2014. p. 17-58.
MULVEY, Laura. Prazer visual e o cinema narrativo In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do
cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 2008, p. 198-206.

PANOFSKY, Erwin. Iconografia e iconologia In: Significado nas artes visuais: uma introdução ao
estudo da arte da renascença. São Paulo: Perspectiva, 2012, p. 47-87.

POMERANCE, Murray. Blow-up In: Michelangelo red Antonioni blue: eight reflections on Cinema.
Berkeley e Los Angeles: University of Californa Press, 2011, p. 112-128.

WOLF, Naomi. O sexo In: O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. p. 81-107.

Figuras

Figura 1: Capa de DVD em inglês de Blow-up. Disponível em:


https://www.pinterest.es/pin/505247651915576641/ Acesso em: 01/03/2022.

Figura 2: Poster italiano de Blow-up. Disponível em: https://posteritati.com/poster/47357/blowup-


r2018-italian-due-fogli-poster Acesso em: 01/03/2022.

Figura 3: Captura de tela de Blow-up: a sessão de pose de Veruschka. Blow-up. 111min.. Diretor:
Michelangelo Antonioni, 1966.

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