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soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia laos lo. Inicio » Thesauri » Chesterton Para nfo ser doido... Para encontrar na obra de Chesterton a primeira idéia-mestra ou o primeiro sol ao centro de um sistema planetario, tomemos como ponto de partida a triste e fantdstica manso "onde brilha a estrela fixa da certeza, e onde os homens créem em si mesmos mais colossalmente que Napoledo ou César, ¢ onde podemos chegar junto aos degraus do trono do super-homem." Comecemos, pois, pela casa dos doidos. A idéia que procuramos diz respeito & satide do espirito, e por isso é perfeitamente légico que iniciemos nossa investigacao onde falta essa satide. Sentiremos assim mais vivamente, gracas a parte de satide que porventura ainda nos reste, a que extremidades sombrias nos poder conduzir a parte que por desventura jé nos falte © primeiro confronto de Chesterton, para lancar um desafio a uma opiniao geralmente admitida, & entre 0 poeta e 0 louco, Em muitas outras paginas, em numerosas novelas, esse confronto é aproveitado sob variados, figurados ¢ coloridos aspectos. Um livro inteiro The Poet and the Lunatics tem origem nessa chispa produzida pelo choque entre duas coisas to diferentes que um vulgar Preconceito considera téo semelhante. Mas é no segundo capitulo de Orthodoxy que encontramos a primeira e mais nitida apresentagao da questo. Fala-se geralmente dos poetas como de pessoas em quem no se pode depositar muita confiancga, sob 0 ponto-de-vista psicolégico, mas os fatos e a histéria contradizem completamente esse preconceito. Muitos dos poetas verdadeiramente grandes foram, n&o somente equilibrados, mas também dotados de senso prético; e, se Shakespeare foi realmente guardador de cavalos, é de crer que o julgaram um dos homens capazes disso. A imaginagSo nao gera a insanidade; o que gera a insanidade é exatamente a razéo. Os poetas no enlouquecem, mas os jogadores de xadrez, esses, sim, enlouquecem. Os mateméticos e os contadores muitas vezes ficam doidos; os artistas criadores muito raramente. Ngo pretendo, como se verd adiante, atacar a légica: quero apenas frisar que é al, na légica, e néo na imaginagéo, que esté o perigo. A paternidade artistica é téo salutar como a paternidade fisica. Deve-se notar, permanencia.org.bridrupalnode/2587_ cf chl jschl tk_=13451de0!tbb675e0b3268do448c19cc9c867199-1619780733-0-AXHRPxtteM7UOHy... 217 soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia além disso, que os poetas realmente mérbidos foram os que tiveram algum ponto fraco de racionalismo. Poe, por exemplo, era de fato um mérbido; ndo por ser poeta, mas por ser excessivamente analitico. O préprio jogo de xadrez era postico demais para ele; desgostava-se por estar cheio de torres e pedes, como um poema. Confessadamente, ele preferia 0 jogo de damas que melhor Ihe sugeria a idéia de um diagrama com pontos pretos. Homero é completo e bastante calmo: so os seus criticos que o dilaceram em muitas extravagantes criaturas. Shakespeare era bem ele mesmo: foram seus criticos que descobriram que ele era somebody else. E S80 Jodo Evangelista, embora tenha visto muitos monstros estranhos, nunca chegou a ver criatura tio medonha como um de seus comentadores. O fato geral é simples. A poesia é s8 porque flutua 3 vontade num ‘mar infinito; a razo, porém, procura atravessar 0 mar infinito, tornando-o finito. O resultado disso & um esgotamento mental, como 0 esgotamento fisico de Mr. Holbein. Aceitar todas as coisas é um exercicio, mas compreender todas as coisas é um frenesi. © poeta procura apenas a exaltacdo e a expansao, isto é, procura um mundo onde se possa distender. Pretende ele, simplesmente, enfiar a cabeca nos céus, a0 passo que 0 légico se esforca por enfiar os céus na cabeca. E é a cabeca que estala, Mais adiante, seguindo a mesma ordem de idéias, encontramos 0 tipo especial de raciocinador que aplica aos atos humanos um determinismo rigido. Um deles, o Sr. R. B. Suthers, marxista por convicc3o € oficio, diz que o livre arbitrio seria uma loucura, porque levaria o homem a agir sem causas, isto é, como louco. Chesterton passa rapidamente sobre a falta de Idgica determinista desse discipulo de Marx: realmente, se os loucos pudessem agir sem causas 0 determinismo estaria perdido. Mas 0 ponto principal da questo é outro: o Sr. Suthers pode perfeitamente ignorar o que seja o livre arbitrio, mas pouco razodvel que a tal ponto ignore o que seja um louco, porque a ultima coisa que dele se pode dizer & que age sem causas. 0 louco é, ao contrario, 0 Unico determinista rigoroso: permanencia.orgbricrupalinode/2597_ct_chl jachl tk_» Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, so 0s pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passela, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as maos. E esse homem feliz que faz coisas intiteis; 0 doente néo é bastante forte para esses desperdicios. Séo exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido nao pode compreender; porque 0 doido (como o determinista) vé geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele & capaz de descobrir uma significacéo conspiratéria. Pensaré que o vergastar a grama é um ataque 4 propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum ctimplice escondido. Se 0 doido pudesse ficar um sé instante descuidado ficaria curado. Aqueles que tiveram a infelicidade de privar com uma pessoa merguihada ou mesmo na orla da desordem mental sabem que a mais sinistra qualidade desse estado € uma horrivel clareza nos detalhes; 6 a conexéo de uma coisa com outra numa espécie de mapa mais elaborado do que um labirinto. Se um de nés quiser discutir com um doido, & extremamente provavel que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espirito é mais rdpido do que o nosso, nao estando preso a certas coisas '3451de01bb575a903258do48c 18ec89b7139-1819780733-0-AXHRPxteMTUHDHy... 37 soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia que atrasam um bom julgamento. Ele ndo se embaraca com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiéncia. Tornou-se mais égico pela perda de certa fraquezas saudéveis. Realmente, a definicio vulgar da insanidade mental 6, nesse sentido, um equivoco. O doido é 0 homem que perdeu tudo, exceto a razéo. Suas explicag6es de cada coisa so sempre completas, e muitas vezes num sentido puramente racional, satisfatérias. Ou entéo, mais exatamente, a explicaco do louco, se no & convincente, pelo menos é irrespondivel. E isso se pode ver em dois ou trés dos casos mais comuns em loucura. Se um homem diz, por exemplo, que 0 resto da humanidade conspira contra ele, no podemos discutir sendo dizendo que todos os homens negam unanimemente que sejam conspiradores; ora, se eles o fossem, diriam exatamente isso. A explicagSo do doido, portanto, esté de acordo com os fatos téo bem como a nossa. Se um homem diz que é 0 legitimo rei da Inglaterra, no serd satisfatério dizer-Ihe que as autoridades existentes o consideram doido; porque se ele fosse o rei da Inglaterra as autoridades usurpadoras no teriam melhor coisa a dizer. Ou entéo, se um homem diz que & Jesus Cristo, nao adiante responder que 0 mundo nega sua divindade, porque 0 mundo nega a divindade de Cristo. A seguir, ainda no mesmo extraordinario capitulo, Chesterton apresenta as duas caracteristicas da deméncia: uma completagao e uma retratagdo, Uma completacaio pequena. Uma exaustao. Um circulo. Ele bem sabe que a inteligéncia humana tem seus limites e que a liberdade que ela possa gozar tem, digamos assim, 0 prémio (ou 0 preco) de uma limitagao, Esse ponto constitui a cupula de todo o arcabougo de idéias. Mas antes de chegarmos a ele observemos que a filosofia materialista é mais limitadora e impée mais restricbes do que qualquer religido. © cristo tem plena liberdade de crer que existe no Universo uma ordem estabelecida © um inevitével crescimento, mas ao materialista no é permitido admitir dentro de sua imaculada maquina a mais ligeira nédoa de espiritualidade ou milagre. O pobre materialista que & 0 Sr. McCabe néo tem permisséo de crer no mais mindsculo diabinho escondido numa pimpinela. 0 homem normal sabe que tem em si um pouco de animal, um pouco de deménio, um pouco de santo e um pouco de cidadéo. Ainda ‘mais, 0 homem realmente normal sabe que tem em si um pouco de doido. Mas o mundo do materialista é perfeitamente sélido e simples; como também o doido esté perfeitamente convencide de que & normal. Os materialistas e os doidos nunca tém dividas. Mais adiante, referindo-se ainda a libertacdo de que se gaba o materialista: permanencia.orgbricrupalinode/2597_ct_chl jachl tk_» E absurdo dizer que estamos progredindo em liberdade quando sé nos utilizamos do livre pensamento para destruir o livre arbitrio. Os deterministas vieram para amarrar e no para afrouxar. Fazem bem em chamar & sua lei "cadeia" da causalidade, pois nunca houve pior cadeia do que essa para acorrentar um ente humano. Podem usar a linguagem da liberdade, se quiserem, na doutrina materialista, mas é claro que ela & to inaplicdvel a essa doutrina como, de um modo geral, ao homem aferrolhado no hospicio. Podem dizer, se quiserem, que 0 homem é livre de se considerar um ovo '3451de01bb575a903258do448c 19ec8987139-1819780733-0-AXHRPxteMTUOHy... 4/7 soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia cozido. Ma o fato mais macigo e mais importante, seguramente, & que, sendo um ovo cozido, ele nao terd liberdade de comer, beber, dormir, passear ou fumar um cigarro. Do mesmo modo eles podem dizer, se quiserem, que 0 ousado pensador determinista tem a liberdade de descrer na realidade da vontade; mas o fato mais importante e mais macico & que, nesse caso, ele nao é livre para louvar, maldizer, agradecer, Justificar, implorar, punir, resistir 4s tentacées, promover arruacas, formar bons propésitos no Ano-Novo, perdoar os pecadores, apostrofar os tiranos ou até para dizer um simples "obrigado" a quem Ihe passar a mostarda. ‘Agora, deixando esse tipo de materialista que troca todas as liberdades pela liberdade de descrer, encontramos um personagem ainda mais sombrio: Hd um cético mais terrivel do que aquele que acreditava que tudo comegou na matéria; hd um que acredita que tudo comecou nele mesmo. Jé no é dos anjos e dos deménios que este duvida, mas dos homens e das vacas. Para ele, os préprios amigos no passam de uma mitologia que ele préprio construiu. horrivel fantasia contém qualquer coisa atraente para o egofsmo mais ou menos Criou seu pai e sua mae. Essa mistico de nossos dias. Aquele editor que pensava que os homens vencem quando créem em si mesmo; aqueles que andam em busca do Super-Homem e o vo procurar no espelho; aqueles escritores que falam em modelar a prépria personalidade em vez de criarem vida para 0 mundo; toda essa gente estd realmente a dois dedos desse vacuo horroroso. E entéo, quando todas as coisas boas desse mundo estiverem enegrecidas como uma mentira; quando os amigos se esvairem em fantasmas e os alicerces do mundo ruirem; entéo, 0 homem que nao cré em nada e em ninguém, sozinho em seu pesadelo, deveré ser marcado com a vingadora ironia da divisa individualista. As estrelas serio meros pontos no negrume de seu cérebro; a face de sua mie serd somente um esboco de seu insano ldpis nas paredes de seu cdrcere. Mas em cima da porta de sua cela deve ser escrito, com terrivel verdade: "Ele cré em si mesmo". Agora, depois de uma longa caminhada pelos infernos da deméncia, onde encontramos as diferentes perturbagées que afligem o espirito, sob as formas das filosofias materialistas ¢ idealistas (que nem sempre, alids, se revestem dos aspectos clinicos oficialmente estabelecidos, e muitas vezes conduzem, nao ao manicémio, mas aos altos postos da politica racionalista), agora é justo que fagamos um inventério e que perguntemos: "Se é isso que enlouquece o homem, o que seré que mantém a satide do espirito?” € aqui responde Chesterton Ea idéia do mistério que conserva o homem s&o. O mistério é a satide do espirito; sua negacao é a loucura. E aqui chegamos ao niicleo principal do seu pensamento e da sua mensagem. Esta ¢ a delicada ¢ esquisita linha que separa o Iigubre Hanwell [*] daquele outro pais da imaginagao, da poesia e da Fé, daquele “ensolarado rinc&o do senso comum" que vamos encontrar no admirdvel capitulo A Etica do Pals das Fadas. permanencia.org.bridrupalnode/2587_ cf chl jschl_tk_=13451de0M1bb675e0b3268do448c19cc9c867199-1619780733-0-AXHRPxteM7UOHy... SIT soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia E esta é a primeira idéia-mestra de Chesterton: ou 0 mundo conserva a nogéo do mistério, ou se transforma num imenso patio de hospicio, E essa idéia, como as outras, ndo é sua, E antiga como o mundo; e é no plano sobrenatural a idéia central da liturgia catélica: 0 Sacrificio da Missa é 0 centro da vida crist, € 0 "mistério da Fé" (mysterium fidei) & 0 centro do sacrificio do altar. O autor, que mais de uma vez confessou ter descoberto 0 que ja havia sido descoberto, tem entretanto um mérito, 0 Unico, alis, a que pode pretender um auténtico pensador: nao foi ele que descobriu 0 sol, nao foi ele que inventou @ luz que banha sua rica palheta fazendo 0 cobalto ser azul e 0 cédmio amarelo; mas foi ele, em larga medida, que soube aceitar essa luz, servir-se dela como de uma dadiva, e que soube olhar em volta, maravilhado, para descobrir e redescobrir a beleza oferecida de todas as coisas. Cedo-Ihe mais uma vez a palavra para que ele termine este capitulo como terminou seu magistral capitulo 0 Maniaco: © Iégico mérbido procura tornar tudo licido, e consegue tornar tudo misterioso. O mistico admite que uma coisa seja mistério, e tudo se torna Nicido. O determinista constréi a teoria clara da causalidade, e descobre entéo que néo pode dizer um "faca 0 favor" & sua arrumadeira. O cristéo permite que o livre arbitrio seja um sagrado mistério, e por isso suas relagdes com a arrumadeira ganham uma cintilante e cristalina claridade. Ele coloca a semente do dogma numa escuridao central; mas os ramos brotam e crescem em todas as direces com a natural pujanca da satide. Como 4 tomamos 0 circulo para o simbolo da razéo e da loucura, tomamos agora a cruz para o simbolo do mistério e da satide. O budismo é centripto, mas o cristianismo e centrifugo: ele explode. Pois 0 circulo, sendo embora perfeito e infinito em sua natureza, esté fixado para sempre no seu tamanho: nunca poderé ser maior ou menor. Mas a cruz, apesar de ter em seu centro uma colisdo e uma contradi¢ao, pode estender sempre os seus quatro bragos sem que a forma se altere. Porque tem um paradoxo em seu coragao, pode crescer sem mudar. O circulo gira sobre si mesmo e est atado. A cruz abre os bracos aos quatro ventos como um indicador de caminhos para os viajantes livres. Somente os simbolos podem ter algum valor neste profundo assunto; tomarei, pois, um outro simbolo, tirado da natureza fisica que exprimiré suficientemente bem o verdadeiro lugar do mistério perante 0 género humano. A Unica coisa criada que néo podemos olhar é aquela em cuja luz vemos todas as coisas. Como 0 sol a0 meio-dia, 0 mistério esclarece todas as coisas pelo fulgor de sua vitoriosa invisibilidade. O intelectualismo isolado é como o luar, porque é uma luz sem calor, uma luz secundéria refletida por um mundo morto. Os gregos tinham razéo quando tomaram Apolo como deus da imaginagéo e da satide, fazendo-o igualmente patrono da poesia e da medicina. Falarei mais adiante de um credo especial e dos dogmas necessérios. Mas esse transcendentalismo pelo qual todos os homens vivem tem, primariamente, algo da posicéo do sol no firmamento. Temos consciéncia dele como de uma espléndida confusdo; & qualquer coisa brilhante e informe, a0 mesmo tempo claro e mancha. ‘Mas 0 circulo da lua é to claro e tao inequivoco, tao recorrente e to inevitdvel, como permanencia.org.bridrupalnode/2587_ cf chl jschl tk_=13451de011bb675e0b3268do448c19cc9c867199-1619780733-0-AXHRPxteM7UOHy... SIT soio4i2021 Para ndo ser dodo... | Permanéncia um circulo de geémetra no quadro-negro. Porque a lua é completamente racional; a lua é mae dos lundticos, e todos eles deu 0 seu nome. (G. C,, in Trés Alqueires e um Vaca, 6a. edig&o, Agir, 1961, Rio de Janeiro. Titulo original do capitulo: Apolo) Permalink * Chesterton © Gustavo Coredo © Pensamento + Se logue para poder enviar comentarios AdaptiveThemes permanencia.org.brirupalnode/2587_cf_chl jschl_tk_=13451de011bb675e063268do448c19cc9c867199-1619780733-0-AXHRPxteM7UOHy.... 7/7

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