Supremo Tribunal de Justiça - Cível: Processo Data Do Documento Relator

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | CÍVEL

Acórdão

Processo Data do documento Relator

07A2680 2 de outubro de 2007 Fonseca Ramos

DESCRITORES

Procedimento cautelar > Apreensão de veículo > Contrato de

financiamento > Cláusula > Reserva de propriedade > Resolução do

contrato > Requisitos > Interpretação da lei

SUMÁRIO

I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 – procedimento


cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu campo de aplicação
em caso de incumprimento das obrigações do contrato de compra e venda por
parte do comprador, havendo cláusula de reserva de propriedade.

II) – Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele beneficie,
invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo automóvel a cláusula de
reserva de propriedade.

III) – Em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não pode quem


financiou a aquisição requerer aquele procedimento cautelar, nem prevalecer-
se da cláusula de reserva de propriedade – art. 409º do Código Civil.

IV) A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo

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estender o seu campo de aplicação, se de tal interpretação resultar um
desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade, e não for
afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a
coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a
convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a
segurança jurídicas, valores caros ao Direito.

TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA., com sucursal em Portugal, intentou, em 30.8.2006, pelas Varas Cíveis da


Comarca de Lisboa – 8ª Vara – procedimento cautelar de apreensão judicial de
veículo automóvel e respectivos documentos, nos termos do artigo 15° do
Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, contra:

BB - Viagens e Turismo, Ldª.

Pedindo que seja decretada, sem audiência prévia da requerida, a imediata


apreensão dos veículos automóveis de marca Land Rover, modelo Freelander, e
matrícula ..-..-.. e de marca Ford, modelo Transit, e matrícula ..-..-.., e a
respectiva entrega a fiéis depositários que indigita.

Invoca ter celebrado com a requerida dois contratos de financiamento para


aquisição a crédito de duas viaturas automóveis, em que a vendedora F.I.A.A.L
cedeu à requerente, com o consentimento da requerida, a reserva de

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propriedade constituída a favor daquela.

A requerida deixou de pagar prestações de cada um dos contratos e, mesmo


depois de interpelada para em prazo indicado pôr termo à mora, não procedeu
ao pagamento das quantias em dívida, o que levou a requerente a, por escrito,
declarar à requerida que procedia à resolução desses contratos, reclamando a
entrega dos veículos, o que ainda não aconteceu.

Diz desconhecer o estado em que as viaturas se encontram, mas, face à


ocultação das mesmas, é levada a presumir que se encontrem completamente
desvalorizadas.

Invoca ainda a inscrição no registo automóvel a seu favor da reserva de


propriedade de cada um dos veículos e requer que a providência seja decretada
sem audiência prévia da requerida, por esta poder colocar em risco o seu fim e
a sua eficácia, dada a natureza móvel dos bens a apreender.

Dispensada a audiência prévia, teve lugar a inquirição das testemunhas


arroladas e, no final, foi proferida, em acta, sentença que, considerando
não estarem preenchidos os pressupostos de procedência da
providência, por a requerente não ter celebrado um contrato de
alienação com a requerida, a julgou totalmente improcedente.

Inconformada, interpôs a requerente o presente recurso de agravo, para


o Tribunal da Relação de Lisboa que por Acórdão de 1.3.2007 negou
provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

De novo inconformada recorreu para este Supremo Tribunal invocando


oposição do Acórdão recorrido, com os Acórdãos da mesma Relação de

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Lisboa, datados de 13.02.2003 in CJ, Ano XXVII, I, pág. 102 - “Celebrado
contrato de mútuo para financiamento de aquisição de veículo com reserva de
propriedade, deve ser decretada a apreensão daquele, ao abrigo do Dec-lei n.
°54/75 (art. 16º nº1) se o mutuário deixar de pagar prestações a que se
obrigou, ainda que o mutuante não seja o reservatário. e 20.10.2005, e, nas
alegações apresentadas, formulou as seguintes conclusões:

A) A agravante provou, nomeadamente na petição inicial apresentada nos


presentes autos, e através da junção dos respectivos documentos, que a
agravada incumpriu ambos os contratos de financiamento celebrados entre as
partes.

B) Fez ainda a agravante prova de que é titular dos registos de reserva de


propriedade sobre os veículos objecto da presente Providência Cautelar.

C) Desse modo, estão reunidos, no caso em apreço, todos os pressupostos de


admissão e posterior decretação da providência de apreensão de veículo,
previstos nos artigos 15°, e 16° do DL 54/75, de 12.02.

D) A reserva de propriedade constituída a favor do vendedor do veículo e


cedida à ora Agravante é válida para o efeito da alínea f) do nº3 do artigo 6.° do
Decreto-Lei n.° 359/91, de 21 de Setembro pois a menção em tal preceito ao
acordo de reserva de propriedade apenas é aplicável aos contratos de
financiamento de aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em
prestações.

E) A referência efectuada no artigo 18°, n°1, do DL 54/75 tem de ser objecto de


uma interpretação actualista, conjugada com o disposto no artigo 409° do
Código Civil, devendo desse modo entender-se que o contrato ali em causa é

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aquele cujo regular cumprimento das obrigações se encontra garantido pela
reserva de propriedade, in casu, o contrato de financiamento.

F) Caso contrário, a reserva de propriedade, legalmente constituída, seria


totalmente inútil por o crédito da Agravante resultar sem garantia.

G) Tal entendimento é perfilhado por variada jurisprudência, de entre a qual se


destaca o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.02.2003, que refere “a
referência no art. 18° n.º1 do DL nº54/75, ao “contrato de alienação” pode ser
entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o da
compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade”.

H) Ainda a propósito de uma necessária interpretação actualista do conceito de


“contrato de alienação” dispõe o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de
20.10.2005 que “na leitura do disposto no art. 18°, n°1, do DL 54/75, é de
entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e
venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade, a
referência ao contrato de alienação”.

I) Desse modo, “a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e


consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega
do veículo alienado, tornaria inútil e sem efeito prático a cláusula de reserva de
propriedade, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do
financiamento de terceiro, o que constitui hoje a regra, face à evolução
verificada nessa forma de aquisição” idem.

J) Face ao exposto, tem a Agravante legitimidade activa para requerer a


presente providência, porquanto logrou preencher, e disso fez prova, todos os
requisitos exigidos pelas disposições do DL 54/75 de 12.02.

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K) Assim, não deve proceder o entendimento do Tribunal “a quo”, e deve desse
modo ser decretada a presente providência e determinada a apreensão dos
veículos automóveis de marca Land Rover, modelo Freelander com a matrícula
..-..-.. e de marca Ford, modelo Transit, com a matrícula ..-..-.., bem como dos
respectivos documentos, e feita a sua entrega ao fiel depositário indicado nos
autos.

L) Decidindo nos termos em que o fez, o Tribunal “a quo” violou, entre outras
disposições legais, os artigos 9º e 409° do Código Civil, bem como o artigo 5°,
15°, 16° e 18° do Decreto-Lei 54/75 de 12.02.

Não houve contra-alegações.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que se consideraram


provados os seguintes factos:

1. A requerente AA - Sucursal em Portugal, dedica-se ao financiamento para


aquisição a crédito de veículos automóveis.

2. A 20.06.03. a AA e a requerida, BB - Viagens e Turismo, Ldª, subscreveram o


instrumento junto por fotocópia a fls. 8, denominado “Contrato de
Financiamento para Aquisição a Crédito nº1-1-3-38”, constituído por “Condições
Particulares” e “Condições Gerais”, instrumento que aqui se dá integralmente
por reproduzido.

3. Nesse instrumento e sob “Condições Particulares” consignou-se:

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- Veículo marca Land Rover, modelo Freelander 3 P, chassis LNA.........,
matrícula ..-..-..;
- Vendedor registado do veículo: [em branco];
- Promotor da venda (que não intervém neste Contrato) - FIML;
- Preço do veículo a contado - € 44 816,00;
- Desembolso inicial - € 8 963,20;
- Montante financiado - € 35 852,80;
- Encargos - taxa de juro anual - 12,45 %; TAE -13,74% - € 12 611,91; Imposto
de Selo (…).
- Montante total a reembolsar - € 49 185,60;
- Prazo - 60 meses, mediante 60 prestações mensais no valor de € 819,76,
cada, com vencimento nos dias 10 dos meses de Setembro de 2003 a Agosto
de 2008;

4. Nesse instrumento e sob “Condições Gerais” ficou consignado:

A – Reserva de Propriedade.

Nos termos do art. 409° do Código Civil, e até à data em que todas as
prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas
pelo COMPRADOR à AA, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para
o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à AA a titularidade de tal
reserva de propriedade. O COMPRADOR presta o seu consentimento a tal
cessão. Nos termos do disposto no artigo 591° do Código Civil o COMPRADOR
sub-roga a AA nos direitos do VENDEDOR REGISTADO, decorrentes da reserva
de propriedade [...] — o texto desta cláusula é o que consta do documento,
sendo algo diferente do incluído na matéria de facto dada como provada na
sentença, eventualmente por lapso.

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- C. Incumprimento

Vencida e não paga qualquer prestação, vencer-se-ão imediata e


automaticamente todas as seguintes, nos termos do Artigo 781º do Código
Civil, e FORD CREDIT poderá rescindir este Contrato no caso de não pagamento
de qualquer das prestações na data do vencimento,

- E. Devolução

Após a comunicação da rescisão deste Contrato ao COMPRADOR, este


entregará de imediato, e independentemente da interpelação, o veículo a FORD
CREDIT, fazendo entrega do mesmo e de toda a respectiva documentação, no
Concessionário Ford mais próximo.

5. A propriedade do veículo supra identificado está registada na C.R.A. de


Lisboa a favor da requerida.

6. Sobre o referido veículo e registada na CRA incide uma reserva de


propriedade tendo como sujeito activo AA e sujeito passivo a requerida.

7. A requerida não pagou a 27ª prestação vencida a 10.11.05 e seguintes.

8. Com a data de 18.02.06, a AA endereçou à requerida a carta junta por


fotocópia a fls. 11, mediante registo e com a/r, a qual se dá aqui integralmente
por reproduzida, nos termos da qual informa do não pagamento de prestações,
concede o prazo de 8 dias para proceder ao pagamento do montante em falta,
com a advertência de que não o fazendo poderá optar pela rescisão do
contrato.

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9. A referida carta foi recebida pela requerida.

10. Com a data de 31.03.06., a AA endereçou à requerida, a carta junta por


fotocópia a fls. 18, registada e com a/r, nos termos da qual e ao abrigo da
Cláusula C do contrato de Financiamento declara rescindir o contrato e exige a
entrega do veículo.

11. A referida carta foi recebida pela requerida.

12. Até à data a requerida não procedeu à entrega do veículo.

13. A 14.08.03 a AA e a requerida, BB - Viagens e Turismo, Ldª, subscreveram o


instrumento junto por fotocópia a fls.20, denominado “Contrato de
Financiamento para Aquisição a Crédito n° ..-..-..-.....”, constituído por
“Condições Particulares” e “Condições Gerais”, instrumento que aqui se dá
integralmente por reproduzido.

14. Nesse instrumento e sob “Condições Particulares” consignou-se:

- Veículo marca Ford, modelo Transit, chassis GBFH...Y......, matrícula..-..-..;


- Vendedor registado do veículo: Ford Lusitana, S.A.;
- Promotor da venda - FIML;
- Preço do veículo a contado - € 28 353,00;
- Desembolso inicial - € 5 680,00;
- Montante financiado - € 22 673,00;
- Encargos - taxa de juro anual - 12,45 %; TAE -13,74% - € 6 277,95; Imposto de
selo - (...);
- Montante total a reembolsar - € 29 316,00;

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- Prazo - 48 meses, mediante 48 prestações mensais no valor de € 610,75 cada,
com vencimento nos dias 15 dos meses de Setembro de 2003 a Agosto de
2007;
- Reserva de propriedade - O presente contrato é celebrado com reserva de
propriedade do veículo a favor do vendedor registado no mesmo, nos termos
das Cláusulas Gerais constantes deste contrato. O vendedor registado cede ou
cederá à AA a titularidade de tal reserva de propriedade e o comprador desde já
presta o seu consentimento a tal cessão.

15. Nesse instrumento e sob “Condições Gerais” ficou consignado:

A. Reserva de propriedade

Nos termos do art. 409° do Código Civil, e até à data em que todas as
prestações referidas no número 9 das Condições Particulares hajam sido pagas
pelo COMPRADOR à AA, a propriedade do veículo é inicialmente reservada para
o VENDEDOR REGISTADO, que cedeu ou cederá à AA a titularidade de tal
reserva de propriedade. O COMPRADOR presta o seu consentimento a tal
cessão. Nos termos do disposto no artigo 591° do Código Civil o COMPRADOR
sub-roga a AA nos direitos do VENDEDOR REGISTADO, decorrentes da reserva
de propriedade [...] — o texto desta cláusula é o que consta do documento,
sendo algo diferente do incluído na matéria de facto dada como provada na
sentença, eventualmente por lapso.

- C. Incumprimento

Vencida e não paga qualquer prestação, vencer-se-ão imediata e


automaticamente todas as seguintes, nos termos do Artigo 781 ° do Código
Civil, e FORD CREDIT poderá rescindir este Contrato no caso de não pagamento

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de qualquer das prestações na data do vencimento.

- F. Devolução

Após a comunicação da rescisão deste Contrato ao COMPRADOR, este


entregará de imediato, e independentemente da interpelação, o veículo a FORD
CREDIT, fazendo entrega do mesmo e de toda a respectiva documentação, no
Concessionário Ford mais próximo.

16. A propriedade do veículo supra identificado está registada na C.R.A. de


Lisboa a favor da requerida.

17. Sobre o referido veículo e registada na C.R.A. incide uma reserva de


propriedade tendo como sujeito activo AA e sujeito passivo a requerida.

18. A requerida não pagou a 30ª prestação vencida a 15.02.06 e seguintes.

19. Com a data de 13.03.06, a AA endereçou à requerida, a carta junta por


fotocópia a fls.15, mediante registo e com a/r, a qual se dá aqui integralmente
por reproduzida, nos termos da qual informa do não pagamento de prestações,
concede o prazo de 8 dias para proceder ao pagamento do montante em falta,
com a advertência de que não o fazendo poderá optar pela rescisão do
contrato.

20. A referida carta foi recebida pela requerida.

21. Com a data de 31.03.06, a AA endereçou à requerida, a carta junta por


fotocópia a fls. 18, registada e com a/r, nos termos da qual e ao abrigo da
Cláusula C do contrato de Financiamento declara rescindir o contrato e exige a

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entrega do veículo.

22. A referida carta foi recebida pela requerida.

23. Até à data a requerida não procedeu à entrega do veículo.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se
delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso –
importa saber se o procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis
pode ser requerido pela entidade financiadora da aquisição, a quem foi cedida
pela vendedora a cláusula de reserva de propriedade de que era titular, em
caso de incumprimento do pagamento das prestações do preço acordado no
contrato de financiamento (mútuo).

O Acórdão recorrido respondeu pela negativa ao invés dos Acórdãos da mesma


Relação de 13.2.2003 e 20.10.2005, sendo tal contradição o fundamento do
recurso de agravo – art. 754º,nº2, do Código de Processo Civil.

Vejamos:

O procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel regulado


pelo DL. 54/5, de 12 é uma providência cautelar típica.

Nos termos do artigo 15° do Decreto-Lei nº74/75, de 12 de Fevereiro, com a


redacção dada pelo Decreto-Lei n°178-A/2005, de 28 de Outubro:

1 - Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações

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que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode
requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula.
2 – O requerente expõe na petição o fundamento do pedido e indica a
providência requerida.
3 – A prova é oferecida com a petição referida no número anterior.

O artigo 16°, n°1 do mesmo diploma, com a redacção resultante do Decreto-Lei


n°178-A/2005, estatui:

Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva


de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz
ordenará a imediata apreensão do veículo.

O artigo 18°, n°1, do referido Decreto-Lei n°54/75, na sua actual redacção,


estabelece:

“Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover


a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de
penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a
concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva
de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação.

Tendo sido a versão inicial do diploma de 1975 editada ainda antes da explosão
consumista no sector automóvel, veio ela dotar os vendedores de veículos
automóveis, de um meio rápido e expedito para obter a apreensão e entrega de
veículos vendidos a prestações com cláusula de reserva de propriedade, em
caso de incumprimento do contrato de compra e venda.

Vencido e não pago o crédito hipotecário, ou “não cumpridas as obrigações que

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originaram a reserva de propriedade”, e verificados os requisitos de resolução
do contrato de compra e venda, o vendedor, no caso de ter a seu favor reserva
de propriedade, apenas tem de provar o não cumprimento do contrato por
parte do adquirente e “ser titular dos respectivos registos” – nº1 do art. 16º do
citado normativo – para requerer cautelarmente a apreensão do veículo.

Com o incremento do consumo, a tradicional relação bipolar comprador-


vendedor passou a ser tripolar, já que muitas vezes, o consumidor é financiado
na aquisição de bens por uma entidade financeira, ligada ou não ao vendedor.

Daí que as exigências do comércio e a protecção dos intervenientes na relação


triangular tenham estado na base de diplomas que vieram regular o
financiamento e as relações entre os contratos conexionados, normalmente, de
compra e venda e o contrato de financiamento.

Neste enquadramento, por mais relevante e actualmente vigente, surgiu o DL.


339/91, de 21.9. que tem largo campo de aplicação no financiamento da
aquisição de bens de consumo, particularmente de veículos automóveis.

Anteriormente o vendedor dispunha, em caso de venda a prestações da


cláusula de reserva de propriedade – art. 409º do Código Civil – que
tradicionalmente era robustecida com a emissão de títulos cambiários em
branco, como garantia do pagamento das prestações, e a celebração de pacto
de preenchimento dos títulos.

Com o advento do diploma de 1991 e no contexto das relações de


financiamento passaram as empresas que se dedicam ao financiamento, a
engendrar novos esquemas com vista à melhor protecção da sua actividade e
risco de perda de créditos.

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No campo da venda automóvel é muito comum intervirem empresas
financiadoras dos consumidores, celebrando com eles, enquanto compradores,
contratos de mútuo (financiamento à aquisição de bens de consumo).

Passou a ser, então, prática cada vez mais comum o vendedor ceder ao
financiador da aquisição a sua posição contratual, mormente, no caso de venda
de veículos automóveis a cláusula de reserva de propriedade.

Mas, desde logo, se coloca o problema de saber se tal cessão da posição


contratual é válida, já que o DL. 54/75, historicamente, não foi pensado para a
nova realidade tripolar e na sua letra alude a que o procedimento cautelar
apenas pode ser utilizado pelo vendedor, tanto mais, que a cláusula de reserva
de propriedade, classicamente, vem sendo entendida como condição
suspensiva e, na lógica de tal entendimento, apenas com o pagamento
integral a propriedade do veículo passa à titularidade do comprador.

Este entendimento, segundo o qual a entidade financiadora pode assumir a


posição do vendedor e requerer a providência cautelar de apreensão do veículo
cuja aquisição financiou, vem suscitando larga divergência na jurisprudência e
na doutrina Disso nos dá conta o douto Acórdão do Tribunal da Relação do
Porto, de 15.1.2007, in www.dgsi.pt. – Proc. 0651966.

Cremos ser maioritária a tese que nega que o regime legal previsto no art.
18º,nº1, do citado DL possa ser invocada pela entidade financiadora, que
resolveu o contrato de mútuo celebrado com o comprador de veículo
automóvel.

E os que o admitem, implicando assim, que a entidade financiadora possa

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prevalecer-se do procedimento cautelar de apreensão, demanda, segundo certo
entendimento, uma interpretação actualista do art. 18/1 de forma a ser
extensível o seu regime ao contrato de mútuo conexo com o de compra e
venda.

Situando a problemática no campo da hermenêutica jurídica, importa ter


presente que o art. 9º, nº1, do Código Civil estipula que a interpretação não
deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento
legislativo tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em
que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que foi
elaborada; tal interpretação tem, porém, de ter na letra da lei um mínimo de
correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº2 do art. 9º).

“No que concerne aos elementos de interpretação, são dois os factores


essenciais — o elemento gramatical (letra da lei) e o elemento lógico (o espírito
da lei) subdividindo-se este em três — o elemento racional ou teleológico, o
elemento sistemático e o elemento histórico. O elemento gramatical (letra da
lei) e o elemento lógico, ou seja, (o rito da lei) têm sempre que ser utilizados
conjuntamente”. -“Teoria Geral do Direito Civil – 4ª edição por António Pinto
Monteiro e Paulo Mota Pinto”.

Os que sustentam que o financiador pode lançar mão do procedimento cautelar


em apreço sustentam que deve fazer-se uma interpretação actualista do art.
18º/1 do DL. 54/75.

“Através dela procede-se à interpretação da lei tendo em conta as realidades


actuais, vigentes ao tempo da sua aplicação.
Não se trata de passar por cima da “occasio legis” pois a consideração deste
factor hermenêutico revela-se particularmente útil para a fixação da “ratio

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legis”.
O que se pretende é transpor para a realidade presente o juízo de valor que
presidiu à elaboração da norma, adaptando o seu significado à evolução —
social e jurídica — entretanto operada, por forma a extrair da norma um novo
sentido e ajustá-la assim à evolução histórica ocorrida. O que poderá
eventualmente implicar uma mudança do sentido que lhe era originariamente
atribuído, em face da realidade histórica vigente ao tempo da sua entrada em
vigor” – Pinto Monteiro “Cláusulas Limitativas e de Exclusão da
Responsabilidade Civil”, 1985-25, nota 31.

O Acórdão recorrido, na esteira do Acórdão deste STJ de 12.5.2005 – de que foi


Relator o Ex.mo Conselheiro Araújo de Barros, in www.dgsi.pt Proc.05B993,
considerou que o financiador não pode lançar mão do procedimento cautelar.

Antes de mais, importa afirmar que a interpretação actualista, também


ela, tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu
campo de aplicação, se dela resultar um desfecho que se compagine
com o sistema jurídico enquanto unidade e o resultado interpretativo
não afrontar o regime jurídico dos institutos com que contende, sob
pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra
realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da
lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas valores caros ao
Direito.

Por isso importa analisar, ainda que sumariamente os preceitos implicados.

Desde logo a natureza da cláusula de reserva de propriedade prevista no art.


409º do Código Civil:

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1. Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a
propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da
outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento.
2. Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a
cláusula constante do registo é oponível a terceiros.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” vol. I, entendem que
no caso previsto neste artigo (pactum reservati dominii) o negócio é realizado
sob condição suspensiva, quanto à transferência da propriedade.

Também Galvão Telles, “Obrigações”, 3ª edição, 61, sustenta idêntica opinião


ao considerar que - “A venda com reserva de propriedade é uma alienação sob
condição suspensiva. Suspende-se o efeito translativo mas os outros efeitos do
negócio produzem-se imediatamente. O evento futuro de que depende a
transferência da propriedade, será, em regra, o cumprimento total ou parcial
das obrigações da outra parte”.

“Face ao disposto no nºl do artigo, o negócio será celebrado, quanto à


transferência da propriedade, sob condição suspensiva” – Almeida Costa,
“Obrigações”, 4ª edição, 197.

Nas palavras de Lima Pinheiro – “A Cláusula de Reserva de Propriedade”,


Coimbra, Almedina, 1988, pág.115 – “Em resumo, o pacto de reserva de
propriedade, enquanto cláusula socialmente típica com a configuração
normativa que lhe cabe no ordenamento português, é uma convenção de
garantia acessória do contrato de compra e venda, convenção esta que reserva
a faculdade de resolver o contrato, mas que se socorre instrumentalmente de
uma condição suspensiva de efeito translativo, para alcançar o seu efeito
característico: a oponibilidade erga omnes da resolução.” – cfr. “Thémis-

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Revista da Faculdade de Direito da UNL”” – Ano V – nº11 – 2005, pág.74.

O art. 409º, nº1, do Código Civil ao aludir a “contratos de alienação” de modo


algum se pode considerar que pode abarcar o contrato de mútuo ou de
financiamento; os contratos de alienação são os translativos de um direito; no
caso que nos ocupa o direito de propriedade.

A cláusula visa a protecção do alienante pelo que pressupõe uma relação


directa entre o que adquire e o que aliena com espera do preço.

Daí que a consideração de uma relação tripolar brigue com a essência


da previsão legal do art. 409º do Código Civil, porque o financiador de
modo algum, ao conceder financiamento ao comprador, intervém ou
celebra contrato de alienação.

Mas será que a expressão final daquele normativo até à verificação de


qualquer outro evento pode ser entendida, reportando esse outro qualquer
evento a um contrato em que o vendedor não intervém?

Respondemos negativamente.

Na economia do contrato em que o vendedor beneficia de reserva de


propriedade, a circunstância que para si releva, é o cumprimento, como meio
de extinção da obrigação do comprador; fazer depender a manutenção do
direito de propriedade, que radica no vendedor até ao pagamento integral do
preço pelo comprador, de um evento que apenas tem uma conexão indirecta
com o contrato de alienação é descabido, porque a lei quis fazer depender a
estipulação da reserva de propriedade, até ao cumprimento ou à verificação de
outro evento, apenas no âmbito da relação contratual protegida pela cláusula

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de reserva de propriedade celebrada, e não fora dela.

Estabelecer por via daquela expressão uma ligação directa ao contrato de


financiamento parece abusivo, pois que os contratos são díspares quanto aos
seus efeitos e a resolução do contrato de financiamento jamais concederá ao
mutuante o direito a reaver aquilo que o mutuário comprou com o crédito
concedido.

Como se salienta no citado Acórdão deste Supremo Tribunal:

“Ademais, nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que


se confunda contrato de alienação, que implica a transferência, ainda
que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um
contrato de mútuo que teve como mutuante outra entidade e de cuja
resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a
obrigação de restituição do veículo vendido”.

Mas, mesmo que se admitisse que a entidade financiadora pudesse ver para si
transferida a reserva de propriedade, mediante cessão da posição contratual do
vendedor inicialmente titular da reserva, entendemos carece de legitimidade
para lançar mão do procedimento cautelar do DL. 54/75, de 12.2, desde logo,
porque sendo o procedimento cautelar instrumental, visando a rápida
recuperação do veículo para posterior venda (que a lei impõe), não se
vislumbra que se ajuste tal procedimento típico aos fins que o financiador visa
tutelar, que são apenas as consequências resultantes da resolução do contrato
de mútuo.

Como compatibilizar estes efeitos com os que adviriam da pretensão que teria
de ser exercida na acção principal – poderia a financiadora pedir a apreensão

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do veículo?

Não podia, cremos, porque o contrato de compra e venda não foi celebrado
entre si e o mutuário.

O financiador teria ao seu alcance o procedimento cautelar comum – art. 381º


do Código de Processo Civil – mas não o do apreensão do veículo automóvel,
porque a regra da instrumental idade do procedimento cautelar, não se
compagina com os efeitos jurídicos da resolução do contrato de mútuo, que não
consente pedir a apreensão do veículo já que a entidade financiadora não
interveio no contrato de alienação e sem esse não seria possível estabelecer a
cláusula de reserva de propriedade.

No sentido de que a estipulação da cláusula de reserva de propriedade nem


sequer pode ser estipulada a favor da entidade financiadora por ser nula –
Gravato Morais, in “União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo”,
pág. 307, nota 572, 2004, e em anotação ao Acórdão da Relação de Lisboa de
21.2.2002; “Cadernos de Direito Privado”, n°6, Abril/Junho de 2004, pág. 49/53.

O art. 18º,nº1, parte final, do DL. 54/75 expressamente impõe ao credor que
promova a venda nos 15 dias subsequentes à apreensão do veículo e, no
mesmo prazo, que proponha acção de resolução do contrato de alienação.

Aqui novo escolho para os que sustentam que a alusão a qualquer outro evento
– art. 409º, nº1, do Código Civil – possa ser algo relacionado com o comprador,
que não se relacione com o contrato de alienação.

Conjugando aquele normativo do Código Civil com esta norma do DL. 54/75,
não é defensável que o terceiro que financiou a aquisição do bem possa lançar

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mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel já que nunca
lhe assistirá o direito de alienação do bem.

Concluindo:

I) - Os artigos 15º, 16º, e 18º, do Decreto-Lei nº54/75, de 12.2 –


procedimento cautelar de apreensão de veículos automóveis – têm o seu
campo de aplicação em caso de incumprimento das obrigações do
contrato de compra e venda por parte do comprador, havendo cláusula
de reserva de propriedade.

II) – Tal regime jurídico impede que o financiador da aquisição dele


beneficie, invocando ter-lhe sido cedida pelo alienante do veículo
automóvel a cláusula de reserva de propriedade.

III) – Por isso, em caso de incumprimento do contrato de mútuo, não


pode quem financiou a aquisição requerer aquele procedimento
cautelar nem prevalecer-se da cláusula de reserva de propriedade –
art. 409º do Código Civil.

Decisão:

Nestes termos acorda-se em negar provimento ao agravo.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 02 de Outubro de 2007

Relator – Fonseca Ramos.


Ex.mos Adjuntos:

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Conselheiro Azevedo Ramos.
Conselheiro Silva Salazar

Fonte: http://www.dgsi.pt

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