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Nz TAL NA BARC 2A No quero nem devo lembrar aaquela barca. Sé sei que em redor tudo era silencio © meng E ¢ sentia_ bem_naquela solidio. Na embarcacio desconforti- vel, tosca, apenas quatro passageiros, Uma lanterna nos ilumi- nava com sua luz vacilante: um velho, crianga ¢ eu. O velho, um bébado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisivel ¢ agora dormia. A mulher estava sentada entre nés, apertando nos bracos a crianca enrolada em panos. Era uma mulher jovem ¢ pilida O longo manto escuro que Ihe cobria a cabeca dava-lhe 0 aspecto de uma figura antiga. Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas ja devia- Mos estar quase no fim da viagem e até aquele instante nio me Scortera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com a barca tao despojada, tio sem artificios, a ociosidade de um didlogo. Estavamos sds. Eo melhor ainda era nio fazer nada, Rio dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcagio ia fzendo no tio. Debrucei-me na grade de madeira carcomida, Acendi um 0. Ali estavamos os quatro, silenciosos como mortos num shines de mortos deslizando na escuridio. Contudo, es- ‘os. E era Natal. caixa de fésforos escapou-me das maos ¢ quase resvalou aqui por que me encontrava uma mulher com uma Cigar, anti tay; 105 Camscanner LIA EAGUNDES TELLES Agachei-me para apanhd-la, Sentindo entio alguns part me mais até mergulhar sie HO TOStOs incline’ aS pontas wy) ator dedos ta dgua. ; : Tao gelada — estranhei, enxugando a mao, ~ Mas de manha ¢ quente. Valeei-me para a nvulher que embalava a crianga e me obser. yawa cont unt meio sorriso, Sentei-me no banco ao seu lado. Tj aha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Vi AG puidas cinham muico cariter, revestidas de uma certa suas POUpAS dignidade . ~ De manha esse rio é quente insistiu ela me encarando, — Quente? — Quente ¢ verde, tio verde que a primeira vez que lavei nele uma pega de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada, a primeira vez que vem por estas bandas? Desviei o olhar para o chao de largas tébuas gastas. E res- pondi com uma outra pergunta: — Mas a senhora mora aqui por perto? Fm Lucena. Jd tomei esta barca nao sei quantas vezes, mas nao esperava que justamente hoje... A crianga agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito, Cobriu-lhe a cabega com o xale e pés-se a nind-la com um brando movimento de cadeira de balango. Suas mios destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas 0 rosto era trangiiilo, — Seu filho? Estd doente, vou ao especialista, o farmacéutico de Aind ‘ou que eu devia consultar um médico hoje mesmo. a oncem cle estava bem, mas de repente piorou. Uma fe- — Levantou a cabega com energia. O queixo vo, mas o olhar tinha a expressio doce. — Sé sei ‘© vai me abandonar, — Eo cacula? Lucena achi Sabi, 2 Unico. paar Subiu no muro, esta o imeu Ptimeiro morreu o ano passado. 'va brincando de magico quando de repente 106 CamsScanner ANTES DO BAILE VERDE avisou, vou voar! A queda nio foi grande, 0 muro nao era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos. Atirei o cigarro na diregio do rio, mas o toco bateu na grade ¢ voltou rolando aceso pelo chao. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfreg-lo devagar. Era preciso desviar 0 as- sunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo. — E esse? Que idade tem? — Vai completar um ano. — E noutro tom, inclinando a cabega para o ombro: — Era um menino tio bonzinho, tio alegre. Tinha verdadeira mania com mégicas. Claro que nao saia nada, mas era muito engragado... S6 a ultima magica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os bragos. E voou. Levantei-me, Eu queria ficar_sé _naquela noite, sem_lem- brangas, sem piedade. Mas_oslagos — os tais lacos humanos — n_me envolver. Conseguira evitd-los até aquele ins- “ja ameaga tante. Mas agora nfo tinha forcas para rompé-los. — Seu marido estd sua espera? — Meu marido me abandonou. Sentei-me novamente e tive vontade de rir. Era incrivel. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora nao podia mais parar. — HA muito tempo? — Faz uns seis meses. Imagine que nés viviamos tao bem, mas tao bem! Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo sobre ela, fez até uma brincadeira, a Duca enfeiou, de nds dois fui eu que acabei ficando mais boni- to... E nao falou mais no assunto. Uma manhi ele se levantou como todas as manhas, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, eu estava na cozinha lavando a louga e ele me acenou através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, nao gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela de arame no meio... Mas eu estava com a mao molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mae numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. Camscanner LYGIA PAGUNDES TELLES ene tumultuadas que cortiam na mesma Fixei-me nas nt T fa contando as sucessivas despragas com Incrive liregio do tio. dice a num com ce quem relata fats sem ter partic tumanhs ’ : fo deles realmente, Gomo se nae bastasse a pobreza que espia- sado deles re ap / | ys da sua roupa, perdera 0 filhinho, o marido ¢ va pelos remende ivan ue : ali estava sem a menor revolta, am ser de uma apatica aqueles olhos vy sombra sobre o segundo filho que ninaya confiante, Intocivel, ainda via nos bragos. Apatia? Nao, mio podi vivissimos ¢ aquelas MAOS CNETBICAS. Inconsciéneia cura irritagio me fer A senhora é conformada. dona. Deus nunca me abandonou. v2 Uma obs- sorrir, — ‘Tenho fé, — Deus — repe' A senhora nao acredita em Deus? E.ao ouvir o som débil da minha vagamente, — Acredito — murmurei. afirmativa, sem saber por que, perturbei-me. Agora entendia, Afestava 0 segredo daquela confianga, daquela calma, Era a tal fé que removia montanha Ela mudou a posigéo da crianga, passando-a do ombro direito para o esquerdo, E comegou com voz quente de paixio: — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma fora, enfici um casaco ¢ Sentei fiquei noite vio desesperada que saf pela rua 3 descalga e¢ chorando feito louca, chamando por ele. num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. pedindo, pedindo com tamanha forga, que cle, que gostava into de magica, fizesse essa magica de me aparecer s6 mais uma vez, nio precisava ficar, sé se mostrasse um instante, ao menos mais cabega no eee ance fiquei sem lagrimas, encostei a Den me ee 5 ce coma dormi. Entio sonhei ¢ no sonho Parece Pied dizer, senti que cle pegava na minha de luz. mao com sua ma Menino Jesus no j de brine tanto... b: ik vio meu menino brincando com o a Paral ‘ : at © vei Fd en do Paraiso. Assim que ele me viu, parou a cio ri o . ndo ao meu encontro ¢ me beijou tanto, ra tal sua alepri : sua alepria que acorde tendo em mim, ‘Bria que acorde rindo também, com o sol 108 CamsScanner ANTES DO WAILE VERDE Fiquei sem saber o que guida, apenas para fazer alguma coi que cobria a cabega da cri voltei o olhar para o ch dizel Esbocei un gesto e em se say levanted a ponta do vale Inga. Deixei cait o xale nov. 40, O menino estav Aro tremor que A mae continuava a nind-lo, ele estava morto, Debrucei-me na gr amente 4 Motto, Entrelacei me sacudin, Estava morte apertando-0 contra o peito, Mas as mos para domin ade da bare: era como se estivesse mergulh Senti que a mulher se agitou atrés de mim, — Estamos chegando — nunciou, Apanhei depressa minha pa sait, fugir antes que ela descobri ver. Diminuindo a marcha. de atra dormia, — Chegamos! Ei! chegamos! Aproximei-me evitando encaréla. — Acho melhor nos despeditmos damente, estendendo a mio. Ela pareceu nao notar meu gesto. Lev: movimento como se fosse Pegar a sacola. de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que cu pudes- se impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabega do filho. — Acordou 0 dorminhoco! E olha af, deve est nenhuma febre, — Acordou?! Ela teve um sorriso, — Veja. © Fespited penosamente: ada até op ogo Naquela dpa, ta, O importante agora era » era tertivel demais, nto queria barea fazi ar, O bilheteiro apareceu ¢ pds-se uuma larga curva antes a acudir 0 velho que aqui — disse atropela- antourse ¢ fez um Ajudei-a, mas ao invés ‘ar agora sem Inclinei-me. A crianga abrira os olhos — pies ee . ate cejava, esfregando 3 Su vita cerrados tio definitivamente. E bocejava, esfregando aa Roel sem conse- Maozinha na face de novo corada. Fiquei olhando sem co Suir falar, . rola no — Entio, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola ne braco. 109 Camscanner LYGIA FAGUNDES TELLES Enearei-a, Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas seu rosto resplandecia, Apertei-lhe a mao vigoros hei-a com o olhar até que cla desapareceu na noite. para tris, acompan! Conduzido pelo bilhetciro, 0 velho passou por mim reiniciando seu afetuoso diilogo com o vizinho invisivel. Sai por tiltimo da barea, Duas vezes voltei-me ainda para ver 0 tio, E pude imaginé-lo como seria de manha cedo: verde ¢ quente. Verde ¢ quente. 110 Camscanner VENHA VER O POR-DO-SOL avangava, metriae aubin senr pressa a tortuosa ladeira, A medida que espalhadas sem ¥h as easas iam tareando, modestas ¢ alhadas em terrenos baldios, No meio da rua sem calgamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas criangas brin- eavam de roda, A debil cantiga infantil era a tinica nota viva na quicmde da tarde, Ele a esperava encostado a uma drvore. Esguio ¢ magro, metido num largo blusio azul-marinho, cabelos crescidos ¢ de- salinhados, tinha um jeito jovial de estudante. — Minha querida Raquel. ia. E olhou para os préprios sapatos. — Veja que lama. $6 mesmo vocé inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi If Longe, jamais ele chegaria aqui em cima. Ele riu entre malicioso e ingénuo. — Jamais? Pensei que viesse vestida esport me aparece nessa elegincia. Quando vocé andava comigo, us uns sapatdes de sete léguas, lembra? — Foi para me dizer isso que vocé me fer. subir até aqui? — perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. — Hem?! — Ah, Raquel... — ¢ ele tomou-a pelo brago. — Vocé esté uma coisa de linda, E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado. Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Entio? Fiz mal? Ela encarou-o, sé amente ¢ agora va 123 Camscanner LYGIA FAGUNDES TELLES — Podia ter escolhido um outro lugar, nao? — Abrandara oz, — E.0 que ¢ isso al? Um cemitério? a ae yoltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com 9 olhar 0 portao de ferro, carcomido pela ferrugem. — Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, de- Nem os fantasmas sobraram, olha af como as sertaram todos. criancinhas brincam sem medo — acrescentou apontando as criangas na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaga na cara do com- panheiro. 7 ' — Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é 0 programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. — Conhego bem tudo isso, minha gente es Vamos entrar um instante e te mostrarei o pér-do-sol mais lindo ‘A enterrada ai. do mundo. Ela encarou-o um instante. E vergou a cabega para tris numa risada. — Ver o pér-do-sol? Ah, meu Deus... Fabuloso, fabuloso! Me implora um ultimo encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, s6 mais uma vez, s6 mais uma! E para qué? Para ver 0 pér-do-sol num cemitério. Ele riu também, aferando encabulamento como um menino pilhado em falta. — Raquel, minha querida, nio faga assim comigo. Vocé sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possivel. Moro agora Eee horrenda, a dona é uma Medusa que vive espian- uraco da fechadura. — E vocé acha que eu iria? sma, Ente gains sei que no ira, voce esti sendo felis rua asta, ce Pa ssemos conversar um pouco numa © braco com as a a: eae mais. Acariciou-lhe intimeras Tugazinhes foram, ledos. Ficou sério, E_aos pouces, -se formando em redor dos seus olhos "Os leques de rugas se aprofundaram 124 CamsScanner ANTES DO BAILE VERDE a, Nao era nesse instante tio jovem como puna expresido ast i rentava, Mas logo sorriu € a rede de rugas desapareceu sem aparentayals p . ; {yio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente meio Voce fer bem em vir. deinat veo esate» Quer dizer que o programa... E nao podiamos tomar alguma coisa nun bar? T fistou sem dinheiro, meu anjo, vé se entende. Mas eu pago. Com o dinhe! ‘0 dele? Prefiro beber formicida. Escolhi € muito decente, no pode haver - passeio porque & de grag: uum passcio mais decente, nao concorda comigo? Até romintico. Ela olhou em redor, Puxou o brago que ele apertava. — Foi um risco enorme, Ricardo. Ele & ciumentissimo. farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, S vai entio sim, quero sé ver se alguma das suas fabulosas idéi me consertar a vida, — Mas me lembrei deste lugar justamente porque nao quero que vocé se arrisque, mew anjo, Nao tem lugar mais dis- creto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado — prosseguiu ele, abrindo 0 portéo. Os velhos gonzos gemeram. — Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberd que estivemos aqui. — um risco enorme, jé disse. Nao insista nessas brinca- » por favor. E se vem um enterro? Nao suporto enterros. — Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes so repetir a mesma coisa? Ha séculos ninguém mais é en- terrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o brago, nao tenha medo. O mato rasteiro dominava tudo. E nao satisfeito de ter-se astrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infil- trara-se dvido pelos rachées dos marmores, invadira as alame- dhs de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta forga de vida cobrir para sempre os Ultimos vestigios da morte, Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os pasos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha mii- dei pre 125 Camscanner LYGIA FAGUNDES TELLES feiea do som das folhas secas trituradas sobre 0s pedregy Ait Sala mas obediente, cla se deisava conduzit como qe vores mostrava certa cutiosidade por uma ou our see ya com os palidos medalhdes de retratos esmaltados, MY" Samenso, hem? E tio miserdvel, nunca vi um cemité- s mais miserdvel, que deprimente — exclamou ela, atirando a ponea do cigarro na diregio de um anjinho de cabega decepada, pe Vamos embora, Ricardo, chega. —— Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimen- ce por qué? Nao sei onde foi que eu li, a beleza nio esté nem na jaz da manha nem na sombra da noite, esta no creptisculo, nesse meio-tom, nessa ambigiiidade, Estou-lhe dando um creptisculo numa bandeja ¢ voce se queixa. — Nio gosto de cemitério, jd disse. E ainda mais cemité- ia tio pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mao. — Vocé prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. — E, mas fiz mal. Pode ser muito engragado, mas nao quero me arriscar mais. — Ele € tio rico assim? — Riquissimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Jé ouviu falar no Oriente? Vamos até 0 Oriente, meu caro. Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mio. A peque- nina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, to aberta e lisa, repentinamente escureceu, enve- Ihecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram. — Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeca no ombro do homem, ela retardou © Passo. vee Sabe, Ricardo, acho que vocé é mesmo meio tanta Mas a Pesar de tudo, tenho as vezes saudade daquele tempo- Que ano a , im: ‘quele. Quando penso, nao entendo como agiientei (ant agine, um ano! 126 Camscanner ANTES DO WAIL VIRDEE —&k que voce tinha lide A Dama dus Camélias, ficow as sim toda frégil, toda sentimental, | estd lendo agora? — Nenhum — responde * agora? Que romance vock MM u ela franzindo ox lbios, Deteve: se para ler a inscrigio de um ’ a laje despedagada: — A minha querida esposa, eternas saudades — leu em voz baixa, — Pois sim. Durou pouco essa eternidade, Ele atirou 0 pedregulho num canteiro ressequido, — Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto, Nao se encontra mais a menor intervengio dos vivos, a estiipi- da intervengio dos vivos. Veja — disse apontando uma sepul- tura fendida, a erva daninha brotando insdlita de dentro da fenda — 0 musgo ja cobriu 0 nome da pedra. Por cima do musgo, ainda virao as rafzes, depois as folhas... Esta a morte perfeita, nem lembranga, nem saudade, nem 0 nome sequer. Nem isso. Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. — Estdé bem, mas agora vamos embora que jd me diverti muito, faz tempo que nao me divirto tanto, s6 mesmo um cara como vocé podia me fazer divertir assim. — Deu-lhe um rapido beijo na face. — Chega, Ricardo, quero ir embora. — Mais alguns passos... , — Mas este cemitério ndo acaba mais, j4 andamos quild- metros! — Olhou para trés, — Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. . —A boa vida te deixou preguicosa? Que feio — lamentou ele, impelindo-a para frente. — Dobrando esta ane fea ° jazigo da minha gente, é de Id que se vé 0 por-do-sol. Sal ae iF quel, andei muitas vezes por aqui de maos dadas com ol a Pp ma. Tinhamos entio doze anos. Todos os domingos ee vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha Corea ane terrado meu pai. Eu e minha priminha OE c ene vamos por af, de mos dadas, fazendo tantos pianos. i duas esto mortas. — Sua prima també ie Camscanner NDES TELLES: LYGIA FA Morreu quando completou quinze anos, Nj, s. Nig —— Também. ‘ mas tinha uns olhos... Bram amente bonita, spa propre . | : assim era prok parecidos com os seus. Extr Jomo OS SCUS, aordingrig a “as De 5 aordindrio como voces duas... Penso agora que toda idia apenas nos olhos, assim meio obliquos, verdes ¢ Raquel, ext a beleza dela r se amaram? — Ela me amou, Foi a tinica criatura que... — Fez um infim, nao tem importincia. — Eu gostei de vocé, Ricardo. — Ecu te amei. E te amo ainda Um passaro rompeu o cipreste ¢ soltou um grito. Ela es- tremeceu. — Esfriou, nao? Vamos embor: — Ja chegamos, meu anjo. Aqui estéo meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadcira selvagem, que a envolvia num furioso abraso de cipés ¢ folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubiculo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubiculo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os bragos da cruz, uma ara- nha tecera dois triingulos de teias jd rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, a direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma es racol para a catacumba, Percebe agora a diferene: ada de pedra, descendo em ca- Jove pt entFow na ponta dos pés, evitando rogar mesmo de eve naqueles restos da capelinha, —Quet aqui? Ele toc . ou na face da imagem recoberta de poeira. S lance ja imagem recoberta de poeira. Sorriu, melancélico, Bs f ste que € isto, Ricardo, Nunca mais voce esteve 128 CamsScanner FS DO BAILE VERDE — Sei que vocé gostaria de encontrar ry nos vasos, velas, sinais da minha dedicagio, ‘ que 0 que mais amo neste cemitério é precis, dono, esta solidio. As pontes com 0 outro mundo for, das ¢ aqui a morte se isolou total, Absolura, Ela adiantou-se ¢ espiou através das enferrujades by ferro da portinhola, Na semi-obscuridade do subsilo, os gore se estendiam ao longo das quatro paredes que farmevar estreito retangulo cinzento. — El4 embaixo? ‘ — Pois |4 esto as gavetas. E nas gaveras, m Pé, meu anjo, p6 — murmurou ele. Abriu a portinhole « ¢ ceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alga de bronze, como s¢ fosse cémoda de pedra. Nao é grandiosa? Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se ver melhor. — Todas essas gaveras esto cheias? — Cheias?... $6 as que tém um retrato € a inscri¢ao, vendo? Nesta est4 o retrato da minha mie, aqui ficou m mae — prosseguiu ele tocando com as pontas dos ded: medalhao esmaltado, embutido no centro da gavera. Ela cruzou os bragos. Falou baixinho, um ligeiro na voz. — Vamos, Ricardo, vamos. — Vocé est4 com medo. — Claro que nio, estou é com frio. Suba ¢ vamos embora, estou com frio, - ‘Ele nao respondeu. Adiantara-se até um dos gavetOes na parede oposta acendeu um fésforo. Inclinou-se para 9 meda- thao frouxamente iluminado. oak — A priminha Maria Emilia, Lembro-me até do dia em ue tirou esse retrato, duas semanas antes de morrer... Prendeu 98 cabelos com uma fita azul ¢ veio se exibir, estou bonita? Extou bonita? — Falava agora consigo mesmo, doce ¢ gravemente, — 129 CamsScanner HYGLA BAGUNDES TELLES Nia Equi fosse Donita, mas os olhos.. Venha ver, Raquel, ¢ soe inante come tinha olhos iguais aos seus, in herb loese Tre veseet a escaelts chcothenda-se pata no esbarrar em vada an aqui, Ei que esctiro, nto estou enxergando! Que tiie b \cendende outro fistoro, ele oferecet-o X companheir, Vogue, hi para ver muito bem... Alastou-se para o Lado. Repare nos olhos. Mas estd Ho desbotado, mal se vé que é uma moga... Antes da chamia se apayar, aproximoura da inscrigio feita na pede, Leu em vor alta, Tentamente, — Maria Eniilia, nascida en vinte de maio de mile oitocentos ¢ falecida, cairo palito ¢ fieou unr instante imdvel, — Mas esta nao podia ser sua namorada, morreu ha mais de cem anos! Seu ment... Uni baque metilico decepou-the a palavra pelo meio. ta, Voltou o olhar para a — Deixou Olhou en redor A pega estava dese exeada, No topo, Ricardo a observava por detris da portinhola fechada, Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. Isto nunea foi o jazigo de sua familia, seu mentiroso! 1 — exclamou ela, subindo rapidamen- Brincadeira mais cretina — Nao tem praga nenhuma, ouviu? sse quase a tocar o trinco da por- te aescada Fle esperou que ela chey tinhola de ferro. Entio deu uma volta A chave, arrancou-a da fechadura e saltou para tr = Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos imediatamen- , . : tel — ordenou, torcendo o trinco, — Detesto este tipo de brin- sabe diss deni idiota desses. Brineadeira mais estiipida! — Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da por Uma frincha na porta, Depois vai se afastando devagarinho devagarinho, Voce terd o par-do-sol mais belo do mundo. "Sh sacudia a portinhola. imedina ae chega, jd disse! Chega! Abre imectiatamente i a ainda, Ficou cadeita, vor », Seu idiotal Eno que did seguir a cabegt tm bem — Sacudiu a portinhola com mais forg ARATTOUSse a el ay dependurando-se por entre as grad 130 CamsScanner ANTES DO BAILE VERDE ofegante, os olhos cheios de ligtimas, Ens Ouga, meu bem, foi engragadiss mo, vamos, abra Ele ja stava_sério, os olhos diminufdos. Em redor deles: am_as rugazinhas abert — Boa noite, Raquel. — Chega, Ricardo! Vocé vai me pagarl... — gritou ela, estendendo os bragos por-entre as grades, tentando agar — Cretino! Me da a chave desta porcaria, vamos! — git, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em s guida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se, Foi erguendo o olhar até a chave que ele balangava pela argola, como um péndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo ¢ amoleceu o corpo. Foi escorregando. — Nio, nio... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta ¢ abriu os bracos. Foi puxando as duas folhas escancaradas. — Boa-noite, meu anjo. Os labios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa ex- presséo embrutecida. — Nio... Guardando a chave no bolso, ele retomou 0 caminho per- corrido. No breve siléncio, o som dos pedregulhos se entrecho- cando timidos sob seus sapatos. E, de repente, 0 grito medo- nho, inumano: — NAO! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estragalha- do. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingit! 0 porto do cemitério, ele langou ao poente um olhar mortico. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escuraria agora qualquer cha- mado. Acendeu um cigarro ¢ foi descendo a ladeira. Criangas ao longe brincavam de roda. atiou um sorriso, — IMO, Mas agora preciso ir me sorria, E, reaparece as em leque. lo. 131 CamScanner

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