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1 SEMAN DE. WH SENMAWAVE' 0. impactos da BNCC LETRAS: parajo)ensino| de eID ren linguas e. DO SERIDO™ A CONSTRUCAO DAS PERSONAGENS AFRO-BRASILEIRAS NO CONTO “O MOLEQUE™ DE LIMA BARRETO Weberson de Aquino Lima Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) webersonaquino@hotmail.com RESUMO Lima Barreto (1881-1922) foi um escritor impar no cenério das letras nacionais. Neto de escravizados ¢ filho de libertos (SCHWARCZ, 2017), ele foi, para boa parle dos estudiosos de sua obra, um dos primeiros autores da literatura brasileira a se reconhecer e se definir como literato negro. Lima Barreto Tompeu 08 preconceitos do final do século XIX e inicio do século XX, com sua prosa inovadora e estilo combativo. Sob a ética de pesquisadores como Cuti (2011), Eduardo de Assis Duarte (2013, 2014) ¢ ‘outros criticos e estudiosos de Lima Barreto este trabalho se propde a analisar o conto “O moleque” discutir sobre como Lima Barreto constréi os personagens afro-brasileiros a partir do ponto de vista do sujeito negro (DUARTE, 2013). Ponto de vista este que ao longo da Histéria e do Canone Literario foi deixado na marginalidade. As personagens que compe o conto fazem parte do grande leque humano ‘que integra os espacos de pobreza descritos na obra do autor. Neste conto, mais uma vez, Lima Barreto retrata sua viséo partido de um microcosmo: um subiirbio carioca, criando personagens essencialmente urbanos e que na maioria das vezes denunciam os preconceitos sofridos pela populacao afro-brasileira PALAVRAS-CHAVE Lima Barreto, Literatura afro-brasileira, Conto, LIMA, Weberson de Aquino. A construgao das personagens afro-brasileiras no conto “O moleque” de Lima Barreto. In: SANTIAGO, Marcio Sales; BON, Gabriela (Orgs.). | 9 Anals da Ill Semana de Letras do Serld6, Natal: EDUFRN, 2022. p. 9-26. AESCRITA DE LIMA BARRETO Inteligente, negro, pobre, incompreendido. Afonso Henriques de Lima Barreto nasce em 13 de maio1881 e morre em 01 de novembro1922 (SCHWARCZ, 2017). Lima Barreto, como escritor, fez parte de uma geragao de intelectuais que presenciou no Brasil um cendrio de desdobramentos, composto pela aboligdo da escravatura e a instituigao da Republica. Este escritor foi um homem que olhava para o mundo do seu tempo. Observava a vida e a narrativa dos usos e dos costumes. Ao fazer isto ole acaba por compreender as transformagées sociais de seu periodo e suas possiveis aberturas para a sociedade dos dias contemporaneos. Entende-se que nesta perspectiva Lima Barreto foi um escritor que se esforgou, no apenas para discutir as transformagdes complexas da sociedade brasileira, mas também, a criticd-las abertamente. Levado a frustragao por nao testemunhar os valores de igualdade da Lei Aurea de 1888 e da Republica, o autor entrou em uma espécie de “cruzada literaria contra as ideias e praticas elitistas de mentalidades que ainda reproduziam o regime colonial, formulando sua prosa contra alvos que precisavam ser confrontados” (CORREA, 2017, p. 06). Aos olhos de muitos politicos e intelectuais do final do século XIX, 0 negro se tornou um grande problema nacional a partir do fim da escravidao, pois, antes da Lei Aurea ser assinada, 0 negro tinha um papel bem definido; ser escravo. Ademais no quadro geral da sociedade brasileira dos fins daquele século, que vai se transformando gragas a processos de urbanizagao e a vinda de imigrantes europeus, enquanto paralelamente, desiocam-se marginalizados e sob estigmas negativos de ordem raciolégica, os antigos escravos ao longo do pais. A literatura barretiana é caracterizada como portadora das marcas deste period transicional da Historia nacional. Esta literatura tem como principal fio condutor narrative © preconceito racial e a dificil insergao das pessoas negras na sociedade brasileira. E notério que aos olhos de Barreto os africans e os afro- brasileiros, durante os anos que se seguem ao pés-abolicdo, ficam a margem da sociedade, condicionados a subempregos, a pobreza, e a falta de representagao. Este fato também se reflete no Ambito literdrio até os dias contemporaneos em que “a 10 presenga do negro mostra-se rarefeita (...), com poucos personagens, (...), cenas ou histérias fixadas no repertério literdrio nacional e presentes na meméria dos leitores". (DUARTE, 2013, p.146). Fato que comega a mudar com o fazer literario do préprio Lima Barreto, que mostra ao leitor 0 pobre, 0 negro, de uma maneira que ainda nao acontecia na literatura brasileira até entao, fazendo uso da antiga capital, Rio de Janeiro, convertida em uma espécie de laboratério, um microcosmo para se pensar o Brasil. Barreto também mostrava a cidade com suas dindmicas, j4 que 0 literato também anexa o cenério dos subirbios ao ambiente da cosmopolita da metrépole, integrando a este espago 0 seu povo, seus companheiros, irmas e irmaos de cor, humildes e suburbanos que se tornam aos olhos do autor objeto de uma reflexao profunda sobre © seu tempo, e que ocupa centro de sua obra literaria. Para Schwarzez (2010, p. 23), “O autor (Lima Barreto) constréi uma literatura que se pretende negra, suburbana e pobre.” Isto em um cenério nacional em que mais se exaltava a aboligdo do que se notava 0 passado escravocrata. Essas questées despertam em Lima Barreto um anseio a critica e a confissdo, que faz o autor cogitar ‘em escrever com orgulho a histéria do povo negro, Fato este que é confirmado pelo préprio escritor, em uma de suas entradas de seu Diario intimo. Nela o escritor carioca deixa claro suas pretensdes de aos moldes do escritor francés naturalista Emile Zola escrever sobre a Histéria do negro no Brasil. Lima Barreto tinha como planos iniciais que sua obra focasse nas questées do negro na sociedade brasileira, com livros de ficgdo que trabalhassem com a historia da escravidéo e suas implicagdes. Este compromisso inicial aparece de maneira explicita em seu primeiro romance, Recordagées do escrivao Isaias Caminha, em que temos um minucioso trabalho de observacdo social do ponto de vista de uma pessoa afro-brasileira pobre (CUTI, 2011). Lima Barreto nao deixou de ver a escrita como uma misso. O escritor produziu uma extensa obra e nela relatou os problemas que afetavam os afro-brasileiros e por consequéncia também o afetava. Sua literatura 6 fundamentalmente voltada para os problemas existenciais (mentalmente e fisicamente) do individuo negro em face da sociedade caracterizando-a assim como uma literatura a partir da viso de um sujeito negro (DUARTE, 2014) "1 Como sujeito-autor afro-brasileiro, Lima Barreto tem uma atitude de comprometimento com o negro, o seu olhar sobre ele, é um olhar de dentro para fora, ou seja, é olhar o negro do ponto de vista do sujeito negro comprometido etnicamente com seus semelhantes (DUARTE, 2014). O fato deste autor ter desenhando um projeto literario ligado a questées que trataria a histéria de lutas da populagao negra para si, deixa perceptivel que Lima Barreto se impunha como escritor de urgéncia de sua época e que hoje muitos de seus temas se fazem presentes em nossa contemporaneidade, pois o grande publico é capaz perceber que sua produgao literaria néo 6 apenas de dentincia da discriminagao proveniente do racismo e das estruturas sociais, mas também de sua identificagéo como homem negro, uma questo intima, uma confissao pessoal. A ocorréncia de mostrar a vida dos subtrbios e os marginalizados de seu periodo faz com que “o autor preconize uma literatura militante” (CURY, 1981, p.100), tendo em vista que os contatos com o cotidiano das camadas populares reunida na cidade do Rio de Janeiro formam o campo de observagao para que o escritor possa construir 0 caminho que a sua literatura devia trilhar. A Literatura Barretiana é marcada pela tematica social, foi instrumento de critica @ de combate aos discursos e teorias raciais dos primeiros anos da Reptiblica. Lima Barreto deu ao leitor a oportunidade de contato com o submundo dos suburbios cariocas e a vida miseravel que neles levava as pessoas daquele lugar, populagao que jd era majoritariamente negra, ao contrario dos “Intelectuais desse periodo se preocupam excessivamente em construir uma imagem do brasileiro, a partir de um tipo étnico desejado” (SEVCENKO, 2003, p.106). Lima Barreto voltava seus esforgos por uma representacdo da realidade negra, que desnorteava ideal imaginado, difundido, étnico, especifico e representative da nacionalidade proposta pelo branqueamento, No ponto de vista de Cuti (2011) a lucidez com que Lima Barreto retrata as primeiras décadas do século XX 6, ainda hoje, fonte de amplas reflexdes para educadores, pesquisadores e militantes do movimento negro. Embora que nao reconhecido em vida Lima Barreto 6 uma voz atual, sua obra ganha destaque e atengao em meio a comunidade académica, seus contos e romances, sao fontes de 12 pesquisas e a sua vida estudada, seja pela critica politica e sociolégica ou pela questdo racial, ambas muito presentes e afiadas na figura do escritor, que a um século de sua morte, tem gragas aos seus escritos, sua figura elevada ao status de intérprete de um Brasil nao tao belo. O SUBURBIO DE INHAUMA E AS MULHERES NEGRAS Em “O Moleque’, Lima Barreto trata do cotidiano dificil dos habitantes da comunidade suburbana de Inhaima. Um dos primeiros pontos a chamar atengao do leitor é a luciosa descrigao que o narrador, na fungo de observador de seu tempo faz sobre este ambiente. Lima Barreto faz uso dos artificios narrativos para descrever aquele subUitbio, ressaltando ainda seu nome origem, advindo dos primeiros homens, ‘em Lingua Tupi. Lingua dos antigos e originais moradores da vila, o que confere assim certa resisténcia a modemizagdo, deixando evidente o cardter rustico do lugar: “Inhaima é ainda dos poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforgos dos nossos edis para apagé-lo" (BARRETO, 2010, p.143). © aspecto ristico Inhatima também o transforma em um “lugar de reftigio’. Longe do ambiente central da cidade, que tentava se fazer aos moldes de uma “Europa nos trépicos”. Inhatima se converte em lugar de liberdade, que as pessoas de descendéncia africana e os mais pobres se sentiriam livres para praticar fés e crengas ancestrais sem maiores perturbagées, algo, até entao, inadmissivel para os moldes cristées e conservadores des moradores da regido centro. O narrador faz leitor atentar que apenas o cristianismo nao é o bastante para atender os moradores dos morros e adjacéncias, como se pode ver no trecho a seguir: “E um suburbio de gente pobre, (...) Fogem para la, sobretudo para seus morros ¢ escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade como seus avés’, (BARRETO, 2010, p.143). Aquele lugar, nas palavras de Lima Barreto, é provavelmente um abrigo que: “nas suas redondezas, ¢ 0 lugar das macumbas, das praticas de feiticaria com que a teologia da policia implica, pois nao pode admitir nas nossas almas depésitos de crengas ancestrais". (BARRETO, 2010, p.143). Ao indicar que a ‘policia implica’ com estas praticas, Lima Barreto revela uma vertente do 13 preconceito vigente da época que perdura até os dias contempordneos; o preconceito religioso para com as religides de matriz africana. Este preconceito tende a marginalizar e a estigmatizar como errado, demoniaco ou até mesmo criminoso (naquela época) qualquer relacao religiosa com forgas de espiritualidade que vao além do fragil circulo branco cristo. Estas manifestagdes de religiosidade, por sua vez, de acordo com o contexto de sua época, possuem fortes indicativos de origens africanas, indigenas e de outras vertentes religiosas, tendo em vista que o subtirbio era 0 local para onde migrou os “escravos domésticos” e também “os negros da terra’, que sem o abrigo e a ragdo humana dada pelos senhores durante o pés-aboligao, enxergavam nestes lugares um espaco em que talvez pudessem habitar e ganhar o sustento Ao trazer estas informagées, 0 autor indica que no espago do suburbio, as linhas de expressao religiosa parecem ser mais brandas, como afirma posteriormente ao relatar que “o espiritismo se mistura a eles e a sua difusdo é pasmosa. A Igreja catélica unicamente ndo satisfaz 0 nosso povo humilde. E quase abstrata para ele, (BARRETO, 2010, p.143). Lima Barreto mostra que o espectro do hibridismo religioso (DUARTE, 2014) esta presente nas comunidades mais pobres. Lugares estes, em que os individuos nao se apegam apenas a aspectos de uma nica f8, mas tendem a misturd-los e a tomar uma amalgama. Ao afirmar que “pois néo pode admitir nas nossas almas depésitos de crengas ancestrais" (BARRETO, 2010, p. 143), 0 escritor deixa claro que qualquer coisa que fuja ao ideal cristéo naquele inicio de século sempre sera visto com maus olhos, pois, assim como a lingua, a religiao dos escravizados foi violentamente reprimida, resultando como uma unica escapatéria a hibridizagdo religiosa (DUARTE, 2014). Neste caso, este hibridismo na forma sincretismo religioso se manifesta muito bem na apresentagao da figura dos médiuns. Estes médiuns se fazem fortes e presentes em inhatima, integrando um tipo de teia mistica, que surge a partir das religides, superstigdes e crengas daquela gente. A ideia de hibridismo esta confirmada pelo narrador, que afirma; “a feitigaria, 0 espiritismo, a cartomancia e a hagiologia 14 catélica se baralham naquelas praticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos religiosos possa vir nascer uma grande religido” (BARRETO, 2010, p.143). Estas crengas que fazem parte da identificagao daquele lugar, ou seja, este misto de elementos se liga as necessidades do povo, pois como nos descreve o narrador “os médiuns que curam merecem mais respeito e veneragdo que os mais famosos médicos da moda. Os seus milagres sao contados de boca em boca” (BARRETO, 2010, p.143). No decorrer do conto, posteriormente, percebemos que tal caracteristica ligada ao misticismo e a espiritualidade, a tradi¢ao curandeira 6 construfda_na figura de Felismina, que de certa forma, porta-se de maneira muito similar a uma guardia do saber e da cura para os males pessoais e corpéreos, andloga a uma matriarca que possui grande cuidado com sua gente, Qs seus conselhos eram ouvidos e procurados, e os seus remédios ‘eram aceitos como se partissem da prescri¢ao de um doutor. Ninguém como ela sabia dar um cha conveniente, nem aconselhar em casos de dissidias domésticas. (...) Além da medicina de chas e tisanas, ela aconselhava aquela gente os medicamentos homeopaticos. A beladona, 0 acénito, a bridnia, o sulfur eram os seus remédios preferidos e quase sempre os tinha em casa, para 0 seu uso e dos ‘outros (BARRETO, 2010, p.146). Outro ponto que o narrador barretiano observa é a moradia dos viventes de Inhauma, “o barracdo”. Um tipo de moradia simples e comum de toda comunidade, morando nestes tais barracées, estéo mulheres negras de grande forga. Fato este incomum para a literatura da época. Mulheres negras que sdo destacadas por suas virtudes, so estas: Baiana, Dona Felismina e Dona Emerenciana, Baiana é descrita como “rica” por ser dona de uma das poucas casas feita de tijolos em meio aos demais barracées da Rua dos Espinhos. A casa dessa mulher foi comprada com o dinheiro proveniente de seu trabalho: Baiana, “vendedora de angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma cousa e adquirira aquela casita, a mais bem tratada da rua" (BARRETO, 2010, p.146). Quanto a sua personalidade era uma mulher independente, de bom coragao, capaz de boas agdes e de uma solidariedade que ia além da barreira da cor, j4 que a mesma tinha adotado uma crianga branca abandonada nas imediagées: 15 Tinha "homem" em quanto Ihe servia; e, quando ele vinha aborrecé-la mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa, possuia uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura curiosa de sua vida. Uma manha havia cinco ou seis anos, saindo com o seu tabuleiro de angu, encontrou em uma calgada um embrulho um tanto grande. Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma crianga, branca - uma menina, Deu os passos necessérios & criava a crianga, que, nas imediagdes, era conhecida por "Baianinha” (BARRETO, 2010, p.143) © comportamento ¢ a independéncia sexual de Baiana vai na contramao do que se esperava de uma mulher no inicio do século XX, pois, como afirma Rachel Soihet (2004); as caracteristicas conferidas as mulheres eram suficientes para justificar e exigir delas uma atitude de submissdo, que a proibiam do exercicio da sexualidade antes do casamento. Nota-se na narragao barretiana que Baiana também se opée a ideia de ser presa totalmente ao aspecto sexual, como sua xara Rita Baiana de O Cortigo, No caso da primeira o seu comportamento pode ser interpretado como uma demonstragao de forga, honestidade e respeito. A figura de Baiana com seu tabuleiro de angu carrega uma simbologia bastante peculiar; uma mulher negra, forte ¢ independente que leva sobre sua cabega as regras de sua prépria existéncia, nao cedendo ao modelo sexista de sua época. Enquanto a segunda (do romance O Cortigo), é construida com base em uma espécie de degeneragao da figura feminina negra, que é reduzida animalescamente a um continuo interourso sexual de luxitia, algo altamente pregado por escritores brancos na literatura nacional. Quanto a Dona Felismina e Dona Emerenciana, sao descritas como negras e honestas. A primeira viva, mae do menino Zeca, lavadeira, adepta do espiritismo e digna de honra e virlude de todos da rua. Ela é um exemplo pratico da “organizagao familiar dos populares que assumia uma multiplicidade de formas, sendo inumeras as familias chefiadas por mulheres sés" (SOIHET, 2004, p. 362). Enquanto Emerenciana, ndo é apresentado grandes informagées além de sua cor e sua honestidade préximas ade Felismina Desta forma, ao afirmar que Felismina e Emerenciana eram negras e honestas, © escritor, demonstra que tinha respeito pelas mulheres negras, que somente podiam contar consigo mesmas diante do contexto social de uma época em que havia uma grade desvalorizacao feminina, até mesmo para aquelas mulheres que eram brancas 16

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