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O CORPO DE AFONSO - Director - Statement - EN - PT
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The fascination with Portugal's first king, D. Afonso Henriques is centuries old;
the ancient monarch was frequently invoked by his successors. At the height of
the "Portuguese Discoveries" expansion and thinking the original grave too
modest, King Manuel I relocated the remains of his predecessor to a new, more
splendid tomb; chronicles of the time mention the body of a giant, "whole,
uncorrupted, (...) ten hands long, and two and a half wide at the chest (2 meters
or 6' by 50 cm or 1,5', approximately)(1).
Three hundred years later, King Miguel, in full fratricidal battle with his brother
King Pedro, Emperor of Brazil, and seeking “supreme” legitimacy, decides to
open the tomb at the Church of Santa Cruz de Coimbra; the image of the great
man persists, and the towering stature of the founder of a nation gains strength.
In the hectic 1930s and riding the nationalistic wave of the late nineteenth
century (which, paradoxically, led to the fall of the dynastic regime started by
King Afonso Henriques), António de Oliveira Salazar emerges depicted as the
“defender of Portugal”, masquerading as a medieval king, mimicking the popular
D. Afonso Henrique's sculpture, located in Guimarães, the birthplace of
Portugal; perhaps attempting to adorn his sad physicality – an austere Coimbra
professor with a hooked nose and crooked posture – with the first Portuguese
king's legendary magnificence. These and other allusions, many lacking
credibility, created a fog of mystery and mysticism surrounding King Afonso's
persona.
O fascínio pela figura de D. Afonso Henriques é velho de séculos; o distante monarca foi
frequentemente invocado pelos seus sucessores. No auge da expansão dos
“Descobrimentos” e achando a sepultura original demasiado modesta, D. Manuel I faz
trasladar os restos mortais do seu antecessor para um novo e esplendoroso túmulo; as
crónicas então lavradas dão conta de um corpo de gigante, “inteiro, incorrupto, (…) de
estatura de des palmos em comprido e de dous e meio de largo pellos peitos (dois metros
por meio metro aproximadamente)”1.
Trezentos anos mais tarde, D. Miguel, em plena luta fratricida com o seu irmão D. Pedro e
em busca de legitimação “superior”, decide abrir o túmulo na Igreja de Santa Cruz de
Coimbra; persistindo a figura de um grande homem, ganha força a imagem da envergadura
imponente do fundador da nação. Na atribulada década de 30 do século passado e
aproveitando a vaga nacionalista do final do século XIX (que, paradoxalmente, levou à queda
do regime dinástico de que D. Afonso Henriques é primeiro nome) António de Oliveira
Salazar surge ilustrado como “defensor de Portugal”, travestindo-se para isso de rei
medieval, emulando a popular escultura vimaranense da autoria de Soares dos Reis; talvez
uma tentativa de reservar para a sua triste figura – um austero professor de Coimbra de nariz
adunco e postura curvada – um pouco da lendária grandiosidade do primeiro rei português.
Estas e outras invocações, muitas delas com muito pouca credibilidade, fizeram descer uma
névoa de misticismo e incerteza sobre a real figura.
Acompanhando D. Afonso Henriques e não menos mitificada, a sua espada está igualmente
imersa em lendas sobre as suas reais dimensões. Repousando alegadamente em Santa
Cruz de Coimbra – tal como o seu escudo, “famoso” por cair ao solo de cada vez que um
monarca morria – rezam as crónicas que o rei D. Sebastião tê-la-á levado para África na sua
letal aventura de Alcácer-Quibir2. De acordo com os rituais medievais, a espada assumia
uma importância tão grande como a própria coroa, e não por acaso – os primeiros reis
ibéricos tornaram-se soberanos muito à custa do esforço bélico da reconquista. Assumindo
um papel primordial na investidura dos cavaleiros, a espada é também insígnia imposta ao
rei3 e figura, invariavelmente, na iconografia existente de D. Afonso Henriques, como uma
insígnia “que lhe dá uma autoridade sem par, a que o distingue de todos os outros homens”4.
À medida da imponência da figura, ficou a ideia de uma espada descomunal e de peso
extraordinário, só passível de manejar por uma criatura de grandeza sobre-humana, um
herói, quase um super-homem.
A mais recente tentativa de abertura do túmulo de D. Afonso Henriques data já deste século,
mas foi frustrada por “impedimento superior” de última hora, deixando por revelar o que
verdadeiramente se encontra no interior do túmulo.
O cinema revela-se então como o meio ideal para tentar encontrar um corpo para o mito
fundador da nacionalidade, o corpo de D. Afonso Henriques, logrando, talvez, revelar o que à
Ciência não é permitido e que a História não consegue deslindar.
1 Segundo memória escrita por João Homem, cavaleiro da casa de D. Manuel, cf. MATTOSO, José – D. Afonso
Henriques. Lisboa, Temas e Debates, 2007.
2 Aparentemente, a espada terá ficado na nau régia, o que terá alimentado os fatalismos em torno do fracasso da
contenda (Cf. Rodrigues, Ana Maria S. A. – Em busca de D. Afonso Henriques através de oito séculos de Historiografia
Portuguesa in Actas do 2º Congresso histórico de Guimarães, Volume 3. D. Afonso Henriques na História e na arte.
Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães e Universidade do Minho, 2000).
3 Cf. MATTOSO, José – Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Estampa, 1987.
4 Cf. MATTOSO, José (idem).