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FELLINI VISIONARIO ENTREVISTAS Um documentario sobre a vida pensa na Belle Epoque [ retitamente tudo ndo estamos na Belle Epoque, & sim em Roma, neste verao, Alguns fatos que este filme aconteceram no pre~ rus colaboradores @ eu s6 tive- zis para encontrar elemen- apaixonantes as intrigas sao as mulhe: meu filme ndo sao vai de uma a outra, usar admitir que esta tra A estrela internacional fazendo seu pro: prio papel. Anita Ekberg no papel de Ekberg (Anita). Quem poderia desempenha-lo me: thor? Quem poderia banbar-se melhor na Fontana di Trevi, dancar melhor entre as ruinas monumentais de Caracalla & luz dos archotes? Fla fez isso, ela pode desempenhar © papel Mas a mulber de & doce vida, a muther verdadeira, fascinante e feia ao mesmo tem po, a mulher que tem mil vezes mil anos é a cidade. Eu quis transporta-la para a tela em seu aspecto mais exagerado, quis trabalbar meu material até os limites extremos da pa- rédia, fazer do burlesco uma coisa emocio: nante. A parédia amarga contém tudo: 0 britbo enganoso da via Veneto; a manba numa rua popular, triste como 0 primeiro café antes da corrida para a fabrica; cri- mes decadentes contra 0 corpo ou contra © espirito; rostos conhecidos demais, estrelas amadas demais, aristocratas verdadeiros demais para ser verossimeis. Essa 6 a cida- de. Essa & Roma. © senhor nao teme os riscos do do- cumentirio sobre uma grande cidade? Nao, porque este deve ser um docu- mentario sobre a vida. A cidade é apenas uum pretexto, uma personagem cuja bist6: ria escrevi como a de meus outros heros No entanto meu primeiro produtor no pre: sente projeto, Dino de Laurentis, reagiu da seguinte forma ao ler a primeira versao do manuscrito: "Escute, Federt, escute...". Ele me agarrou pelo paleté e me sacudiu, "Esse Jilme & péssimo. Nao tem enredo, nem he- r6t, nem lances teatrais... Roma 6 pouca col sa.” Contudo eu resisti, ¢ 0 mats curioso que tantas vezes precisei explicar minhas intengdes que pouco a pouco tudo que ain- da era vago ou mal definido se esclareceu, se depurou. Quanto mais oposicao eu en contrava, mais minha historia se aprimo- rava... Era como uma corda que soava em algum lugar no meio de uma estranha or: questra, quase silenciosa. (Trecho de uma entrevista publicada em LESpress, Paris, 9 de julho de 1959.) UM FILME MORALMENTE INACEITAVEL E mais que um escandalo: é um negocio, de Estado. Um dlos cineastas mais célebres do mun- do, © também © menos suspeito de procu- rar impressionar através de meios indignos, Federico Fellini (a estrada, Os boas-vidas, Noites de Cabiria) acaba de provocar uma comogao sem precedentes na historia do ci- nema com seu tiltimo filme, A doce vida, ‘Ao mesmo tempo que é insultado na ras to logo 0 reconhecem, Fellini proveca en- tusiasmos frenéticos Alguns cardeais se mo: ao filme, que para eles é profundamente cristao. Contudo 0 Vaticano, a Acao Catélica € 0 cardeal Ottaviani (secretario do Santo Officio) langaram uma violenta campanha contra 4 doce vida. O papa Joao xxi tinha aprovado 0 roteiro. Varias petigoes exigindo a proibicae do filme chegaram ao Parlamento, porém o secretirio de Estado dos Espeticulos respon- deu negativamente, pois “na Itilia a arte ci- nematogrifica nao pode ser sufocada pela raram favoriveis: © Departamento Catolico do Cinema Ita’ liano considerou o filme “moralmente ina- ceitavel” € por conseguinte proibiu os fieis de © assistirem, Sera que tenho de explicar, mais uma vez explicar a moralidade de meu filme, saben- do de antemao que nao serei inteiramente compreendido? Meu filme é casto e mostra 0 mal sem complacéncia. Fo filme de um bo~ mem desesperado, amargo e desorientado. uma autobiografia. Marcello sou eu da ca- bega aos pés. Tudo que faco € apresentar um proble- ma da maneira mais cficaz, Por que deve Ha propor uma solu¢ao? Por acaso sou san- to 01 lider? Os outros que encontrem a solu- (ao, os pastores de almas, os reformadores da sociedade. Sou um diretor que faz um filme. De resto & doce vida nao tem nenbu- ‘ma intencao social. F uma fabula contada como uma balada. Todo artista vive uma realidade que nao pode ignorar. Essa realidade nao me agra- da nem um pouco, bem entendido, No en tanto meu filme ndo & apenas isso. Em & doce vida também observe o homem com uma atencao diferente @, creio eu, mais nobre que a de um sociélogo. Examino a miséria de sua alma, as doencas de seu es- Pirito; parto com ele em busca de wma luz indispensavel. Nao obstante chegamos a essa situagao absurda: muitos de meus partida- rias nao véem em meu filme transcendéncia alguma e acham que meus problemas sao Jfalsos. Ao mesmo tempo sou atacado pelos ‘profissionats da espirituatidade, Sempre bouve em meus filmes algo de provocante. Digo isso sem me vangloriar, pols nunca é 0 que tenbo em mente. Exis- tem fellinianos e antifellinianos, 0 que pode me dar satisfacdo no plano artistico. Porém aqui 0 problema é diferente, Ocorren uma cisdo entre os que admitem um discurso sin~ cero & os que o temem: entre aqueles que, mesmo correndo 0 risco de se enganar, ten tam encontrar a verdade— ainda que seja uma pequenina verdade — e aqueles que por preguica se recusam a procurd-la. Sou apenas um némade, mas um némade com 0s olbos bem abertos para conbecer a vida: As personagens sao iméveis porque sua sociedade, a nossa, esta parada, a espera Sao iméveis mesmo em sua frenética sara~ banda. Sao pessoas que vivem de mitos ex tintos. A busca da verdade se tornou tarefa dos reporteres, do otho de vidro de uma camera. E esse olho & tao tmenso que seu campo de visdo ja ndo corresponde ao bu- mano. A verdade se esquiva, e a sarabanda continua. O monstro devora a propria cau- da. Nao existe mats silencio, as pessoas se contorcem na miisica, essa obsessdo sonora domina o filme inteiro. As pessoas tém medo do siléncio porque t8m medo de ouvir 0s pro~ prios remorsos. Sete dias e sete noites de imo- bilidade. A historia nao pode existir: s6 0 tempo de uma espera pode existir. E preciso ser surdo e cego para ndo ver, para nao perceber 0 imenso desejo de sal- vacao subjacente a todo 0 filme. O que exi- gem de minbas personagens? Que procla- mem a altos brados seu arrependimento? Quem esta se afogando nao grita o proprio arrependimenio, e sim pede socorro, Meu filme inteiro 6 um pedido de socorro. E se ndo entendem esse pedido, a culpa nao é minba e eu ndo tenbo nada a ver com a bistoria, O episddio Steiner tem uma explicagao precisa, embora cada qual possa explica-lo como bem quiser. Se fosse espectador, eu explicaria o caso Steiner da seguinte forma: ele E um homem que ndo suporta mais a tensao desta época de transi¢ao, nao supor- 1a mais o tempo de espera, nem para si mes- mo, nem para os seus; 6 um desajustado, um fraco, talvez. Essa tragedia deve levar Marcelio— e 0 espectador— a perceber que caminbamos na borda de um abismo e que nossa Doce Vida beira a catastrofe. Kepito que é errado conferir a meu filme um significado social. Pode ser que a stu- persticao seja caracteristica de determina- das classes, mas eu estava pensando em outra coisa. O tema predominante de meu filme é 0 da espera: eu quis enfatiza-lo por ‘meio da espera do milagre, Sob esse aspecto pobres e ricos sto iguais, Marcello ¢ 0 ope- rario, 0 pintor e a costureira correm pare 0 lugar onde Nossa Senhora deve aparecer. Correm para pedir a ela: "Diga-nos, Nosset Senhora, diga-nos qual é 0 sentido da nos 86 sa vida, a finalidade da nossa espera”. No entanto & um falso milagre, e 0 tempo da espera continua. Aceito a discussdo no plano artistico. Acredito em minba arte. Todos tém a liber- dade de pensar 0 que bem quiserem. Mas eu me oponbo aos que usam essa discussdo para chegar a condenacao moral. Nego ca- tegoricamente que minha contemplacao do vicio seja complacente. Nao admito que os ret6ricos do sexy fiquem indignados. E me entristece realmente ver que muitas pes- soas, tantas pessoas aplaudem vulgaridades grosseiras e condenam um discurso since- ro. Estou me referindo principalmente a cer- tas pessoas cultas, certos hipocritas que tém por tras uma vida inteira de torpezas, po- rem hoje se fazem passar por chefes de far~ milia exemplares. Nestes wltimos dias vivt wma experiencia interessante: perdi alguns amigos para ganbar outros. Acho que ga- nei com a troca. Nao sei por que certos catélicos condenam meu filme. Mas sei por que alguns 0 apro- vam: Aprovam-no porque é um filme catoli- co. Alguém escreveu que observa minhas personagens “com amor". Tem toda a ra- ‘240. No entanto seria mais correto dizer que as observe com piedade crista Acha que © ptiblico vai entender? O filme é um enorme sucesso de piiblico. As pessoas correm para vé-lo, esperando sabe Deus 0 qué. Outro dia, num bar, um sufeito falou: “Voce viu como eles trocam as pro- iprias mulheres no filme?". E 0 outro respon- deu: ‘Sim, mas aquela cena de amor na igreja & wn pouco exagerada”. Ora, ndo ba no filme nem troca de mulberes, nem cenas sacrilegas. F receio que muitos vejam em & doce vida 1udo que tém vontade de ver. (Trecho de uma matéria publicada em Express, Paris, 10 de margo de 1960.) ROMA, CIDADE INTERIOR Acho que, no final das contas, A doce vida € um filme completamente inventado A Roma de que falo é uma cidade interior, tem uma topografia toda espiritual. Eu, por exemplo, nunca conbeci nenbum aristocra~ ta, nunca fui a uma festa de aristocratas, nunca participei de orgias ¢ algumas vezes asso de carro pela via Veneto. Provavelmen- te as impressoes desses tiltimos anos, as re~ vistas ilustradas, 0 proprio mundo em que vivo, 0 do cinema, determinaram com sua exterioridade essa cidade que mesmo assim continua sendo fruto da invengao. Ctrecho de uma entrevista concedida Alberto Moravia e publicada em L’Espresso, cedicao n° 44, 1965 VIAGEM ATRAVES DE UMA ALMA Numa entrevista concedida a Tullio Kezich para © Settimo Giorno 0 senhor declarou: “Gostaria que meus amigos dissessem: veja como Federico foi sincero”. A que tipo de sinceridade se referia? ‘S6 existe um tipo de sinceridade, nao 6? A doce vida teve uma publicidade equivo: cada, excessiva, anormal, Tudo bem: do ponto de vista da bitheteria, essa publicida- de 6 otima, bendita seja. No entanto, con- tribuiu muito para que nao se entendesse 0 filme, para conduzir os espectadores ao ca- ‘minbo errado e fazé-los concentrar a aten- Gao no que é superficial, no aspecto mais exterior. Para mim & doce vida é uma via~ gem através de uma alma. Por isso falei de sinceridade na entrevista que dei a’Kezich, eu queria que de homem para homem se apreciasse a sinceridade desse meu desaba fo, meio inesperado, quase deselegante em ‘sua franqueza. Alids, sempre fut stncero, muito sincero, pelo menos na medida em que pode ser sincero um prestidigitador, um bomem de espetaculo que fala com os ou- tros sobre uma porcao de coisas, Mais ou menos inconscientemente, mesmo quando faz 0 discurso mais sofrido, lanca mao de determinados truques, procura enfatizar direciona as luzes de certa manetra. Por exemplo, A estrada & um filme tao sincero que ainda nao me libertet dele. Nun. ca mais 0 vi, é um filme que me perturba; digo que é sincero de um modo quase pato- logico. A doce vida é um filme que, talvez menos que os outros, obedeceu a certos es: quemas narrativos, certas cadéncias, certas complacéncias de natureza narrativa. Por sss0 6 também mats sincero. ‘© senhor disse que seu filme deve inspi rar coragem. E repito. Imagine que tem em casa um purenie uyonizunte, que ba meses esti doen- te. Ainda que voce esteja ligado a ele pelo afeto mais profundo, o fato de viver junto com uma forma inerte, em decomposi¢ao, € angustiante, é tnsuportavel. Assim, quan- do essa pessoa se vai, morre, voce se sente libertado. Com todo 0 afeto que Ibe tinha, até 0 mais visceral, a vida continua. Na bora vocé fica abalado, mas também se sente It- vre. A doce vida procura desdramatizar tudo, olbar os monstros de frente, um a um. E essa abordagem viril, corajosa, que deve rla transmitir a idéia de liberacao e serent- dade, Pelo menos é 0 que acontece comigo. Estou convencido de que, se as pessoas conseguem ver o filme na forma correta, sem interferéncia do que & ocasional e jornalis- tico, automatico, entao ele as coloca diante de certas situacoes que sao verdadetras, NAO se pode dizer que ndo 6 verdade. O que nao é verdade? Nao é verdade que a relagao com seu pai primeiro se mitificou, depois se ex- tinguiu? Que entre nds e nossos pais existe tum abismo? Quem 6 que ndo se vé nessa situacao? Se uma pessoa tem a coragem de confessar que realmente ndo consegue con- versar com 0 pat, que tudo que existe sao sorrisos iguais aos de uma mascara, 0 que nao é verdade? Nao é verdade que em certo momento nossos amigos intelectuais ends mesmos, quando passamos uma noite jun tos, nos perdemos numa série de eluctu- bragoes acrobdticas que nao querem dizer mats nada e apenas nos devolvem uma sen- sacao de vazio e siléncio? Nao 6 verdade que em certo momento cada um de nés sente atracao e repulsa por uma mulher bonita, extraordindria, dotada de lindas formas, fantastica na cama, e pensamos que aque- le sangue quente talvez represente a vida, mas em determinado instante ele nos da nojo porque o sentimento que nos faz viver ndo pode ser tao possessivo? Quem & que nao teve uma amiga assim? Quem 6 que nao fi cou fascinado e ao mesmo tempo enojado com uma relacao como a de Marcello e Emma? Nao & verdade que, conversando com um aristocrata, temos uma sensacao de gelo porque 0 que esta a nossa frente & na realidade um fantasma, geralmente idio- ta, mas algumas vezes fechado em seu si- Iencto, numa distancia tao estratosférica que parece que voce esta falando com um fan- tasma? Se nada disso é verdade, se isso nun. pectador que nega tudo isso. Quer dizer que, se ndo acontecen com ele, é porque ele é tao incapaz de sentir que sua conversdo pode dizer respeito ao psicanalista ou a um pro- feta, nao a nos Dizem que é aterrorizante. Mas por que aterrorizante? O que ba de aterrorizante numa bistoria (ao terna, masculinamente terna, enfim? Morandini escreveu que eu tenbo algo de fragil e de feminino: até pode ser, mas a ternura em relacao a vida éuma atitude necessaria. Nem sempre olbamos para a vida com olbos secos; ndo, no fundo nunca deixamos de ser crlancas. Portanto, gostei do que Morandini falou a meu res- Peito, ndo me pareceu uma limitagao, isso de que bd alguma coisa que nao funciona, uma certa fragilidade, algo de feminino Sim, estou contente por existir também essa possibilidade de enternecimentos meio sus peitos, meio ldnguidos. Fiquet pasmo com ‘Marotta, que muitas vezes escreve criticas to extbicionistas, fala tanto de si mesmo que nunca se sabe se 0 filme ao qual se refe: re é bom ou nao. Desta vez, porém, ele disse “estupendo, amarissimo e contudo extrema mente suave”. E me deixou emocionado, porque 6 verdade que o filme também é sua ve, tem um jeito doce, a meu ver exatamen- te por causa dessa transfiguracdo continua que pretende dar a cada rosto, cada imagem, cada situagao, cada sentimento; or causa dessa tentativa de tornar tudo transparenie. As referéncias a Grosz © a Goya feitas por alguém me parecem abstra- tas. Se de fato & necessario estabelecer esses baralelos com figuras ilustres, entao que se reportem a Juvenal. Ele é um classico no qual a satira também 6 sempre transfigurada pelo rosto alegre da vida; pelo prestidigstador, pelo mago que ama a vida porque a vida nao é apenas aquela que vivemos com os sentidos. Isto me parece absolutamente Sbvio: a trans baréncia que existe em todo objeto, em todo rosto, em toda figura, em toda paisagem. Foi o que tentet dizer, mesmo num filme que € um panorama de lutos ¢ ruinas. No en- tanto sobre essas ruinas ha uma luz tao faustosa, tao festiva e tao dourada que a vida € doce, & doce mesmo que os escombros atravanquem 0 caminbo. Bem, 0 que eu queria dizer, em suma, é que nao se trata de um filme aterrorizante; isso ndo € verdade. Chegou ou ndo chegou 0 momento do ajuste de contas gerul? Com o que vamos prossequir? © que wimos continua conten RR do para nos mesmos? As bobagens, o senti- mentalismo, a bandeira, as utopias politi- cas em que nao acreditamos mais? Acho que expresso— agora nao estou falando de meu Jilme, nao estou falando de mim, porque me tornaria ridiculo; se eu tivesse a forca de dizer com mator convicedo 0 que quero, eu seria lider politico, ou profele, ou santo, po~ rém meus limites sao os do contador de bis- torias, de uma pessoa que vive neste periodo especifico —, acho que expresso confianca € ndo desconfianca. Desconfianga s6 em relagdo as bobagens, aos mitos, as falsida- des, a bipocrisia, a incurdvel indiferenca dos italianos. Ao mesmo tempo uma profun- da confianca na fantasia, na fantasia que ndo € coisa de doente, é uma coisa que esta na vida, que pertence a vida, que tem uma dimensao muttissimo mais real do que aque la que nos parece ser a dimensao fisica Em termos concretos, 0 que essa fantasia € para 0 senhor? A possibilidade de esperar, de esperar nao vomanticamente ou como um idiota, numa especie de imobilismo extatico. De esperar provas, sinais... Mais do que esperar, vé-los de modo mais preciso e direto. Sinais, ecos, transparéncias que encontro por toda parte © que me permitem contar bem, embora possamos ter os maiores desgostos, sentir as soliddes mats desesperadas, Portanto nao set dizer qual é 0 caminbo a tomar, porque, se soubesse indicd-lo, provavelmente a esta al- tura ja ndo me divertiria nem um pouco. De todo modo acho que (este & um discurso que faco varias vezes e que repito com uma certa monotonia, porém sou profundamen- te sincero) 0 dever mais profundo, 0 dever mais inteligente, do qual nao deveriamos Jugir sem nos envergonhar de nds mesmos, ou de voces, jornalistas, em suma, de nds que temos um contato com pessoas que nos escutam, que esperam de nds um conselho — 0 dever seria naw v de indicarmos dire- 00s, @ sim o de sermos intetramente since- ros € tentarmos, voces com os seus escritos, nds com os nossos filmes, conduczir as pes- soas a um ponto de partida, a estacao. Depots cada qual tomard o trem, a diregao, de acordo com a propria evolugao, as proprias necessidades, a propria ceguetra, ‘as proprias esperancas, os préprios medos. Mas deveriamos nos esforcar para levar pelo menos a um ponto de partida o publico ao qual falamos. E acho que a melhor maneira de leva-lo nao é dando as historias um final feliz, falando de personagens positivias Co que quer dizer personagens positivas e per- Sonagens negativas?). A coisa mats justa que podemos fazer 6 aquela que em determina do momento nos restitui uma certa digni- dade; é que, apesar das dividas e das contradicoes, podemos nos sentir bastante satisfettos com 0 que fazemos e com a co- mogdo que provocamos. Ora, parece-me que A doce vida provoca essa comogdo, parece- me que é um filme profundamenie ético, profundamente moral. A comogao do Jascista ndo me interessa nem um pouco; ‘ao contrario, é bom que ele se exprima a seu modo, € bom conseguir individualizar esses tipos. Alguma resenba, alguma observagao 1 tica 0 tocou de maneira especial? Vittorio Bonicelli, por exemplo, quando escreveu que meu filme & um afresco insufi- cientemente fragmentado. B verdade: no co- mego eu me dizia: “Quero construtr uma estdtua, depois quebra-la a marteladas e Jjuntar os pedacos. B isso que deveria pare- cer”. No entanto, um pouco por minha na- tureza — eu me afeicoo as personagens, gosto de descrever os ambientes —, um pou- co porque 0 cinema ainda esta ligado a for mas narrativas oitocentistas, ndo consegue prescindir da cadéncia do relato, o filme nao é exatamente 0 que eu pretendia fazer. “Quero fazer um filme, construir um fo- tograma 56, definitive, tudo ao mesmo tem po, sem perspectiva e sem sombra, onde as Jigurinbas pequenas tém a mesma cor das (pessoas no primeiro plano, e tudo perpassa- do de fendas, quebrado ¢ espléndido.” Pa rece-me que isso estd no filme, talvez menos evidente quando se assiste do que quando se recorda. Depots a critica de Marotta. Além daquela Jrase que me comoveu particularmente por- ‘que ele fot o primeiro a interpretar o filme da manetra correta, gostei também da for ma como narrow os episodios: ele entendeu bem o filme. Comecou dizendo: “Era uma vez um jornallista”. E esta certo, @ isso mes: mo. O filme possui esse tom de balada Meus interesses mais auténticos, mais ver- dadetros estao no plano da expressao, do estilo Na realidade, quando me preoctipa- ba, eu dizia que os fatos podem ser estes ou quaisquer outros, rao me importa nem um pouco com estes episcdios, estado Gtimos e me ‘fagradam, mas se tinesse inventado outros episodios seria a mesma coisa, Sempre me interesset pelo estilo do filme, porque em minba ignorancia sentia, intuia que 0 esti- Jo era a substancia: ou séja, a forma se tor nava a substancia. E isso era valido tam- bém no outro sentido, a saber a tentativa de apresentar uma sociedade que fa nao tem paix6es, que ndo tem mats nada dentro de si. O que lbe resta? A forma, as roupas, as posturas, os sorrisos, os éculos de tartaruga, ‘as canetas, as cadetras, os damascos — por. tanto, a forma se tornava a verdadetra subs: Outras criticas que me tocaram? A do Secolo... Il Secolo d'Italia. O que 6? O jornal dos neofascistas, Saiuem Roma com um ti hulo em sels colunas que dizia: “Recusamo- nos a criticar esse filme ignobil que joga o povo italiano nos bracos do bolchevismo”". ‘ndo apresentou a critica. Em sume, por um motivo ou outro todas as criticas foram muito emocionantes para mim. Senii uma Participacao bem atenta, que fot além do esforco de interpretar, de entender, além dos valores estéticos do filme. Desta vez houve em torno do meu trabalho uma atengao ‘aordindria humana realmente ex Vamos falar um pouco de Steiner. © livro sobre o filme refere-se a ele como profeta desarmado, ¢ isso nés entendemos. Ja no entendemos tio bem quando Steiner é apre- sentado como homem do futuro. Eu quis dizer, tentei dizer isto, B verda- deiro esse fato de um profeta extemporaneo, deum homem que vive com o pressentimento de uma evolucao que sua intuigao tbe indi- ca, porém se vé obrigado a viver ainda numa época inferior a seu modo de ser... Estou me expressando de maneira muito canbestra, quero dizer, isso também entrava na des- cricao da personagem de Steiner, a tentati- va de mostrar a amargura ea angtistia que podem se apossar de alguém que ja esta per- cebendo um modo de vida diferente e con- tudo ainda nao esta pronto para assumt-lo completamente. Essa posicdo € ainda mais trdgica na medida em que ele vive no meio de pessoas que ndo tém essa percepcao, essa nova sensibilidade, essa nova pele. Sim, Steiner também tem isso, Enfim, imagine que um macaco esta se aproximando da condicdo humana, mas ainda € obrigado aviver no meio de outros macacos. Pois bem, esse aspecto também estava um pouco pre sente na personagem, essa angiistia de sen- tirse ainda rodeado de formas tdo pesadas, embora possua mator capacidade de per- cepeao. E por isso que Steiner é um solitirio? es tm race vce asin na tbe basta, Porque se semte esmagade por una soliddo cada vez mats sieneione, bade tee ‘mats inerte. Nao posso expltcaraivette a per. Somagem de Steiner porque me recuse a explicd-la para min mesmo, Batec hlnte 90 se baseia muito nisso, nos transmite 0 hor- ror provocado por certas noticias que nao conseguimos explicar. Que explicacao voce da para um pedaco de Lua que se solta e cat na Terra? Nenbuma. Quero dizer, é a irracionalidade que prepondera. O que isso significa? Por que Steiner se suicida? Nin guém me perguntou isso no tom de quem pede uma informacdo. Percebt em todos, em todos, até no espectador mats despreparado, © mesmo estado de anguistia em que se en contra quando provavelmente se faz a mes- ma pergunta ao ler nos jornais uma nott cia semelbante. Do tipo que mata a familia inteira e depois se suicida, Mas por que acon- teceu uma coisa dessa? Talvez a mulber, tal vez a casa, mas por qué? © episodio do pai © episddio do pai pode parecer uma di- vagacdo, ou algo de outra natureza, mas segundo a chave secreta do filme, a mais verdadeira, nao & nada disso. Para mim o filme é uma série de propostas para a dispo- nibilidade de Marcello, de lembrangas, de ligacdes com 0 passado ou de tentativas de aferrar-se a possibilidades futuras Portanto, nao poderia excluir 0 relactona- mento com o pai. E tampouco 0 relacto~ namento com Emma. Insisto nele porque Emma € um animal ardente, que propoe a Marcello a vida dos sentimentos, a vida da provincia, enfim Qual é 0 significado do rosto da mocinha que no final fala com Marcello, mas ele nao compreende? Eu tina pensado em terminar o filme com a imagem do peixe. Mas depots achet um tanto exagerado e facil demats... Ao ro-~ dar 0 filme, pensei também em terminar na orgia, ou seja, nessa espécie de passarela final, quende todos vae embora, cumpri- ‘mentando-se, agradecendo uns aos outros, marcando encontros em Capri ou Cortina, trocando mimeros de telefone e felicitagoes, tornando-se leves. Entravam no carro, mais além estava 0 bosque. O primeiro sol. O ba- mulbo dos motores sendo ligados. As cabegas balancando, acariciadas pelo sol. Sono. Cansaco. Alguém retomava o discurso. Li- Rava-se 0 radio. Passava um carro, e um segundo, e wm terceiro. Restava 0 pinbei- ral, assim, como uma especie de catedral, com essa poeira que caia lenta, esse sol que brilhava através dos ramos, entre esses ros- tos: acabar ai. E um final assim teria sido bastante correto. Mas, como sinto com pro- funda convicgao toda a tentativa de trans- Aiguracao que ha no filme, isto 6, 0 dever de representar uma transparéncia, a vontade de mostrar um sinal de presenga ao redor dos vivos, achet necessdirio um final assim: @ aparicdo de um rostinho misterioso, am- biguo, malicioso de uma mocinha dizendo alguma coisa que ndo se sabe 0 que é, fa- lando cabalisticamente por meio de sinais cujo sentido nao se entende. Se isso é coisa de prestidigitador, de palbaco, de clown, tanto melhor; tanto melhor, quer dizer, mes- mo que seja um sonho: 6 ainda mais verda- deiro. Portanto, realmente um final tao cabalistico, uma figurinha que parece a pu- reza eno entanto tem também um rosto de velba sorridente; nao se entende 0 que ela diz, mas sim que sorri Isto 6, eu estaret sem- pre alt: eu divida, eu sonbo, eu realidade, eu certeza, hei de segui-los sempre, vocé pode voltar com a sua comitiva de homens esti- pidos que talvez the sejam mais agradaveis © através deles, quem sabe, talvez me des- cubra de novo uma iltima vez. Com esse discurso meio de bruxo que estou tbe fazendo, percebo que a cena realmente ‘corre o risco de parecer excessivamente patética, mas com a mesma sinceridade Ihe digo que estou convencido disso. E a orgia final? Sempre falando de intengoes e ndo de re- sultados, também esse aspecto de tumufacao, de excesso, 0 risco de beirar o cansaco era a minha intencao, quer dizer, essa arritmia de tempos... Fiz a orgia deliberadamente longa porque ndo queria que nada levasse a prever 0 final. Devia ser uma série de movimentos automdticos que se repetiam de maneira obsessiva, como um confuse amon toado de vermes, movimentos de formas — sim, de formas, porque em dado instante 0 que € 0 tédio? £ a repeticao de determina dos movimentos. Essas pessoas se entediaram @ tal ponto que ndo fazem outra coisa se ndo se dilacerar wmas as outras. Portanto, se eu tivesse dado um ritmo cinematografi €0 e distinto, no haveria mais esse sentido Outra noite, quando comecaram a dizer 6 nojento, chega, que vergonba’, e Marcello continuava jogando as penas, foi maravi thoso: toda a cena adquiriu uma forca ex traordinaria. Diziam “é uma vergonha, é um nojo", e Marcello continuava jogando as penas. Como diretor eu teria mandado colocar um alto-falante no fundo da sala e naquele momento trés ou quatro vozes sem- pre expressariam indignagao: porque 0 filme seguia em frente como um iceberg implacdvel e as pessoas que gritavam pare- ciam estar dentro da tela. Era emocionan- te, realmente emocionante. Tive vontade de aplaudir o resultado, Trecho de uma entrevista publicada em Seberms, ‘ediga0 n° 21, marco de 1960.) © REINO DO ARTISTA De qualquer modo, quando Rossellini declarou que A doce vida era obra de um provinciano, ele ndo sabia mutto bem o que estava dizendo, pois na minba opiniao “pro vinciano” & 0 melhor qualificativo que se pode aplicar a um artiste, porque a postyao de um artista diante da reatidade deve ser justamente a de um provinciano, quer di- er, ole deve ser atraide pelo que vé ¢ ao mes. mo tempo ter 0 distanciamento de um pro- vinciano. Na verdade, o que é um artista? Apenas um provinciano que se encontra entre uma realidade fisica e uma realida- de metafisica, Dianie de uma realidade metafisica somos todos provincianos. Entao, quem & cidadao da transcendéncia, quem? Os santos, Mas é esse limite do interregno que quero chamar de provincia, essa fron teira entre 0 mundo do sensivel e 0 mundo supra-sensivel que verdadetramente vem a ser o reino do artista, ALMEIDA SALLES Apocalipse de Fellini racteriza como confere do mundo, uma significacao especial a obra de Federico Fellini. Seu cinema nao € nunca gratuito € neutro, instrument aplicavel a reconsti ticdo de situacdes humanas validas por si mesmas mas sem ligagao com a sua propria biogratia a personalizagao do cinema, que o 120 individual, nao é wansforma em ¢ comum na historia desta arte do nosso po, O seu condicionamento industrial © co- mas quase to: mercial nao sé dificulta impossivel a submissdo do seu processo cria propésito de identificacao com. problemas do autor Um Chaplin, 0 cinema de pesquisa da avant-garde, o de René Clair, de Renoir, de Murnau, cle Sternberg, de Stroheim, algo do 02 King Vidor da primeira fase, 0 Welles de Cidadao Kane, para s6 citar os casos mais expressivos, e modernamente o de Ingmar Bergman e Rossellini, tentaram, total ou par cialmente, esta aventura. nem sempre bem sucedida, de tal maneira esse luxo de dobrar © drduo € oneroso crivo cinematografico a 6tica de uma sinceridade pessoal chocava se com a propria estrutura do sistema de produgao de filmes. A personalizagao do cinema se exprimiu sempre muito mais pelo formal do que pelo Hse, 0 di contetido. Nao podendo confessa retor de cinema se apossava clos filmes pela imposicao do estilo e em vez, pois, de co- municar os seus prépries problemas, dava tratamento pessoal aos problemas alhicios. Fellini, italiano de Rimini, aos vinte anos rou em contato com © cinema de seu is, numa fase de libertacao de preconcei- tos tradicionais, que © caracterizavam como um dos cinemas mais “alterados” do mun- do, escravo do espetaculoso, do melodra- mitico € do patristic. © clima do neo-rea lismo, pela preocupacao primacial com os problemas do tempo ¢ da circunstancia ita liana, ajuclaram-no, decisivamente, a con. cretizar a sua inclinacao, de inicio incons- nao 56 fiel ao tempo, ciente, p: © contato com Rossellini, Lattuad Castellani ¢ Germi, para quem fez roteiros entre 1945 e 1950, deu-Ihe a consciéncia do Quando 'estreou na diregao, em > com Lattuada, nesse tltimo ano, Ihe era caro, © mundo do teatro Jes que seduzia e que colaborag © tema humilde de varieda Ihe permitiria quatro anos depois, em Na estrada da vida, focalizando a forma mais pri altimban- itiva do espeticulo — a dos cos errantes —, colocar problemas huma: nos de solidariedade, compreensao e ternu- de ‘criaturas deserdadas e ra lirica, em Face toscas como Gelsomina e Zampano. (© sceicco bianco, sob a forma de satira. denunciava uma forms de alteragao Wo po" derosa como a da crendice religiosa popu- lar que retrataria na sequéncia do “Divino Amor" em As noites de Cabiria ¢ na do falso milagre de A doce vida. Os boas-vidas set © espelho da disponibilidade de sua propria geragao, na modorra asfixiante da vida pro- Vinclana, as margens do Adriético, como A trapaca e As noites de Cabiria, o drama dos marginais ¢ das prostitutas na grande cida- de, vistos por um Angulo de autenticidade, em que a inocéncia € 0 desespero faziam da prevaricacao ¢ do crime formas de expe riéncia humana ascética ¢ purificadora Com A doce vida Fellini desata 0 hori- zonte de sua andlise ¢ passa do quadro para Depois dos saltimbancos de Na © mural estrada da vida, dos disponiveis de Os boas- vidas, dos delingiientes de A trapaca e das prostitutas dle As notes de Cabiria, expres- sao de desajustamento, drama, miséria e cri- se, supurando nos flancos da sociedade con. temporinea, Fellini observa a cpula social, a fauna mundana dos nobres, dos “divos” ¢ playboys, dos pervertidos, dos intelectuais angustiados, das vedetes de sucesso, cuja existéncia no & recdndita ¢ obscura como a dos parias das fitas anteriores, mas € cap. ada sadicamente pela camera dos fotgra~ fos e jornalistas. E esta “doce vida’ casticamente Fellini, amargor das exis também intérprete, reflete a sabilidade, a mesma abulia, a mesm: profunda, com a agravante de infectar 0 Amago da vida social ¢ ser ignominiosa como espetaculo e escandalo, E Fellini nao registra apenas a “doce vida’ como os seus proprios fotografos, ubiques como a chamou sar doce em relagao a0 s menores de que foi mesma irrespon- € frenéticos, a documentam vorazmente. Seria enfatica qualquer ilagao, em face da elogiiéncia do quadro, que traz em sia sua propria acusacao. ‘A sua ambicdo € a transcendéncia, ¢ nas entrelinhas deste friso coletivo, no tom com que capta as situagdes, esti presente aquele sentimento mistico, embora vazio de qual quer contetido confessional, que atravessa- va seus filmes anteriores e conferia atituces angélicas a varios personagens (como o Matto de Na estrada da vida, 0 grupo rural carregando os feixes de lenha no final de 4 trapaga, os cantores adolescentes com gi tarras no final de As nottes de Cabiriae Paola, a mening da praia de A doce vida), e ans feria o poder de milagre dos santos popu: lares para os ilusionistas (© sagrado laicizado € a propria dimen. sao do olhar de Fellini, € posto sobre as coisas e os seres di-Ihes um sentido de sig- no que transcende o documento bruto. (O mundo da Doce vida nos apresenta trés tipos de personagens: 1) os mundanos este- reotipados nos seus habitos abtlicos, como ‘os nobres do castelo de Bassano di Sutri enlouquecidos como os boémios extrava” gantes da casa de Ricardo em Fregene ou flanebres como os burgueses do cabaré em que, no inicio do filme, somos apresen- tados a Marcello, e mecanizados como a vedete € a sua corte; 2) os fotografos, lide- rados por Marcello, que servem de teste: munho a sucessdo dos episddios; e 3) os que cruzam o filme, ora com- humanos’ prometidos, como o préprio Marcello, na sarabanda da inconsciéncia, ora desvin- culados dela, mas atuando como elemento de contraste e vitimas, em si mesmos, do desconcerto do tempo. (Os da primeira categoria s4o os burgueses que nao querem ser fotografados no night club onde se exibem dangarinos chineses, € que se entreolham inquietamente, come se habitassem um mundo clandestine; Mad- dalena, a rica entediada, de éculos escuros para esconder 0 olho pisado, que ronda os caminhos da salvacao, como a homénima do Evangelho, mas nao faz 0 gesto final, por ja ter avangado muito no vicio ¢ no desfibramento; Sylvia, a atriz, animal sau- davel, que galga lépida as escadas da copula de Sao Pedro, faz da Fontana di Trevi uma piscina © uma cascata, imbecilizada pela pu- blicidade, tendo carinhos auténticos como a piedade pelo gatinho e uivando em con- traponto com os caes noturnos, mas vitima de sua burrice € da sua beleza; os nobres do castelo de Bassano de Sutri, na via Cassia, com cinco séculos de tradicao, a procura de sensagdes, como a procissao, em busca de oF fantasmas ¢ a invocagao de espiritos, ¢, por fim, os boémios, artistas e pederastas que invadem a casa de Ricardo. Marcello a testemunha, € 0 Moraldo de Os boas-vidas, que foge para Roma, adoles- cente, € que Fellini pretendia retratar no Moraldo in citta. Marcello diz que é de Cesena, pequena cidade romagnola entre Rimini Ravena. £ © Moraldo numa etapa avancada da sua experiéncia na cidade, praticamente comprometide com 6 mundanisme que deve retratar mas do qual se torna cmplice. Os fotografos, com Paparazzo a frente, sdo 0 coro dessa comédia preocupante, sui gindo de todos os lados, tudo registrando com a mesma neutralidade, to mecdnicos € isentos como a objetiva que carregam reagindo da mesma maneira, quer nos fla- grantes da via Veneto, quer no falso milagre de Latteria di Marata Alta e na impiedosa cacada a mulher de Steiner. As personagens humanas — aquelas que Marcello colocaria entre os poucos “que es- to descontentes consigo mesmos” —, além do préprio Marcello, em que subsistem momentos de consciéncia, sdo Steiner, o in- telectual, Emma, a amante de Marcello, © pai de Marcello e as mulheres da vida, como, Liliana, a prostituta de Cessati Spiriti ¢ a bai- larina Fanny do cha-cha-cha. S6 ha uma personagem angélica no fil- me, € Paola, a adolescente da Umbria, que Marcello encontra na cantina € reencontra na praia de Fregene. Diante do enorme pei- xe, simbolo cristio, a boca cheia de medu- sas, com 0 olho enorme aberto, como a objetiva dos fotografos, nessa praia desola- da e cinzenta de um fim de mundo, cercado, pela froupe funambulesca de bébados, tra- vestis e mulheres loucas, Paola o chama, mas seu apelo Marcello nao entende. B1/1961 ENTREVISTA O filme do filme que nao fiz 0 que 6847 Um meto-termo difict de de- tarminar entre uma sessdo incoarente de psicandtise ¢ uma investigagao de core cidmeta algo desordenada, muma atmosfe- ra mevoonta 1m fllme melanconice, quase ligubre ¢, contuds, decididamente comico ‘Agora que esta pronto, para mim nao é facil falar sobre ote, o exatamente pelos mes- ‘mos mottoos que me impediram ate agore de fazé-lo, embona tenba conesa absoluta de que toda discrigao de minba parte sord considerada como trugue de divulgéeto Passet tum ano tntetro ds apaipadelas, pos. Suldo por wma téia vaga que me fascina- Sao. Pelo menos vints vezesestive a ponto de segurar o brago de meu produtor para tbe edir-desculpas ¢-simplesmonte abancdonar tudo. Mas o filme, entao, gracas @ colabo- ragao da twoupe, dos atores e dos ajudantes reunidos em todos os cantos posstvels, fez progressos dia a dia com uma facilidade que hhoje me parece assustadora. Comece a fil- mar no inicio do ano e, de repente, uma manha, percebi que 0 aquecimento havia sido Iigado nos dormitortos dos atores. Fa- “Ha frio de novo. O filme estava terminado, sem que me sentisse cansado como antes ‘Excreveram que 8% @ um filme autobio- grafico. O que faco sempre autobiografi- co, mesmo quando descrevo a vida de um peixe! Devo esclarecer, porém, que este fil ‘me é produto da fantasia, que € 0 tntco dentre todos os que fiz que se refere 0 me- nos posstvel a experténctas pessoats. Utilizet me, em parte, de coisas que ouvi falar e em grande medida daquelas puramente inven- tadas. £ provavel que isso seja interpretado como arrogdncia infantil, mas gostaria que as pessoas assistissem a este filme sem con- vicgoes Ja formadas: narret uma historia inventada, ¢ ndo existe nada para com- preender além daquilo que se vé. Nao gostaria de dar a idéia de que se trata de lama historia secreta de um mantaco sextal. De modo algum. O que 6, eniao, 8s Talvez seja simplesmente a narrativa de um filme que nao fiz. Recordo-me, porém, de que no inicio — falo de cerca de um ano @ meio atras — queria compor 0 retrato multidimensional de um homem em torno dos quarenta e cinco anos que, num deter- minado ponto de sua vida, foi obrigado a Doltar-se para si mesmo — tdlvez por causa de uma crise de figado, num balneario si tuado, por exemplo, em Chianciano, com uum hordrio escalonado totalmente novo & preciso, com horas de descanso e silencio, cercado de um grupo insdlito de pacientes, maestros nérdicos, camponesas, velbos car deais e antigas amantes — @ sujeitar-se a uma serena introspecgao. Passam inevita- velmente pelo seu espirito- imagens @ recor dagées, devanetos e pressentimentos. No int cto, nao fut capaz de caructerizar 0 ator principal de modo burgués. Ele permane: ‘cia um mero representante do género bu- mano, que se encontrava numa determina da sttuacao, Nao achava, entao, que tinha de defini-lo melhor. Mas 0 filme nao fazia progressos. Por mais que discutissemos, todos nds — os roteiristas Flatano, Pinelli, Rondi e eu — nao restava nada mats do que a idéia de um filme. Entdo 0 personagem principal tornou-se um cineasta que procurava por toda parte 0s fragmentos de seu passado, a fim de thes dar um sentido e, na medida do possivel, compreender a si mesmo. Nés 0 encontra- ‘mos, num certo dia, ao pé de uma platafor- ma de langamento gigantesca: em seu fil- ‘me, um astronauta deveria ser lancado da quela plataforma com a missao de salvar os sobreviventes de uma espécie arruinada pela peste atémicu sube-se ld em qual planeta 14, sob um andaime de canos ¢ tabuas, meu heroi disse a si mesmo: “A bem da verdade, creio ter idéias claras. Gostaria de fazer um Jilme stncero, sem nenbuma enganacao” (O que desejava fazer surgiu-me de modo bem simples: um filme que permitisse a cada um enterrar definitivamente aquilo que to- dos carregamos de morto em nds. Sou, no entanto, 0 primeiro a ndo ter coragem de enterrar 0 que quer que seja Da documentagto para a imprensa UMA SAIDA PARA O CAOS Nao me observo por muito tempo no es peibo. 81+ expressa meu verdadeiro ser, mous interesses e minhas apreensoes, mas ao croio que este filme seja a bistoria de Fellini. Estou convencido — e testemunhos de muitos conbecidos, intimeras cartas ele terminadas reagoes do piiblico reforgam tal Se opiniao— de que minba preocupacao com 0 fato de o filme poder degenerar numa con- versa fiada de cardter privado era de todo infundada, Acho que logo depois do come- ¢0 do filme puiblico esquecera que se trata de um diretor de cinema e, portanto, de uma bersonalidade cuja profissdo é perfettamente determinada, iniciando-se, assim, wn de terminado processo de identificacao, Nao me parece, se é que estou certo, que o filme possa ser limitado as experiéncias melanco licas de um diretor de cinema cuja vida the @ adversa, Por causa deste filme, recebi int meras cartas de desconhecidos que se sen- fiam comovidos em seu intimo, de uma for ma salutar, e que escreviam para mim, um desconbecido, para dizer-me como 0 filme 0s tinba ajudado a liguicdar com seus pro: hlemas. As vezes sentia mesmo vergonba ao ler tais Cartas, que revelavam de modo tao confiante tanta coisa intima. Mas sou obri gado a dizer que tais cartias armaram-me contra uma determinada espécie de criti ca, aquela que me dava a entender de modo até mesmo afetuoso que eu devia comparar meu eld artistico com meu ela humano em uma balanca de farmacta; ndo desejo, no entanto, ser um farmacéutica Certamente mie preocupei com os perigos de uma tal bistoria e de uma confissao tao franca, que afinal poderiam transformar se em algo enfadonho. Tentei convencer a mim e aos outros de que se tratava de um filme comico. Ate mesmo excrevi “Filme 6 mico” em um adesivo eo preguei em minha camera, Escolbi esta postura risonha, iront- ca e burlesca porque combina mais com minba natureza, & nao porque tenba con- cedido reservas morais a mim mesmo. De resto, esla postura me permitiu uma since: ridade maior, ja que desse modo nao fut ofuscado pela emancipagae dos senti Com toda a sinceridade posso dizer que 0 filme me fez muito bem. Sei que poderia fazer sempre algo diferente, porque adquiri uma nova forma de ver e amar, poderia mesmo comegar toda a minha carreira de novo, do inicio, fazer mais uma ves todos os meus filmes; Claro que os faria de modo totalmente diverso, pois me parece que adut lo que aconteceu com Guido sucede tam- bem comigo. O que vale para os personc- gens criados por mim vale também e ma mesma medida para mim: apos este filme, sou capaz de reformular minbas relagoes com os outros, com as cotsas, com minbas recordagées e com todas as minhas expe néncias de um modo diferente, menos traw matico, rejettando 0 modo condicionado representado pelo mito de cada uma dessas coisas e por todas essas pessoas, Tenbo ago ra a possibilidade de aceitar a realidade num sentido novo, ndo mats passive, acvi tar uma pessoa que ndo 6 mais aterroriza- da por certos monstros, mas que compreen- deu que os mesmos monstros enriquecem- na, que eles a levaram a ser 0 que ela é de fato, quer dizer, uma pessoa que ndo os nega. do os repudia, mas as considera de agora em diante como uma parte integran- te de sua vida Ao final de8 Vs, Marcello sorri da mesma forma que Cabiria: na verdade, eles passa ram por um proceso heterogéneo, tm de- senvolvimento heterogeneo alé chegarem a esse resultado. O otimismo de Cabiria era de tipo psicologico: proprio de um animal- zinbo confiante como uma crianga. Embo ra expressa como pressentimento, a iiberta 6a0 interna de Marcello tem éxito apenas depois de um exame pormenorizado das Cabiria nao entende nada do que Ihe sucede; Marcello, em contrapartida, pro- cede a uma autopsia Solitaria de st mesmo. Esse final significa para Marcello a acet- tacao inteligente, exata e consciente de si mesmo e da realidade libertada do presen te catastrofico de ideais inalcan¢avels, Tra- tase de uma aceitagao ativa, com um sen- tido de responsabilidade exatamente de finido, ¢ nao de uma resignacdo passiva Censuraram-me por ndo ter terminado o Jilme no ponto em que Guido desiste de far zer seu filme. Na verdade, porém, meu inte- resse em descrever 0 caos estava em poder encontrar uma saida para ele; de outro modo, teria a sensacdo de ter procedido de maneira ndo muito sincera. Talvez estes se~ jam meus limites; de qualquer forma, po- rém, acho que sao também uma prova de vitalidade. Este desfecho 6 a prova cabal de que ainda subsiste em nos a possibilidade de uma revolucao repentina Observagoes extraidas de um coloquie sobre 8 cujos apontamentos aparecenam em ‘Bianco e Nero.em abil de 1963, AUTOBIOGRAFIA DE TODO MUNDO Por que vocé manteve 0 titulo 8 142! Porque este era 0 titulo de trabalho com © qual tinba me acostumado e porque nao me surgiu nenbum outro. Mas creio que ele € 0 mais acertado, mais sincero e 0 menos retorico. Por que vocé nunca quis falar sobre o filme? Porque, sinceramente, nao saberia como explica-lo, nao saberia o que dizer sobre ele. Seria como se, uma notte, um fulano qual- quer comecasse a the contar, num acesso de melancolia, seus conflitos tnternos, suas de silusdes, 0 Conjunto de seus problemas, Po- deria perguntar-lhe: por que 6 que voce esta me contando tudo tsso- mesmo? Voce est satisfeito com o filme? lou, por que ndo? Mas ndo posso jtl- gar, ndo cabe a mim fulgar. Fazer um fil: me, esta & minha maneira de viver: quan do nao estou filmando, estou preparando um filme. 84 6 wm filme Ubertador. Minha maior ambicao é que a alegria que ele me deu comunique-se também aos espectadores Entao ele é um filme confessional? Na superficie ele autobiografico, mas s6 na superficie, Espero que diga respeito a todos. Ele 6 extraordinariamente simples: nao ha nada para se compreender ou in- terpretar. Ea historia de um intelectual que esta disposto a queimar tudo para congelar @ vida. A bistoria de um bomem compro- ‘metido, constrangido e aprisionado que ten~ ta sair de uma espécie de estagnacdo, que se dd ao trabalho de compreender, que ao final verifica, porém, que nao ba muito para compreender: para ele, é mais importante abandonar-se ao sabor da vida do que problematiza-la Ea humanidade vista pelos olbos de um neurotico. Mas ele me parece ser um filme sincero, sincero a ponto de ser indecente, talvez a ponto de ser um escandalo. E, por Ultimo, & também um filme cémico Uma opiniao sobre os atores? Tenho pelos meus atores 0 mesmo senti- mento de ternura e de simpatia que 0 artis 1a lem por suas marionetes. O primetro nivel de um filme mostra uma radiografia im- placavel daguilo que voce & internamente O milagre consiste em deixar que 0 auténtt- co penetre na ficcdo. Mastroianni mostrou @ mats abrangente ¢ abnegada disposi¢ao Para tanto: nasceu, assim, uma interpreta- ‘cao bastante incomum. Sandra Milo estavea magnifica; nao consigo entender como uma airiz tao talentosa ainda nao tenba encon- trado seus autores. Anouk Aimée nos fez es- quecer a figura irrequieia e-sensctl de® doce vida, Claudia Cardinale fot tao impor tante para mim como a fada de cabelos tur- quesa para Pinéquio. Para Guido Alberti que faz 0 papel de um produtor, as filma gens foram a mais feliz das aventuras, de ‘modo que ele parecta bastante triste no final, como um cao abandonado no cais pelo seu pequeno dono que partiu para a América. Trecho de uma entrevista a Costanzo Cos 1 Messaggero, 4/2/1963 APENAS UM FILME COMICO Voce pode me dizer, afinal, do que trata u nove filme? Nao existe quase nada para explicar: este filme tem de ser visto. Nunca um filme de- ‘pendeu tanto e tao exclusivamente de ser visto. Em todo 0 caso, a chave encontra-se logo no comeco: um bomem esta trancado num carro e faz um esforco desesperado para sair dele. Parece estar irremediavel- ‘mente preso num mundo tmével e entorpe- cido. Quando a sttuagao comega a ficar de fato angustiante, ele consegue sair do car: ro. Descobrimos, entdo, que este personagem simbolico tem um rosto, que se trata do di- retor Guido, a quem os médicos prescreve- ram um tratamento num balneario. Mas mesmo Id ele é afligido por mil problemas Ele tem de preparar um novo filme, mas nada the vem a cabeca. O produitor @ 0s tec nicos esperam, os atores devem ser contra- tados, os criticos nutrem grandes expectati- vas. Como se nao bastasse, aparece entao Carla, sua namorada (a famosa senbora gorda). Surgem novos aborrecimentos Numa noite de festa no hotel, um magico 16 um tinico pensamento em Guido: asa nisi masa. Psta expressao magica 0 faz recordar se de sua infancia, levando-o a se afastar do mundo real e mergulbar num mundo mdgico. Mas entao a realidade impoe-se mais wma vez: Guido € obrigado a debru- ceeemacae S gar-se sobre sua vida interior e descobre dentro de si um caos de dividas. Ele teme ser apenas “um fanfarrao sem criatividade ou talento, que nao é capaz de realizar um filme”. Do encontro com 0 cardeal, que tam- bem esta hospedado no balneario, Guido espera um esclarecimento, embora tal en contro 0 remeta simultaneamente a sua in fancia, ao internato dirigido por padres, onde ele nao s6 freqientou a escola, mas também teve sua primeira experiéncia com uma mutber, a Saraghina, Ele foi descober- 10 € punido, ¢ as palavras de um padre ain- da ecoam em seis ouvidos: “Entdo vocé nao sabia que a Saraghina 6 0 deménto? Contrariando as expectativas de Guido, © encontro com 0 cardeal nao tem signifi cado decisive para ele, ¢ quando chega Luisa, sua muther, a presenca dela desen- cadeia uma nova crise. Guido compreende que fez tudo errado e nao pode rodar o fil- me que desejava ('Querta fazer um filme simples ¢ sincero, e agora reina a maior das confusdes em minha cabeca..”). Além dis- so, ele tem de resolver o problema da pre senca simultdnea das duas mulheres. Mats uma vez ele se refugia na fantasia: nao apenas Luisa e Carla, mas todas as muthe res que jd admirou ou desejou acham-se Juntas numa espagosa casa de campo, @ to- das estao felizes, tém um bom relaciona mento e fazem-Ihe carinhos. Os sons da “Ca- valgada das Valquirias” destroem 0 encan- to do barém, explode uma revolta das mu Iberes, contida apenas a golpes de chicote, € osonbo se esvati. Guido deve, entdo, dar uma entrevista coletiva para a tmprensa ao pe de uma plataforma de langamento de uma nave espacial, erguida expressamente para seu filme, O produtor exige que Guido fale © dé explicacoes, mas ele nao consegue pro- nunciar uma palavra sequer e tem vontade de abandonar tudo e confessarse com pa lavroes © afrontas. O sutctdio parece-Ihe a tinica saida. Enquanto os convidados ob- servam a inquietante plataforma de lanca- mento, tem lugar uma conversa curta e fran. €a entre Guido e Luisa. "A vida é uma festa, vamos vivé-la juntos, Acette-me como sot.” “Gostaria de tentar, se vocé me ajudasse.’ Enquanto isso, as pessoas retornam da plataforma de lancamento, dao-se as maos € dancam wma animada ciranda sobre uma espécte de palco, Guido junta-se a elas com Luisa. Aos pouces, extinguem-se as li es; no meio dos campos permanece ape- nas Guido quando crianca, uma tltima imagem da pureza perdida e talvez reen- contrada. Guido € uma figura autobiografica? Vocé entendeu agora por que eu ndo bodia contar a historia do filme a ninguém? Entendeu que 0 segredo de que cerquei 8% era tudo menos afetacao? Quando fa- lava que eu mesmo ndo sabia qual era o objeto do filme, os jornalistas tomavam 1880 como uma de minbas mentiras usuais. Para variar, era a pura verdade. Por mats ab- surdo e inacreditavel que possa soar, acon~ teceu exatamente isso. Fntdo voce deixou que o filme surgisse no decorrer dos dias, a0 longo das filma- gens? Como Rossellini nos primérdios do neo-realismo? Ora, isso também ja 6 um exagero. Pri- metro, digamos que ha cerca de dois anos, logo apos 0 término de A doce vida, tinha em mente apenas fragmentos de um novo filme: 1m bomem fraco e inseguro que nao sabe como dar cabo das dificuldades em que se meteu. Um bomem que se refugia num mundo de sonhos e imagina viver com mut- tas mulheres juntas; um encontro com um cardeal; uma cena de premonicdo como as dos filmes de ficedo clentifica; um final ott mista e quase feltz, em que tudo se esclare- ce. Fale’ disso primeiro com Flaiano, depots com Pinelli. Da primeira vez, eles ndo me entenderam muito bem. Pediram-me que escrevesse uma série de pequenos roteiros, episddios isolados e nitidos. Depois de té-los reunido, tentet dar-thes uma coeréncia emo~ cional, do que, de inicio, ndo fut capaz. Felizmente, tive de interromper 0 trabalho nesse momento a fim de filmar uma das artes de Boccaccio, e essa interrupeao veio em boa bora Sabe, depois de A doce vida encontrei- me numa situacao delicada. Meus inimi- B08 estavam prontos para me alacar & meus amigos esperavam muito de mim. Eu mes~ mo queria seguir 0 caminbo tragado em A doce vida ¢ fazer um filme que fosse ainda mais sincero e prescindisse de todo calculo. Pensava, independentemente da propria historia do filme, num retrato de um homem com seu passado ¢ seu futuro, com seus sonbos, pressentimentos, remorsos @ ilusdes Por que vocé nao fixou esse retrato num roteiro escrito, como sempre fez antes? (© que posso Ihe dizer? Para aquilo que no come¢o tinha em mente, para aqueles blocos erraticos de um filme, icomodava- me pensar numa delimitacdo escrita preci- Sa, € apés ter reunido os roteiros isolados, senti que ainda faltava muito. Entdo, co- mecei a fazé-lo no inicio do ano passado, Quer dizer, falar em comeco é um exagero Tudo levava a crer que havia comecado e todos, de fato, acreditavam nisso. Procuret @ senbora imponente, viajel por meia Italia em sua busca e obrigava-me a fazer ainda mais coisas. Embora os contratos ja tvessem sido assinados, detxe! que as colsas conti nuassem assim por mais (rs meses, na es- peranca de que minhas idéias clareassem Estive cinguienta vezes a ponto de segurar 0 braco de Fracassi, 0 diretor de produgao, e dizer-Ihe: 0 filme escapou-me, ndo agiento mais. Em resumo, a fase de preparacao fot uma verdadeira tortura. Depots, tudo ficou mais facil 147 inguém levantou suspeitas? Yodos confiauam em mim, eu tinba cons- ciéncia do que estava fazendo, e dizerem que eu proprio nao explicava 0 desenrolar da agdo pure os atures é mero truque de propaganda. Em vez disso, tudo entrou ‘como parte do filme ou, melhor dizendo, pro- duzitt a untao entre as cenas isoladas. Mas vocé pode imaginar as exigéncias que me Jfizeram. Dois dias antes do inicio das fil: ‘magens cheguei a ponto de pensar em ir até © produtor Angelo Rizzoli ¢ dizer-the a ver- dade, pedir-the que interrompesse os traba: thos de organizacdo. Mas como dizerauma pessoa seria: “Nao posso fazer 0 filme por- que ele me escapou; desculpe-me, tudo nao passou de uma brincadeira’? Nem mesmo tele teria acreditado em mim Se vocé ainda nao tinha uma linha basica a seguir, ao menos j4 imaginava 0 protago- nista da maneira como ele aparece agora no filme pronto? Apenas em seus tracos gerais. Pois por muito tempo nao estava certo de sua profis: sao, queria delimitar 0 menos possivel este Guido Anselmi, representado por Marcello Mastroianni. Mas 0 filme exige uma tdenti- ficacao que seja completa até nas menores ‘particularidades. Entao pensei em fazer de Anselmi um roteirista de cinema, uma vez que esta € a tinica profissao que conheco bem, ja que € préxima a minha. Descrever simplesmente um diretor pareceu-me ousa- do demais. Ja sabia, alem disso, que todos identificariam meu protagonista com Fe- derico Fellini, e falariam em autobiografia e cosas do género. Chegamos a questo principal. Guido & uma figura autobiogrifica? Alé certo punto, sim. Como ja the disse, no inicio imaginava apenas episddios iso- lados, aos quais tantos e tantos outros foram se-acrescentando; por exemplo, 0 episddic com a Saraghina ou aquele no internato em Fano, onde estudet. Todos 0s episddios tiveram origem em minha propria vida, Voce sabe disso metbor do que eu, pots tratou des se quesido no livro que escreven receniemen- te sobre mim2 Durante as filmagens, porém, eles se transformaram aos poucos @ novas cenas tomaram corpo. Ao final, surgiu en- 120 81, isto 6, a historia de um diretor que tem de rodar um filme que Ibe escapou e que segue, entao, duas diregoes: a da fan- tasia ea da realidade. E voce ainda insiste em dizer que este diretor — Guido — nao € Fellini? 8% é, na sua esséncia, uma explicacao do motivo por que este filme foi feito. O filme comenta a si Proprio a cada passo, ao longo dele ja sao antecipadias as objecdes da critica ou do pa- blico. Se vocé nao tivesse me contado a ver dadeira historia de como surgiu 8 “2, € pos- sivel que eu 0 tomasse por uma idéia cap- ciosa. © Unico momento em que o filme simulado diferencia-se do filme verdadeiro € a.cena final Esta cena final deve restabelecer ao pro: lagonista a esperanca de que ele vird a re conciliar-se consigo mesmo e com sua mu- her. Filmet duas cenas finais, mas optei por aquela ao pé do foguete feito para um filme que Guido nao consegue realizar (no co- ‘mego, no entanto, a nave espacial devia de~ sempenhar uma outra funcao). A outra cena final mostrava Guido com a mulher num ‘trem, e eles conversavam sobre a se- paracdo. Entdo 0 trem entrava num tinel ¢ Guido era acometido por uma espécte de mal- estar, enquanto 0 trem se povoava de perso- nagens de sua vida. Com sso, Guido com preendia a necessidade de recomecar, desde 0 infcto, seu relactonamento com Luise. Voce nao teme que 0 filme seja de dificil compreensao para © puiblico? Nao. muito pelo-contrario. Pots em -8Vs existem intimeros episédios divertidos. Sob tum certo aspecto, pode-se até dizer que se trata de um filme cimico, talvexo mats bem humorado que eu tenha feito. A meu ver, ele representa lambém uni passo adiante em relacto a \ doce vida. Pois ele sugere uma Jfelicidade e uma alegria de vida que nao havia em A doce Vida. Mas nao escondo de mim mesmo que ele nao agradard a mii- las pessoas, por exemplo, aos comunistas, que 0 acbarao superficial, decadente e in. dividualista. Provavelmente também ndo agradara as mulheres, pelo menos a uma parte delas. Neste caso, restam como publi- co apenas as criangas, para quem o filme é proibido Trecho de uma entrevista a Angelo Salmi, Oggi Mlustrato, 9/2/1963 INFLUENCIAS DE JOYCE OU PROUST Por que vocé assume uma atitude ao mesmo tempo de desprezo e de respeito em relagao a critica? Talvez trabalhe com tanta dedica¢ao que nem pense na critica. A critica € albeia ao surgimento de minha obra. Quando 0 fil- me esta pronto, alegro-me com as criticas favoravers como qualquer homem que pos- sui suas fraquezas; em contrapartida, a cri lica reprobatoria desperta meu instinto de autodefesa, Devo confessar, porém, que a cri- tica sempre me ajudou. No caso de® , senti uma solidariedade dos criticos que ia além de suas profissbes, além do dado estético Vocé acha relevantes as referéncias a Kierkegaard, Marino Moretti ¢ Gozzano? Por um lado, tais citagoes deixam-me contente, pois me poem em companbia de personalidades altamente respettadas, mas, por outro, deixam-me triste, pois para en” tender meu filme nao € necessario fazer as- Soctacoes Iiterdrias. Os criticos que na0-ci- faram ninguém compreenderam melhor 8% do que os outros. Mas nao posso julgar tats citacdes de manetra competente, ja que nado conbego os autores mencionados Kierkegaard e Moretti conbeco apenas de nome; quanto a Gozzano, talvez tenba lido alguns poemas dele na escola. Nao desejo dessa forma defender minba ignorancia Existem muitos livros que me proponbo a ler, mas nunca encontro tempo; além disso, a propria vida atrai mais a minha curtosida- de. Omuseu e a pinacoteca nao existem para os artistas. Claro, quando se lé um livro, pode-se sentir uma grande alma, trava-se conbecimento com algo salutar, mas aquilo que leio & casual, depende da ocasiao. Nao sou informado. Estou consciente do perigo desse apego aos sentidlos, mas, por outro lado, as coisas tém valor no momento em que sao percebidas e vividas, isto & no momento em que as inventamos, mesmo se ja tiverem milbares de anos ‘A quantos © a quais filmes voce nos Gitimos cinco anos? Quantos © qui vros leu nesse periodo? Now 8% €0 ~otavo e meio” filme de Fellinl. Ble proprio considera seus primeito filme. Le! def eariet que For 0. 1962. Assisti a Morangos silvestres de Bergman, Os scte samurais de Kurosawa; Bergman & Kurosawa sao auténticos criadores e magt- cos, mas nao no sentido da mistificacdo: eles possuem um mundo verdadetro, rico e fan ldstico, que apresentam com veeméncia & com a ajuda de todos os artifictos. Vi tam- bém Um rei em Nova York, Accatone de Pasolini, Una vita violenta de Rondi, ¥l cochecito de Ferrer! e a Odissea nuda de Rossi. Li © tédio de Moravia, Um tempo Para os mortos de Flatano, os livros de Pasolini, de Tommaso Landolfi, Gadda e Palazzeschi. Moravia @ de uma lucide= desconcertante, mas falta-lbe 0 dom de se abandonar ao irracional: creio que a constancia com que defende a razao ira leva-lo a uma forma de mistica. Flaiano tem wm grande talento, uma grande riqueza, & @ pena que ndo escreva mais. Mas os escritores de que mais gosto sao Landolfi e Gadda. Sou um leitor apatxonado de livros sobre magia, de autos processuais e de cronicas de jornal. Vocé escreveu que as pessoas deveriam libertar-se do catolicismo, Mas © que seria de vocé sem os conflitos, os medos, os complexos ¢ © receio que 6 catolicismo Ihe incutiu? Vocé seria um intelectual progressi 1a, semelhante aqueles que enforca em 8 é verdade. Mas no final de8 0 pro- tagonista reconbece que os complexos ¢ os medos sao também sua riqueza Vocé acha je citagdo de santo Agos- tinho: “Ama e faz o que bem quiseres"? Pode- se interpretar esta frase de um modo que justificaria todo tipo de desordem? Nao. Compreendo os perigos ¢ ambigii- dades a que wma frase deste tipo pode dar ensejo, mas santo Agostino diz que se deve primeiro amar, e entao fazer o que se quer © amor é 0 que ba de mais dificil no mun- do, € algo inaleancavel. O amor no sentido eristdo, 0. amor que nos mtezra, que nos con- duz a uma dimensao vital mats atraente, € 0 topo mais alto e mats inaleangavel. Trecho de uma entrevista a Costanzo Costantinl Hi Messayyero, 19/2/1963 149 ROBERTO SCHWARZ O menino perdidoea indtstria Z E sic sortase 15 0 mai ait dizer Por qué. Presa a psicologia de Guido © der-se om banalidades sobre a persist@nela aleance do filme € maior, transcende a pst- Cologla. Fosse psicologico 0 Seu clk, RAO zacao artistica Ou pessoal perma mesma. Lembrado © filme, entretanto, sabe mos que © prejuizo seria Chorme. A profis sa0 de Guido é 0 contexto indispensavel de clo cinema 8! + em contato com a indiistr 0s problemas tradicionais do artista ¢ inte- lectual tomam feica0 nova € piorada Acionado pela inddstria, sem a qual nao nasce, 0 cinema atinge grande parte da po- pulagio nacional. Pelo dinheiro e pela fama que movimenta, € 0 sonho comum: todos querem registrarse nele. Ea primeira for ma de arte a ter circulagao forgada, andloga em penetracao, 4 expansao da economia mo: derna, Essa forea, Fellini faz senti-la ao mos. quan: tar como tudo sorti, se arruma ¢ curv do passa Guido, © diretor: todos querem ser personagens suas. Ao alcance total corres- responsabilidade tam: n todos mostrar-se, & A concepcao preciso fazer justica a todos artistica de Guido, entretanto, é burguesa: 0 seu anseio é de ‘objetivar uma visie pes soal, idiossincritica, uma fixagao infantil de que assim ficaria liberto. Este o problema psicolégico explicito no filme. O maior do tema, entretanto, implicito, esta nat articulacdo de sua banalidade com a in dustria, que lhe da poténcia, Fosse esctitor Guido poderia atrapalhar, com as suas fixa a vida de és, quatro, cinco mulheres. soe quem corteja Muito mais é impossivel, par com recursos pessoais. Mas Guido € diretor de cinema: tem as mulheres da nagao a seu dispor, a0 dispor de suas manias, ¢ ira ator menté-las segundo a sua semelhanga maior 0u menor com os mitos infantis. Ha descom- 1s forcas sociais desencadeadas Diante da Jo pelo de passo entre € © particularismo que as rege. \cial, co poder ¢ a propria concep- maquin a0 e glorificacao burguesa do individuo — particula sagrada, valor maximo — que pro: va grotesca, Valer-se da indUstria e atordoar © pais para objetivar uma fixagdo infantil € possivel, mas absurdo: se a personalidade triunfante € livre e caprichosa, é que todos Ihe devem © salério de que vivem. Como bem demonstra a figura de Guido, crucida- des © fraquezas de si pequenas so monu- mentalizadas pela posse privada da en- grenagem social. O cinema poe em xeque a concepeao individualista das artes: a busca da garantia subjetiva de autenticidade — 0 ator deve corresponder a visao prévia do diretor — prova ser tirania, A obra nao é feita para o bem do mundo, mas é 0 mundo que existe para a subsisténcia da visto. Esta frase, que para os estetas do século xix era metaforica © exprimia repulsa em face da comercializagao filistina da vida, ganha sen- ido pratico © real quando associada ao ci- nema © ao seu poder econdmico. Aliada ao poder industrial, a delicada exigencia de autenticidade subjetiva poe A mostra o seu lado prepotente, a firia de impor aos ou: tros a propria visao; furia que € simbélica a violéncia dliariamente realizada na vida competitiva. Uma idiossincrasia quer ser melhor que a outra, © cinema, pelas exi- géncias praticas de sua linguagem, explicita © que fica implicito nas outras artes: ha vio~ léncia social nu impulso que leva a elabora- go de mitologias pessoais, mesmo nas filigranas de um poema hermético. 8% de ampliar desmesurada- mente uma angOstia pequena. Mostramos, ia, que esta amphiacao € tema do filme, ¢ nao seu defeito. O engano vem da identifi- cacio de Guido e Fellini, autorizada pelos colunistas de mexerico, pelo proprio dire tor, talvez, mas nao pelo filme. Se Fellini & Guido, os’ conflitos deste campeiam idént £08 no peito daquele, que seria 0 bobo de suas proprias limitagdes, um pequeno-bu: gués nostilgico e fantasioso, incapaz de f zer coisa que preste. Para defender 8 2 € preciso mostrar em Guido a personagem, explicitar a diferenca entre o seu modo de ver © © nosso de vé-lo vendo. Quanto mais idiossincraticos os seus propésitos, maior significado social de sua figura, que resta expor Guido satida a atriz francesa dizendo que tem cara de fumachina, “caracol”, 2. seme- Ihanga é mesmo surpreendente. E de supor que © didlogo esteja ajustado as persona- gens, de modo a fazé-lo exato; basta imagi- nar a dificuldade, caso o texto precedesse 0s atores, de encontrar uma atriz com cara de escargot. Na realizagao do filme o diretor parte dos atores que tem, ¢ nao das perso- nagens imaginarias. O proceso nao sera privativo de Fellini, mas tem importéncia especial para 6% , cujo tema é 0 procedi mento inverso: Guido parte de suas obsessdes, © procura nos atores a semelhan- ¢a com elas; mas entre visdo e ator ha um iato insuperavel. Nao se deve esquecer, entretanto, que as visoes de Guido — as visOes © experiéncias belissimas, ricas naturais, que seus atores s6 conseguem es- tagar — foram elas mesmas filmadas, por Fellini. Ha dois filmes: um bom, dla vida real € imaginaria de Guido, ¢ um ruim, em que Guido procura recriat a sua experiéncia Corresponciem as duas maneiras de filmar que descrevemos. exemplificar, imagi- nemos Fellini com um arsenal de dez bru- Xas mais ou menos parecidas. Tomara uma delas, ¢ tentar captar, em detalhe, as possi bilidades de braxa da bruxa que tem; esta seria hina extraordi das visoes de Guido. Para fazer o filme feito por sua personagem, entretanto, Fellini procedera de maneira diversa: manda que as outras nove imitem a primeira, j4 tansformada, agora, em vida real, fora do alcance de Guido, que gostaria de reproduzi-la. A diferenga no resultado € nitida. Filmadas segundo as suas as novas poderiam ser das a imitar a Saraghina naturezas inclividus interessantes; fore original, tornam-se todas cépias baratas, interpretam seus papéts. As duas maneiras de filmar correspondem, respectivamente, a 8% © a sua personagem; a de Guido sai batida. Sao também transposicao técnica do antagonismo social que expusemos a principio: o anseio burgués, de impor e assim salvar uma visto apenas pessoal, € contrario 0 compromisso coletivo, € Por isso mesmo objetivo, do cinema. Para Guido as imagens valem quando biograficamente saturadas; 0 seu critério 6 a memoria, a sua tarefa a recriagdo. Para 87% , as imagens valem quan- do plenamente realizadas; 0 critério é a significacao objetiva, a tarefa € a revelacdo de possibilidades do objeto. © frescor inalcangavel da visao imediata, miragem de Guido, é alcangado e fabricado por Fellini. Fabricado o infabricavel, media do © imediato, deslocam-se os problemas. Fica sem justificativa a obsessao de Guido, que identificava a pesquisa da beleza a objetivacao de suas fixagoes infantis e de seus ecos adultos, Serd presuncao sustentar a sua identidade, uma vez demonstrado que se podem separar. © filme teria um tema que ele proprio declara uluapassado, ¢ ¢s- taria certo dizer, como disseram criticos de esquerda, que ele nao interessa, Entretanto: nao basta saber que uma aberracao é aberrante para tird-la do mundo, nao bas- ta, para dissolvé-la, saber que a posse priva- da da engrenagem social € um contra-sen- 50; © casamento € contraditério, pretende fixar a espontaneidade? nao € por saber dis- SO que aS pessoas se amolam menos. Em efigie, a consciéncia racionalista ja enterrou ‘© mundo burgués, que entretanto persiste Ihe dita as regras de existencia. Esta reprise continuada e compulsoria de mentiras gas fas 6 0 chao bistorico, ¢ atual, de BV. A persisténcia meramente pratica de costumes © instituicdes, que racionalmente ja sao ana- smo, da justeza 4 mistura de ridiculo © desespero no filme, exige a investigaca 51 sustentada ¢ mesmo manjiaca das origens, das razdes que dio sete folegos ao caciiver, A técnica de 8 % tora caduca a de Guido, mas a ordem vigente, a qual se aplica, re- poe os problemas de Guido em circulacao, na qualidade, agora, de ultrapassados: As contradigoes da realidade social, mes- mo se criticadas em teoria, impoem a exis téncia contraditéria: a cada impasse corres- ponde uma crispagao na consciéncia indivi- dual, obrigada a fazer sua uma dificuldade que despreza. A concessao, entretanto, no dissolve o impasse social, que perdura e volta 4 cobrar submissao logo adiante.! Favorec do pela forga do cinema, Guido nao procu- 12 0 mundo; 0 mundo € que © procura © desfila na sua frente, uma procissao oferec da de empresarios, empregados, atrizes, amigos velhos, jornalistas, todos rapidamente consumidos € dispensados. A contradicao entre © aleance colelivo € 0 horizonte personalista, em Guido, desgastara de ma~ neira sempre andloga todas as relagdes pes- soais, O mel se despreza na voracidade das moseas; espera por ma que nao seja voraz, que entretanto nao vird, pois se vier nao serd a esperada. Ao impasse social corres. ponde uma colegao de conflitos individuais, imagens suas, em cuja variedade transparece a constancia da impossibilidade fundamen- tal. Ea propria realidade que esta fixada. Este contexto faz reconsiderar a fixacao psi- cologica, a qual poder nao ser apenas ma- nia contingente, sem sentido generalizavel Pode corresponder a estrutura do mundo real. Na obsessiio que vé o mesmo em tudo pode haver loucura, mas também senso, senso de que a multplicidade do: mundo A , mas variagao de uma difi- culdadle insuperada perspectiva biogrfica, de Guido e da memoria, este uago maniaco da realidade € ligado @ primeira exper impasse, que seria matriz € causa de suas verses posteriores. Eniretanto: sem prejut zo de ser indelével para a biografia indivi- dual, o detalhe da primeira experiéncia € contingente em face do impasse ‘objetivo, que pesaria de uma ou de outra forma nbora o antagonismo entre sexualicade & vida normativa, para Guido, seja mera repe- tigao do conflito entre Saraghina e sua mae, © conflito, por sua vez, € a confirmacao do. antagonismo, que tem alcance coletivo. E: se vendo que a pesquisa da infaincia, tida por chave das dificuldades adultas, leva a substituir a0 impasse objetivo uma sua ma- nifestacao contingente — esta a banalidade das preocupacdes de Guido. Mas vé-se tam- bem que nos seus achados vive em detalhe a contradica0 social — este o horizonte de St. Fixacoes pessoats sao a cifra traumatt- ca da violéncia que sustenta uma ordem de convivio. Nao sao simbélicas para Guido; sdo mesmo fixacdes, ¢ devem ser remidas como tais: sao tortura e promessa de prazer, recuperi-las em sua peculiaridade seria uma libertacao. Na perspectiva do filme, entre tanto, elas tem grande generalidade: a igre- ja de'um lado € as perdidas do outro, a in fancia na provincia, na casa grande, cheia de mulheres servigais, ¢ a vida na cidade grande, das mulheres independentes — es- fes contrastes compoem um padrio fpico, de aleance ocidental. Guido circula ativamente entre presente, memoria e fantasia. As senhas de passagem sto geralmente detalhes visuais, ¢ a origem do movimento € © instante do adulto. A matriz dos significados, entretanto, esta nas imagens da infancia, cuja forga e anteriori- dade légica faz delas como que 0 lastro real da inquictagio de Guido, Os dilemas do adulto aparecem como variagao mais ou menos disfarcada de contradi¢oes antigas, de uma ambigiidacde fundamental: a Sara” ghina € 0 mal mas € 0 bem; € a mac © os padres sao o bem mas sido o mal. A bruxa, uma espécie de hipopotamo leonino, enxo” tado para as praias abandonadas da povoa- 0, € feroz; mas é ctimplice, também, de todos os anseios, pois em sua ferocidade acuada preservou-se a vindicagao sensual da felicidacde que 0 povoado expulsou ¢ reprimiu. Se a Saraghina existe, tudo é per- mitido. E assombrosa de poder libertario a cena em que o monstro humilhado se trans- figura pela danga ¢ pelo aplauso dos meni nos, transformando-se em leoa e finalmente em felicidade turbulenta. Mas o que é bom dura pouco: os padres chegam logo e arras- tam o menino para 0 outro campo, da rel giao, da familia, da escola. A mae de Guido, uma’santa senhora, ¢ limpinha, magra e vir~ tuosa, Implora ao filho que se comport Vista em close, entretanto, tem © olho ran. coroso. Enquanto enxuga as kigrimas senti- das da palpebra esquerda, 0 seu olho direi- to espia, duro e acusador. Em seguida 0 senti- mento € 0 lengo passam para a face direita trocam de lado com a virtude ultrajada. As imagens do bem sao contradit6rias mesmo visualmente; a decéncia € a face hipocrita mas transparente da autoridade: assim na com- posi¢ao simétrica de sentimento e tirania sobre um rosto, na silhueta fragil da figurinha materna, desmentida pela dureza dos detalhes fisiondmicos, no gesto ungido dos padres, que vistos de perto tém cara de mulher, ‘© antagonismo entre Luisa, esposa de Guido, € Carla, a sua amante, reproduz 0 conflito da infancia. A duplicagao faz 0 es- quema € 0 interesse psicolégico do enredo. No brio civilizado e ressentido de Luisa ecoam os brados de vergogna dos padres da mae, como no gesto rocambolesco e pe- de Carla, obsequiosamente desfrutivel, ecoa minguada a liberdade pro: metida pela Saraghina. A correspondéncia entre os pares é bem explicita: durante u beijo sonhado, Guido transforma a mae na queno-burgué: sua mulher, € no quarto de hotel transforma, carla em Saraghina, ao pintar-Ihe as sobran celhas ¢ pedindo que faga uma faccia da porca. O real é 0 presente, a infancia € ima gindria; mas a nitidez esta na infancia, de que o Feal, presente, € reflexo intrincado, presente visual & poroso, centelha para memoria e fantasia; deixa transparecer a matriz irresolvida, e por isso constante, da Infancia. A matriz clarifiea, ordena a confu- sto da experiencia, € capaz de sustentar identidade pessoal através da voragem das solicitagées. A unidade da pessoa esta ba: seada, portanto, na permanéncia de im- Passes, na fraqueza. Ha prazer na recor rencia, autoconstatacao; a vida ganha, assim, sentido, embora injustificdvel, pois’ ligade meramente a repeti¢ao. Dai a felicidade ambigua que acompanha os inumeros deja bus, muda o mundo mas nao mudo cu, que sou sempre © mesmo procrastinador, o que me confirma me piora, o que me salva me dissolve, € hostil, Esta é a experiéncia que anima ou desanima a pesquisa de Guido, ¢ a torna to contraditéria.? Tudo © que os olhos véem pode ser sinal do que viram ¢ querem modelar na imagi nagdo, Os joclhos dat lavadeira, nas termas, levam as pernas da Saraghina dancando, Carla no quarto, versao de Saraghina, traz a imagem da mac; a senha infantil, asa nist masa, evoca a hora do banho € 0 dormito- rio da infincia. As imagens fazem eco: no harém, Guido abana as mos cruzadas a vol do pescogo como fazia a menina Claudia antes de dormir, para conjurar espiritos, € Claudia sera o nome da grande vedete: Guido € carregado em toalhas por suas ser imagin4rias, como na infancia, quando era embrulhado em fraldas para sair do ba- nho; a mulher imperiosa, que sobe e desce as escadarias do hotel, tem 0 sorriso da es- tatua da Virgem que Guido vira ao sair do confessionario, quando crianga. Por forca das repetigoes e variagoes, as imagens passam a reverberar. Exigem e suscitam uma atitu- > visual, empenhada de peculiar, de aten em vislumbrar 0 que viu no que vé; um tipo de atencao sensorial, disponivel, habitual mente reservado a nvtisiea, pouco afin de decisoes morais. Nao importa firmar posicao diame de arla; importa redescobrir nel posigao tamb Jo toma parti- Luisa ou Fanci fn © que é un postura estritamente visual dio; constata e associa. Através dela Guido furta-se aos conflitos em que se meteu; bus meméria e a felicidade, ¢ bas- > da meninice ca em tudo a ta. Recria assim © privilég quando corria ver a Saraghina sem saber ou ocupar-se do pecado. A pureza do mundo: infantil, entreanto, que @ a fascinacao de Guido, ‘nao esti na'auséneia de contradicao, a mae ¢ a rumbeira se excluiam desde sempre — mas na ignorincia dela. Embora a contradicao existisse no plano objetivo, nao fora 153 pois exist 2a escola, pois existiam a praia e ae ainda interiorizada, em forma de conscién- cia © compromisso. O adulto nao vé Carls sem pressentir 0 desgosto de Luisa, ¢ nao vé Luisa sem sentir, em sua leveza um pou- co anti-séptica, a exclusao de Carla. A pleni- tude das imagens da infancia corresponde a plenitude com que 0 menino esteve na prata como no casarao, antes de saber que um. custava 0 outro. A comparativa palidez das imagens da vida adulta, por outro lado, corresponde ao senso, presente a cada pas” s0, do oposto negado e perdido. A identida- de entre as pesquisas autobiografica e esté- ica tem o seu fundamento aqui: se as im: gens da crianca sao as mais fortes, € a pes quisa delas que irt produzir a obra melhor. Guide nao busea, pois, um mundo em que esteja superado o'seu conflito; basta-se com procurar uma fase de sua vida, ou uma pos- tura, em que mao seja atingide pela contra digo, que entreanto deve ser nitida © vigo rosa, © deve lambised-lo sempre. Busca repeticdo inotensiva, mas nao a superacio, A possibilidade infantil de alinhar com os dots lados da contradigao, de nao optar en tre os queridos, & a sua inveja. E 0 que tenta recuperar pela reducao do mundo a dimen- sdo visual; reduzido, © mundo volta a ser pleno; menos é mais, pois imagens nao se hegam ativamente, mesmo se contraditorias podem coexistir, A destrui¢ao esta no nivel dos feitos vivos, da légica das situagoes. Guido prefere ver apenas, Ora, a isengéo em meio de contradigdes é coisa de eremita ou € privilégio, Em principio, o mundo po: deria deixar de lado quem nao se ocupa dele. Guido, entretanto, se abstém a partir de uma posigao de forca, de cineasta, O mundo vem a sua procura em lugar de abandond-lo. Ha privilégio, mesmo que o privilégio fino de nao respeitar, ao menos visualmente, privilégios sociais ou normas repressivas. A postura contemplativa — os olhos buscam seu prazer onde ele esteja — pressupoe uma repablica satisfatoria, que nao existe. Prova € que ao corpo nao se permite a poligamia ativa e farta permitida aos olhos, cujo democratismo natural, cuja capacidacie imediata de interesse ¢ simpatia nao derrubam, por sua vez, as diferencas sociais. Os olhos sao progressistas enquan- to 0 corpo obedece ainda a uma legisiagao retrograda. A postura de Guido € ambigua; vacila entre critica e complacéneia, pois se nasceu de uma retirada, no retiro passa mais ou menos bem © gosta do espeticulo de que se retirou, A evasio nada resolve, mas assinala um impasse © um anseio que sdo reais. E resistencia simbélica, embora tor- tuosa humoristica; uma conscincia mistu- rada, ciente de que seus conflitos insuperd- veis nao sao insuperiveis, aléin de 20 con dla imagem justa é central ao fi A buse me, € preciso interpreti-la. E tema através das obsessdes visuais de Guide, € pres- suposto técnico do enredo, ja que se deve criar a ilusao de uma experiéncia imediata e rica, inacessivel a artistica 8 € de uma beleza visual assombrosa, AS imagens que apresenta, perseguidas por Guido, irradiam felicidade ¢ melancolia de mistura — a sua riqueza € a presenca mais imediata para quem ve, mas é, também, a s intangivel 20 conceilo, pois nao se liga diretamente a tama © ao didlogo, embora seja © seu contexto essencial, A imagem fe- liz 6 uma utopia cifrada. Guido ¢ 87%, cada um a seu modo, convergem na busca da- quela: fazer que as pessoas aparecam segun- do a sua natureza; dar-thes raza0 até que florescam desinibiclas. As imagens tocadas de poesia sao empostadas, as figuras pare- cem ser propostialmente o que sao, Esta a chave de seu alento. Em suas visdes, Guido como que bolina as figuras, para suscita-las a desabrochar. Lembramos a cena de Carla, posa ao pé de Guido, a amante suburbana se amplia em intuigdes de cosmopolitismo, encena um esplendoroso ritual de discricao, familia apesar das peles excessivas, atemo- rizada pela situag4o, mas envaicecida tam bém, um pouco alucinada pelo balneario fino € sobretudo achando sublime o sacrifi- cio de ser uma senhora sozinha no parque, esconde-se bem visivel a um canto. A cena prossegue na fantasia de Guido, que atris de seus 6culos escuros visualiza Carla can tando, generosa, esticada ¢ comovida como uma girafa que uivasse a lua, infeliz mas feliz porque amada a distancia, solitaria © fustigada como um violinista de opereta. A visao realiza o que a realidade suscita, Pe empostagao acentuada, © que seria (emor irrefletido € transformado em estratégia con: ciente. Encenando a si mesma, Carla nao é mais 0 seu proprio limite vulgai; « sua vul- garidade & uma estilizagao graciosa que ela houve por bem escolher, O romantismo de tionovela, exaltado mas prudente, de Mar- garida Gauthier dentro dos limites do prati CAvel, torna-se ironia em meio das dificul dades dominadas, A euforia da imagem, su: desenvoltura utépica, vem da facilidade ostensiva no interior dos envolvimentos A imaginacao de Guido poe Carla a salvo das contradigdes reais © das limitacoes do bom senso, € um palco em que ela nao res- ponde pelo que faz. Nesse contexto o senti- mentalismo imbecil da imagem — de que adianta a cantoria modesta e maravilhosa quando em frente esti a esposa, bufando? — passa por uma transformacao surpreen: dente: no mundo irreal, onde nao se tor abjeta pela humilhagao’a que corresponde, a vontade de agradar traduz apenas von lade de ser ¢ de fazer feliz. Liberados de stia consequencit pritica pela fantasia, os dois Iados da contradi¢ao se tornam positives, nao pedem a métua exclusio. Carla sente- em imagem & duas vezes bom: uma porque é justo satisfazer e satisfazer-se, ¢ outra por- que é divertido burlar instituicoes hostis. Numa como noutra agitam-se veleidades validas. Na realidade, entretanto, que € da esposa, © das leis, € forcosa, da-se 0 inver- So: porque satisfaz os caprichos seus © de Guido, Carla sera mais puta do que subli- me; ¢ também na discrigao haveria menos cumplicidade feliz que receio e ferida. Luisa, a esposa, fulmina Carla, a amante. Os anseios contradit6rios, que eram felizes um a um, compoem a pessoa machucada quando se enfeixam na sua consequiéncia pratica, Dar a Carla o que é de Carla, ainda que ela nao © possa sustentar — reside nisso a beleza da imagem —, € nao dar a Luisa o que € dela; ¢ vice-versa. Nao € possivel dar razao as duas, salvo em imagem, pois alimentam- se da mitua negacao. Ja se vé que a felici- dade esta nas visdes isoladas, boas por si, € que no enredo, na dimensio das conse- qiéncias © da responsabilidade, esta o de- sastre. Guido tem um fraco pela fraqueza, Vé nela o desejo que nao seri remido, que so nao é forga por forca das circunstancias, O| amor do instante é © temor da sua conti- nuacdo. A imagem abriga possibilidades que © enredo desconhece, € resiste a ser enqua~ drada nele; esta para'ele, que dispoe dela, como a veleidade pessoal para a marcha da sociedade: € uma célula subversiva, cuyja ri- queza, sem préstimo para a trama, respira lamento © protesto contra a simplicidade compulséria do que Ihe sucedera. Poderia ser © ponto de partida de um entrecho novo, de um mundo que fizesse justiga ao que 0 entrecho velho descartava. Construida con- wa o enredo hostil, a imagem feliz é o ger me imaginario de outra ordem de coisas. A perfeicao reflui sobre a existéncia, © incita a esperanga; na atmosfera fantistica do filme, a felicidade poderia alastrar como uma co” ceira, Daf a forca espantosa dessas imagens. Guido, entretanto, nao quer revolucionar 0 mundo, nem imaginariamente. Quer curar certas dores, mas ndo para sempre nem por completo, pois perderia o prazer da cura, Dai a melancolia patife que acompanha as suas revolugéezinhas visuais; nao s40 coisa séria. E hd outra tristeza, também, essa irremissivel e pesada: Guido quer felizes as suas personagens, mas aqui © agora, sem que se transformem, pois transformadas nao seriam mais as que quer bem. Nao quer re: volug4o, quer redengao. Quer que as per- sonagens sejam mas nao Sejam como slo: felizes, estariam livres de sua contradicao, € nao seriam quem sao agora; sendo como sdo, nao seriam felizes. O percurso € con- uaditério: para dar felicidade € preciso su: pender a contradicao que infelicita, o que suspende, entanto, a individualidade por amor da qual fora suspensa a contradicao. Na perspectiva de Guido a imagem feliz nao & verdadeira, ¢ a imagem verdadeira € infeliz. Em termos de légica dramitica: nao € Luisa inteira quem escorraga Carla, nem se- ria © contrario. Para combater, as rivais de- veriam especializar-se uma em ser amante ¢ 4 outra em ser esposa, com prejuizo do mais que pudessem dar. © impasse institucional pesa sobre a imagem, as figuras nao podem, coexistir com plenitude se respeitam o seu contexto social. Retidas pela contemplacao, entretanto, transbordam. Transbordando, sugerem novos enredos ou destinos mais ricos, Mas Guido acolhe as sugestoes 56 pela metade; para o diretor personalista, 0 papel da fantasia € ambiguo: deve recuperar a in- tegridade que a vida prejudica, mas nao importa se além ou se aquém do conflito. 0 anseio de plenitude é menor que a fobia pela tristeza da imperfeicao visual. © crité- Tio nao est nas exigencias do mundo, mas na serenidade do cineasta. Ha duas vias, portanto, na composicao da imagem feliz uma, triunfal, em que a personagem supera © que a limita, chegando a inteireza; na ou- tra, humilhante para o objeto, a veleidade pessoal € ajustada a situagao real de modo a nao diferir dela, anulada portanto, Nos dois casos, antagOnicos, resulta harmonia para a contemplacao. No’ retiro visual a benevo- léncia mais generosa e a crueldade nao se excluem, A felicidade © 0 acerto das imagens pro- vém de sua itrealidade, Negam, sublimam, superam conflitos reais, deixam entrever a liberdade no corpo mesmo de quem esta preso. A realidade infeltz € a sua referencia, fora dla qual nao tém sentido. Nao tém auto” nomia. Para desespero de Guido nao com- poem uma hist6ria, embora sejam parte da historia de um diretor que por meio delas nao consegue compor uma hist6ria. O me- thor exemplo é Claudia. Ao criticar 0 roteiro cle Guido, o literato magrigo afirma que cla € © mais bolorento dos clichés bolorentos que perfazem o filme futuro; e tem razao. Entretanto, ela € das imagens belissimas do filme presente. Como explicar? Tomada por si s6, de fato, ela seria uma fada boba. M: © seu contexto € a fantasia de Guido, leve- mente combalido ¢ canastrao, recuperando © figado nas termas, Vista através de nervos cansados, a sua imagem branca de enfer- meira das almas e do corpo é medicinal. O| copo d'agua, vindo de suas maos, € como a fonte da vida nova, Seu passo € leve © cons- tante como a docura estitica de seu sorriso, Ab, constancia sem esforco. O corpo € cheio mas 0s pés sio suaves, descalgos sobre a relva. Ob, peso que ndo fere. Claudia avanga como quem bebe a brisa, as maos um pou co atrasacas deixam supor que ira voar. 4b, sonbo, nao voe ja. Precisa ser vista duas vezes: como a garga alvinitente e chocha, ragazza crescida entre objetos de antica belleza, pureza ¢ solugto no filme de Guido, © como a contra-imagem silenciosa e leniti- va da clesordem, das olheiras, do ruido. Ea presenca de Guido que da vida ao chavao. Claudia nao pode contracenar, ndo tem con- 155 tinuidade no mundo imagindrio; a sua subs. tancia é o instante de Guido. Fla é como um Poema seu. Mas poemas nao compoem um. Tora: o particlo da incoeréneia, da ima gem contra © enredo, do instante contra a cia, € tomar 0 lado da lado, também, sua consequ irresponsabilidade; mas € 0 das veleidades inibidas ou espezinhadas pela coeréncia que esteja no poder. Esta ambi guidade € 0 limite de Guido, seu fracasso como diretor, seu interesse como persona gem. Nao ha realismo em sua atitude, pois a coeréncia ira prevalecer; mas hé sentido em sua derrota. Resulta uma atmosfera ele de lamentacao das felicidades pe situagao deixa mas nao, possibilidades que a deixa medrar. Paradoxalmente, a impotén- Gia de Guido tansmite, pela irritagao que nos causa, 0 senso preciso de que a ordena: ao da vida esta obsoleta; consciéncia € meios materiais, parece tudo a mao para modific A imagem feliz, construida para curativo pessoal, nasce de uma operacao simple: transforma em opcao 0 que € destino, em disfarce o que & cicatriz, e faz que desapa reca, assim, a marca da coergao Social. Anu Ia a diferenga entre propésito € a existén- cia. Cria um mundo feliz e fraterno, cuja fi- nalidade é fazer bem a Guido, nao inco moda-lo. E como uma republica social de que ele fosse o rei, As imagens de paz lo imagens de violencia, pois cancelam o préximo para pacificd-lo. A fantasia da dan. a reconciliada entre a esposa ¢ a amante & um exemplo; d4 prazer a Guido, mas € pos- sivel somente porque Luisa foi esvaziada. A generosidade de Guido € generosa com cle brutal com as personagens. A disparidade entre carinho e impertinéncia culmina quando Guido wansforma a mulher numa linda criadinha azafamada, que pre- para seu banho e escova o chao de seu harém. As conciliagdes todas sto mandadas, obra da onipoténcia imaginaria de Guido, no solucionam nada, nao passam pelo in- terior das personagens e de seus conflitos. Nao € a toa que a grande pacificagao final se faz numa ciranda. Os pais e 0 filho, os padres ¢ a rumbeira, a mulher ¢ a amante 0s atores © seu diretor, todos dao as maos numa danga fraterna, sem que, entanto, se resolvesse, entre eles, uma s6 diferenga, A imagem da farandola pacificada tem trés la dos: para Guido ela é feliz, pois suspende as suas contradicdes mais doidas e permite uma conciliagao, luséria, pelo tansbord mento sentimental; para as personagens & um ultraje, pois © proprio de cada qual € posto de lado, a bem da paz de Guido; para © espectador & comovente ¢ irritante, pois embora atenda a uma dor real, néo leva para além dela — pela ilusao que cria fecha um circulo de reincidéncia. Guido passa pelo no final esta no que passa sem aprender mesmo ponto em que comegou, Quer, por forca, tomar contradi¢des como se fossem harmonia, reter 0 mundo tal e qual; para a perder nada supera, para nado mentir a Fla e Luisa, mente Guido anda em circulo. © horizonte de 8% © do espectador, entretanto, ndo € 0 seu, € maior. Dai nao ser trigico © conflito, que tem mais de de. A inércia de C uma reacao muito fort proporcional. Também Carla é casada, tam- bem Luisa tem um flerte, Nao obstante, a situagao das duas é incomparavel a de Guido, cuja complacéncia nos atinge © escandaliza siva. Por que raziio? Habi Inércia que de necessida- ido, contudo, despert aparentemente des. como coisa de tualmente, encontrar uma solucao privada e secreta para impasses coletivos, por isso mesmo inevitiveis, & sinal de saber viver Salvo quando a solucao pessoal pode ter alcance publico, suspendendo o impasse que 157 tornava necessario o engenho e o segredo individuais, Deixar de publica-la passa entao 2 conformismo, € mais, passa a ridiculo, pois produz uma prudéncia ja desnecessaria. Embora seja palpivel a experiéncia, o anacronismo nos impasses de Guido € difi- cil de localizar, Por que nao serao validas as obsessdes de um homem, os seus compro- missos entre a mulher ¢ 4 amante? Qual o contexto que Ihes tira o peso? Gutdo nao é simplesmente um bomem; é um cineasta. O cinema, com a atmosfera que 0 envolve, introduz uma constelacao pratica para a qual 0s conflitos burgueses sao letra morta. Por forte que seja o senso disso, isso nao € Facil de comprovar, pois trata-se do horizonte efetivo, mas nunca explicitado, de 31% e de nossa cultura. Os indicios do mundo novo mal e mal se entrevéem, embora sempre © bastante para tornar pungente e obsoleta a permanéncia do mundo velho. Nao nos interessa, aqui, © argumento abstrato contra a sociedade individualista: procuramos as imagens e situagdes cuja mera Presenca, no filme, bastou para tingir de caducos os empenhos de Guido. Em seu passeio pelas termas, © cineasta vé uma su- cessao vertiginosa de faces extraordinari imperiosas € originais. A seqéncia nao se deve apenas 4 perspicacia cle seu olhar trei- nado, que sabe ver, mas ao exibicionismo, que a sua profissao suscita, Dai a vida se acelerar ¢ empostar A sua volta. Vislumbra- da por todos na atencao do diretor, a camera de cinema representa um estagio novo da técnica, faz pressentir modalidaces novas de convivio. Mobiliza impulsos como aquele que faz um torcedor saltar, para que os telespectadores da cidade tomem conheci- mento de sua cara, Nao que cle se ache bonito, mas quer ser visto. A camera de ci nema tem um poder curioso, que € preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de serem quem sa0.* Diante do olho impes” soal, 20 mesmo tempo que universal pelo aleance, mostram-se trejeitos ¢ intimid que normalmente se esconcem com cuida do, O que € vergonha ou handicap visto por poucos, ganha dignidade de patriménio nacional quando 0 publico sao todos. O que € flanco exposto numa perspectiva parti- cularista © antagénica, € peculiaridade pessoal, ousadia, traco curioso no acervo humano 10 logo o ponto de vista seja cole- tivo. E como se as pessoas dissessem: ve- jam que verruga mais interessante essa mi- nha; ou, espiem como é feio o meu pé; ou, olhem s6 como sou gordo ou magricelo. Ja se vé que 0 cinema atiga, em escala total, a liberag4o que Guido empreende com requin- te, como prova de talento pessoal e em favor de quem Ihe € caro. O alcance da técnica escapa a Guido, que dispensa como bene- voléncia sua virtualidades que sao da cultu- ra, Esti nisso a convergéncia como a diver- géncia ene 8% ¢ Guido. Hi gestos que s6 se fazem quando so: nho — as eriancices de Guido, no banheiro: € no corredor — ou diante da camera, que mostrara © gesto a todos. Neste paradoxo esti cifrado © alento ut6pico do cinema. O filme, por sua imparcialidade mecanica e pela circulagao social que tem, cria ou ajuda a criar uma universalidade que nao € teoric apenas, mas € pratica; pode haver public dade total de tudo. Representa num estigio tecnico em que os segredos ©, portanto, o antagonismo organizado s6 artificiosamente se mantém. Libera 0 individuo de sua posi- ao particular na sociedade, de seu convi Vio restrito © restritivo, para dar-Ihe como esfera 0 conjunto da vida social. Nao se tra- ta apenas de uma ampliago. B 0 proprio eixo do convivio que se desloca. A referén- cia coletiva suscita as faculdades que o con- flito imediatista abafa, © olho cinematogra fico é um confessionario especial: quem ouve 10 € um padre autoritario, mas € a nacao. em seus momentos de curiosidade e lazer; tudo © que diverte ¢ nao atrapalha merece isto 6, licenga. Diante do olho universal da ciéncia, diante do universa- lizador concreto que sao os mass midia, as peculiaridades pessoais deixam de ser fra- queza secreta sinal de inumanidade — o que sempre foram no interior do contexto competitive — como as contradicoes sociais deixam de ser fato natural € insuperavel. O cinema, 2 psicandlise, a sociologia, o convi vio cerrado na cidade grande, essas pers- pectivas tornam insustentavel a fiegao bur- guesa da natureza humana, da sociedade composta de bichos proprietarios, competi- tivos © monogamicos. Nestas circunstdn- cias, que sao as do filme, a persisténcia da ordem tradicional de vida é particularmente penosa. Leva a generalizacao da ma-fé, € a0 nascimento de novas formas dela, Luisa, vendo Carla no parque, diz a Guido: ‘O que mais me enfurece € pensar que aque- la vaca sabe tudo de nos". Em seguida ex plode, em voz baixa porque € civilizada. Putal’. Logo depois desculpa-se de estar fazendo a burguesa. A sua furia € comple: xa: “saber tudo”, no caso, sera saber coisas extraordinarias? De modo algum. A violén- cia de Luisa mais finge do que defende uma intimidade preciosa, em boa parte € indig- nacao pela inexisténcia do que pretende resguardar, Na ferocidade dolorosa com que afirma a sua diferenga esta implicito 0 reco- nhecimento da igualdade. Luisa sabe da v: riedade clos desejos e nao reconhece mais autoridade as proibicoes tradicionais; inte- lectualmente nao tem por que se revoltar. A. critica te6rica, entretanto, nao afasta a con: tradicdo pratica. A coexisténcia prolongada duas, por sua vez, queima os nervos Luisa diz a Guido que ele “mente como res- pira", 0 que vale também para cla e para todos os que vivem a sua situacao absolvicao, di se for incluido entre as mo. Nasce um tipo novo de fisionomia, cor. respondente especifico desta constela fisionomia do intelectual, do homem céns- cio € cioso de suas contradigoes. Tanto quan- t0 sei, foi posta na tela por Fellini ¢ Antonioni pela primeira vez, O rosto é desgastado, mas nao pelo esforco fisico, de modo que guar da tragos juvenis, que nao sao felizes; € li vre © expressive por instantes, embora em 1 pareca preso, nao pela estupidez, mas 4 consciéncia logo maniaca de suas pro- prias contradigdes; ha fraqueza, mas nao apodrecimento, pois o esforco de buscar verdade, dle viver a vida mais ou menos cer ta, € constante. Dirigica contra Guido, mas também contra si mesma, a mistura tensa de desprezo, piedade e fiiria forma um rictus espantoso a’ volta da boca de Luisa. O seu rosto doido, consciente e destrutivo € um emblema, iio verdacleiro para o filme quan- t © sorriso de Guido, generoso, compla. cente € depressive. O mundo tem as caras que pode ter Guido vé, mus nav ouve, escondide atras de seus dculos escuros, Alheio a conversa. do € aos problemas que aparecem nela compde 0 scu mundo feliz, Os outros ou: vem, mas nao véem: meticlos em suas ques. nao admitem que haja mundo fora Este € 0 contexto que da riqueza verdade ao esquematismo das grandes ce nas finais. A ciranda da felicidace, em que se recuperam a fraternicade universal e presentada pureza das figuras brancas, talismo se fosse real, se fosse como solugao. Sendo irreal, entretanto, ape nas visdo, € justo que seja triunfal, pois con- ligoes dolorosas. Sendo triunfal cilia con € sem realidade, tinge-se de melancolia e é tocada pelo improvavel. A de uma beleza sua mentira é a sua verdade, euforia © gar ganta cerrada: a apoteose torna-se sinal de sua propria auséncia 1064 Nom oe pre As afinidlader lets, Walter Ben 159

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