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Perspectivas Africanas de Género Helena Santos Assuncao Introducio Neste trabalho, pretendo olhar para as perspectivas afrocentradas que marcaram a producao de conhecimento africana desde 0 periodo das hutas anti-coloniais, e como essa_necessiria ‘rmudanca de perspectiva" ainda ecoa nos escritos produzidos por intelectuais afticanas/os que trabalham com questdes de género no continente. Vamos nos deter, primeiramente, em algumas producdes intelectuais africanas, que marcaram as décadas de 1950 a 1970 e ficaram conhecidas como "corrente da superioridade africana” a partir da classificagio dos escritos historiogréficos sobre a Africa, realizada pelo cientista social guineense Carlos Lopes (Oliva, 2004, p.18). Referirme-ei especialmente aos dois nomes mais conhecidos do grupo de intelectuais africanos que fizeram da Africa 0 centro de suas narrativas histéricas e de centro de seus pensamentos, Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop. Em um segundo momento, pretendo aproximar essas proposicées de producdes osteriores, algumas mais contempordneas (1980 - 2017), sobretudo de autoras africanas (Oyewirmi, Amadiume), envolvendo estudos de género e discussées sobre ferninismo no continente, que tém tido um forte impacto nas ciéncias sociais intemacionais. Em seguida, em um "estudo de caso" a partir da obra da antropdloga dinamarquesa Signe Amfred, que trabalha desde a década de 1980 em Mocambique, proponho refletir como esta "perspectiva africana de género" infletiu no trabalho desta autora em particular, potencializando sua etnografia, ao mesmo tempo em que Possibilitava uma abordagem conceitual que nao fosse eurocentrada, ou colonial 1. A perspectiva africana Na introducao geral de Histdria Geral da Africa, a grande empreitada intelectual editada pro Joseph Ki-Zerbo, o autor escreve que "a histéria da Avtica, como a de toda a humanidade, é a histéria de uma tomada de conscigncia" (KiZerbo, 2010, p.32). A "tomada de consciéncia” por parte dos intelectuais afticanos — termo que ecoa bem com as propostas socialistas-marxistas das lutas de independéncia do continente — levaram- nos a diversas empreitadas, seja no campo das ideias seja no das lutas sociais, Para Ki Zerbo, uma tarefa essencial que decome desse proceso de conscientizacao é a reescrita da hist da Aftica, a comecar pela (ainda) necesséria afirmacao que inicia todo 0 " (p. 31). livro: "a Africa tem uma hist6 Isso se fazia necessario, pois a historiografia e a literatura produzida até entdo sobre 0 continente era fortemente marcada pelo eurocentrismo e por uma série de construcdes pejorativas atribuidas aos povos africanos: das representacdes monstruosas da Antiguidade clissica (Herédoto, Ptolomeu), passando pelas visies cristis e pelas literaturas de viagem dos exploradores europeus, até a conhecida atribuicdo de Hegel sobre a Africa como “limiar da historia do mundo”. A historiografia do séc. XIX até meados do séc. XX também negava aos africanos a possibilidade de construcio de suas prdprias narrativas, tecnologias e artes: qualquer invengio encontrada no continente era explicada como fruto do contato com outras civilzagies, e a histéria da A\tica s6 poderia ser contada a partir da experiéncia escrita dos europeus, a partir da situacéo colonial (Oliva, 2004, p. 19 — 23). O explorador, o soldado e o missionério tornam-se entao os principais personagens da narrativa eurocéntrica sobre a Africa entre 0 séx. XV eo XIX (Mudimbe, 2013, p. 70). Se, como aponta Mudimbe (2013), "a invencdo da Africa” foi uma empreitada discursiva que contribuin e consolidou a ideologia da superioridade europeia ou ocidental, aos intelectuais africanos da geracéo de KiZerbo e Diop coube a tarefa de imaginar e construir outras historias possiveis. No mesmo terreno do conhecimento Gientifico, eles travaram fortes contra argumentagdes e contra discursos para criar a possibilidade de contar outra histéria. A independéncia politica e administrativa das metr6poles também deveria se seguir de uma independéncia cognitiva: “finalmente, 0 que faa a muitos afticanos é a consciéncia da nossa pobreza e imaginacdo criadora, quer dizer 0 espitito de criatividade" (Senghor, 1983, p.152 apud Mudimbe, 2013, p. 125). " Em Filosofia da Histéria, Hegel escreve "A Aftica ndo é uma parte histérica do mundo. Nao tem movimentos, progressos @ mostrar, movimentos histéricos proprios dela. Quer isto dizer que sua parte setentrional pertence ao mundo europet ow asiitico. Aquib que entendemos precisamente pela Africa é 0 espirito achBtdrico, 0 espirito ndo desenvolvido, ainda envolto em condigdes de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da histéria do mundo” (Hegel, p. 174 apud Ova, 2004, p. 19) Escrever outra historia africana tomou-se, portanto, um projeto essencial para esses intelectuais: nas palavras de KiZerbo, "a primeira tarefa de andlise global do continente afticano é histérica" (2010, p. 33). Isso requeria, por um lado, uma valorizagao e reconhecimento das tradigées orais como fontes historiograficas, e por outro lado uma construgio de conhecimento interdisciplinar, que abarcasse também disciplinas como a arqueologia e a linguistica. KiZerbo define os quatro principios para essa "Teescrita consciente” da histéria da Africa: a interdisciplinaridade; que essa historia seja enfim vista do interior; uma histéria dos povos africanos em seu conjunto; que evite ser excessivamente fatual (K#Zerbo, 2010). Cheikh Anta Diop foi um dos intelectuais que contribuiu de maneira mais consistente para esse projeto. A partir de anilises mulidisciplinares, envolvendo linguistica, arqueologia, semidtica, construiu uma argumentacao s6lida para afirmar a unidade cultural da Africa pré-colonial, com base num pasado hist6rico comum e em semelhangas linguisticas’. Suas teses sustentam que a Africa teria sido o berco da humanidade e influenciado a histéria do antigo Egito e das civilzagées mediterraneas. Tais teses se contrapuseram a uma histéria eurocentrada de branqueamento do Antigo Egito e de separagéio de suas conexdes com a Africa negra, ou sub-sahariana (Diop, 2010; 2014), Em A unidade cultural da Africa Negra — esferas do patriarcado e do matriarcado na Antiguidade Classica [1982] 2014), Diop constrdi teoricamente essa unidade contrapondo um "berco meridional” (Africa negra, Egito e Etiépia), a um "berco nérdico", greco-romano e germénico.” Para tanto, ele procede a uma revisio minuciosa das teorias sobre 0 matriarcado primitive e universal em Bechofen, Morgan e Engels, demonstrando como as teorias de uma passagem histérica e geral de um sistema matriarcal para um sistema patriarcal no se sustenta em evidéncias empiticas. Alm disso, como enfatiza Ifi Amadiume, na introducio da edicio de 1989, essas teorias evolucionistas elucidavam 0 etocentrismo de seus autores e das ciéncias sociais na época em que foram produwidas: "como mostra Diop, a classificagéo de Morgan era basicamente esta equacao: arianos (Indo-Europeu) = brancos = civilizados e nao arianos 2 No campo da linguistica comparada também contribuiram para essa tese os trabalhos do congoles ‘Téophile Obenga, como o artigo "Egyptien et négro afficain” (1972), Obenga também organiza um livro 4que rebate as criticas dos europeus africanistas ao projeto empreendido por ele e Diop: 0 sentido da luta Contra 0 africanismo eurocentrista (2013). Haver, também, uma "zona de confluéncia” destes dois bergos, que seria a Asia Ocidental = outros = selvagens. Morgan era um racista. Esta teoria era racista." (Amadiume, 1989, p.3). Diop, por sua vez, propde que o matriarcado, assim com o patriarcado, so sistemas especificos, nao gerais, que tiveram sua origem em diferentes. "unidades orginicas" de civizacio humana (meridionais/africanas x nérdicas/europeias) e que inclusive coexistiram, se sobrepondo em zonas de confluéncia (Asia Ocidental). O matriarcado teria se originado no sul agricola, e o patriarcado no norte némade, sendo a bacia. do Mediterraneo uma regio intermedidria onde o matriarcado precedeu 0 patriarcado. Na proposi¢ao antievolucionista de Diop, as sociedades africanas néo ocupam 0 higar de seres primitives, de "passado da Europa’: sao civilizagdes que construiram formas de ser e viver prdprias. Salientando as diferencas entre os dois pélos, o autor retrata: A Africa, como representante do bergo do sul do matriarcado, valoriza 4 familia matrarcal, o estado territorial, a emancipagao da mulher na Vida doméstica, 0 ideal de paz e justiga, bondade e otimismo. Suas lteraturas favoritas eram romances, contos, fabulas e comédias. Sua ica moral foi baseada no coletivismo social. O contrastante bergo do norte, como exemplificado pela cultura da Grécia e Roma arianas, valorizava a familia patriarcal, a cidade-estado, a solidao moral e material. Sua literatura foi caracterizada pela tragédia, ideals de ‘guera, violencia, crime e conquistas. A culpa, o pecado original e 0 pessimism, impregnaram toda a sua ética moral baseada no individualismo, (Amadiume, 1989, p.5) Pode-se constatar, nessa sintese de elementos contrastantes, que ha uma certa ositivacdo das sociedades do sul (paz e justica, bondade, otimismo, coletivismo) em detimento das do norte, que carregariam elementos mais negativos (guerra, violéncia, crime, conquista, culpa, pessimismo, individualismo). Por essa razio que Carlos Lopes chama a corrente intelectual representada por Diop e Ki-Zerbo de "corrente da superioridade africana" ou de "pirémide invertida”. Segundo Oliva (2004, p.19), 0 "sentido ideoldgico e passional” desses estudos teria comprometido parte das teorias elaboradas. De fato, é perceptivel como as proposicdes de Diop se conectam intimamente com o projeto par-africanista, que seria legitimado por uma historia de unidade cultural, ao "manter a consciéncia de que o sentimento de continuidade histérica éessencial para a consolidacdo de um estado muiinacional” (Diop, 2014, Segundo esas. criticas, 0 affocentrismo cometeria 0 mesmo equivoco do eurocentrismo ao supervalorizar sua propria cuitura, e a0 imputar todas as contradigdes @ aspectos negatives a fatores externos. Apesar de nao acreditar que seja possivel simetrizar essas duas perspectivas - posto que as implicacées politicas do eurocentrismo e do afrocentrismo na vida das pessoas afetadas pela situacdo colonial ni sio comparaveis - entendo os Tmites de uma perspectiva affocentrada que precisa da Europa como contraponto negative para a construcao positiva de sua propria histéria, ‘Também € importante pontuar que essa visio "orginica" de sociedade que sustenta a unidade cukural africana possui os limites de ser igualmente uma visio estatica, 0 que € atestado pela explicagio da mudanga social a partir de elementos externos. No entanto, é interessante pensar que nessa dicotomia apresentada por Diop, 0 papel feminino, ou a historia das mulheres afficanas ganhe um papel preponderante, ‘razendo a tona varias rainhas e 0 papel politico, piiblico e guerreiro de figuras fernininas na histéria afticana. Ao contrastar os valores afticanos com o patriarcado europeu, que subjugava e subordinava as mulheres, Diop oferece uma das primeiras descriges afrocentradas de género, ¢ ndo é sem razio que Ifi Amadiume reconhece sua importincia e 0 homenageia escrevendo a introducéo para a edigéo de 1989 de A unidade cultural da Africa Negra. A autora também pontua alguns Imites das teorias de Diop e algumas divergéncias teoricas que ela mesma apresenta acerca dos sistemas matriarcais afticanos. No entanto, acredito que essa ponte com os estudos de género realizados por intelectuais afficanas seja interessante para entrever de que forma a roposicéo de uma perspectiva propriamente africana pode contribuir para a construcéo de conhecimento rio apenas sobre a Africa, mas sobre as ciéncias socials em geral. 2. Género em perspectiva A nigeriana If Amadiume & uma das mais proeminentes intelectuais a discutir as conceitualizagoes dos estudos de género a partir das experiéncias africanas, Seu trabalho, juntamente com o de sua conterrénea Oyérénké Oyéwimi tém sido referéncias importantes para as elaboragdes das teorias de interseccionalidade que permeiam os estudos de género e as producdes poliico-teéricas feministas, sobretudo nos Estados Unidos. Em Male daughters, female husbands (1987), Amadiume trax dados etnogrificos da localidade de Nnobi, onde nasceu, entre as populagdes que vieram a se denominar Igbo. Paralelamente ao advento da teoria queer’, a autora desestabilizou a equacio que relacionava sexo biolégico com identidade de género e orientacdo sexual, mostrando como posicdes sociais (marido/esposa/fiho/filha) que no Ocidente sio genderificadas, no necessariamente 0 so em outros contextos. Assim, um homem sem filhos herdeiros poderia deixar sua terra para uma filha, que passaria a desempenhar um papel masculine na patrilithagem Igbo e ser tratada socialmente como homem (male daughters). Uma mulher em tal posigéo poderia, para salvaguardar e aumentar seu atriménio, casar-se com outras mulheres (nesse caso, a filha masculina também se toma um esposo feminino — female husband, jé que ocupa uma posicao social masculina). Se suas esposas se casassem fora da patilnhagem, esta mulher receberia 0 chamado "bridewealth", e se as esposas tivessem filhos com eventuais amantes esses entrariam para a patrilinhagem desta female husband (Amadiume, 1987, p. 27-30). Dentro do sistema patriinear da sociedade Igbo, a autora descreve 0 papel preponderante das mulheres - sobretudo no perodo "pré-colonial’, na primeira parte do 5 livro” - na vida publica e politica. As mulheres Igbo historicamente intrigaram os colonizadores e ocidentais por serem consideradas as mais militantes e guerreiras do tertério que veio a ser a Nigéria. O estranhamento do colonizador deixa mais nitido 0 papel subordinado e doméstico das mulheres na tradicGo ocidental (lembremos da critica de Diop citada acima) — algo ainda mais acentuado se pensarmos a sociedade vitoriana que colonizava esta regiio — e os equivocos analitcos das primeiras etnografias sobre estes povws, e sobretudo sobre as mulheres igho, revela como era inconcebivel_para_o pensamento ocidental desvincular 0 sexo biolégico do género social. + Judith Butler, uma das mais conhecidas autoras da Teoria Queer, também realiza essa dissociagio através do estudo com travestis e transewais, no qual desenvolve a nocdo de género como algo performitico, portanto fluido © néo necessariamente atrelado ao sexo biolégico. Ela indica que as identidades ‘de género constituemse performativamente em relagdo a uma matriz de inteligibiidade cultural bindria e heteronormativa (Butler 1990; 1990). 5A autora opera uma periodizacio entre pré-colonial, colonial e pés-colonial, sendo 0 primeiro considerado 0 periodo “tradicional” (the olden days), até a década de 1960, e os dois tiltimos "modemos”. Uma das criticas que o livro recebe é justamente de oferecer uma visdo estatica da sociedade pré-colonial, ‘que s6 passaria a ter sofrido midangas — as quais foram desfavoriveis polticamente para as mulheres, sobretudo coma entrada do cristianismo — no periodo colonial e pés-colonial. Critica que, de certa forma, acompanha a 0 que a prépria autora coloca em questao na obra de Diop (Amadiume, 1989). Se trinta anos depois, jd nfo parece to estranho — ao menos aos olhos académicos ocidentais — pensar em mulheres bioligicas que performam papéis masculinos, a forca do argumento de Amadiume ainda ecoa nas controvérsias inseridas nos feminismos académicos e militantes. A desconstrugao da universalidade do conceito de "mulher" esta imbricada na critica & arrogancia feminista (branca/ocidental) que pretende ‘salvar mulheres africanas", "ensini-las a se organizarem’, etc. (Amadiume, 1987, p. 7). A particularizacao do conceito de "mulher" se segue a particularizacao do patriarcado, entendido como um sistema universal de opressiio da mulher por uma parte considerdvel dos movimentos feministas. Nesse sentido, hd um ponto semelhante aquele de Diop, que recusa a universalidade tanto do matriarcado quanto do patriarcado ao pensé-los enquanto experiéncias histérico-culturais de dois pélos distintos. A autora néo prope uma unidade cultural matriarcal na Africa pré-colonial como fez Diop, mas argumenta que, mesmo em uma sociedade patrilinear como a Igbo era possivel entrever um sistema "dualsex", no qual a matrifocalidade e a orientacéo _ feminina contrabalangcava 0 poder dos homens. Nesse sentido, a colonizacéo (e o feminismo branco poderia ser visto como mais uma faceta neocolonial) degradou a condicéo das mulheres nessas sociedades. Oyéwiimi vai ao encontro dessas proposicdes, sugerindo que a prépria nocdo de “nuiher" € estrangeira e alienigena as sociedades lorubé antes do contato com as sociedades ocidentais e da situacio colonial (1997, p.9). Procedendo a um exame arqueolégico desse conceito, tal qual Foucault em As palavras e as coisas (2009) °, a autora mostra como a “mulher” na episteme ocidental esté intimamente atrelada a experiéncia social da familia nuclear. Apesar do fato de que o feminism tomou-se global, é a familia nuclear ocidental que fomece o fundamento para grande parte da teoria feminista. Assim, os trés conceitos centrais que tém sido os pilares do feminism,’ mulher, género e sororidade, so apenas inteligiveis com ateng30 cautelosa a familia nuclear da qual cemmergiram. (Oyéwiim{, 2004, p.3). © Foucault fala de "morte do homem’, ao entender que todo conceito tem uma histéria ~ 0 sujeito modemo tal qual pensado no Ocidente, como sujeito do conhecimento e como seu prdprio objeto, veio a cexistit em um regime especifico de saberpoder, portanto ndo é nem etemo, nem universal, nem inevitavel, Caso 0 que ficou conhecido como "modemidade” se transforme em outro regime epistémico € politico-social, pode “se apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, umrosto de areia” (Foucault, 2009, p.536). Oyéwimi também opera em The invention of Women: making na African sense of Western gender discourses (1997) uma arqueologia do saber, ou uma sociologia do conhecimento, mas 4 partir de uma perspectiva africana, Nesse sentido, seu trabalho também embra o de Mudimbe (2013), ‘que pensa o proprio conceito de Africa na episteme ocidental. Na familia nuclear, constituida pelo par homem-mulher (marido-esposa) e fihos ou filas, 0 g@nero opera como principio organizador fundamental, e sao as distincdes baseadas no género que produzem hierarquias e opressGes dentro desse micleo. A experiéncia comum que substancia a identificacéo e principio de sororidade é aquela da muiher em oposigio ao homem, as filhas reproduzindo os comportamentos e se identiicando com sua mie e immas. A questio é que, como coloca a autora, a familia muiclar no & universal, ela & uma forma especificamente euro-americana, 0 que fica muito evidente quando analisamos contextos afticanos (podemos pensar, por exemplo, nas sociedades matrineares nas quais 0 iio da mie exerceria fung6es que no modelo da “famfia nuclear” s6 poderiam estar atrbuitlas ao pai). Continando a minuciosa analse dessa perspectiva epistemol6gica feminista euro-americana, ela coloca: Em grande parte da teoria feminista branca, a sociedade 6 representada como uma familia nuclear, composta por um casal € suas/seus filhas/os, Nao ha lugar para outros adultos, Para as mulheres, nesta configuracdo, a identidade esposa é totalmente uma definigéo; outros relacionamentos sao, na melhor hipdtese, secundérios. Parece que a extensao do universo feminista é a fami nuclear (Oyéwiimi 2004, p.5). Isso traz uma série de consequéncias. Em primeiro higar, a miopia do feminismo branco para as variivels de raga e classe, posto que essas categorias de distingdo costumam operat em Ambitos mais amplos do que a familia, ¢ nio sao definidoras de seu funcionamento.” Em segundo lugar, a necesséria imbricagdo entre a matemidade e a figura da esposa (logo, da relacio sexual com 0 homem). Nao é de se espantar que a visio de Simone de Beauvoir (1949) sobre a matemidade seja tio negativa: 0 do aprisionamento da mulher a esfera doméstica, ao papel de mie-esposa; 0 de seu confinamento ao seu destino biokigico. F dentro dessa légica que pode surgit 0 paradoxo da "mie sokteira’, que, em outros contextos, néo faria sentido algum. Desde uma perspectiva afticana, ‘a maternidade ¢ definida como uma relacéo de descendéncia, no como uma relacéo sexual com um homem” (Oyéwiimi, 2004, p.5). 7 Tal critica é bastante explorada pelas feministas negras estadunidenses (que propdem, portanto, pensar de forma interseccional nessas trés varidveis) e pelas mulheres "do Terceito Mundo", "periféricas", "subaltemas”, e foi um dos principais pontos de inflexio nos movimentos feministas desde os anos, 1980/1990. Ver, por exemplo, os escritos de Angela Davis (1963). Diferentemente do que propde a tendéncia universalzante do feminismo branco, as categorias de género como organizadoras das formas de pensar e viver o mundo nio necessariamente esto presentes em todas as sociedades, a qualquer momento. A falta de entendimento dessas diferencas causou uma série de distorcdes, equivocos de tradugao intercultural e problemas de anilise nos estudos ocidentais que se debrugaram sobre sociedades afficanas (tanto Amadiume quanto Oyéwimi formecem uma série de exemplos em seus trabalhos). Nas sociedades lorubé, 0 género no seria a categoria mais fundamental para a organizacaéo social e categorizacao de parentesco, e sim a senioridade ou antiguidade, marcada pela idade relativa (mais velho/mais novo). Categoria fluida e dinamica, diferente do género. A autora mostra através de uma série de palavras — que seriam, na lingua portuguesa, como os substantivos sobrecomuns, que possuem a mesma forma para o masculino e o feminino — como as distingdes e hierarquias, mesmo dentro da familia, nao implicam necessariamente género. Temos, por exemplo, as palavas oko/iyawo, traduzidos erroneamente como par de oposicdo marido/esposa, ambos os nomes servem tanto para homens quanto para mulheres, marcando aquele/a que pertencem linhagem oko e aquele/a que entrou na familia por casamento iyawo. Para evitar esse tipo de equivoco, Oyéwimi propde, como ja faziam seus antecessores (Diop, Ki-Zerbo, e tantos outros intelectuais afticanos), que “andlises interpretacdes de Africa devem comecar a partir de Africa” (2004, p.9). Se no caso dela e de Ifi Amadiume, seus entendimentos e criticas também foram possiveis pelo fato de elas proprias pertencerem as sociedades sobre as quais estavam escrevendo, isso nao quer dizer que apenas afticanos possam escrever sobre a Africa, ou mais especificamente que apenas uma pessoa ioruba possa escrever sobre a sociedad ioruba. Trata-se aqui, de perspectivas. O priviligio da perspectiva parcial (Haraway, 1995), do saber localizado, no caso dessas autoras, contribui para uma reflexio mais apurada e uma pritica mais consciente dos préprios estudos de género e dos movimentos ferninistas. Uma perspectiva africana de género, nesse sentido, toma-se uma importante ferramenta metodoligico-tedrica, e também politica, para evitar a reproducio de padres coloniais de construcéo de conhecimento (como o “africanismo eurocentrista” para usar os termos de Obenga). Proponho, agora, nos determps sobre uma obra especifica para explicitar como essa mudanca de perspectiva pode ser fundamental para as anélises e interpretagdes sobre sociedades africanas. 3. O caso de Signe Amfred Signe Amifred & uma antropéloga’so: ao estudo de género e sexualidade em Mocambique, com trinta anos de trabalho no ou Gloga dinamarquesa que tem se dedicado sobre o pais, envolvendo longos periodos de pesquisa de campo, docéncia, militincia, consultorias, etc. Amfred era uma miltante feminista no New Womens Movement desde 1970, e em 1979, quatro anos aps a independéncia de Mocambique, ela e seu marido se mudaram para Mocambique, para trabalhar como cooperantes: 0 governo da Frelimo havia lancado um chamado de cooperacio intemacional no contexto da falta de quadros qualficados no pés-independéncia. Um dos lemas da Frelimo na época era uma frase proferida por Samora Machel na 1* Conferéncia da OMM (Organizacéio da Mulher Mocambicana), em 1973: "A libertaco da muher 6 uma necessidade da revolicdo, garantia da sua continiidade, condi¢ao do seu futuro", Arnfred entendia, portanto, que os ideais da Frelimo e de Machel estavam em consonancia com o socialismo feminista pelo qual ela miltava na Dinamarca. Entre 1981 e 1984, ela passa a trabalhar na OMM? em Maputo, no contexto de preparacéo para uma Conferéncia Extraordinaria (a pedido da Frelimo) que deveria discutir "os problemas sociais das mulheres” em Mocambique, que concerniam as "tradig6es": poligamia, lobolo’, ritos de iniciacao, etc. Nesse contexto, investizacdes entre as populagdes nurais de todo o territério mocambicano foram empreendidas, e, em 1982, Amfred foi até Cabo Delgado, no norte do pais (local do inicio da guerra de independéncia, na qual as mulheres se engajaram ativamente). © Amfted aponta que, na época, a Organizagdo da Mulher Mocambicana se definia como um movimento de mulheres e a mesmo um "brago do Pando”. Atwalmente, a OMM ainda é uma importante ‘organizagao que nio apenas realiza politicas voltadas para as mulheres, mas possui uma impressionante capilaridade em todo o tertério mocambicano, sendo uma parte essencial de divulgacao das politicas da Frelimo, e inclusive de propaganda. ° Lobolo é uma pritica matrimonial realizada no sul de Mocambique, que envolve a oferta de bens materiais (antigamente gado, e hoje principalmente tecidos e dinheiro) pela familia do noivo a familia da noiva. Tratase de uma prética inserida nos sistemas patrlineares das sociedades do sul de Mocambique, nas quais a malher passava a residir na tera do marido, e os filhos do casal pertenciama familia patema, cas0 0 lobolo fosse realizado. O lobolo passou por un série de transformagies, mas pemmanece uma pritica mito relevante no sul do pats. Nesse primeiro trabalho de campo, ela fica impressionada com a forma como as muheres de Cabo Delgado contavam os eventos da guerra — como passaram a questionar alguns papeis que Ihe eram atribuidos pelos homens, reivindicar mais direitos, etc. — e ao mesmo tempo falavam de forma positiva sobre suas tradicdes. Parecia-Ihe muito contraditério que essas mulheres guerreiras, conscientes, emancipadas pela luta politica pudessem defender os ritos de iniciacdo, que na visio da OMM eram praticas opressoras para as mulheres. A visio da OMM nesse caso se assemelhava a do New Worens's Movement e da propria Amfred, que defendiam a teoria socialista da emancipagao da muiher: "as mulheres em Mocambique eram oprimidas pelas antigas tradicdes patriarcais, mas desde a Independéncia elas tiveram a possibilidade singular de libertacdo, emancipacio e desenvolvimento, guiadas pels ideias socialistas da Frelimo" (Amfred, 2011, p. 12, tradugao minha). Essas mulheres de Cabo Delgado nao cabiam no esteredtipo da mulher explorada, dominada e sem consciéncia das instituigGes patriarcais que a "tradicio" Ihe impde. Esse 6 0 tipo de imbréglio que Amadiume e Oyéwimi exploraram em suas criticas. ao feminismo branco ocidental, e Amfred reconhece que foi necessario reconsiderar profundamente suas ideias sobre a emancipacao feminina (tanto enquanto lutas politicas quanto enquanto base de pensamento) para que os discursos daquelas mulheres pudessem fazer sentido. Para tal, ela passou a fazer uma dupla busca, por sentidos e interpretagdes: em primeiro lugar, qual era o sentido para essas mulheres, como elas entendiam seus proprios ritos de iniciacdo; em segundo lugar, como esses ritos tinham sido interpretados pelos "outros", missiondtios cristdos, administradores coloniais, antropélogos e o Estado socialista. "A primeira litha de investigacio concernia mulheres mocambicanas, enquanto a segunda era basicamente sobre mim mesma, e as linhas de pensamento desenvolvidas na cultura e historia as quais eu pertencia” (Amfred, 2011, p.13, traducao minha). A leitura das autoras afticanas que trabalhavam com género, tais como as jé mencionadas Oyéwimi e Amadiume, e outras feministas afticanas pés-coloniais, foram fontes de inspiracdo essenciais, posto que els no apenas criticavam as _nocdes ocidentais de género, mas também sugeriam formas altemativas para pensar questdes relacionadas a homens e mulheres. Como indica Amfted, nos anos 1970, "ndo nos davamos conta que as relagdes de género poderiam ser diferentes em outras partes do mundo, e que poderiamos possivelmente aprender sobre relagdes de género mais balanceadas ao estudar outras culturas" (idem, p. 10). Invertendo as posigdes, parece-me que a perspectiva africana foi fundamental para libertar o feminismo branco (aqui encamado por Amfred) das amarras da arrogincia epistémica ocidental. A partir dessa mudanca de perspectiva, a autora consegue entdo.trabalhar analiticamente com o material etnografico que levantou durante os anos 1980 e 1990 em Mocambique, ¢ passa também a contribuir com os estudos de género africans, com foco nos debates sobre sexualidade. Mantendo-se consciente de "suas préprias linhas de pensamento", sua andlise te6rica posterior, além de dialogar fortemente com intelectuais africanas, sempre oferece um contraponto com as concepcdes ocidentais, e a pergunta “o que podemos aprender com isso?" se mantém ao longo de sua obra. Em escritos posteriores (Amfred, 2015), a autora observa que a sexualidade é ‘um assunto muito pouco tratado dentro das teorias feministas afticanas, a0 contrério dos estudos feministas ocidentais, nos quais a sexualidade aparece como um tema central. Em seus primeitos escritos sobre o tema, eh actediava que isso se dava pelo histérico colonial de fascinio pela alegada promiscuidade afticana. Ela prope, entéo, uma nova hipétese: enquanto mo Ocidente a sexualidade constituiu uma esfera de subjugacdo e objetificacio feminina (como apontou Oyéwim, na Africa a sewualidade foi — e ainda € em certa medida — uma esfera de capacidade e poder femininos. Os ritos de iniciagio femininos praticados no norte de Mocambique podem, assim, nao ser necessariamente 0 produto e reprodugéo da opressio patriarcal sobre mulheres "sem consciéncia", tomarem-se espacos de "manifestaco e criago de um poderoso universo.feminino” (Amfred, 2011, p.19). Nessa nova interpretacdo, as palavras e priticas de suas interlocutoras em Cabo Delgado nao aparecem mais como contradigées e paradoxos, elas podem finalmente ser ouvidas e levadas a sério. Consideracées Finais Com o exemplo da obra de Amired, intentei mostrar a importéncia do que chamei aqui de "perspectivas afticanas de género" para os estudos em contextos africanos. Para tal, retomei os primeiros intelectuais que propuseram essa ‘midanca de perspectiva’, olhando para a A\tica como centro da producao do préprio conhecimento, e no como um objeto do conhecimento (e exploracao) europeu. Em um segundo momento, adentrei nos debates feministas e nas proposigdes de tedricas africanas que escancararam 0 eurocentrismo especifico dos conceitos feministas que orientaram os estudos de género até a década de 1980/1990. Para a construc do conhecimento, toma-se essencial o reconhecimento das perspectivas através das quais olhamos 0 mundo. No caso dos estudos em contextos marcados pela situacao colonial, toma-se ainda mais imperativo, para no prolongar a histérica arrogincia epistémica eurocentrsta, que os estudiosos e intelectuais aprendam com as producdes e reflexdes africanas (sejam elas académicas ou nio), e sejam capazes de dialogar com elas, € nao apenas produzir discursos e interpretacdes sobre os/as africanas. Nesse sentido ¢ interessante retomar as proposigdes do antropdlogo subafricano Archie Mafeje que opera uma separacdo entre antropologla e etnografia. Para ele, a etnografia e as teorias etnogrificas que dela decorem poderiam servir como antidoto aos equivocos e abusos da antropologia, sobretudo a que foi produzida na Aftica. (Mafeje, 2008 apud Borges et al, 2015) A pesquisa etnografica cria objecGes as teorias explicativas, as tendéncias universalizantes do pensamento que Anténio Bispo chamou de "monista e linear” (2015) e pode ser, portanto, uma ferramenta para a aprendizagem @ para a produgdo de um conhecimento anticolonial ou contracolonial. Esse me parece um ponto essencial - colocado por Amadiume e Oyéwimi, e experienciado por Amfred = para 0 qual aqueles e aquelas que trabalham em contextos africanos niio podem deixar de se atentar, Essa atencdo & tanto mais pertinente quanto as formacdes e trajetérias intelectuais_nas _quais esses suieitos esto inseridos ainda esto vinculadas ao Pensamento eurocentrado e aos produtos da colonizacao, Bibliografia AMADIUME, Ifi, Male Daughters, Female Husbands: Gender and Sex in an African Society, London: Zed Press, 1987. ARNERED, Signe. Sexuality and Gender Politics in Mozambique. Rethinking gender in Africa, Suffolk: Nordiska Afrikainstitutet; Uppsala: James Currey, 2011. “Female Sexuality as Capacity and Power?: Reconceptualizing Sexualities in Africa”. African Studies Review, Vol. 58, N.3, Dezembro 2015, pp.149-170. BEAUVOIR, Simone. Le deuxiéme sexe. Paris: Gallimard, 1949 BISPO, Anténio. Colonizagdo, Quilombos: modos e significacées. Brasilia: ed. INCTI UnB, 2015. BORGES, Antonddia et al. "Pés-Antropologia: as criticas de Archie Mafeje ao conceito de ateridade e sua proposta de uma ontologia combativa". Soc. estado. [online]. 2015, vol30, n.2, pp.347-369 BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity {1990]. New York: Routledge, 2006. . Bodies that matter: on the discursive limits of "sex". New York: Routledge, 1993. DAVIS, Angela. Women, race & class. New York: Vintage Books, 1983. DIOP, Cheikh Anta. A origem dos antigos egipcios. DEM (coord.) Histéria Antiga. (Colegao Historia Geral da Africa), v.2. 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