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Capitulo 3 A FAMILIA COMO UNIVERSO MORAL “Nunca um costume é indefensivel, inferior e bastardo, para quem o segue.” Luts da Cara Cascudo Nos anos 60, um casal recém-casado migrou de Alagoas para ‘Sto Paulo. Nos primeiros meses, como tantos, instalou-se na casa do irmao do marido. Logo os dois conseguiram emprego: ele, como ‘marmotista, profissdo que exerceu ao longo desses anos como em- pregado ou fazendo bicos por conta; e ela como tecelé, profissio que abandonou quando nasceut a primeira filha, voltando a trabalhar, como cozinheira, quando a filha mais velha péde cuidar do irmao mais novo, reproduzindo a trajet6ria intermitente tipica do traba- Iho feminino remunerado. Hoje, com 51 anos, 0 pai j4 nao trabalha mais regularmente porque esté doente. Tem cirrose hepatica. O ca- sal tem sete filhos. Os dois homens so os menores e nao traba- tham. Todos os filhos estudam. A filha mais nova, com 18 anos, cuidava dos irmaos e do sobrinho, filho de uma irma solteira que saiu de casa, e fazia a maior parte do trabalho doméstico, enquanto a outras irmas revezam com a mae os momentos de emprego & desemprego, até que, estrategicamente, engravidou do namorado €e teve que se casar, indo morar com o matido na casa do sogro: Se nd fosse assim, eu nunca ia conseguir casar. ss CONT NESE SRT ‘A filha mais velha casou-se como manda o figurino, formou um micleo independente e teve duas filhas. A que jé tinha um filho saiti de casa e mora atualmente com 0 namorado, deixando o filho na casa da mae. Segundo o relato da mae, confirmado pelas filhas, uma das brigas familiares foi deflagrada pelo fato de a filha mais velha, ain- da solteira, estar conversando com um rapaz no porto. O pai co- _megou a espancé-la, acusando-a de sem-vergonha. A mie e as outras, filhas, todas crescidas, acudiram, segurando 0 pai e espancando-o até ele se render. De maneira semelhante, em outtra ocasido, 0 pai pegou um fa- ‘co —o mesmo facio com que as filhas viram tantas vezes sua mae ameacada — e veio na diregdo de uma das filhas. A mie interferiu ¢, junto com as filhas, conseguiu dominé-lo ¢ tirar-lhe 0 facio, que passou para a mao das mulheres da casa, simbolizando o momento de inversio na vida desta familia. Quem manda aqui agora somos nds, diz a mie. Com as filhas jé crescidas e trabalhando, nao precisamios ‘mais dele. Através de uma alianga com as filhas, a mae reverteu sua posi- ‘qo na familia, destituindo o pai de seu lugar. Nao aceitam mais seu dinheiro, Ele paga, no entanto, o que come. A aceitacio de sua pre~ senca na familia, entre as muitas Tazdes — afinal ele esté doente € elas cuidam dele —, envolve a exibicio cotidiana a seus proprios olhos de sua derrocada, ou melhor, de sua desonra.” Com o dinhei- ‘ro que ganha com os bicos que ainda consegue fazer, ele continua bebendo até cair. A mie, com as filhas, apossou-se da casa, cujo terreno o casal adquiriu quando 0 bairro era ainda quase mato; arru- ‘mam e planejam reformas, com seus préprios recursos, dispensan- 0 0 pai. Diz. a mie: Ew lutei tanto, construt aquilo, dei tanto... tijolinho por tijolinho, e agora deixar assim? Nao, €covnrdia, Eu vou lutar, eu quero ver de nds dois quem poste me 1. Como argumentos Pitt Rivers (1988), nos cédigos de honsa, a respostaofensiva ro est apenas no ato’em si, mas no fato de obrigar 0 ofendido a presencié-le, “Sentra ofendido, €« pedra de togie ds honra” (p17) ‘AAU Como ern 7 Sonhos que no se realizam O significado da luta que se travou dentro desta familia nao se esgota em dizer que se tratou de uma evidente revolta contra a au- toridade patriarcal. Se a explosio da revolta éontra a autoridade desmedida do pai, na atitude de enfrentamento das millheres nesta familia, reverteu de fato sua posicao, 0 que se depreende da nova situagio estabelecida? As mulheres sio ou tornaram-se “centrais” nas familias pobres? As mulheres sao ou tornaram-se “chefes de familia”? Vamos devagas. Oepisddio revela que o pai, ao longo da vida familiar, abusou das prerrogativas de sua posicio de autoridade em relacao a fami- lia, sem cumprir com os deveres que correspondem a essa posi¢do. (O dinheiro que ganhava nao era suficiente para manter sua familia e ele sempre bebeu. Diante das frustragdes e da violéncia de que foram objeto, as mulheres, como esposa e filhas (assim como os fi- Thos homens que estavam fora desse episédio especifico), reverte- ram a situagGo familiar, respondendo com uma violencia quase sem- pre muda, que passow a fazer parte da linguagem através da qual a familia se comunica, uma linguagem circular e reiterativa da pré- pria violencia. ‘As mulheres revoltaram-se contra uma autoridade desmedi- da que tornou ilegitima a obediéncia. A “boa” obediéncia, afinal, implica a “boa” autoridade, que, como define Montes (1983), se ca- racteriza por concentrar todos 0s seus valores positives no “termo médio”. A revolta deu-se dentro de um universo de valores em que a queixa se dirige & “m4” autoridade que abusa de seus direitos e descuida de seus deveres, Nao se obedece a uma autoridade que no se reconhece como legitima, A autoridade que abusa de suas prerrogativas torna-se “incapaz de se impor pelo respeito as virlu- des necessérias que devem acompanhé-la” (Montes, 1983:334). Por esse caminho, efetivamente tedefiniu-se a posicao das mulheres naquela familia, desautorizando o pai. A autoridade paterna per- deu sua forca simbélica, ineapaz de mobilizar os elementos morais| necessérios obediéncia, abalando a base de sustentacio dos pa- drées patriarcais em que se baseia a familia pobre. Mas hé, ao mes- mo tempo, um ressentimento, que denota expectativas frustradas. * ‘rea avOERSEN ST Nao precisam mais dele, mas toleram sua presenga “desnecessé- ria”. Ou precisam dessa presenca, mesmo que nao seja como elas pensam que deveria ser? Na resposta das mulheres desta familia, vitimas de uma vio- léncia quase sempre fisica, estd a “desvalorizagio” do homem que nd respondeu as expectativas depositadas nele, afirmando sua capacidade de “sobreviver” sem ele, & custa de reiterar uma impo- téncia da qual ele nio consegue escapar. Quais so, entdo, as expec tativas da mulher, e do homem em relagéo a si mesmo, que o ho- ‘mem pobre ndo consegue cumprir? (Candido (1987), em sua andlise da “familia caipira” com seus valores tradicionais e padrdes patriarcais, assim como em seu estu- do sobre a familia brasileira (Candido, 1951), argumenta que esses padres perdem sentido com a urbanizagao e modernizacao do pais. Nem todas as anélises indicam esse caminho. Estudos recentes so- bre os pobres urbanos mostram, ao contrério, a forga simbdlica des- ses padres ainda hoje, reafirmando a autoridade masculina pelo papel central do homem como mediacio com o mundo externo, € fragilizando socialmente a familia onde nao hé um homem “prove- dor”, de teto, alimento e respeito? Quando sugeri uma entrevista com um homem nascido no Piaut, criado pelos compadres do pai, desde que sua mae arrumou outro amante e me largou com esse casal que me criou, ele nao sé aceitou prontamente a sugestéo, como me convidou para um almogo: Venha conversar, conversar & comigo mesmo, & um przer, mas vem edo & de estimago vazia. Voc€ vai encher o estémago € aqui na minha casa. le teve%4 thos, mas criou apenas 11, 0s que viveram. atual- ‘mente casado pela segunda vez com uma mulher trinta anos mais nova. Comegamos a entrevista (gravada). Ele, na vagareza de quem relata um grande feito, nos contava sua vida, e estava entusiasma- dissimo por poder conté-la. Naquele momento, seus gestos, a 2. A importinda do homnem como “provedior” da familia, no sentido econtinica € ‘moral (Ze tev, alimento eespst), aparece nos trabalhos de Neves (1984), Date (1986) Zaluar (1985), Costa (1953) ¢ em meu trabalho anterior (Sati, 19853). | FAMun cone erL80 7 inflexio da sua voz, sua postura corporal tinham uma altivez sin- gular. Falava dos dois prazeres de sua vida, danca e mulher: Danger, ew dangava muito...e muther, sabe como é que é, né? Dizia que mulher é a maior graca que Deus pés na terra, orgulho- so de sua virilidade, reafirmada por sua disposigao para trabalhar. Contava que dangava a noite inteixa, Lule de manhd estava Id, 6, pronto para trabalhar! Perder meu compromisso por causa de farra? Nunca! Por causa de cansa- 60? Eu mio sabin 0 que era cansago! Relatava, com a preciséo das datas que se atribuem aos gran- des fatos histéricos, cada um dos trabalhos que fez antes de chegar a Sao Paulo: [No dia 21 de maio de 1955, comecei a trabathar no plantio de fumo [.. No dia 21 de juno do mesmo ano terminamos aquele servigo pesado, Falava de quando ainda levava vida de pedo sozinho no mundo, ressaltando em tom grandilogtiente os valores morais que 0 sus- ‘tentaram nas adversidades de sua vida —a coragem, a honra e a fe em Deus: ‘Nunca tive medo de nada na vida. Eu fui embora de cnsa eeu disse aos meus pais: Eu vou embora, se ex estiver na pior, esquegno seu filo, eu no volt. Tem gente que sai de easa em busca dde aventura e encontra a desaventura e volta correndo para casa, no en- Jfrenta! Eu fuio contrrio: eu parti para a aventura, encontreia desaventura, ‘mas nfo volte para casa, enfrentei, no duro. Dentro de mim eu dizia: confio em Deus que isso passa. ‘Oestilo grandilogiiente do discurso desse homem, na afirma- ‘so da “moral de homem", fala das expectativas que tém os ho- mens em relagdo a seu proprio desempenho, numa tentativa de ‘manter a auto-imagem diante das frustragbes. A forma narrativa de seu relato — ressaltando sempre suas qualidades morais enquanto falava de sua vida de pedo, dos pagamentos que lhe foram prome- @ ‘i ANDERSEN SRT tidos e nao feitos, dos filhos perdidos por falta de assisténcia médi ‘ca —relaciona-se as caracteristicas do discurso “popular”, destaca- das por Montes (1983) em sua andlise dos dramas representados nos circos-teatros ne periferia de So Paulo. No discurso dos atores e do puiblico, segundo a autora, a ficgio se separava da realidade por um “fio ténue que se esgarcava e acabava por nao mais distin- gui-los”, “Quase como se narrat a experiéneia vivida conferisse ao real um ‘efeito suplementar de realidade’, ao ser traduzido numa forma que enfim the conferia a desejada e merecida dignidade, para além da banalidade prosaica do quotidiano sem relevo” (Montes, 1983:184), Ele é funcionatio piiblico desde quando chegou em So Paulo ‘em 1963, trabalhando como garagista. Era o seu dia de folga. Sen- tou-se devagar e altivo em sua poltrona, feita de uma imitago de couro, rasgada e quebrada, apoiada num tijolo. Lembrei-me das observagdes de Cémara Cascudo (1987) sobre autoridade e pressa, ‘em que diz que socialmente a lentidao é dignificante e a velocidade inversamente proporcional & hierarquia, fazendo com que os su- balternos transitem “na ligeireza dos movimentos a prontidao da ‘obediéncia, disciplina, submissao”. A vagareza do pai, que naque- ies gestos reafirmava sua autoridade Sobre a familia, foi comple- mentadla pelo gesto do filho mais novo que, prontamente, sem que qualquer palavra Ihe fosse dirigida, veio trazer os chinelos ¢ colo- cou-os nos pés do pai, num gesto desta etiqueta tipica do cotidiano das familias pobres, que chamo de patriarcal, porque reitera a hie- rarquia entre o homem e a mulher, entre 05 adultos e as criangas e reafitma essas fronteiras a cada gesto, mostrando ao mesmo tempo convengGes tradicionais, pouco ligadas ao utilitarismo urbano. Sua mulher e as fihas ndo se sentaram & mesa para comer: como é de habito, vo comendo, beliscando a comida enquanto cozinham ou fazem seu prato e comem sem se sentar A mesa; 0 marido e os {ilhos sdo servidos, eles sim sentados & mesa. Os agregados, aqueles que de alguma maneira esto numa situagao de favor ou de hierar- quia, como os recém-chegados a cidade, tampouco comem & mesa, ajeitam-se sentando no brago de alguma poltrona, em algum banco ou cadeira, 0 prato fundo de comida no colo, a colher na mao. A tua como EHO a Senta & mesa, dentro da etiqueta dos pobres, é um habito que responde as hierarquias que dividem seu mundo simbélico, sendo seservado ao homem, as criangas pequenas e as visitas de honra. O fato de as criangas estarem incluidas liga-se & sua importancia como depositérias. das expectativas familiares. Nessas regras implicitas na convivéncia cotidiana percebe-se a demarcagao da hierarquia familiar, reafirmando as fronteiras entre masculino e 0 feminino e conferindo ao homem um lugar de autoridade na familia que ele, trabalhador e pobre, nao encontra no mundo da rua. As dificuldades encontradas para manter 0 padrao de desem- penho que se espera do homem na familia pobre, por sua condigio de trabalhador e pobre, fazem com que a dimensio da pobreza no contexto familiar apareca mais explicitamente no discurso masculi- no, jé que os homens se sentem responsaveis pelos rendimentos familiares. E sobre ele que recai mais forte 0 peso do fracasso. Eo homem quem falta com sua obrigagio quando o dinkeiro nfo di. Assim € que na tentativa de “conferir dignidade ao cotidiano sem relevo” destacam-se as qualidades morais que sustentam o homem que ¢ ho- ‘mem nas situagdes de dificuldade, estruturais em suas vidas. Em contrapartida, a mulher, em seu desempenho como boa dona-de-casa, faz com que apesar de pouco, o dinheiro dé. Isso implica controlar © pouco dinheiro recebido pelos que trabalham na fami- lia, priorizando os gastos (com a alimentacao em primeiro lugar) € driblando as despesas. Na prioridade da alimentagio entre os gastos, os que trabalham devem comer mais do que os outros adul- tos, e os homens, trabalhadores/provedores, comem mais que as mulheres: Eu quero que ele (0 marido) coma, porque ele vai trabalhar:? (Os papéis familiares complementam-se para realizar aquilo que importa para 0s pobres, “repartir 0 pouco que tm’. Isso, entretan- to, nao se limita a familia, Na mesma medida em que a alimentacio €a prioridade dos gastos familiares, oferecer comida & também um valor fundamental, fazendo os pobres prédigos em oferecé-la. 3. Sobre as pticns alimentares, vet, alm le Candido (1987), Woortmann (1986) 2 ‘rei nse sa (Quando fui visitar uma familia em que a mae idosa é separa- da, 0s filhos que moravam com ela estavam desempregados, todos vivendo com a aposentadoria da mae, que nao chegava nem a um salério minimo. Excepcionalmente, fizemos uma entrevista com um. dos filhos no fim ca manha (foi o horério sugerido para que eu pudesse ver a filha casada, que morava longe e estaria I naquele momento). A mae ofereceu-nos café e suco de laranja e desculpou- se insistentemente porque 0 suco estaoa ruim. Era 0 almogo que fal- tava, Falou de como o dinheiro néo dava nem para comprar comi- da: A gente traz as compras na mio, nfo precisa nent sacola, E me dizia: Vocé deve estar morrendo de fome! Era sua no apenas a fome, mas a privagio da satisfacio de-nos oferecer comida, Nao ter 0 que comer, a fome, significa nao apenas a brutal privago material, mas a pri- vagio da satisfagao de dar de comer, que vem da realizacdo de um valor moral, deste “repartir 0 pouco que se tem” e também da ne- cessidade de exibigio de um bem to fundamental, cuja ameaga de falta paira sempre no ar. Lugar de homem e lugar de mulher Quem casa, quer casa. Comecemos por ai. Com 0 casamento, 0 ideal a formagao de um nticleo independente, porque uma fami- lia precisa de uma casa, alids, condigdo para viabilizar uma familia: Eu acho que, quando a gente nfo tem uma casa, a gente ndo tem cabeca, bs ‘vezes, nem para a fami, sabe? ‘Tendo uma casa, ¢ gente dé mais atenco para a feria, para o marido, para {filio, enfim, em tudo, né? ‘A casa é onde zealizam o projeto de ter uma familia, permitin- do, como observa Woortmann (1982), a realizagao dos papéis cen- trais na organizacao familiar, o de pai de familia eo de mae/dona- de-casa. Esse padrao ideal pressupGe o papel masculino de prover teto e alimento, do qual se orgulham os homens: O dever do homem & trabalhar, trazer o dinheiro em cnsa e ser um pai de familia para dar respeito na casa dele... tendo moral ania como ese.no 5 Assim, pata constituir a “boa” autoridade, digna da obedién- cia que Ihe corresponde, no basta ao homem pegar e botar comida dentro de casa e falar que manda. Para mandat, tem que ter cardter, mo- ral, Assim, o homem, quando bebe, perde « moral dentro de casa. No consegue mais dar ordens. Como sintetizou Costa (1993), em consé= nancia com a argumentacao deste trabalho, o ganho e a honra mes- clam-se para compor a autoridade paterna. Numa relago comple- mentat, para as mulheres o papel de dona-de-casa é fonte de igual sentimento de dignidade pessoal, como comentarei no proximo capitulo, na andlise do trabalho doméstico. A casa é, ainda, um espago de liberdade, no sentido de que nela, em contraposico ao mundo da rua, so donos de si: aqui eu ‘mando O fato de o homem ser identificado com a figura da autorida- de, no entanto, nio significa que a mulher seja privada de autorida- de, Existe uma divisio complementar de autoridades entre 0 ho- mem e a mulher na familia que corresponde & diferenciagao entre casa e familia. A casa é identificada com a mulher e a familia com 0 homem. Casa e familia, como mulher e homem, constituem um par ‘complementat, mas hierarquico. A familia compreende a casa;a casa esté, portanto, contida na familia: [Nao adianta ter uma case superbonitona e ndo ter unio na familia. Minha casa é pobre, mas ndo a trocaria por nenhuma outra se ndo pudesse viver com minh familia, Que adianta uma casa onde ndo fate nada, mas tem solid? ‘Em consondncia com a precedéncia do homem sobre a mulher eda familia sobre a casa, o homem é considerado o chefe da familia € amulher a chefe da casa. Essa diviséo complementar permite, enti a realizagio das diferentes fungGes da autoridade na familia. © ho- ‘mem corporifica a idéia de auttoridade, como mediacio da familia ‘com o mundo externo. Ele ¢ a autoridade moral, responsdvel pela respeitabilidade familiar. Sua presenca faz da familia uma entidade moral positiva, na medida em que ele garante o respeito. Ele, por- 4. Sobre a casa neste baer, ver Caldcira (1986); sabe o significado da cass em relae 08 familia, ver Woortmann (1982) ¢ meu trabalho anterior (at, 19850. “ CNT NESE SAT tanto, responde pela familia. Cabe & mulher outra importante di- mensao da autoridade, manter a unidade do grupo. Ela é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu lugar. E a patroa, designagdo que revela o mesmo padrao de relagées hierérquicas na familia e no trabalho. A distribuigio da autoridade na familia fundamenta-se, assim, nos papéis diferenciados do homem e da mt ‘minina vincula-se 3 valorizagao da mae, num universo simbélico fem que a matemidade faz da mulher mulher, tornando-a reconhe- ida como tal, sengo ela ser uma potencialidade, algo que nao se completou.® Outro importante fundamento da autoridade da mu- Iher est no controle do dinheiro, que ndo tem relagdo com sta ca- pacidade individual de ganhar dinheiro, mas é uma atribuicdo de set papel de dona-de-casa (Zaluar, 1985). A diferenciacéo entre um papel interno feminino e outro mas- culino, relacionada com 0 mundo de fora, foi assim expressa por uma mulher casada: Eu acho que o humem tem que entrar com tudo em casa e a mulher saber controle. ‘Comentando as desavengas de sua vizinha depois que ficou vitiva, outra moradora concluiu: no tina mais homem para contro- lar. Analisando as diferentes percepebes da casa pelo homem e pela mulher, Scott (1990) observou o mesmo padrao, mostrando que no discurso masculino a casa deve estar “sob controle”, enquanto as mulheres ativamente controlam a casa, Quando nao é possivel ter uma casa, comprada, cedida ou alugada, formando um niicleo independente para a realizacéo das diferentes atribuigbes do homem e da mulher, a rede familiar se mantém na cena cotidiana. O novo casal fica na casa dos pais de ‘um dos cOnjuges, criando uma situagio sempre concebida como proviséria, porque é horrivel morar na casa dos outros, como expres- sou a mulher que ficou alguns meses na casa do cunhado quando chegou a Sao Paulo, 5.0 trabalho de Daster (1983) mostra estigmatizacto da mulher sem fis, com prada "figueia do Inferno”, drvore som frutos. ‘aula cowo ee40 6 Nesses casos, a tendéncia, pelo menos no primeiro casamento, onde as expectativas de realizacio do padrao ideal so maiores, é que fiquem na casa dos pais do marido, respondendo a atribuicéo masculina de prover teto.* Nos casos em que isso nao é possivel, a solidariedade familiar leva o novo casal a ficar na casa da mulher. Essa tendéncia observa-se sobretudo nas uniées subseqiientes a primeira, quando a mulher separada se vincula a seu grupo de ori- gem e poderd manter esse vinculo mesmo com a nova unio, para estar perto da rede de apoio a seus filhos. Embora quem case queira casa, os vinculos cam a rede fami- liar mais ampla nao se desfazem com 0 casamento, pelas obriga- ‘Ges que continuam existindo em relacdo aos familiares e que nao se rompem necessariamente, mas so refeitas em outros termos, sobretudo diante da instabilidade dos casamentos entre os pobres, dificultando a realizagao do padrao conjugal.” A familia ultrapassa os limites da casa, envolvendo a rede de arentesco mais ampla, sobretudo quando se frustram as expectati- vas de se ter uma casa onde realizar os papéis masculinos e femini- nos, Nesses casos, comuns entre os pobres, pelas dificuldades de atualizar o padrio conjugal de familia, ressalta a importancia da diferenciaco entre a casa e a familia para se entender a dinamica das relagGes familiares* (Durham, 1983; Fonseca, 1987; Woortmann, 1982 e 1987). As familias pobres dificilmente passam pelos ciclos de desen- volvimento do grupo doméstico, sobretudo pela fase de criacio dos filhos, sem rupturas (Neves, 1984; Fonseca, 1987; Scott, 1990), 0 que implica alteragées muito freqiientes nas unidades domésticas. As dificuldades enfrentadas para a realizacao dos papéis familiares no nticleo conjugal, diante de unides instaveis e empregos incertos, \ 6. Contaslando, portato, tendénca AGxorilocalidad ou sj, a residéncia do novo ‘xsl junto ao grupo familar da esposa), obsoFvada et tabalhos que enfaticam a “cento- lidade" da muther na famiia (Woortmann, 1987), 7. Acredito que, na sociedad brasileiza, mesmo nas eamadas médias © alas, ent f= ‘go de wma dindmica distinta que nfo cabe aqui tratar,tampouco a familia existe como ama conjugal 8. Aimportineia desta dstngdo fo enfatzada por Meyer Fortes (1958), a0 anaisar os ciclos de desenvalvimento do grupo doméstic. 6 Corea anon SRT Jevam a desencadearem-se arranjos que envolvem a rede de paren- tesco como um todo, para viabilizar a existéncia da familia, tal como a concebem. literatura sobre familias pobres no Brasil confirma a possibil dade de se estabelecer uma relagdo entre as condigées socioeconémi- cas e a estabilidade familiar, no sentido de os ciclos de vida familiar se desenvolverem sem rupturas (Agier, 1988 e 1990), Os trabalhos de Macedo (1979) e Bilac (1978) indicam que, em grupos de operérios economicamente mais estaveis, ha maior possibilidade de realizacao do padrao de complementaridade de papéis sexuais no miicleo do- ‘méstico. A literatura mostra, em contrapartida, a relagao entre pobre za. chefia feminina Barroso, 1978; Castro, 1989). Isso significa dizer que as familias desfeitas sao mais pobres e, num circulo vicioso, as familias mais pobres desfazem-se mais facilmente. Pesquisas demonstram como a pobreza afeta primordialmen- te o papel de provedor do homem na familia (Montali, 1991; Telles, 1992). Lopes e Gottschalk (1990) mostram que “as familias chefia- das por homens, em particular as muito jovens com filhos, parecem ser especialmente sensiveis a recessdo e & recuperagdo econémicas”. A .vulnerabilidade da familia pobre, quando centrada no pai/ provedor, ajuda a explicara freqiiéncia de rupturas conjugais, diante de tantas expectativas no cumpridas, para o homem, que se sente ‘fracassado, ¢ para.a mulher, que vé rolar por guia abaixo suas chances de ter alguma coisa at-avés do projeto do casamento (Rodrigues, 1978; Salem, 1981; Sarti, 1985a). Como 0 outro lado da moeda, Lopes e Gottschalk (1990) mos- ‘tram que as familias chefiadas por mulheres estiio numa situagao estruturalmente mais precétia, mais independente de variagoes con- junturais, quando comparadas com as familias pobres, equivalentes no ciclo familiar, que tém chefe masculino presente, dadas as dife- rengas nas formas de insergao da mulher no mercado de trabalho.’ 9, A estruturagio do mercado de trabalho a partir da divisio sexwal do trabalho, afe- tando toda sua composi, sléros, qualifleato, formas de inserglo,alocaglo em mo- iments de cise et, tem slo objeto de uma importante links de pesquisas, Ver para refe- ‘Sncas:Bruschin (1988), Hata e Humphrey (1983 e 1984), Tells (1982) e Sarl (1985) A aM com esELH0 o Sea vulnerabilidade da mulher esté em ter sua relagdo com 0 mundo extemo mediada pelo homem, o que a fragiliza em face deste mundo que, por sua vez, reproduze reitera as diferenciagoes sexuais, 0 status central do homem na familia, como trabalhador/ provedor, toma-o também vulnerével, porque o faz dependente de condigdes externas cujas determinagdes escapam a seu controle. Este fato torna-se particularmente grave no caso da populagio pobre, exposta a instabilidade estrutural do mercado de trabalho que a absorve, Deslocamentos das figuras masculinas e femininas "Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econd- mica da familia, ocorrem modificagSes importantes no jogo de rela- Ges de autoridade, e efetivamente a mulher pode assumir 0 papel masculino de “chefe” (de autoridade) e definir-se como tal. A auto- “ridade masculina é seguramente abalada se o homem nio garante © teto eo alimento da familia, fungdes masculinas, porque o papel de provedor a reforga de maneira decisiva. Entretanto, a desmorali- zagio ocorrida pela perda da autoridade que o papel de provedor atribui ao homem, abalando a base do respeito que Ihe devem seus familiares, significa uma perda para a familia como totalidade, que tenderd a buscar uma compensagio pela substituicdo da figura masculina de autotidade por outros homens da rede familiar. Cumprir o papel masculino de provedor nda configura, de fato, ‘um problema para a mulher, acostumada a trabalhar, sobretudo quando tem preciso; para ela, © problema esté em manter a dimen- ‘so do-tespeito, conferida pela presenca masculina, Quando as mu- Theres susteniain economicamente suas unidades domésticas, po- dem continuar designando, em algum nivel, um “chefe” masculi- no, Isso significa que, mesmo nos casos em que a mulher assume 0 papel de provedora, a identificagao do homem com a autoridade ‘moral, a que confere respeitabilidade a familia, néo necessariamen- tese altera, Os diversos aspectos em que o homem exerce sua autorida- de, garantindo os recursos materiais, o respeito e a protecio da far miflia, enquanto provedor e mediador com 0 mundo externo, po- a CT ANDERSEN ST dem estar alocados em diferentes figuras masculinas. Isso aconte- ce particularmente nos casos de separagio conjugal e de novos ca- Samentos, em que o nove marido nao necessariamente ocupa o lu- ~\ (gar masculino em relagao aos filhos de sua mulher. Os freqiientes casos de separacao e a freqiiente ocorréncia de gravidez entre as. adolescentes —cujo filho tende a ficar na casa dos avés, que o criam com ou sem a mae —levam a uma diviséo dos papéis masculinos e femininos entre diversos homens e mulheres na rede familiar, dei- xando de se concentrar no nticleo conjugal. A sobrevivéncia dos grupos domésticos das mulheres “chefes de familia” é possibilitada pela mobilizagao cotidiana de uma rede familiar que ultrapassa os limites das casas. Nesses deslocamentos, filho mais velho'se destaca como aquele que cumpre © papel de cchefe da familia. S&0 os casos que Salem (1981) apropriadamente cha- mou de “filhos.eleitos. O trabalho de Agier (1988, 1990), feito em Salvador, e o de Fonseca (1987), feito em Porto Alegre, demonstram ‘o mesmo padrao, que faz lembrar as observacies de Héritier (1975) sobre a estreita dependéncia entre lacos consangiiineos e lacos con- jugais em qualquer sociedade. Segundo essa autora, hé uma rela- go pendular e inversa entre esses dois termos, sendo que ao enfra- quecimento de um tipo de vinculo corresponde o fortalecimento do outro. Tal como acontece o deslocamento dos papéis masculinos, os Papéis femininos, ne impossibilidade de serem exercidos pela mac- esposa-dona-de-casé, so igualmente transferidos para outras mu- Iheres da familia, de fora ou dentro da unidade doméstica. O exer- cicio dos papéis sexuais, nos casos em que se desfaz a relagao con jugal, passa para a rede familiar mais ampla, mantendo 0 principio da complementaridade de papéis, transferidos para fora do micleo conjugal. Nesses casos, além dos familiares consangiiineos, tem papel importante a instituigao do compadrio. A rivalidade entre consangiiineos e afins, ressaltada por Fon seca (1987), embora exista, ndo impede a solidariedade nesta rede ‘onde se deslocam os papéis. As relagdes entrecruzam-se, fazendo ‘com que as regras de obrigagio prevalecam sobre a rivalidade refe- ida e Jevando a cooperacao. Assim, a avé paterna pode cuidar dos netos, enquanto a ex-nora trabalha. Nesse caso, 0 cruzamento dé-se | Faniua conn eseL¥0 8 também pelo principio da diferenciagéo de género e a rede femini- na alterna-se no cuidado das criancas. Nos casos de viuvez ou separacdo sem nova unio, a mae tor- na-se a figura aglutinadora do que resta da familia, e sua casa acaba sendo o lugar para onde acorrem os filhos nas situagdes de desam- aro (desemprego, separagdes conjugais etc). Sendo o ponto de re- feréncia para toda a familia, a mae € devido um respeito particular — sobretudo se ela tiver uma idade mais avancada — que tem 0 sentido de uma retribuigéo do filho 4 mae que 0 criou, como no relato de Hoggart (1973) sobre 0 respeito & mde nas lasses traber Ihadoras inglesas. Se a comunicagio dentro da rede de parentesco revela o papel crucial da mae, conforme observa Woortmann (1987), isso nao sig- nifica “centralidade” da mulher na familia mas o.cumprimento de seu papel sexual, de mantenedora da unidade familiar, numa_es- tritura que ndo exclui o papel complementar masculino, desloca- do para outros homens que nao o pai. Dentro desse universo simbélico, ressurge entre os pobres ur- bbanos a clAssica figura do “irmao da mae”. Sobretudo nos momen- tos do ciclo de vida em que o pai da mulher jé tem uma idade avan- sada e no tem mais condigdes de dar apoio, o irmao surge como a figura masculina mais provavel de ocupar o lugar da autoridade masculina, mediando a relacéo da mulher com o mundo externo e garantindo a respeitabilidade de seus consangiifneos. Woortmann (1987) e Fonseca (1987) reconhecem também obrigagSes do irmao de uma mulher para com ela, como uma espécie de substituto do marido, assumindo parte das responsabilidades masculinas quan- do a mulher é abandonada. Nas familias que cumpriram sem rupturas os ciclos de desen- volvimento da vida familiar, o pai/marido tem papel central numa relagio complementar e hierérquica com a mulher, concentrada no niicleo conjugal, ainda que essa situagio nao exclua a transferéncia de atribuigGes a rede mais ampla, em particular, quando a mae tra- balha fora; nas familias desfeitas ¢ refeitas, os arranjos deslocam-se :nais intensamente do miicleo conjugal /doméstico para a rede mais ampla, sobretudo para a familia consangiiinea da mulher. Esse deslocamento de papéis familiares nao significa uma nova estrutura, mas responde aos principios estruturais que definem a familia entre os pobres, a hierarquia homem/mulher ¢ a diferen- ciagio de papéis sexuais com a divisio de autoridades que a acom- Nao é, portanto, necessariamente o controle dos recursos in- temos do grupo doméstico que fundamenta a autoridade do ho- ‘mem, mas sim seu papel de intetmedisrio entre a familia €.0 mun- do extemo, em seu papel de guardiao da respeitabilidade familiar. fundamento desse lugar masculino est numa representacio s0- ial de género, que identifica o homem como a autoridade moral da familia perante 0 mundo extemo. Diz respeito & ordem moral que organiza a familia, portanto, a uma razao simbélica, usando a for- { mulagio de Sahlins (1979), que se reatualiza nos diversos arranjos | feitos pelas familias com seus parcos recursos. papel fundamental da mulher na casa dé-se, portanto, dentro cde uma estrutura familiar em que o homem é essencial para a pré- pria concepeao do que ¢ a familia, porque a familia é pensada como uma ordem moral, onde o homem representa a autoridade. Mesmo quando ele nao prové a familia, sua presenga “desnecessaria” conti- rua necesséria. A autoridade na familia, fundada na complementari- dade hierarquica entre o homem e a mulher, entretanto, nao se reali- za obrigatoriamente nas figuras do pai e da mae. Diante das freqiien- tes rupturas dos vinculos conjugais e da instabilidade do trabalho «que assegura o luger do provedor, a familia busca atualizar os papéis que a estruturam, través da rede familiar mais ampla. ‘A familia pobre no se constitui como um nticleo, mas como uma rede, com ramificages que envolvem a rede de parentesco ‘como um todo, configurando uma trama de obrigagées morais que enreda seus membros, num duplo sentido, ao dificultar sua indi- vidualizacao e, a0 mesmo tempo, viabilizar sua existéncia como apoio e sustentacao bésicos. Essa rede que constitui a familia pobre, através da qual as rela- (Ges familiares se atualizam, permite relativizar o sentido do papel central das mulheres na familia, reiteradamente destacado na lite- ratura sociolégica e antropolégica sobre as familias pobres no Bra- sil (Barroso, 1978; Figueiredo, 1980; Neves, 1984; Woortmann, 1987; A pat coo PRO n Castro, 1989; Scott, 1990). Nao se trata de contrapor normas “pa- triarcais” e préticas “matrifocais”, como propde Woortmann (1987), na medida em que as préticas se definem articuladas a normas € valores sociais. A prética contém em si a norma, em sua forma positiva ou como transgressao. Pela forte demarcacao de género e pelas dificuldades de realizac3o do modelo nuclear, ndo necessa- riamente as figuras masculinas e femininas so depositadas no par pai/marido e mae/esposa, mas sao transferidas para outros membros da rede familiar, reproduzindo esta estrutura hierérqui- ca basica." Antigamente era 0 homem que mandaoa na casa, disse uma mu- Ther, casada pela terceira vez, com um filho de cada uniao, -1s6 que, de wns Fempos para cf, quem esté mandanco mais éa mulher. no sei se € falta de trabalho, ou sdo 0s homens mesmo que estio muito acomovlados.. agora tem. como diz? Os direitos sfo iguais.. mesmo a ‘mulher que no trabalha, ela tom mais poder do que antes, no seo que etd acontecendo com as geragdes de agora, as homens nfo esto querendo muta responsable, eles esido deixando tudo nas costas das mulheres. E eles saber que as mulheres vo a lta e fem homvem que nun td nem a. Antigamente aparece aqui como um tempo idealizado, em que as mulheres nao tinham sobre suas costas o peso da responsabili- dade da familia que, em sua representagao, envolve a complemen- taridade entre o homem e a mulher. Essa situaco de uns tempos para ci envolve uma permanente ambivaléncia, em face das expectati- vas frustradas, dos arranjos compensatérios e dos beneficios im- previstos que podem advir das novas situagdes criadas. Assim & que, se 05 direitos sio iguais e a mulher hoje tem mais poder, isto & vivido de forma ambivalente, ndo necessariamente como uma te- versio dos papéis familiares, mas como uma reafirmagio do fra- casso masculino, diante das dificuldades do homem de exercer um. papel no qual estao depositadas as expectativas familiares, seja por razées que Ihe escapam, falta de trabalho, ou por razBes que Ihe di- zem respeito, porque estdo acomodados mesmo, sobre as quais ele tem. ‘uma responsabilidade moral. 10, Sobre o carster hierdrquicoe patiarcal da famfla na sociedade brasileira, ver @ iscusefo de Almeida (1987) « de Da Matta (1957) a Cn RESON SAT As expectativas frustradas instauram um mecanismo, do qual os homens e as mulheres so ciimplices sem 0 saber necessaria- ‘mente, que reitera as atribuigdes masculinas e femininas, ainda que dificilmente sejam cumpridas nos arranjos cotidianos. Ambos, ho- mens e mulheres, acabam enredados nesse emaranhado de expec- tativas a que ndo conseguem responder. Ele, fncassado, tem no al- coolismo o desafogo a seu alcance e ela se frustra por nao poder ter o homem e a situago familiar esperados. Nessa concepgao moral da familia, diante do homem que representa a autoridade e que no cumpre o papel esperado — infiel, que bebe, que nao traz dinheiro pata casa —, a mulher acaba tendo um acentuado papel ativo nas decisdes familiares, sem que, no sentido inverso, 0 homem tenha ‘modificado seus papéis familiares. Diante dele, que socialmente tem sobre ela uma autoridade que nao se justifica a seus olhos, ela exibe sua disposigio de se virar, de ndo precisar mais dele, como uma vin- ‘ganca, reiterando o fiacasso dele e a frustracao de ambos. lugar das criangas ‘Quem casa, quer casa, mas no apenas isso. O projeto do casa- ‘mento, em que esta implicita a constituigdo de uma familia, é asso- ciado A idéia de ter filhos (Sarti, 1985a). E inconcebivel formar uma familia sem 0 desejo de ter filhos. A idéia de familia compée-se, entio, de trés pecas: o casamento (0 homem e a mulher), a casa e os fithos. ‘A pessoa que note fio, no tem vida. Familia sem iho, ew acho que é tu fruto sem caine. uma droore que morreue que nio tem fruto ne- rum. Seles cis ali urea casa que nem dus estacas. Sé come e bebe, trabalha e dorme, pr gud? E eles flere esse lar para qué? Dapois que voc® tem um iho, woe lata por algum obetco. A ma ta sft por no ter um ftho para cuir dela Entre as relagies familiares, é sem duivida a relagéo entre pais € filhos que estabelece o vinculo mais forte, onde as obrigacdes morais atuam de forma mais significativa. Se, na perspectiva dos pais, 0s filhos so essenciais para dar sentido a seu projeto de casa- mento, “fettilizando-o”, para nao serem uma droore seca © outras FAM COMO esELHO n tantas metéforas que exemplificam a analogia da familia com a na- ‘tureza, dos filhos é esperada uma retribuico, que existe como com- promisso moral: Eu aprendi iso do meu aod e eu acho que dé resultades:criar elas sem esperar recompenst, porgue se elas [as filas] flzerem algo para mim, gue 8 por eas, de agraecimento por elas mesme, delas ver meu esfrgo para com eles. Retribui-se moralmente, se a mile ou o pai vier « precisar, ou sendo ‘um bom fllho isto &, honesto,trabalhador: eu jf acho um grande beneficio.. Isso € 0 que se espera dos filhos adultos; das criangas espera- se que obedecam simplesmente. Hé uma forte hierarquia entre pais, e filhos, e a educagio € concebida como o exercicio unilateral da autoridade." As criangas gozam, no entanto, de certas regalias. Co- ‘mem a mesa e, junto com os trabalhadores, tém prioridade na dis- tribuicéo da comida. O valor dado ao filho na familia aparece na prodigalidade com que se comemora seu primeito aniversério.” As ctiangas vao perdendo suas regalias, & medida que adquirem con- ices de repartir as obrigagdes familiares, assemelhando-se ao es- tatuto dos outros familiares. Pode-se dizer que o que define a crian- tre 08 pobres,-é que ainda nao participam, das obrigagies fa- smiliares, no frabalham, nem se ocupam das atividades domésti- ‘cas, etapa.cujo inicio depende das condigées de vida familiares, tor- nando dificil delimitar a-“infaneia”-entre.os pobres, A regra é que as criancas desde muito cedo, com 6 ou 7 anos, tenham atribuicdes dentro da familia (Dauster, 1992). Seus intimeros jogos e brincadei- ras alternam-se com as freqiientes atribuigdes que Ihes sao designa- das, como ir até a venda, dar recados, buscar auxilio. 1. Na forma como siotratadas s ciangas aparece a reproduclo do pad unite tal de exerefcio da autoridade que as insttuigbes publicasreervam aos pobre, seus pais, cevidenciando a lagi entre a ecucagio exerico de uma eidadana democrtin. Moraes (1994) desenvolve esse problema, ressltando aimportinca da “boa infanca para o futuro ‘idadio" e mostrando que as raizes da privagio, que difiulta 0 exercicio da cidadania, ‘esto Tonge de eerem materiaise que, quand ascaréncashisicascomecam no planoatetvo, difcimente os projetos de democratizagio, por melhor intenconados que sejamy conse- ‘uem romper as resisténcas, 12, Beta comemoragio parece-me também associada a0 sucesso da sobrevivéncis da ceianca, numa populasdo ainda mareada pela acorrncia de martes prematires ” Ting aNoense Se ‘Uma das delimitagSes do que é ser crianga diz respeito a uma mudanga no exercicio unilateral da autoridade. Criangas séo aque- les que podem levar surra, em comparagzo com os jovens, que jé tem ‘condigies de reacfo, tal como aconteceu na familia em que as filhas crescidas fizeram uma alianca com a mae contra a auloridade des- medida do pai. Uma dessas filhas, uma jovem de 19 anos, assim expressou essa diferenca de condigdes: Nas criancas, sim, vamos dar umas palmadas de vez em quando, agora com fovens ndo & assim, jovens se trata com conoersa, com conscientizagdo. Filhos, como o casamento, significam responsabilidade, uma ca- tegoria moral que se opée, para os pobres, & de yaidade, Uma mu- Iher cuja filha engravidou, solteira e com 16 anos, argumentou que sua filha deveria ter o filho, e nao abortar, para aprender o que éa vide. \ Os filhos do & muther e ao homem um estatuto de maiorida- de, devendo torné-los responsdveis pelo prdprio destino, o que implica idealmentese desvincular da familia de origem e constituir novo micleo familier. O filho pode, ento, tornar-se um instrumen- to.para essa desvinculagao, ‘Uma mulher hoje casada, com uma filhinha de cinco anos, con- tava que, quando morreu sua mae, 0 pai reuniu todos os fills para comunicar quem iria, a partir daquele momento, ficar como dona-de- casa. O lugar coube a ela, filha mais velha. Além desse papel, ela eo pai toraram-se os principais arrimos financeiros da familia. Se- gundo seu relato: Eu precisaoa fazer alguma coisa da minha vide...ew queria ensar.. At flei ‘com meu pai, ele me acheon muito nova para casar e eu praticamente era o ‘brago dieito dele Como jié estava camsada de trabathar para a familia, resolveu sair com 0 namorado e ir para um motel: Vow ver se eu arrumo uma barriga e verse eu caso répido, Apesar da relutancia do namorado, que temia a reagdo do pai, ela consegui seu intento. Engravidou e 0 pai teve que aceitar que ela deveria se casar; criando seu micleo independente. Subsumida Fa con SHO 5 por sua posigo essencial na hierarquia familiar e em sua diviséo de trabalho, ela nao estava designada para casar. Assim, 0 sentido | de responsabilidade implcito em ter filhos leva as mulheres a utiliza~ rem deliberadamente a gravidez como um instrumento para a in- | dependéncia de sua familia de origem e/ou, diante de um noivo | hesitante em casar, para forgé-lo a assumir a responsabilidade. Mae solteira Na perspectiva de que o filho é uma resportsabilidade dos pais, quando 0 homem no assume sua parte, cabe & mulher assumicla sozinha. A aocitagao da mae solteira-envolve nuances importantes. Ela 6, em primeiro lugar, vitima de um safudo, que-néo assume as conseqiiéncias dos seus atos, um homem que nao € digno de respeito, acusagao que comporta uma ambigiiidade, na medida em que, a0 mesmo tempo, ninguém pode obrigar ninguém a casar. Assim, diz 0 pai de filhos homens ao pai de filhas mulheres: Cuidado teu capim, que ex vou soltar meus enbrites. Nao observei nenhum caso em que a mie solteira fosse delibe- radamente expulsa de casa. A crianga é normalmente incorporada a0 micleo familiar da mie. Ela errou, mas seu erro maior foi confiar no safado, opinou outro pai de familia. Se ela errou, pode Ihe ser dada a chance de reparagio. Ter o filho e conseguir criélo transforma-se, entio, na prova de um valor associado & coragem de quem enfrenta ye a8conseqiéncias dos seus atos: sou muito mulher para cri meu. fib, sum c6digo de honra feminino. Nesse prisma, condena-se 0 aborto, considerado vaidade, em ‘oposigao a responsabilidade: [A pessoa ter abort, tudo bem, mas sea pesso € sada e tem capacidade de tnabalar, en acho que mio precisa fer abort {1 por que no evita tam- bein? Eu acho que uma mide que desc de wn fio no € wna mae. Para voc sustentar sew filo, no precisa sete wn home a eu ado. E 6 oct ter capacidae de tabllar Ec aco que a pesso que tem capacidade de trabathar, tes eapacidac de trum fio * Coat RSE Sa A vaidade, implicando uma individualidade tida como irres- ponsével, porque nega os preceitos de obtigacio moral em relacio a seus iguais, opde-se também & necessidade, cujo cardter involuntério desculpa e justifica um ato moralmente condenado. Assim, o aborto por necessidade torna-se compreensivel e moralmente aceito: De um filho s6, acho que no precisa [fazer aborto). Agora, quando a pessoa sem cinco, seis filte.. A capacidade de trabalho torna-se 0 meio através do qual a \ muther pode reparar sew erro, mostrando que é digns do respeito con- ferido ao homem neste cédigo moral. O trabalho para sustentar 0 {filko tedime a mulher, que se tora a mae/provedora. Subordinado & maternidade, o trabalho confere 4 mulher a mesma autonomia ‘moral que é reconhecida no homem/ trabalhador/ provedor: Ela tra- balha e sustenta sua prole como forma de reparacio do erro de ter uma vida sexual sem um parceiro fixo que legitime seu lugar de ‘mulher, passando a rerna por cima de todo mundo que falou dela e mos- trando que ndo precisa de ninguém para criar os filhos dela, como disse, niio & toa, 0 imo de uma mulher solteira que teve dois filhos com dois homens diferentes, este “irmao da mac", guardiao da respeita- bilidade de seus consangiifneos. Assim, a autonomia moral da mu- Iher/ mae solteira tem como condigéo necesséria que ela trabalhe e prove que é muito mulher para criar seu filho, condicao necesséria ‘mas nao suficiente, uma vez que sua independéncia econdmica depende, para se consolidar como respeitabilidade moral, do apoio ‘e da garantia de seus familiares. Nesta perspectiva moral, 0 “direito” ao prazer sexual implica 0 “dever” de assumir as conseqtiéncias, a possibilidade do filho, que é colocado como uma inevitabilidade da vida sexual, fazendo com que a reproducio legitime moralmente a sexualidade, Uma mulher que estava naquele momento na terceira unio conjugal argumentou que Fo} uma mie que ndo tem capacidaile de assumir um filko, entio nfo tem ‘apacidade de estar namorando e estar arrumando homem. Eu acho que para ter copacidade de arrumar umt homer, tem capacidade de sustentar 0 {illo que ver pela frente, porque tudo o que vocé faz, sempre tem que spare- cer uma coisa pare voeé sacrificar sua vida. ue coMo eso ” Relacdes através das criancas Para entender o lugar das criangas nas familias pobres &, mais ‘uma vez, necessério diferenciar as familias que cumpriram as eta- pas do seu desenvolvimento sem rupturas, em que os filhos ten- dem a se manter no mesmo micleo familiar, ¢ as que se desfizeram. nesse caminho, alterando a ordenaco da relacao conjugal e a rela- ‘do entre pais e filhos. Nos casos de instabilidade familiar, por separagies e mortes, aliada a instabilidade cconémica estrutural ¢ ao fato de que no cexistem instituigdes puiblicas que substituam de forma eficaz as fun- ‘Ges familiares, as criangas passam a ndo ser uma responsabilidade exclusiva da mae ou do pai, mas de toda a rede de sociabilidade em que a familia esté envolvida. Fonseca (1995) argamenta que ha uma coletivizagao das responsabilidades pelas criancas dentro do gru- pode parentesco, caracterizando uma “circulagio de criancas”. Essa prdtica popular inscreve-se dentro da légica de obrigagdes morais que caracteriza a rede de parentesco entre os pobres. Constitui, se- gundo Fonseca (1995), um divisor de aguas entre aqueles indivi- duos em ascenséo que adotam valores de classe média e aqueles que, apesar de uma existéncia mais confortével, permanecem liga- dos & cultura popular. Em novas unides conjugais, quando ha filhos de unides ante- riores, os direitos e deveres entre pais e filhos no grupo doméstico ficam abalados, na medida em que os filhos nao so do mesmo pai e da mesma mae, levando a ampliar essa rede para fora desse nti- cleo. Nessa situago, os conflitos entre os filhos e 0 novo cénjuge podem levar a mulher a optar por dar para criar seus filhos, ow al- gum deles, ainda que temporariamente. A ctianga seré confiada a outra mulher, normalmente da rede consangiifnea da mae. Nas familias desfeitas, por morte ou separa- sao, no momento de expansao e criagao dos filhos, ocorrem rearranjos no sentido de garantir 0 amparo financeiro e o cuidado das criancas. Embora se conte fundamentalmente com a rede con- sangiiinea, as criangas podem ser recebidas por ndo-parentes, den- tro do grupo de referéncia dos pais. Foi um dos casos que acompa- nhei, em que um casal com trés filhos, moradores da favela local, criam um menino, cuja mae morreu e 0 pai desapareceu. A rota alternativa para esse menino fica clara na adverténcia:, (Ou vocé se comporta, ou do contréio, &0 seguinte: eu te caloco na Feber alé teu pai aparecer O importante a ressaltar é que esse no é um caminho sem volta, mas uma das possibilidades, a menos desejével, dentro dessa, circulacdo das criancas."® Nos casos de separacao, pode haver preferéncia da mae pelo novo companheiro, prevalecendo o lago conjugal, circunstancial- mente mais forte que 0 vinculo mae-filhos. Uma nova unio tem ‘implicages na relacio da mae com os filhos da uniao anterior que ‘expressam 0 conilito entre conjugalidade e maternidade (tao clara- ‘mente revelado no dilogo abaixo entre uma mulher ja separada ¢ sua mée, que argumenta em termos da retribuigao possivel). Dadas as dificuldades que anfrenta uma mulher pobre para criar seus fi- Jhos,a tendéncia seré langar mao de solugdes temporarias para con- tomar a situacao, entre as quais esté a possibilidade de que os fi- hos fiquem com o pai. Entre os casos que acompanhei, dois ho- mens, casados novamente, ficaram com os filhos da uniao anterior. Ete (o marido) naoqueriaseseparar de mion, porque ele falou que se wm dia agente se separasse, el no largava da menina, que el ia carregar a mentina com ee Eu fale: “Entio woe vai passar por cima do meu himulo, porque a menina die mim vocé no ta" E a minha mie: “O que? Hoje em dia, brigar por causa de filho nfo vale a pena, porque depois que eles cresce, else um pontapé no taseiro da gente”. Eu fale: “O, mie! A senhora pode pensar o que a senhara quiser, as eu penso do meu jet. Eu acho que desde o momenta que a gente ps filo no mundo, a gente ten que cuidar dele. Se tioer que passar fome, oxi passar {fome, mas ex dar meus filho para alguén, iso jamais vow fazer” A instabilidade familiar, embora seja um fator importante, ndo esgota o significado da circulagao de criangas, que pode acontecer 1, Vero trabatho de Fonseca (1986 1995) sobre intemago dos pobres como parte do contexte de crculagSo de crnngas, no qual osentido da itermasSo, associa 30s estig- nas da pobreza, érelaborado quando Se torna uma alternativaconcreta em suas vidas A ana coo esr.0 ” ‘mesmo em familias que nao se romperam. Fonseca mostra como a mie que dd para criar seu filho ou filha pode exigir retribuigao, con- siderando que, ao darem seus filhos, “sacrificaram suas prerrogati- vvas maternas em beneficio destes”: deram aos pais adotivos uma ctianca, A crianga aparece como dadiva, 0 que estabelece a possibi lidade de reivindicar retribuigao. Nao constituindo uma adogao, ou seja, a transferéncia total e permanente dos direitos sobre a crian- ga, a circulagao de criangas é uma forma de transferéncia parcial e tempordria, fosterage, que abre espaco para relagbes de obrigacao entre os pais hiolégicos e adotivos. Instaura-se um jogo que envol- ‘ve manipulacao por parte da made bioldgica que deu seu filho, como sactificio matemno. Ao mesmo tempo, a mae adotiva tem a expecta- tiva de alguma retribuigao (que pode ser um pagamento) pelos cui- dados prestados (Fonseca, 1986 e 1995). A adocdo representa a quebra deste jogo, pela transferéncia total dos direitos e deveres sobre a crianga adotada. Dé-se sob 0 signo da lei, enquanto a circulagao de criangas acontece no registro das obrigagoes morais que caracterizam as préticas populares, rei- terando 0 primado dos costumes sobre a lei para os pobres. A circulacio de criancas, como padrao legitimo de relagdo com 0s filhos, pode ser interpretada como um padrao cultural que per mite uma solucéo conciliatéria entre o valor da maternidade e as dificuldades concretas de criar os fillos, levando as mies a nao se desligarem deles, mas manterem o vinculo através de uma circula- co temporéria, Assim, mantém-se os vinculos de sangue junto aos de criagio, ambos definindo os lagos de parentesco, atualizando padrao de incorporacdo de agregados que tradicionalmente carac- teriza a familia brasileira (Freyre, 1980). Através das ctiangas, rea- firmam-se, ao mesmo tempo, os vinculos com seu grupo de refe- réncia Mae e Pai: nas horas boas e ruins... A pratica de adogées informais e temporérias acaba relativi- zando as nogdes de pai e mie, o que implica uma elasticidade no uso dessas categorias. As criangas chamam de pai e me aqueles que cuidam deles. A pessoa que cuida sente-se no direito legitimo de ser o Con ESE SAT assim chamada e reivindica esta nomeagéo. © avd, quando mora ‘com os filhos de suas filhas solteiras, é invariavelmente o pai, assim como 0 marido da mae pode também assim ser chamado, sobretu- do quando 0 genitor (pai biolégico) no tem mais contato sistemé- tico com os filhos. Uma das familias que moram no local é constitufda pelo ho- mem, casado pela segunda vez, vivendo com os trés filhos do seu primeiro casamento, 0s trés do primeiro casamento da sua mulher e uum filho desta segunda unio. A mae biolégica das criancas trabalha fora e mora na casa contigua a dele, com entrada pela rua de trés. Segundo seu relato, ele e a segunda mulher so os que cuidam, e 0s, filhos do primeiro casamento chamam a sua segunda mulher de me, ¢ a mie biolégica pelo nome prdprio. Dessa situacao, ele disse ter ‘uma teoria: Mie éa que cwidadeles[..] ndo aquela que vive pelo mundo, talvez na sua vnidade, ou talvez na sua necessidade, ndo assisteo seu crescimento, 0 seu desenvolvimento. Entdo eu acho que mie é aguela que realmente zela pela crianca, As categorias pui e mie, desvinculando-se da origem biolégi- «a, reforgam os vinculos de criagao. Assim comentou um homem de 24 anos, que tem um itmao adotivo e cuja mulher tem filhos de outro casamento: (Quando ele fo irmio de eriagio| tink mais ou menas uns dex anos, minha ‘mie contou toda ¢ histéria para ele, apresentou a mie dele, a avd dele, a Jari. toda a fala e ele no se importow com nada. Ele falou: “ste € ‘meu tar, ests slo meus pais", E est até hoje com minha mie, reconhece como mde, gosta dela. tudo. até hoje. E sobre a filha de sua mulher: Euacho que todo mundo tem que saber a verdade. Se um dia... se eu conhego 0 pai dela, se ele aparecer dizendo que éo pai, espero que ela jd tena idade suficiente para julgar quem realmente é 0 pai. Nao pelo fato de fecundar, ‘mas pelo carinho, pelo amor, por estar junto... nas horas boas e ruins. Diante do fato cultural de que o cuidado da crianca ¢ preferen- cialmente confiado & mae e a sua rede de sociabilidade, torna-se ‘A Faun Covo EHO 8 evidentemente mais fécil desvincular a categoria pai de sua origem biolégica de sangue. Mesmo assim, embora o genitor (pai biolégico) nio rie a crianga e, por isso, nao mereca o afeto e a designacao de ai, por ndo estar junto, nas horas boas e ruins, no se desfaz. a ima- gem idealizada de um pai de samgue. Confirmando o habitual des- conforto diante de situagGes formalizadas, que caracteriza os po- bres, uma mulher casada comentou as solugdes para os casos de separacéo conjugal, argumentando que, ao contririo do que diz a lei, quando os filhos so pequenos, é melhor nao verem o pai, em lugar de verem em dias marcados. Em sua opiniao, € ruim para a crianca ver que o pai ndo volta para casa, nao esté, portanto, nas horas boas ce ruins, Os filhos deve, entao, ver o pai quando crescerem, se, por iniciativa pr6pria, quiserem saber do pai, porque o que conta équem std junto, No caso da mie, 0 vinculo biolégico nao perde sua forga simb<- lica. Chamar varias mutheres de mife nao exclui a idealizacao do lago Diolégico mae-filho. O trabalho de Fonseca (1995) mostra como, mes- ‘mo nos casos em que a crianca é cuidada por outras que nao sua mae bioldgica, esta é reconhecida e reivindica o status de verdadeira mae. “Mile também € quem criou, mas a verdadeira me € uma 56”. A coexisténcia das categorias de sangue ¢ de criagao, como par- te do sistema de parentesco dos pobres, permite a manipulacao, sobretudo entre as mulheres, de demandas sobre a crianga, ou 0 seu uso como instrumento de outras demandas. Cada parte reivin- dica de acordo com os direitos que sua posigéo — de mée que criou ou de verdadeira mie — Ihe confere, dando expresso a intimeros onflitos e rivalidades. Sao particularmente marcantes os casos de avés que criam os filhos de suas filhas solteiras, em que o sangue se sobrepoe a criaciio, conferindo a avé um poder de manipulagio singular, porque se ins- creve na relacao hierdrquica entre mie e filha. A pertinéncia a0 mesmo grupo de sangue, pela linhagem, e seu estatuto de poder sobre a filha levam a avé a “se apropriar” da crianga, que a chama de mie, enquanto a mae bioldgica € chamada pelo nome proprio, sendo privada de seu lugar de mae. Nos casos observados, a filha acaba saindo de casa e deixando o filho, porque nao ferho condicées de cri-lo, o que configura uma maneira indireta de expulsar de casa a mae solteire, opgo sempre negada no discurso, ® Cre RSE SAT Embora a rede de parentesco possa ser caractetizada pela in- diferenciagao entre parentes de sangue e de criagio e o tratamento dado aos fithos de criacio — criangas dadas para criar — tenda tam- bém a ser indiferenciado, isso nao quer dizer que essa distingdo rio seja manipulada nos conflitos, fazendo com que nem sempre as criangas que nao fazem parte do nticleo original sejam tratadas da mesma maneira. Isso pode acontecer em relagio aos filhos de cria- ao, mas aparece particularmente em relagdo aos filhos de unides anteriores do cOnjuge: ‘Ninguém quer evar flho de outro homer, dar comida a fio de ninguém, depois fice jogeado na cara da mulher. Arruma uma briguinha assim ¢ joga na cara da mulher. Quanto as obtigagdes morais dos filhos com relagio aos pais, ‘05 pais que criam e cuidam so merecedores de profunda retribuicao, sendo um sinal de ingratidao 0 no reconhecimento dessa contrapar- lida. Dentro das possibilidades com as quais conta uma mulher que engravida e que, na sua concepgao, no tem condigtes de eriaro filho, estd 0 aborto, nem sempre moralmente aceito, ainda que se justifi- que por necessidade, como foi comentado. Em fungao dessa interdi- ‘edo moral, dar os flkos para erfar & uma alternativa aceitével dentro de seus cOdigos morais, ndo sendo necessariamente expressao de um desafeto: De repente, voct pode até achar uma pessoa, wma feria que queira, que ocd saiba que oa cuidar bem... ‘As adogdes tempordrias — ou circulagdo de criangas — criam ‘uma forma de apege, uma afetividade distinta das relagées estaveis e duradouras. O sentimento de uma mae ao dar sex filho para criar, como uma questao de ordem sociolégica, diz. respeito a um padrao cultural no qual as criangas fazem parte da rede de relagdes que marca 0 mundo dos pobres, constituindo “dédivas”, como obser- ‘vou Fonseca (1995). Assim, criar ou dar uma crianca nao é apenas uma questo de possibilidades materiais, mas se inscreve dentro do padrao de relacées que os pobres desenvolvem entre si, caracte- tizadas por um dar, receber e retribuir continuos. A Faniua ono esr0 8 Projetos familiares © casamento é 0 projeto inicial através do qual comega a se constituir a familia. £ por intermédio do casamento que sio formu- lados os projetos de melhorar de vida, nunca concebidos individual- mente, mas em termos da complementaridade entre o homem e a mulher. Se a mulher deposita no homem/marido suas expectativas de ter alguma coisa na vida e interpie entre ela e 0 mundo a figura masculina, a contrapartida aparece claramente no discurso dos ho- meng, para quem A gente sozinho munca consegue nada. Tem que haver uni, porque se eu lutar sozinho, ew nfo vou conseguir nada. Mesmo que ela no trabahe, mas la. economizando a gente chega ld, aonde a gente quer chegar, porque estando os dois € mais ftcil, n&? Um € bem mais dificil, porque no tem ‘aquela responsabitidade que tem depois de casado. A maioria dos casal ai 36 tem as coisa depois que casa. Nao sei se é prage, 0 que é, se é descaracao ‘mesmo do homem. Mas 0 cara sé consegue as coisa mesmo quando casa. At consegue progredir. Esse projeto tem época certa: 1 tinha mocidade, jd aoa para casar€ me aquietar. Eu jf tnha namorado denis, tinha aprovetado minha vida 0 que dava para aprovetar. jd estava para csar.. ter alguém para cuider da minha vida casamento para o homem significa parar de zoar. Bsse tem- po de zoeira é época hoa, etapa necesséria para aquisicao do cédigo masculino de sociabilidade. Transitar no mundo da rua é parte do processo de tornar-se homem. Isso se dé nos bares, no bairro ou nas redondezas. Essa etapa, no entanto, tem limites. Ficar nessa ndo leva a nada. Depois de se divertir, ¢ preciso aquietar, E quando o homem ‘comeca a pensar em maniorar para casar, em ter uma responsabilidade na vida. O casamento passa a ter contornos de um projeto, com véu grinalda ou simplesmente juntando os trapinhos. Nao dd mais para sair na sexta-feira ¢ s6 voltar na segunda. Comega a se delinear, com matizes nuances, a imagem do homem de respeito, 0 pai de familia Sem a familia, 0s rendimentos do trabalho masculino desperdi- ¢am-se naquilo que nfo leva a nada. Sem os papéis familiares que es ‘Co ANSE ST conferem sentido ao desempenho masculino no mundo do traba- Iho, a prépria atividade de trabalhar nao faz sentido; ao mesmo tempo em que a expectativa depositada no homem de ser 0 prove- dor familiar, como foi mencionado, 0 coloca continuamente diante da possibilidade do “fracasso”. ‘O casamento legal e 0 religioso so considerados moralmente superiores 8 unio consensual, conferindo maior respeitabilidade a0 casal e legitimidade ao lugar de marido e de esposa. A primeira unio conjugal é sempre pensada e idealizada como uma unio re- ferendada pela lei de Deus e dos homens, enquanto as unides sub- seqtientes se constituem como unides consensuais, fazendo do di- vorcio um recurso raramente utilizado entre os pobres. Do ponto de vista da familia de origem, hd o momento de casar, el porque ro pega bem a gente passar toda wma vida soltera dentro de casa, dando trabalho para o pai e para a mde. Porque, por mais que a gente sea 0 que a gente é [todo o rendimento do sew trabatho vai para “dentro de casa”), cles sempre achant que a gente esta dando trabalho, no é mesmo? Princi- pratmente, quande esto caindo para aidade... eles querem mais ¢ fear sozi- rnkos, porque eles ja criram a gente, né? Jd fex de tudo pela gente eago de repente agente fica velhoe em vez de casare procurar 0 rumo da gente. 4 gente fea dentr arrumando mais trabalho para eles. Est errado, né? Nesta casa, duas das filhas so maes solteiras, cujos filhos sio criados por sua farrilia, situagao que se contrapde a formulagio do projeto de melhorar de vida. Em que consiste, afinal, esse projeto? A populagao pobre que vive em Sao Paulo tem todas as aspira- ‘Bes que a cidade Ihe apresenta e que a televisdo estimula e unifor- ‘miza; estd exposta a individualizagao que a cidade impoe, através do trabalho e do consumo, O joven pobre urbano tem planos de ‘methorar de vida, como seus pais que migraram; mas esses planos se formulam dentro de um universo de valores no qual as obrigagdes ‘morais sio fundamentais, porque sua existéncia esté ancorada nes- sa moralidade. Aclaboragio de projetos individuais para methorar de vida atra- vés do trabalho esbarra nos obstéculos do préprio sistema onde se {nserem como pobres e tomna-se particularmente problemética diante das obrigagdes morais em relagdo a seus familiares ou a seus iguais, A aaa Con E140 com os quais obtém os recursos para viver. Assim, 0s projetos, em que a idéia de melhorar de vida esté sempre presente, sao formula- dos como projetos familiares. Melhorar de vida é ver a familia progre- dir, O trabalho € concebido dentro desta Iégica familiar, constituin- do o instrumento que viabiliza 0 projeto familiar e nao individual, ‘embora essa atividade seja realizada individualmente, Delimitacéo moral da idéia de familia A familia, para os pobres, associa-se aqueles em quem se pode confiar, Sua delimitagéo no se vincula & pertinéncia a um grupo genealdgico, e a extensdo vertical do parentesco restringe-se aque- Tes com quem convivem ou conviveram, raramente passando dos avs. O uso do sobtenome para delimitar 0 grupo familiar a que se pertence, recurso utilizado pelas familias dos grupos dominantes brasileiros para perpetuar 0 status (e poder) conferido pelo nome de familia, € pouco significativo entre os pobres. Como nao ha status ‘ou poder a ser transmitido, o que define a extensao da familia entre 0s pobres é a rede de obrigagies que se estabelece: sio da familia aqueles com quem se pode contar, isto quer dizer, aqueles que retri- buem ao que se dé, aqueles, portanto, para com quem se tem abri- ‘gagies. So essas redes de obrigagdes que delimitam os vinculos, fazendo com que as relagdes de afeto se desenrolem dentro da di- namica das relagGes descritas neste capitulo. A nogio de familia define-se, assim, em torno de um eixo mo- ral, Suas fronteitas socioldgicas so tracadas a partir de um princi- pio da obrigacéo moral, que fundamenta a familia, estruturando suas relagbes. Dispor-se as obrigagSes morais é o que define a perti- néncia ao grupo familiar. A argumentacao deste trabalho vai ao encontro da de Woortmann (1987), para quem, sendo necessério um vinculo mais preciso que o de sangue para demarcar quem é Parente ou ndo entre os pobres, a nogdo de obrigagio torna-se cen- tral & idéia de parentesco, sobtepondo-se aos lacos de sangue, Essa dimensio moral do parentesco, a mesma que indiferencia os filhos de sangue e de criagio, delimita também sua extensio horizontal Como afirma Woortmann (1987), a relacio entre pais ¢ filhos cons- titui o tinico grupo em que as obrigagSes sdo dadas, que ro se esco- ® Corea sons sae hem. As outras relagSes podem ser seletivas, dependendo de como se estabelecam as obrigagées mtituas dentro da rede de sociabilida- de. Nao hé relagdes com parentes de sangue, se com eles néo for ppossivel dar, receber e retribuir. As retribuigdes que se esperam nas relacSes entre 0s pobres io so imediatas. Por isso, € necessario confiar. Como salientou Woortmann (1987), “o fato importante & a auséncia de célculo de divida explicito” (p. 197). E precisamente a falta de interesse que marca as relagées familiares, na medida em que o interesse const tui uma categoria fundamentalmente individualista, em oposicao a nogio de necessidade, utilizada pelos pobres como critério para defi- nir a obrigagao de ajuda. A pessoa ajuda quem tem precisao, na cer- teza de que seré ajudada quando chegar a sua hora. Nao se trata, portanto, de um dare receber imediatos, mas de uma cadeia difusa de obrigagdes morais, em que se dé, na certeza de que de algum lugar vird a retribuicéo, tendo na crenga em Deus a garantia de con- tinuidade da cadeia: Deus prové. Em tiltima instancia, essa morali- dade esté ancorada, ento, numa ordem sobrenatural. Concluindo o capitulo, a familia interessa a argumentacdo deste trabalho como um tipo de relagio, na qual as obrigagbes morais, so a base fundamental. A familia como ordem moral, fundada num. dar, receber e retribuir continuos, torna-se uma referéncia simbéli- ca fundamental, uma linguagem através da qual os pobres tradu- zem o mundo social, arientando e atribuindo significado a suas re- lagdes dentro e fora de casa.

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