Veiga DS Capítulo1 Texto

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VEIGA, José Eli da. Desenvolvimento sustentavel: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. Parte 1—O que é desenvolvimento Como pode ser entendido o desenvolvimento, p. 17-82 Capttulo 1 Como pode ser entendido o desenvolvimento Existem(trés' tipos basicos de TespostaJa indagagao “o que é desenvolvimento?”. As duas primeiras sio mais simples, e serio brevemente apresentadas antes de serem destrinchadas. A mais freqiiente é tratar o desenvolvimento como sinénimo de crescimento econémico. Isto simplifica a tarefa de responder a pergunta, pois dois séculos de pesquisas histéricas, tedricas e empiricas sobre o crescimento econdmico reduziram bastante a margem de dtivida sobre essa nogio, muito embora persistam — e talvez tenham até aumentado — as dtividas sobre os seus princi- pais determinantes. Este amdlgama das duas idéias também sim- plifica bastante a necessidade de se encontrar uma maneira de medir o desenvolvimento, pois basta considerar a evolugio de indicadores bem tradicionais, como, por exemplo, o Produto In- terno Bruto per capita. A segunda resposta facil é a de afirmar que o desenvolvimen- to nao passa de reles ilusio, crenga, mito, ou manipulagao ideols- gica, Aqui, pode até surgir alguma “Gificuldade na compreensio do sentido ¢ da fungdo dos mitos nas sociedades contemporaneas a desa- € parao préprio avango das ciéncias, questao que continua 17 i fiar principalmente os antropdlogos. $6 que os an alistas que real- mente aderem a tal postura ficam automaticamente isentos de discutir 0 enigma do “desenvolvimento sustentivel, pois ele nay, passaria de uma nova roupagem da quimera original. E é muita importante assinalar que essas duas correntes — a do crescimento ¢ a da ilusio — preferem a expresséo “desenvolvimento econdmicg” em vez da férmula sintética, e mais correta, “desenvolvimento” pois, no fundo, pensam que sio simples sinénimos, Muito mais complexo 0 desafio enfrentado por pensadores menos conformistas, que consiste em recusar essas duas saidas mais triviais e tentar explicar que o desenvolvimento nada tem de quimérico e nem pode ser amesquinhado como crescimento eco- némico. Esse “caminho do meio” ¢ 0 mais desafiador, pois é bem mais dificil de ser trilhado. O desenvolvimento como crescimento econémico Desde que o Programa das Nagdes Unidas para o Desenvol- vimento (PNUD) langou o “{ndice de Desenvolvimento Huma- no” (IDH) para evitar 0 uso exclusivo da opuléncia econdmica como critério de aferi¢ao, ficou muito esquisito continuar a insis- tir na simples identificagao do desenvolvimento com o cresci- mento. A publicacao do primeiro “Relatério do Desenvolvimen- to Humano”, em 1990, teve o claro objetivo de encerrar uma ambigitidade que se arrastava desde o final da 2* Guerra Mundi- al, quando a promogio do desenvolvimento passou a ser, ao lado da busca da paz, a prdpria razdo de ser da Organizacao das Na- gées Unidas (ONU). Até 0 inicio dos anos 1960, nao se sentiu muito a necessidade de distinguir desenvolvimento de crescimento econdmico, pois as Poucas nagées desenvolvidas eram as que se haviam tornado ricas 18 Thue eeonane prov th pela industrializaszo. De outro lado, os palses que haviam perma- necido subdesenvolvidos cram os pobres, nos quais o processo de industrializagéo era incipiente ou nem havia comegado. ‘Todavia, foram surgindo evidéncias de que o intenso crescimento econ6mi- co ocorrido durante a década de 1950 em diversos pafses semi- industrializados (entre os quais © Brasil) nao se traduziu necessari- amente em maior acesso de populagdes pobres a bens materiais € culturais, como ocorrera nos pafses considerados desenvolvidos. A comegar pelo acesso a satide ¢ & educacio, Foi assim que surgiu 0 intenso debate internacional sobre o sentido do vocdbulo desen- volvimento. Uma controvérsia que ainda nio terminou, mas que sofreu um ébvio abalo esclarecedor desde que a ONU passou a divulgar anualmente um {ndice de desenvolvimento que nio se resume & renda per capita ou a renda por trabalhador. Até 0 final do século XX, os manuais que servem para trans- mitir as novas geragdes o paradigma da ciéncia econdmica con- vencional (ou “normal”, no dizer de Thomas Khun) tratavam despudoradamente desenvolvimento e crescimento econdmico como simples sindnimos. Quando o IDH comegou a se afirmar mundialmente como um indicador mais razodvel de desenvolvi- wo —~. mento, ocorreram (dois tipos de reagées entre os autores de textos introdutérios & economia (ou aos fundamentos, de macro € micro, como se diz no jargio profissional). A mais significativa foi simplesmente banir 0 termo desen- volvimento, como se pode constatar em simples consulta aos ex- celentes glossdrios € indices dispon{veis no final dos mais prestigiados manuais, como, por exemplo, os de Gregory Mankiw. Tal atitude foi simultanea a uma agressiva ofensiva académica com 0 objetivo de desqualificar todas as disciplinas filiadas 4 cha- mada “Economia do Desenvolvimento”. Elas nao foram inteira- 19 mente eliminadas dos currfculos dos cursos de economia, mas Permanecem apenas toleradas como formagées complementares, a exemplo da Sociologia e do Direito (e as vezes até da Histéria). Em resumo, 0 que economista precisa saber € macroeconomia ¢ microeconomia, duas disciplinas devotadas ao crescimento eco- némico, e nao & idéia muito mais ampla de desenvolvimento. (2) Reag’o diferente, ma non troppo, foi a dos que conseguiram evitar 0 exilio da idéia de desenvolvimento ao encontrar uma ma- neira de conservé-la como uma espécie de apéndice. Isso ocorre principalmente em introdugées que procuram apresentar uma vi- sdo abrangente das teorias do crescimento econémico, como o elo- siado livro de Charles I. Jones. Logo no inicio, quando se propée a expor os dados objetivos sobre 0 “crescimento econdmico e desen- volvimento”, o autor avisa que nesse livro sé utilizard a renda per capita “em ver de enfatizar informagées como expectativa de vida, mortalidade infantil ou outros indicadores de qualidade de vida.” E fornece duas justificativas para tal atitude: a) a renda per capita é um bom indicador do desenvolvimento, porque esté altamente correlacionada com outros indicadores de qualidade de vida; b) as teorias que serio apresentadas no restante do livro foram todas for- muladas em termos de renda per capita... (Jones, 2000: 3). O desenvolvimento como quimera No Brasil, essa tese foi bem difundida pela publicacéo de uma coletanea de artigos do economista e sociélogo italiano (mas : A ilusto do desenvolvimento. A questio central para ele é saber se seria posstvel que ensina nos Estados Unidos) Giovanni Arrighi algum tipo de mobilidade ascendente na rigida hierarquia da Baal) cements relic terantial (ommedatee: emt er ee organico” de pafses centrais; uma extensa periferia contendo os 20 paises mais pobres; e uma “semiperiferia” composta das nagGes que muitos consideram “emergentes”, Nao é dificil demonstrar que sao irrisérias as chances de transposi¢ao dos dois “golfos” que separam a pobreza dos periféricos da riqueza modesta dos semiperiféricos, ¢ esta da riqueza oligarquica dos Estados do nui- cleo orginico. Ou seja, embora alguma mobilidade seja posstvel, é altamente improvdvel que o nticleo organico absorva muitos desses paises da semiperiferia. Para demonstrar a rigidez e recorréncia desse “padrio trimodal”, Arrighi usa a distribuigio da populagio mundial pelo Produto Nacional Bruto (PNB) per capita no perfodo 1938-1983. Nesse perfodo, foi excepcional qualquer mobilidade ascendente na hierarquia de riqueza da economia capitalista mundial. Sio consideradas excegées tanto a entrada do Japao e da Itélia no nucleo organico, quanto a absorco da Coréia do Sul e de Taiwan pela semiperiferia. De resto, pelo critério adotado, até 1987 a Libia teria entrado e saido do miicleo organico! “Nao é robusta a metodologia adotada por Arrighi para ten- tar demonstrar essa impossibilidade de mudangas substantivas na hierarquia das nag6es tipificadas pelo PNB per capita. Ele esta- belece uma simples equivaléncia entre desenvolvimento e rique- za, reforcando a idéia mais comum entre os economistas conven- Gionais. O mais engragado é que ao criticar os que adotam a “in- dustrializagéo” como equivalente de “desenvolvimento”, ele mes- mo se trai com o seguinte racioc{nio: “a industrializagio é geral- mente buscada néo como um fim em si mesmo, mas como um meio na busca de riqueza, ou de poder ou de bem-estar, ou de uma combinagao disso...” (Arrighi, 1997: 209), Mutatis mutandis, a riqueza também pode nfo ser buscada como um fim em si mes- ma, mas como um meio para obter outras coisas que ele talvez 21 a inclua nas nogdes de “bem-estar”, “poder” ou “uma combinagao disso”. A esséncia da tese que ele defende, referindo-se a contribui- ges anteriores de Immanuel Wallerstein, é que o “desenvolvi- mento nesse sentido é uma ilusio” (Arrighi, 1997: 217, grifo meu, JEV). Ou seja, no sentido estrito de acimulo de riqueza por par- te de um numero significativo de paises, de modo que tal avango econémico significaria, em algum momento, seu ingresso no nu- cleo orginico. Se esse fosse o principal sentido da nogao de desen- volvimento, ele estaria coberto de razio. Mas ninguém é obriga-. do a aceitar tao simpléria defini¢ao do desenvolvimento. Além disso, no hé sequer muita légica em afirmar que o desenvolvi- mento nao passa de ilus4o, porque até aqui foram muito raros os saltos da semiperiferia para o centro. Mesmo que se admitisse 0 pressuposto de que o desenvolvimento poderia ser aferido pelo PNB per capita, essa constatagao autorizaria, no mdximo, a con- cluso de que o proceso de desenvolvimento sé pode ser muito lento e demorado. Esse debate seria bastante simplificado se 0 ensaio de Arrighi pudesse ser tomado como uma sintese das idéias de todos os au- tores que afirmam que o desenvolvimento é impossivel, iluséo, ou mito. Mas ocorre exatamente o contrério. Hé argumentagées bem mais articuladas e persuasivas nas obras de pelo menos trés auto- res dessa cética corrente de pensamento: dois diplomatas, 0 peru- ano Oswaldo de Rivero e¢ o iraniano Majid Rahnema, mais 0 scholar suigo Gilbert Rist. Nenhum deles comete o simplismo de usar o PNB per capita para medir 0 desenvolvimento. Nas palavras de Rivero (200 do desenvolvimento que tém uma viséo quantitativa do, 132), sio.os gurus do mito ndo. Ignoram os processos qualicativos ihistérico- culturais, 0 progresso ee 22 nao-linear da sociedade, as abordagens éticas, ¢ até prescindem dos impactos ecolégicos. Confundem crescimento econdmico com o desenvolvimento de uma modernidade capitalista que nao exis- te nos pafses pobres. Com tal perspectiva, eles s6 percebem fend- menos econdmicos secundérios, como o crescimento do PIB, o comportamento das exportagées, ou a evolugéo do mercado aciondrio, mas nao reparam nas profundas disfungées qualitativas estruturais, culturais, sociais e ecoldgicas que prenunciam a inviabilidade dos “ quase- Estados-nacao subdesenvolvidos”. Virose dupla Nos Estados industrializados, a identidade nacional prece-} deu a consolidacao da autoridade estatal. A Nacao, refletida aci- | ma de tudo no surgimento de uma burguesia e de um mercado de dimenséo nacional, foi a base do Estado moderno. Essa se- qiiéncia se inverteu nos pafses ditos em desenvolvimento. A auto- ridade politica, isto é 0 Estado, emergiu desde a independéncia € antes que surgisse a Nagao. Antecipou-se ao desenvolvimento de uma verdadeira burguesia, e de uma economia capitalista na- cional unificadora. Por isso, diz Rivero (2002: 12), os pretensos paises em desenvolvimento nasceram do entusiasmo pela livre | determinacao, mas nao da prosperidade burguesa e do progresso | cientifico- tecnoldgico. © principal virus que dissemina a inviabilidade econdmica da grande maioria dos paises “em desenvolvimento” atende pelo nome de miséria cientffico- tecnoldgica. Sempre segundo Rivero, a demanda mundial de produtos e servigos de alta tecnologia aumenta 15% ao ano, enquanto a de matérias-primas nao chega aos 3% e a de produtos com baixo grau de transformagao nao passa de 4% ao ano. E os pregos reais das matérias-primas, que ja 23 an cafram para niveis infetiores aos da depressio de 1932, continu- ario a declinar no século XI. Pior: os precos de produtos manu- faturados com baixo ou médio conteido tecnoldgico — como téx- teis, roupas, manufaturas de madeira, quimicos, maquindrio ¢ ¢quipamentos de transportes — cafram 1% ao ano desde 1970, mostrando uma tendéncia perversa semelhante & apresentada pelas matérias-primas. w fu 2 Quando o virus da miséria cientffico-tecnoldgica coincide spe eee ee ee *\rwaea com outro virus de invi: dade — 0 da exploséo demogréfica(D urbana —, ento o nao-desenvolvimento é “quase inevitdvel”, acres- centa Rivero (2002: 135). Isto porque as minguadas receitas que podero ser geradas no futuro pelos precos instéveis e pouco ren- taveis de minerais, metais, produtos agricolas, madeiras, téxteis e outros produtos pouco intensivos em tecnologia nao poderao as- segurar recursos suficientes para a criagdo de empregos e para a satisfagao das necessidades de populagdes que crescem demais nas cidades subdesenvolvidas. A populag4o terd dobrado em quase todos os paises que ex- portam produtos pouco intensivos em tecnologia por volta de 2020. Esta combinagio viral de exportagao de bens com baixo valor agregado e explosio demogrifica ¢ é grande, produtora de pobreza. Se as exportagées nao forem modernizadas com mais tecnologia e se nao diminuir a natalidade nos pafses subdesenvol- vidos, a pobreza, que hoje atinge 1,3 bilhao de pessoas, atingiré cerca de 3 bilhdes em 2020. capacidade de transferir recursos do Para Rivero, é esta mercado mundial para crescentes populagées urbanas que impe- de os pafses de se desenvolverem, Tende a torné-los Economias Nacionais Invidveis (ENIs). Todos os paises chamados “em desen- volvimento” tiveram de sobreviver, por quase todo o século XX, 24 com ajuda internacional, empréstimos oficiais ¢ financiamentos ptivados, Sempre cafram na ina impléncia ou estiveram & beira da faléncia. E vao sobrevivendo, Por enquanto, gragas a privatizagSes e capitais volteis do especulativo mercado financei- ro global. A unica safda para os paises vitimas dos efeitos darwi nos da tecnologia e do mercado global reduzir sua taxa de nasci- mentos €, a0 mesmo tempo, modernizar sua producio para tornd- la mais intensiva em tecnologia. Esse processo vai ser complexo ¢ provavelmente se estenderd por duas décadas, durante as quais serd preciso sobreviver, evitando terremotos sociopoliticos. Para’ isso, diz Rivero (2002: 183), é urgente, alcangar um equilibrio entre o crescimento da populagio e o de recursos vitais como alimentos, energia e Agua, de modo a ser vidvel pelo menos um_ ambiente sociopolitico estavel que viabilize 0 processo de moder- | nizagao. Rendas estratégicas Os patses do entio chamado Terceiro Mundo obtiveram-ren= da estratégica no decorrer da guerra fria, porque as superpoténci- as precisavam conquistar apoio e aliados. A politica de nio-ali- nhamento forneceu renda estratégica a alguns pafses para mano- brarem entre os dois blocos e obterem vantagens de ambos. Ou- tra opgao para um pafs obter renda estratégica naquele perfodo foi apostar no tudo ou nada, aliando-se a uma das superpoténci- as. Todavia, com o fim da bipolaridade, a maioria dos Estados subdesenvolvidos deixou de possuir o interesse estratégico que atrafa ajuda e investimentos. A ajuda internacional diminuiu— muito, e os pafses pobres nao recebem investimentos estrangeiros significativos. Finalmente — ¢ j4 no campo politico -, nao existe 25 ede uRss tratamento especial e diferenc; de competir em do para esses palses que agora tém igualdade de condiges com os palses desenvol- vidos. A maioria dos “quase-Estados-nagio” est4 em situagio de a mercé da selegio natural do mercado global e da revolugio tecnoldgica, abandono estratégico, Nesse contexto, sé uns poucos palses “em desenvolvimento” conseguem rendas estratégicas Por serem grandes exportadores de petrdleo ou de alimentos, dois recursos cada vez mais impor- tantes diante da explosdo do crescimento urbano. Também tém renda estratégica os paises localizados em estreitos ¢ canais vitais Para a economia global. Principalmente em torno-do estreito de Ormuz, por onde passa grande parte do petrdleo exportado, e de canais como 0 do Panamé e do Egito, por onde passa boa parte do comércio mundial de mercadorias. Com o fim da guerra fria, a nica fonte de(renda estratégica, para alguns paises é, ironicamente, o perigo que sua instabilidade representa para seus vizinhos ricos. Alguns paises ricos preferem ajudar vizinhos pobres para evitar a sua desestabilizacio ¢ conter a migracio. De resto, hd interesse em transformar esses pafses em “Estados-tampao”, isto é, em territérios que sirvam para conter os imigrantes clandestinos, provenientes de paises ainda mais pobres do Sul. E esta realidade que recomenda — na visio de Rivero (2002: 215) — deixar de lado 0 “mito do desenvolvimento”, abandonar a busca do Eldorado, e substituir a agenda da riqueza das nagées pela agenda da sobrevivéncia das nagées. Como jé foi dito, ele insiste que a prioridade atual deve ser estabilizar 0 crescimento urbano ¢ aumentar a disponibilidade de 4gua, energia e alimen- to, para evitar que a vida nas cidades dos paises pobres seja um inferno no futuro. Segundo Rivero, essa meta de equilibrio fisico- 26 social independe de ideologias e por isso pode resultar de um consenso, de “Pactos pela Sobrevivencia”, celebrado por todos os setores politicos em qualquer pafs pobre onde a populagao urba- na cresga demais e haja alarmantes sintomas de i inseguranga hidrica, energética e alimentar. Embora esses “Pactos” possam vir a ser dificultados pela falta de percepgao da classe politica, que nao repara no virus de inviabilidade nem no processo de selegao darwiniana da globalizagao e da revolucio tec Idgica, Rivero (2002: 216) acre- dita que, quase sem que se note, as liderangas acabario por perce- ber que os pafses que tentam governar estao se tornando invidveis, dia apés dia, 4 medida que entram no terceiro milénio. Embora nfo chegue a propor nada de parecido com esses “Pactos de Sobrevivéncia”, o desencanto do diplomata iraniano Majid Rahnema certamente foi idéntico ao de seu colega Oswaldo de Rivero. Convidado pela Universidade da Califérnia/Berkeley para ministrar um curso intitulado O mito e a realidade do desen- volvimento, ele acabou organizando uma impressionante coleta- nea de 37 textos que, de variadas formas, tendem a clamar pela emergéncia de um novo paradigma chamado provisoriamente de pees edesenyolvimentoy Nenhum a ensaios chega perto da posta pelo professor sufgo Gilbert Rist. Mesmo assim, fica im- possivel dizer qual desses dois livros ¢ mais vago em suas conclu- sdes. Ou seja, por mais convincentes que possam ser alguns des- ses esforgos de desconstrugio da idéia de desenvolvimento, nunca chegam a apontar para uma verdadeira alternativa ao desejo cole- tivo de evolugio e progresso que lhes € intrinseco. Serd que esses desiludidos com o desenvolvimento acreditavam na idéia de que os povos pobres poderiam um dia desfrutar das con- 27 digbes de vida dos atuais povos ricos? Talvez esta seja uma ilagZo que nao faga justiga 4 importancia de suas contribuigées intelectuais, mas € uma pergunta que decorre diretamente da critica que fazem a0 desenvolvimento como um processo de transposigées de golfos que separam periféricos e semiperiféricos do restrito clube central. E irrefutdvel que as economias periféricas nunca serdo desenvolvidas, no sentido de similares as economias que formam o centro do sistema capitalista, alertou Celso Furtado, h4 mais de 30 anos, em livro jus- tamente intitulado O mito do desenvolvimento econbmico. ps? O mito segundo Furtado 7 oe Celso Furtado escreveu, em 1974, que a idéia de desenvolvi- mento econdmico é um simples mito. Gragas a essa idéia, diz ele, tem sido poss{vel desviar as atengdes da tarefa bdsica de identifi- cacao das necessidades fundamentais da coletividade e das possi-_ bilidades que abre ao homem o avango da ciéncia, para concentré- las em objetivos abstratos, como sao os investimentos, as exporta- gSes € 0 crescimento. “Como negar que essa idéia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia ¢ lev4-los a jaceitat enormes sacrificios, para legitimar a destruicio de formas —> Ide cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessi- {dade de destruir o meio fisico, para justificar formas de depen- déncia que reforgam o cardter predatério do sistema produtivo?” (Furtado, 1974: 75-6). c O que explica, entdo, que uma mente tio iluminada como a de Furtado tenha se mantido por mais trinta anos concentrada no estudo do desenvolvimento dos paises periféricos, e principal- mente do Brasil? Teria sido apenas um momento infeliz, sabia- mente abandonado em obras posteriores? Ou, ao contrdrio, uma opsio deliberada e coerente em perseverar na anilise de um mito? 28 Esta segunda resposta é a que parece mais provavel, caso a referéncia seja a abertura desse mesmo livro de 1974. Sua primei-{ one ; . ra afitmagao & a de que os mitos tam exercido uma inegavel influl 2 et A éncia sobre a mente dos homens que se empenham em compre- ‘ ender a realidade social. Os cientistas soci: uscan is tém sempre busca- do apoio em algum postulado enraizado num sistema de valores que raramente chegam a explicitar, O mito congrega uma série de hipéteses que ndo podem ser testadas (Furtado, 1974: 15). Contudo, essa nao é uma dificuldade maior, pois o trabalho analitico se realiza em nfvel muito mais préximo da realidade. A funcao principal do mito ¢ orientar, em um plano intuitivo, a construgio daquilo que o grande economista Joseph Alois Schumpeter (1883-1950) chamou de viséo do processo social, sem a qual o trabalho analitico nfo teria qualquer sentido. Uma visio pré-analitica, Assim, os mitos operam como fardis que ilu- minam 0 campo de percep¢éo do cientista social, permitindo-lhe ter uma visio clara de certos problemas ¢ nada ver de outros, 20 mesmo tempo em que lhe proporciona conforto intelectual, pois as discriminagées valorativas que realiza surgem ao seu espirito como um reflexo da realidade objetiva. Sempre segundo Furtado (1974: 16), a literatura sobre o desenvolvimento econémico nos dé um exemplo meridiano desse papel diretor dos! mitos pias ciéncias sociais: pelo menos noventa Por cento de seu contetido se fundam na idéia, que se dé por} = evidente, segundo a qual pode ser universalizado o desenvolvi- |S mento econdmico, tal qual vem sendo praticado pelos paises que lideraram a revolugdo industrial. Os padrdes de consumo da minoria da humanidade que atualmente vive nos pafses alta- mente industrializados poderao ser acessiveis as grandes massas de populagzo em rd4pida expansio que formam a periferia. Essa 29 ~ Cr o idéia constitui, seguramente, um prolongamento do mito do Progresso, elemento essencial na ideologia ditetora da revoluis burguesa, na qual se criow a atual sociedade industrial (Furta- do, 1974: 16). O mais importante é que a idéia de desenvolvimento est4 no cerne da visio de mundo que prevalece em nossa época, Nela se funda o processo de invengao cultural que permite ver 0 homem como um agente transformador do mundo, disse Furtado um quarto de século depois, na apresentago da terceira edigao revis- ta de uma de suas obras primas: Introdugdo ao desenvolvimento. Morfogénese social A humanidade interage com 0 meio no empenho de efetivar suas potencialidades. Por isso, na base da reflexao sobre esse tema existe implicitamente uma teoria geral do homem, uma antropo- logia filoséfica, E € a insuficiéncia dessa teoria que permite enten- der o freqiiente deslizamento para o reducionismo econémico € sociolégico. Todavia, o tema central do estudo do desenvolvimento € a criatividade cultural ea morfogénese social, assuntos que per- manecem praticamente intocados. “Por que uma sociedade apre- senta em determinado perfodo de sua histéria uma grande capa- cidade criadora é algo que nos escapa. Menos sabemos ainda por que a criatividade se orienta nesta ou naquela direcéo” (Furtado, 2000: 7). Existe evidéncia de que afinvengo cultural tende a ocorrer em torno de dois eixos: a busca da eficdcia na agao e a busca de ; peas ah ees ; Propésito para a prépria vida. A primeira tem sido chamada de racionalidade instrumental ou formal e a segunda de racionalidade substantiva, ou dos fins_A invengio diretamente ligada & ago su- PGe a existéncia de objetivos previamente definidos. Ela gera a 30 séenica. Ji a invengio ligada aos des{gnios ultimos gera valores, que podem ser morais, religiosos, estéticos etc. O que nao se sabe ao certo € a raz4o pela qual, neste ou naquele momento de sua histéria, uma sociedade favorece a cria- sao de técnicas e nfo de valores substantivos. Menos conhecidos ainda sao os determinantes que orientam a criatividade de valores substantivos para o plano estético, religioso, polftico ou do saber puro. Contudo, insiste Furtado (2000: 8) “nao temos duvida de! que a inovacao, no que respeita aos meios, vale dizer, o progresso| Gen técnico, possui um poder de difuséo muito maior do que a cria- gio de valores substantivos”. O génio inventivo do homem foi canalizado, nos ultimos duzentos anos, para a criagéo técnica, o que explica sua extra- ordindria capacidade expansiva. E é a esse quadro histérico que se deve atribuir 0 fato de que a teoria do desenvolvimento 4. tenha ficado circunscrita 4 légica dos meios, tendendo a se confundir com a explicagéo do sistema produtivo que emergiu com a civilizagdo industrial. No entanto, o desenvolvimento deve ser entendido como processo de transformagao da socie- dade “nao sé em relagio aos meios, mas também aos fins (...)” (Furtado, 2000: 8). ‘ Em sintese, a publicagio do fivro O mito do desenvolvimento econémico foi um forte momento de inflexéo no pensamento de Celso Furtado. Em suas obras anteriores, ele nao ia tao longe em sua ruptura com a abordagem da Comissdo Econémica para a América Latina e o Caribe (Cepal), como assinalou Fernando Henrique Cardoso no texto “O desenvolvimento na berlinda”, de 1979. Uma excelente ilustragao da tese de que “nas ciéncias sociais os conceitos sao historicamente densos. Quer dizer: eles Precisam redefinir-se sempre que ocorram alteragdes de alcance 31 estrutural nas relagbes sociais. Assim, as novas dimensées — eco- Idgicas ¢ até éticas, por exemplo — enriqueceram as nogées do desenvolvimento”, conforme observacio feita quinze ar anos de- pois, numa conferéncia que o entio presidente da Republica pronunciou em Washington, com um titulo que dificilmente poderia ser mais esclarecedor para os propésitos deste livro: “Desenvolvimento: o mais politico dos temas econdmicos” (Car- doso, 1995). ee O desenvolvimento se identificava com o progresso mate- rial até meados dos anos 1970, lembra Cardoso nessa confe- réncia. Para alguns, o progresso material levaria espontanea- mente & melhoria dos padrées sociais. Para outros, a relagao parecia mais complexa, pois 0 jogo politico intervinha, fazen- do com que o crescimento tomasse rumos diferenciados, com efeitos heterogéneos na estrutura social. Mas todos ainda viam o desenvolvimento como sinénimo de crescimento econdémi- co. Quinze anos depois, quando surgiu o primeiro Relatério do Desenvolvimento Humano (1990), o panorama jd era com- pletamente diferente. O crescimento da economia passara a > | ser entendido por muitos analistas como elemento de um pro- \ cesso maior, j4 que seus resultados nao se traduzem automati- \ camente em beneficios, Percebera-se a importincia de refletir sobre a natureza do desenvolvimento que se almejava. Ficara patente, enfim, que as polfticas de desenvolvimento deveriam ser estruturadas por valores que nfo seriam apenas os da dina- mica econémica. Sen-sacional Aqui est4 a mudanga fundamental no modo de se entender o desenvolvimento. E ela certamente nao foi exposta de forma mais 32 sistematica e cristalina do que na série de conferéncias proferidas entre 1996 ¢ 1997 pelo indiano| Amartya Sen, omo membro da presidéncia do Banco Mundial. Em 1998, cle recebeu 0 Prémio Nobel de Economia, ¢ no ano seguinte, editou essa série de con- feréncias sob o titulo Desenvolvimento como liberdade,\a obra que certamente mais traz respostas positivas e diretas & pergunta: 0 que é desenvolvimento? O trocadilho sen-sacional, que intitulou 0 curto e contraria- do comentério da revista The Economist sobre a premiagao do indiano em 1998, é 0 mais adequado para qualificar esse livro, publicado no Brasil em 2000. E nele que devem ser buscados os fundamentos do que no in{cio deste capftulo foi chamado de (camin go crescimento, e o derrotismo que o descarta como inexeqiifvel. ho do meio, jentre a miopia que reduz o desenvolvimento © que essa obra procura demonstrar é a necessidade de se reco- nhecer o papel das diferentes formas de liberdade no combate as i<- absurdas privagées, destituigées e opressdes existentes em um at mundo marca até mesmo imaginar um ou dois séculos atrds. y O século XX estabeleceu o regime democratico e participativo como modelo preeminente de organizacao politica. Os conceitos de direitos humanos e liberdade politica hoje sio parte da retéri- ca prevalecente. As pessoas vivem em média muito mais tempo do que no passado. E as diferentes regides do globo estio agora mais estreitamente ligadas do que jamais estiveram, nao somente em termos de comércio e comunicagées, mas também de idéias e ideais interativos. Todavia, problemas novos convivem com outros muito an- tigos: a persisténcia da pobreza e de necessidades essenciais nao | cimento variou muito entre os palses, a0 passo que a distribuigio {de renda quase nao mudou em termos comparativos, Isto nao quer dizer que tenha desaparecido a controvérsia sobre as poss{veis vantagens ou desvantagens que poderiam ser proporcionadas ao préprio crescimento por uma melhor distri- buigo da riqueza e da renda. Ha modelos que sugerem, por exem- plo, que o crescimento impulsionado por um determinado setor da economia sé pode ser durdvel se os beneficios do surto inicial forem distribufdos de maneira suficientemente homogénea para 44 que permita a expansio e o aprofundamento dos mercados. Tanto mais favordvel ao crescimento seria o perfil da demanda quanto menos desigual fosse a distribuicio de renda. Outros modelos sugerem que o crescimento ser4 tanto me- nor quanto maior for a desigualdade de renda e de riqueza no pais. Mas as evidéncias empiricas que poderiam confirmar tais conclusées ainda sao insuficientes para que possam abalar 0 con- senso sobre a enorme rigidez das estruturas de distribuicao de renda herdadas do passado pré-moderno de crescimento. Impor- tante literatura sobre o tema tornou-se bem acessivel no Brasil gragas aos artigos traduzidos € publicados por Tedfilo (2000). Mesmo assim, o Fundo Monetério Internacional (FMI) pro- moveu dois importantes encontros sobre o tema (em 1995 e em 1998), cujos trabalhos foram editados por Vito Tanzi e colegas (1998, 2000). A principal intengao dos dois eventos era discutir } a relacio entre distribuicao de renda e crescimento com 0 objeti: vo de avaliar se, ¢ como, ela poderia ser melhorada pelas politicas: econémicas. Mas essa nobre preocupacio foi subvertida pelo prin-j cipal conferencista do segundo desses encontros: Amartya Sen. Ele comegou perguntando se distribuigbes de renda e de ri- queza seriam mesmo temas centrais para as questes de justiga € eqiiidade nos pafses em desenvolvimento. E ilustrou essa pergun- ta com uma comparagio entre a China e a {ndia. Em 1997, os 10% mais pobres da China recebiam apenas 2,2% da renda, en- quanto na India sua parte era dois tergos maior: 3,7%. No excre- mo oposto, na China, os 10% mais ricos recebiam 30,9% da renda, enquanto na India 6 Ihes cabiam 28,4%. Ou seja, haveria mais eqiiidade na India do que na China se avaliada pela distri- buicgo de renda. Todavia, quase metade da populacao adulta da India continuava analfabeta, enquanto na China nao chegava a 45 aS um quinto. Pior, entre as mulheres 0 analfabetismo atingia 62% na India e 27% na China. B claro que a {ndia tinha muito mais habitantes com educagio superior, mas isso sé realgava a maior desigualdade Jes educacionais na {ndia quando comparada & China. O contraste entre os dois pafses cra ainda oportuni mais evidente na drea da satide. Sofriam de subnutrigao 63% das criangas indianas de menos de 5 anos, contra 17% das chinesas. E a taxa de mortalidade infantil era exatamente o dobro na {ndia: 68 por mil contra 34 na China. Em sintese: 0 papel da renda e da riqueza — ainda que seja importantfssimo — tem de ser integrado a um quadro mais amplo e completo de éxito e privacio. A po- breza deve ser vista como uma privagao de capacidades bdsicas, e nfo apenas como baixa renda. Cultura ou natureza? Apesar de a pobreza ser uma idéia essencialmente econdmi- ca, ela nfo pode ser devidamente entendida sem sua dimenséo cultural. E foi o proprio Adam Smith quem primeiro estabeleceu essa estreita ligacdo entre privagao cultural e pobreza econémica. Nao disse apenas que a pobreza assume a forma bruta de fome e Privagao fisica, mas também que ela pode surgir nas dificuldades que alguns segmentos encontram para participar da vida social € cultural da comunidade. A lista de mercadorias que contam como “necessidades” nao sio independentes, segundo Smith, das exi- géncias da cultura local. Para ele, os chamados “bens de primeira necessidade” nao sao apenas aqueles indispensdveis para 0 susten- to, mas todos os que o pafs considera indigno que alguém nao possua. Quando o hdbito fez com que, na Inglaterra, os sapatos de couro se tornassem uma necessidade, qualquer pessoa digna Passou a ter vergonha de aparecer sem eles em ptiblico. A cultura 46 estabelece uma importante relacio entre rendimentos relativos € capacidades humanas absolutas, afirma 0 Relatério de Desenvol- vimento Humano de 2004. “Se aprendemos alguma coisa através da histéria do desen- volvimento econdmico, é que a cultura é a principal geradora de suas diferengas”, resume David Landes no epflogo da obra com que pretendeu explicar “por que algumas nagées sio tio ricas € outras sio tio pobres”, subtitulo do livro A riqueza e a pobreza das nagoes. No fundo, nao hd muita diferenga entre seu pensamento eo de Douglass North, prémio Nobel de Economia em 1993. Segundo North, foi o passivo institucional de pafses como Ar- gentina, Brasil e México 0 que os deixou para trds, pois, apesar de terem recursos naturais favordveis, largaram em desvantagem por terem herdado instituigées de suas respectivas metrdpoles. A Pe- ninsula Ibérica colecionava instituigdes ineficientes, que nao tinham calibre nem maturidade capazes de alicergar o crescimen- to econdmico moderno. Jé os EUA e 0 Canadé tiveram como fonte um sistema bem mais apropriado, gracas a carga genética das instituigdes britanicas. Ou seja, para North, o processo de} desenvolvimento depende essencialmente da qualidade das insti- } tuigoes 5es de cada sociedade, sendo que tais instituiges sao a sinte- | se das crengas de seu povo, Ou ainda: a expresso concreta da mentalidade das pessoas. Por trds das pequenas diferencas semAnticas, os dois se mos- tram igualmente convictos de que as disparidades do desenvolvi- mento nfo devem ser atribufdas a condigées objetivas. Nao é nas bases materiais do processo — como, por exemplo, nos diversos condicionantes bioffsicos — que deveria ser procurada a explica- G40, por mais que estas possam ter influenciado o sucesso de al- gumas nag6es. 47 Todavia, esses dois expoentes da pesquisa em histéria econd- mica deixam escapar argumentos que colidem com sua prépria tese comum, segundo a qual a varidvel-chave seria de ordem mais subjetiva. Landes abre seu livro explicando a importancia das “de- sigualdades da natureza” para contradizer os que desprezam o fato de pafses ricos se situarem nas zonas temperadas ¢ patses pobres nos trépicos e semitrépicos. E North dé a maior bandeira ao explicar por que a Inglaterra gerou instituigdes tao adequadas ao posterior crescimento econdmico moderno, ao contrério das poténcias ibéricas. Em seu belo livro de 1981 — Structure and Change in Economic History —, base da subseqiiente teorizagao, North deixa muito claro o papel determinante das peculiaridades naturais na emergéncia de centralizados direitos de propriedade na Espanha, em contraste com direitos de propriedade bem mais favordveis & iniciativa priva- da, e controlados por um parlamento, tal como surgiram na Ingla- terra. Na Espanha, a criagéo de carneiros sé era vidvel com transumancia: a migragdo periédica dos rebanhos, das planicies para as montanhas no verao, com retorno quando se aproximava 0 inverno. Organizagées de pastores chamadas de mestas foram cen- tralizadas, desde 1273, em uma tnica hiperguilda, intitulada As- sembléia Honordria da Mesta dos Pastores de Castilha. Como essa era a principal fonte de renda da coroa, duas coisas nao cessaram de aumentar: os privilégios dessa corporacao ¢ os direitos monopélicos do Estado. Além de ter ocorrido 0 oposto com 0 comércio das las britanicas, 0 fato de se tratar de uma ilha também faz com que North enfatize a importancia da geografia no melhor desempenho da Inglaterra frente as poténcias rivais do continente. Claro, nada disso deve servir para que se subestime 0 crucial papel das instituigdes que legitimaram os tao diferentes direitos 48 de propriedade depois transpostos para 0 Novo Mundo. Apenas evidencia que as instituigées sio mais resultantes do que funda- mentos das relagées concretas que a espécie humana vem sendo capaz de estabelecer com o grande leque de ambientes naturais que ela foi povoando e artificializando ao longo de cingiienta milénios. Principalmente nos ultimos dez, desde que comegou a produzir alimentos. Por isso, quem da a melhor explicagio para as diferengas espaciais do desenvolvimento é Jared Diamond, biogedgrafo evolucionista da Universidade da Califérnia. Princi- palmente em seu ultimo livro, Prémio Pulitzer de 1998: Armas, germes € aco. O argumento central de Diamond é diametralmente inverso ao da dupla North-Landes, pois mostra que a cultura (conheci- mento, tecnologia etc.) dos povos eurasianos — que nos tltimos quinhentos anos conquistaram todo o resto do planeta — resultou essencialmente de fatores ambientais. Em uma viagem através de treze mil anos de histéria dos continentes, ele se vale da geogra- fia, da botinica, da zoologia, da arqueologia, da lingtifstica e da epidemiologia, para concluir que a variedade dos rumos se deve a diferengas nos substratos biogeofisicos. Em sfntese: vira de cabe- a para baixo a tese idealista de North Landes, aprofundando atualizando o materialismo histérico, cujas bases foram Jangadas por Darwin e Marx. Infelizmente a imensa maioria dos economistas foi levada a acreditar que a ciéncia que deveriam praticar nfo é histérica, ao contrdrio de outras tantas, como a astronomia, climatologia, eco- logia, biologia da evolug’o, geologia ou paleontologia. Em vez de atentarem para as relag6es entre histéria das sociedades humanas e histéria natural, preferem que a economia mimetize ciéncias fundadas na experimentagao, como a fisica, a quimica, ou a bio- 49 logia molecular. Assim, teses como as de North-Landes ou de Diamond s6 podem ser consideradas por eles como reles farinhas do mesmo saco, Contudo, quem realmente se interessa pelo estu- do cientifico dos destinos das sociedades humanas nao deve dei- xar de ler obras como a de Diamond. O leitor certamente se recorda que, em alguma das péginas anteriore,|Celso Furtadoyafirmou que o tema central do estudo do desenvolvimento ¢ a criatividade cultural ¢ a morfogénese so- cial, assunto que permanece praticamente intocado. Quem estu- da morfogenia procura as leis que determinam as formas dos ér- gios e dos seres durante a evolugéo. Ou da disposigao que as moléculas tomam na composigio de um corpo. Ou sob um pri ma ainda mais restrito, das adaptacSes da planta em seu meio natural. Terd sido isto uma mera coincidéncia? Ou serd que ha algum sentido mais profando nessa Sbvia metéfora proposta por Furtado? Quem responde com um inequivoco sim a esta segunda pergunta, pois se dispés a esmiucar essa vizinhanga com as cién- cias da vida, ¢ uma autora infelizmente ainda pouco conhecida no Brasil: a autodidata Jane Jacobs, autora do best-seller Vida e morte das grandes cidades. Em seu ultimo livro, intitulado A natu- reza das economias, ela expie a tese de que “o desenvolvimento econémico é uma versio do desenvolvimento natural”. Um resu- mo dessa idéia ser4 apresentado mais adiante pela reprodugao de alguns trechos dessa ultima obra. Todavia, algumas consideragées fundamentais devem ser feitas antes. E preciso lembrar, por exemplo, que grandes expoentes da his- téria do pensamento econémico ~ como Karl Marx, Alfred Marshall, Carl Menger, Thorstein Veblen, Joseph Schumpeter e até Friederich Hayek — haviam explicitamente preferido as analogias biolégicas 3s fisicas. E, mais recentemente, Nicholas Georgescu-Roegen foi bem 50 mais longe ao afirmar que, no longo prazo, a economia ser& neces- sariamente absorvida pela ecologia. Depois de trabalhar com Schumpeter em Harvard, entre 1934 e 1936,! Georgescu !acabou se convencendo de que 0 mundo econdmico nao pode ser caracte- rizado por ciclos regulares ¢ mecanicos, mas sim irreversibilidades, combinagées que geram novidades, além de histereses (atrasos ou retardamentos do efeito quando as forgas que agem sobre um corpo s4o alternadas por viscosidade ou friccdo interna). Trata-se de uma questao abordada na segunda parte deste livro, na qual seré discu- tido 0 sentido da “sustentabilidade”. Mesmo assim, € bom regis- trar que uma das melhores fontes sobre esse tema é, sem duivida, o livro de Geoffrey M. Hodgson (1993) Economics and Evolution; Bringing life back into economics. O modelo de pensamento dominante na ciéncia econémica sempre foi mec&nico e fascinado pela idéia de equilfbrio. A preva- lecente suposi¢ao de que o sistema econémico poderia atingir um “6timo” sempre ignorou a unio entre os sistemas econdmicos € bidticos, além de desdenhar a existéncia de limites naturais. Nos modelos econédmicos convencionais, os fatores que devem ser maximizados sao utilidades individuais e no as necessidades de um sistema bidtico. Conseqiientemente, as politicas econémicas ficaram cegas para quaisquer condicionantes de ordem ecoldgica. Por isso mesmo, é uma volta a metdfora biolégica — diz Hodgson (1993: 267) — que pode ajudar a construir uma ciéncia econdmi- ca alternativa. A analogia de Jacobs Jane Jacobs comega com as seguintes questées: de onde vém as coisas novas? Por que as coisas nfo sio como sempre foram? Qualquer tentativa de responder a tais perguntas revelard que, 51 em sentido amplo, o desenvolvimento deve ser detinidy como uma mudanga qualitativa siguificativa, que porlinente Heontece Te mancita cumulativa, Procunindo fundamentos 4 Ais aplicd is a todos os tipos de desenvolvimento, Jacobs alude inclusive a ibilidade de desenvolvimento inanimado, como o de po Hos que desenvolvem deltas depositando lodo, ondas que desenvolvem bancos de areia, ou sistemas climaticos que desenvolvem ventos © tempestades, As formas de desenvolvimento variam enormemen: te, Um embriio de rato e um broto de feijio nao se desenvolvem exatamente da mesma forma, embora estejam ambos vivos. As- sim também, um animal, uma planta, um de » um eddigo jurf- dico ou uma nova sola de sapato — todos dependem do mesmo processo basico para se desenvolver, Nio sao simples metéforas, Embriologistas ¢ evolucior do século XIX foram os primeiros a tentar entender seriamente o desenvolvimento como um processo natural. A esséncia de sua definigio era a seguinte: diferenciagies emengindo de general dades. Apenas quatro palavras, mas que descrevem desenvolvi- mento em todas as escalas de tempo e de dimensio, seja anima- do ou inanimado. O segundo principio é 0 de que as diferencia goes. Em outras pal que cria complexidade ¢ diversidade, porque nuiltiplas genera- ras, desenvolvimento € um processo aberto lidades sio fontes de miiltiplas diversificagées — algumas ocor ; Pore tendo simultaneamente, em paralelo, outras em seqiléncia, Por tanto, um simples processo basico, quando se repete, se repete € se repete, produz atordoante diversidade, E 0 terceiro ¢ tiltimo princtpio diz que desenvolvimento ‘0 depende de co-desenvolvimento. Nao adianta pensar o desenvolvimento de forma linear, ou mes- mo como um conjunto de linhas abertas, Ele opera como uma 52 rede de co-desenvolvimentos interdependentes, Sem essa rede nio ha desenvolvimento, Os seres humanos criaram deliberadamente centenas de no- vas variedades ~ ndo necessariamente novas espécies — porcos, de cies, cabras © outros animais, juntamente com milhares de novas variedades e aleumas novas espécies de plantas comestiveis € ornamentais. Isso foi feito estimulando diferenciacées desejé- veis ¢ selecionando as que mereciam novos estimulos. Grupos humanos comegaram a fazer ferramentas e armas com objetos naturais. Comegaram com generalidades que coletavam, como varas, pedras, ossos ¢ fogo. Diferenciaram essas generalidades na forma de martelos, langas, raspadeiras, aticadores e archotes. E como uma coisa leva & outra, também surgiram arcos, pontas de flecha, redes, jangadas, pigmentos, cornetas, mantos, sacos etc. Quanto mais diferenciagdes, mais generalidades; ¢ quanto mais generalidades, mais bases para desenvolvimentos posteriores, ¢ assim por diante. No que conceme & vida econdmica, a maior diferenciagio que emergiu da repartigao foi a pritica da {oca. Foi aos poucos que os grupos humanos foram diferenciando comerciar de repartir € de tomar. Como legitima generalidade, 0 comércio foi fonte prolifica de diferenciagdes posteriores, nas reas de transportes, comunicagées, finangas, mercados, estocagem etc. E também no desenvolvimento de cédigos legais envolvendo contratos, respon- sabilidades ou propriedades, ¢ cédigos sociais envolvendo coope- rago a distancia. Pode-se ir muito longe nesse tipo de associagSes, mas € pre- A idéia aqui € que o desenvolvimento econémico utiliza os mesmos prin- ciso entender que nao se trata de imitagao da nature: cipios universais utilizados pelo resto da natureza. Nao hi Possi- 53 bilidade de desenvolvimento de ontra forma, porque no hé g b uL- tra forma. Milhares de anos antes de alguém ter um vislumbre dos pro cessos evolucionistas ou de desenvolvimento bioldgico, as Pessoas fos, Milha- res de anos antes de surgir qualquer conhecimento realmente ci- jé estavam trabalhando com cepas diferenciadas de g entifico, as pessoas estavam combinando materiais e artefatos que tinham linhagens econdmicas radicalmente diferentes. Mesmo hoje, quando as pessoas educadas tém conhecimento de simbiontes no resto da natureza, inventores que combinam chips de silfcio com teclados de méquinas de escrever (ou quaisquer outros artefatos e materiais com diferentes linhagens econdmi- cas) no esto imitando células animais ou mitocéndrias. Em vez disso, esto utilizando princ{pios universais de desenvolvimento e de co-desenvolvimento pela boa razo de que nao hd outros disponiveis. Em poucas palavras: 0 desenvolvimento econdmico é andmico € uma versao do desenvolvimento natural. Qual seria, contudo, o interesse prdtico dessa idéia segundo a qual o desenvolvimento decosre de diferenciagdes que emergem de generalidades? Basicamente a necessidade de entender que 0 desenvolvimento nao é uma colegio de coisas, mas sim um pro- cesso que produz coisas. Como nio compreendem isso, muitos governos, suas agéncias de ajuda, organizagées internacionais, as- sim como a maioria das pessoas, supdem que o desenvolvimento econdmico resulta da posse de coisas como fibricas, barragens, escolas, tratores e outras — geralmente montes de coisas engloba- das sob 0 nome de infra-estrutura. No entanto, se o processo de desenvolvimento est4 falhando em uma cidade ou uma regio, as coisas que lhe sejam dadas ou idas 64 em vendidas sio apenas produtos de um processo que acontece 54 outro lugar. ° Processo nao vai junto, magicamente, Pensar que as coisas, por si mesmas, sio suficientes para promover o desen- volvimento cria falsas ¢ fiteis expectativas. Pior ainda, evita pro- vidéncias que poderiam efetivamente promover o desenvolvimento, O que o processo exige € essencialmente pessoas criativas. E os seres humanos sao naturalmente criativos. Alguns mais do que outros, quer seja por natureza, educacio ou por ambos. Mas a criatividade ocorre permanentemente nos mais inesperados luga- es. Infelizmente, grandes parcelas da populaglo se véem impedi- e de exercer a iniciativa e a criatividade econémica em razao de discriminagoes ligadas a sexo, raga, casta, religiao, classe social, ideologia etc, © trabalho realizado por pessoas sujeitas a tais tipos de dis- criminag6es tende a ficar esterilizado, j4 que nao pode se consti- tuir em generalidades das quais venham a emergir novas diferen- ciagées. E se categorias de pessoas, executando tipos especificos de trabalho, nao conseguem utiliz4-los como bases para o desen- volvimento, é muito pouco provavel que mais alguém nessa eco- nomia 0 consiga. Nao é de admirar, por exemplo, que sociedades machistas, que oprimem as mulheres e desdenham de seu traba- tho, tenham economias lamentavelmente fracas. Escravidio, servidao, ou sistemas de castas, nao sio apenas um ultraje social, S40 deficiéncias econémicas que literalmente impedem 0 desenvolvimento dos tipos de trabalho realizados por escravos, servos ou proscritos; e ninguém mais se encarrega desses desenvolvimentos, As pessoas nao precisam ser geniais ou extra- ordinariamente talentosas para desenvolver seu trabalho. Os re- quisitos sio dois: iniciativa e diligéncia, qualidades abundantes entre os humanos quando nao sao desestimuladas ou suprimidas. Isso fica patente diante da mudanga de comportamento de imi- 55 grantes, ou de seus filhos, quando se mudam de uma sociedade tradicionalmente opressiva para outra mais aberta. Crescimento = expansio Ninguém duvida de que o crescimento é um fator muito importante para o desenvolvimento. Mas nao se deve esquecer que no crescimento a mudanga é quantitativa, enquanto no de- senvolvimento ela ¢ qualitativa. Os dois estao intimamente |i- gados, mas nfo sio a mesma coisa. E sob varios prismas a expan- sao econémica chega a ser bem mais intrigante que o desenvol- vimento, O mais espantoso caso € o da expansio natural. Isto é, dos aumentos de volume e¢ de peso da biomassa do planeta Terra. Comegando do nada, antes da vida comegar, a biomassa agora inclui imenso conglomerado de plantas ¢ animais, entre os quais bilhdes de seres humanos. Cerca de 75% a 80% do total dessa biomassa sio microrganismos, que em grande parte vivem nas camadas profundas da Terra. Bactérias vivem até sob o gelo polar. Além disso, ainda é preciso adicionar muitas.qutras coisas, como madeiras, papéis, roupas e trilhdes e trilhdes de vidas extintas que se transformaram em fésseis, htimus, conchas marinhas integra- das em gizes, pedras calcdrias, travertinos, mérmores etc. Claro, nada disso teria ocortido sem desenvolvimentos ¢ co- desenvolvimentos, processos fortemente entrelagados & expansio, que se viabilizam uns aos outros. Mas h4 o problema de saber como se deram tais processos. Por si mesmos, o sol e a chuva, a atmosfera € 0 solo, no contribuem para essa expansio ¢ diversifi- cagao da biomassa. Na verdade, o “x” da questo € 0 uso multiplo que um ecossistema consegue fazer da energia recebida antes de descarregé-la para seu exterior, Um uso miiltiplo que requer usu- 56 drios interdependentes. Quanto mais diferenciados forem os meios que um sistema possui para recapturar ¢ transferir energia antes que seja descarregada, maiores serao os efeitos cumulativos dessa energia que ele recebe. Hé ecossistemas em que nao acontece muita coisa. Quando a luz do sol incide sobre um deserto, aquece areia € rochas, mas, quando cai a noite, até mesmo a pequena quantidade de energia temporariamente retida como calor é irradiada para o exterior. A passagem de energia é rdpida e simples. Ela se dissipa, pratica- mente sem deixar tragos... E verdade que os desertos nao sao tao destituidos de vida como parecem. Mas, pela falta d’4gua, ou por causa do frio no caso dos pdlos, sé uma minima parte da energia que recebem & armazenada em tecidos ou usada em atividades metabélicas, neurais e musculares. Coisa idéntica ocorre quando a luz solar incide sobre superficies pavimentadas, e até sobre cor- pos d’4gua muito poluidos, mesmo que quentes ¢ imidos. No extremo oposto esto os ecossistemas florestais. Neles 0 fluxo de energia pode ser tudo, menos répido e simples. Devido as muitas e diversificadas formas pelas quais a rede de organismos abundantes e independentes utiliza a luz do sol, 4 medida que os atravessa, essa energia é transformada e retransformada, combi- nada ¢ recombinada, processada ¢ reprocessada. Através de um conduto tio intrincado, o fluxo de energia é dilatdrio e digressivo, deixando ampla evidéncia de sua passagem em complexas redes de vida. Essas répidas pinceladas sobre os dois casos extremos de ex- pansao da biomassa sao suficientes para que se estabeleca uma analogia com o crescimento econémico. Municfpios, cidades, re- gides, ou qualquer comunidade, crescem com produgio compe- titiva para a exportacio, nao no sentido mais corriqueiro de ex- 57 portayao panto exterior de un pals, mas no sentido préprio e genérice de vendas para fo1n do sivtema comiderado, podendo scr evidentemente domésticas, Fa produgio para exportagio que impulsiona ou comanda a expansio ccondimica de wna comuni- dade, O crescimento de uma economia nacional € 0 saldo das cxpansbes ¢ retragies Hywidlas do conjunto de suas comunidades, Mas é preciso lembrar que esses produtos finais exporta- dos pelas comunidades sio uma espécie de descarga ou rejeito de energia ccondmica, Indo se transformar em importages em algum outro lugar, mas foram expelidas do local onde foram produzidas como cnergia-matéria-transformada, E. deixando de lado os sonhos de descoberta do moto-continuo, é ébvio que deve ter havido antes algum suprimento de energia-maté- ria, Toda ¢ qualquer comunidade precisa de pelo menos algum recurso utilizdvel que é d4diva da natureza. Isto ¢, uma heran- ga do desenvolvimento ¢ da expansio passados da Terra. Se nao houver um recurso ou uma combinagao de recursos dis- ponfveis, a comunidade sequer poderd se estabelecer naquele local. E muito comum que esse recurso inicial seja solo fértil, mas também pode ser um sem-ntimero de outras coisas: animais sel- vagens, sflex, castanheiras, argila, minérios, uma queda d’4gua, combustivel féssil, fontes térmicas, uma praia. Na pior das hipé- teses, uma comunidade comega com uma boa localizagio, um excelente recurso se for um lugar protegido ¢ conveniente para as Pessoas se encontrarem e trocarem bens ¢ servigos. Combinagéo Jane Jacobs lembra que o recurso inicial de Veneza foi o sal, dédiva do mar que trazia outras importagées ao ser negoci- 58 ado com Constantinopla. Lembra também que o velho e es- tranho edificio da bolsa de valores de Copenhague exibe uma imagem nistica, em ferro, que representa um arenque curvado na posigao de um feto humano, simbolizando que 0 comércio de arenque foi o embrido da economia da cidade. Seus cida- daos sabem que sua economia comegou com essa dddiva do mar e querem que a posteridade se lembre desse fato (Jacobs, 2001: 67). A base econémica inicial mais significativa de Roma foi a abundancia de pastagens para o gado, que nao apenas supriu os romanos de carne, mas também de couro para exportar para as comunidades etruscas do norte, mais antigas e mais ricas. As ci- dades etruscas exploravam riquezas naturais de minério de ferro, tanto para uso préprio quanto para exportar para as cidades mais antigas e mais ricas do Orieate Médio. Osaka, Chicago, Paris ¢ Sao Francisco so exemplos de muitas e muitas comunidades cujo principal, as vezes tinico, patriménio econémico inicial foi uma boa localizago para um centro de comércio. ~~ E da combinacao de dédivas da natureza com trabalho hu- |! mano que surge o recurso inicial da economia de qualquer comu-|| 4 nidade. Os venezianos souberam levar com muita habilidade a 4gua do mar para uma série de lagunas transformadas em depési- tos de evaporagao. Os pescadores do Baltico e do mar do Norte arriscaram suas vidas na pesca do arenque. Os primeiros romanos se dedicaram ao pastoreio, abate e preparo do couro curtido. Minas e pedreiras exigiram trabalho pesad{ssimo de muitos po- vos. E para satisfazer mercadores em um centro de comércio sao necessdrios hospedarias, carregadores, caixas para embalagens, armazéns, seguranga, artigos de viagem e transporte. Enfim, do ponto de vista qualitativo, o principal ingrediente ¢ 0 trabalho 59 humano, mesmo que nem sempre o seja do Ponto de vista quan- titativo. E 0 trabalho humano que transforma os recursos importados da natureza, isolando, recombinando, transferindo, reciclando etc. E isso envolve muita habilitagio, informasao e experiéncia ~ potencialidades humanas cultivadas — resultantes de investimen- tos feitos pelo publico, por pais, por empregadores, ¢ pelas pré- prias pessoas. Por isso é que passou a ser tio usada a expressio “capital humano”. Tanto quanto nos casos extremos do deserto e da floresta, na economia também é€ da diversidade interna do sistema que de- pendem a expansio ¢ o desenvolvimento. A energia recebida do exterior pode ser imensa ¢ diversificada: dispendiosos equipamentos para semear, tratar ¢ colher (as vezes irrigar) com suas pecas de reposigao e combustivel, caminhées, sementes, fertilizantes, cer- cas, praguicidas, herbicidas e, obviamente, viveres. Quase todas essas importagGes so incorporadas diretamente ao cultivo para alimentar, vestir e abrigar os agricultores e suas familias. A passa- gem de quase todas as importagées através do conduto dessa co- munidade é direta, de um extremo a outro. Nao hd duvida de que, assim utilizadas, as importagées dei- xam pitadas de outras atividades econédmicas como evidéncias de sua passagem: usuais lojas e estabelecimentos de diversdo e ou- tros locais de uso coletivo, além dos servigos publicos basicos, que podem ser bem financiados por impostos cobrados de todos. E devem procurar trabalho em outras paragens todos os jovens que nao estiverem diretamente vinculados ou muito interessados na agricultura. Nem sempre dependem de recursos naturais essas comuni- dades nado complexas, com condutos de energia simples e diretos. 60 Algumas dependem de operagées singulares, como bases milita- res ou instalagdes turist as, Outras sio cidades que dependem de um tinico grande empreendimento industrial, E nada disso quer dizer que as exportagdes de comunidades desse tipo sejam pouco valiosas. Ao contrfrio, costumam ser muito valiosas como importagdes de outras comunidades. Mas nessa condigao passam a ser energia importada, cujo valor depende do conduto da co- munidade que as recebe. Quando sio recebidas por comunidades que sio eficazes em consumir importagdes, carregam consigo a capacidade de atuar como multiplicadores econédmicos. Se forem recebidas por comunidades nao complexas, perderio esse poten- cial. Essa hipétese do fluxo de energia da expansio econémica explica por que paises com comunidades predominantemente turais costumam ser pobres, no importando quao grandes ou pequenas sejam as importagées e exportagdes. Também explica por que as economias mais expandidas — as ricas — sio sempre muito diversificadas. Enfim, “a correlagio pritica entre desenvol- vimento econémico ¢ expanséo econémica é a diversidade econd- mica”, conclui Jane Jacobs. Dez milénios de crescimento Desde meados do século XVIII, com a Revolugao Industrial, a histéria da humanidade passou a ser quase inteiramente deter- minada pelo fendmeno do crescimento econémico. A vida cotidi- ana foi totalmente transformada, ¢ nao hd exagero em dizer que o padrao de vida das pessoas foi multiplicado por dez nas 4reas em que esse tipo de crescimento primeiro se manifestou. Em parale- lo — mas somente desde meados do século XIX -, a populagio mundial passou a aumentar a taxas absolutamente inéditas, prin- 61 cipalmente devido & redugo da mortalidade humana. A ¢speran- ga de vida praticamente dobrou, passando, Grosso modo, de 35 para 70 anos. Todavia, esse fendmeno, que muitos demégrafos chamam de “revolugio da mortalidade”, nao foi uma simples manifestagio, ou decorréncia, do crescimento econdmico desen- cadeado pela industrializagio. Ao contrdrio, a mortalidade hu- mana aumentou muito com a r4pida urbanizagio das primeiras etapas da Revolusio Industrial. Foi somente no final do sécule XIX que ela comegou a cair de forma substancial e consistente nos pafses do norte da Europa. E tal defasagem nado impediu que se espalhasse pelo mundo com mais rapidez do que 0 crescimen- to econdmico marcado pela industrializagio. A mortalidade pas- sou a cair inclusive em economias das mais estagnadas, Quando se procura explicar essas significativas distincias de cronologia ¢ de velocidade entre as duas citadas revolugdes, logo fica evidente que elas nao tém as mesmas nascentes. Foram inova- ed: medicina, que sé comegaram a aparecer no final do século XIX, as responsdveis pelos rapidissimos aumentos da esperanga de vida (que parecem con- vergir para idades superiores a 70 anos por volta de 2025). E tais inovagées nao foram impulsionadas pela propriedade privada e pela busca do lucro, determinantes fundamentais da Revolugao Industrial e do tipo de crescimento econdmico que ela inaugu- rou. Resultaram essencialmente da iniciativa governamental e do empreendedorismo publico. Também é errado pensar que o crescimento econémico foi produto da Revolugao Industrial. Essa crenga envolve dois sérios equivocos. O principal é a subestimagio do crescimento anterior. Nao somente aquele que preparou varios territérios europeus para ae os €sse processo revoluciondrio, como também o que ocorreu ni 62 milénios anteriores, principalmente no Oriente. O outro engano est4 na prépria escolha da Revolugio Industrial como marco da grande virada. O que realmente provocou uma mudanga funda- mental no funcionamento do mundo foi muito mais o casamen- to entre ciéncia e tecnologia, no final do século XIX, do que a emergéncia de fibricas, operdrios e mdquinas a vapor, quase cem anos antes. Nao é mais possfvel levar a sério a idéia de que a notdvel auséncia de importantes melhoramentos técnicos teria sido uma das causas do lento ritmo de progresso, ou mesmo da “falta de progresso” antes do inicio do século XVIII, como pensava até o préprio Keynes. Avangos agticolas de dez milénios — e particular- mente as transformagoes péds-renascentistas da agropecudria eu- ropéia — fazem parte de uma tinica dinamica que s6 foi essencial- mente alterada na segunda metade do século XIX. Mesmo que vagaroso, foi imenso o progresso baseado em atividades primérias € artesanais. Nao somente o crescimento é um fendmeno muito mais antigo do que se imagina, como sua versio moderna é mais nova do que parece. E verdade que a comparacio entre o crescimento econémico dos uiltimos duzentos anos e o de milénios anteriores dé mesmo a impressio de que toda a época pré-industrial foi marcada por uma espécie de estagnacao permanente. Como disse Keynes, em As possibilidades econémicas de nossos netos, seu espitituoso ensaio de 1930, até 0 infcio do século XVIII, nao teria havido mudanga muito grande no padrao de vida do homem médio, do habitante dos centros civilizados da Terra. Duas razdes teriam causado esse titmo lento de progresso, ou falta de progresso: a notdvel ausén- cia de importantes melhoramentos técnicos e a deficiéncia da acumulagao de capital. 63 (y Como muitos outros grandes pensadores, Keynes Notou enor. me contraste entre a lentidio das mudangas anteriores ao séculg XVIII ¢ a progressio cumulativa iniciada por invengoes ' cientifi- cas e técnicas, e definitivamente impulsionada por meio do car- io, do vapor, da eletrcidade, do petrdleo ¢ do aso, da borracha, do algodao e das industrias qu{micas, das méquinas autométicas e dos métodos de produgao de massa, do telégrafo e da i imprensa, de Newton, Darwin e Einstein, e milhares de outras coisas, ho- mens famosos e conhecidos demais para que fosse necessério enumeré-los (Keynes, 1984). Duas adverténcias No entanto, o prémio Nobel de Economia de 1971, Simon Kuznets, um dos principais estudiosos das causas e das variaces do crescimento econémico, preferiu tomar uma certa distancia desse maniquefsmo. Na abertura do mais importante de seus li- vros, Crescimento econémico moderno; ritmo, estrutura e difuséo, de 1966, Kuznets introduziu{duas “observagses alertadoras”}que in- felizmente continuam ignoradas pelos manuais de economia. Em primeiro lugar, dizia ele, “os rompimentos bruscos sugeridos pe- las distingdes entre épocas econdmicas nao ocorrem na realidade. Uma parte do ctescimento econdmico dos tempos modernos nao era apoiada na tecnologia baseada na ciéncia, sendo, antes, fruto de um Processo lento de aprendizagem constitufdo de tentativas ¢ etros. Em segundo lugar, estamos ainda vivendo essa época (modérna); e, embora tenha decorrido um tempo suficiente, € uma experiéncia suficientemente variada tenha sido acumulada de modo a permitir-nos distinguir seus tragos fundamentais, n0 se trata absolutamente de um cap{tulo encerrado. Por conseguin f i- te, embora possamos tratar das caracteristicas da época econdm 64 ca moderna como as vemos atualmente, as formas finais dessas caracteristicas estio no momento ocultas para nds.” Ou seja, a principal advert cia ide Kuznets referia-se a pos- siveis continuidades ¢ regularidades’do crescimento econdmico em geral, que poderiam reduzir as distingées entre as épocas moderna e pré-moderna. Hoje jé se pode afirmar com muito mais seguranga que mesmo o crescimento intensivo — isto é, com au- mento da renda per capita — € um fendmeno que njo se restringe a época moderna, pois sua recorréncia anterior foi muito maior do que se poderia supor. O que ainda nao se conhece bem sao as causas das também recorrentes frustragSes desses surtos de cresci- as mento intensivo que ocorreram antes do Renascimento. Com cer- (() teza, razdes eminentemente ecoldgicas inviabilizaram a continui- dade de certas civilizagées. Guerras, principalmente as invasdes ©) barbaras, liquidaram tantas outras. E nao se pode descartar a hi- potese de que muitos desses desastres tenham sido provocados por descompassos entre o crescimento populacional e a disponi- 3 bilidade de alimentos (o dilema malthusiano), ou mesmo por uma espécie de vampirismo social, fendmeno que os economistas 47> de lingua inglesa chamam de “rent-seeking”. Kuznets também alertou sobre a possibilidade de estarem ocultas para nés as formas finais do crescimento econdmico mo- derno. E nao parece haver duvida de que o crescimento econémi- co dos tiltimos vinte ¢ cinco anos adquiriu caracterfsticas bem diferentes das que puderam ser por ele examinadas até 1966, Em dezenas de pafses desenvolvidos e “em desenvolvimento”, as taxas médias anuais de crescimento per capita cairam pela metade. Em muitos outros se tornaram até negativas. Paralelamente, surgiram_ novas diividas, tanto sobre a sustentabilidade ambiental dos pa- drdes de crescimento do perfodo 1950-73, conhecido como a * Bppleg te 4o—tar J ew a of Anh e ae Cotte des Conn! en Toma Pola ‘Era de Ouro”, quanto sobre 0 futuro do emprego, ¢ até da “soci- edade de trabalho”. Evidéncias Do surgimento da agricultura, ha cerca de dez mil anos, ao inicio do século XIX, 0 crescimento da economia mundial foi pre- dominantemente extensivo, isto é, com produgao e populagio au- mentando a taxas muito préximas. Mas isto nao quer dizer que crescimento intensivo, com aumento da renda per capita — esséncia do crescimento econdmico moderno —, sé tenha se manifestado nos tiltimos duzentos anos, apés a ascensio da grande industria. O crescimento da era pré-industrial nao podia deixar de ser principalmente extensivo, porque as mudangas tecnolégicas que permitiam a progressiva intensificagdo agrfcola resultavam em reducao da produtividade do trabalho, apesar do aumento do rendimento fisico das culturas (produtividade dos recursos natu- rais). A intensificagio agricola de toda a época pré-industrial foi um drduo processo de encurtamento do periodo de descanso da terra (pousio). Por milénios, s6 houve agricultura sem qualquer forma de aporte de Agua (submersio ou irtigagéo), isto é, agricul- tura de sequeiro, em ecossistemas florestais, com sistemas produ- tivos que exigiam a completa regeneragao da cobertura vegetal por meio de pousios que duravam de vinte a trinta anos. O en- curtamento desses perfodos de descanso, por meio de tratos cul- turais e fertilizagio, nio aumentava a produgao na proporgio do aumento das necessidades de trabalho, acarretando redugio da produtividade marginal do trabalho. Em tais circunstincias, sé a pressao populacional podia levar as sociedades antigas a adota- rem inovagées tecnoldgicas, como mostrou o notével trabalho de Ester Boserup. 66

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