Fernandes, A Constituição Como Projeto Político

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‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 47-56, 1.sem. 1989. A CONSTITUIGAO COMO PROJETO POLITICO* Florestan Fernandes ** RESUMO: Este discurso parlamentar elabora uma andlise hist6rico-sociol6gica das condigées econdmicas, polfticas ¢ sociais da dimensio polftica das constituig6es brasileiras, que sfo vistas como projetos das classes dominantes com 0 objetivo de organizar a soci dade civil e 0 Estado. Primeiramente mostra-se como, jf com a nossa primeira constitui- ‘do, se estabelece uma tradi¢o marcada pelo modernismo importado, pelo formalismo ju- rfdico avancado ¢ pela excluséo da maioria da populacdo trabalhadora aos direitos & parti- cipacéo efetiva na organizagio da sociedade. Em seguida, examinam-se 0s dilemas da atual Assembléia Nacional Constituinte, dividida entre dois grupos opostos: o conservador, que pretende realizar apenas uma revisio constitucional, ¢ 0 radical, que almeja romper com a ‘ordem ilegal imposta pela ditadura militar ainda persistente na Nova Repdblica. UNITERMOS: Constituicées Brasileiras, Assembléia Nacional Constituinte. As constituig6es que caracterizam a evolucdo dos povos modemnos sempre contém um projeto politico. Este projeto, por sua vez, traduz ideolégica e socialmente como as + Primeira intervenc&o no grande expediente dos temas constitucionais no Parlamento, 2 12/0787. ** Professor Emérito da Universidade de So Paulo, Deputado Constituinte (PT/SP). 48 FERNANDES, Florestan. A Constituigo como projeto polftico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S: Paulo, 1(1): 47-56, I.sem. 1989. classes dominantes pretendem organizar a sociedade civil ¢ 0 Estado. Toda sociedade estratificada possui certas possibilidades de organizar a sociedade civil ¢ o Estado. Tais possibilidades nfo so um efeito do acaso, mas de determinagées do modo de produgao econémica, dos interesses da situacdo de classe dos estratos sociais que se apropriam do poder real, dominam as outras classes e estratificam a sociedade civil como condi¢gao fistorica para reproduzir a orden social existente. A revolugdo inglesa e a revolucao francesa so exemplos experimentais dessa constatagéo. O mesmo se pode dizer da re- volugdo norte-americana e da revolugao japonesa ou da revolucéo prussiana, a partir de Bismarck, embora essas revolugées apresentem configurag6es muito distintas, quando comparadas aquelas duas revolugées “‘classicas”. ‘A Alemanha era um pafs periférico, dependente e subdesenvolvido; os Estados Unidos tinham um passado colonial e corriam o risco de realizar uma independéncia engolfada na dominacéo econémica externa, através do mercado, e, portanto, de ver sua soberania politica corrofda e o forte impulso de seu “destino manifesto” anulado; o Ja- pio resistiu decididamente ao drama do colonialismo, contornando-o e resguardando-se como uma nacdo independente, por meio de uma revolugio econémica sob controle so- cial e politico interno. (0 Brasil caminhou em outra direcéo, como sucedeu em toda a ‘América Latina, Aceitou a dominacio indireta como uma vantagem histérica, privile- giando a preservagdo das estruturas coloniais de produgao ¢ estratificagdo social. ‘A Magna Carta nao se vinculou ao liberalismo anti-colonialista, mas ao absolutismo da coroa ¢ a um modelo de sociedade civil que restringia a monarquia constitucional & vontade politica dos senhores de escravos. |BSsa/é a raiz de nossa tradi¢ao constitucio- nal. Impregnada de modernismo importado e de formalismo juridico avangado, porém um biombo para excluir os homens pobres livres da sociedade civil e para dar continui- dade & existéncia e A sobrevivéncia da escravidio, com as novas perspectivas que se abriam a uma economia satelizada e exportadora. Af esté a raiz remota, mas que ressurge como uma hidra de sete cabegas no agra- ‘vamento sempre renovado da “‘tragédia brasileira”. N&O/@xiSte mia CORSCiénCcia/constic tucionalista, porque nao existe uma sociedade civil que associe 0 modo de produgio ca- pitalista a necessidade histérica das varias revolugées burguesas (como a revolucdo na- cional, a transformacio estrutural capitalista no campo, € revolugao urbana ¢ a revolu- 40 democritica). A nossa modernizagio politica se reduziu & importagao de uma tec- nologia estatal de dominacdo de classe. A modemizagéo se impunha: de fora, para en- cadear a produgdo econémica interna ao mercado mundial; de dentro, para que as clas- ses dominantes pudessem dispor de instrumentos eficazes de defesa da ordem e pudes- sem associar-se aos estratos mais poderosos da burguesia intemacional contando com freios para limitar o constante desgaste que eles exerciam sobre a soberania do Estado, A FERNANDES, Florestan, A Coastituigho como projeto poltco, Tempo Soclal;- Rev, Sociol, USP,S. 49 Paulo, (1): 47-56, Lem. 1989, proieto pai ~ democracia converteu-se em um jogo entre os mais iguais, um sistema de poder defor- mado; e 0 constitucionalismo era em si mesmo uma farsa politica, que sequer encobria ideologicamente as cruas realidades que faziam do Estado um feitor de escravos e um castrador da Nag4o, como se 0 vinco colonial permanecesse perpetuamente vivo nessa esfera. A constituigao da Republica velha manteve-se nesse limite. A crise do modo de producio escravista era muito recente para associar a revolugao da sociedade civil e do Estado na elaboragio da Carta Magna. Mera Cépia\de progressos de outros paises, ela Por sua vez, @ constituigéo de 1934 vem rente a contradigées que dividiam as classes dominantes, suas elites e as relagées delas com a Nagao. Por isso, ela registra um salto histérico, que no se concretizou porque as classes dominantes ¢ suas elites preferiram defender-se fora e acima do circuit das revolugdes burguesas, recorrendo a uma ditadura que recompés a estabilidade politica dentro da ordem. O Estado Novo monta & perfeigao a arquitetura de um modelo eficiente de “paz burgue- sa” e, a0 mesmo tempo, articula os interesses divergentes dos varios setores da burgue- sia. A oligarquia, que os historiadores enterram prematuramente com a Republica velha, é reciclada. A plutocracia emergente, lastreada no capital estrangeiro, no industrialismo, nos dinamismos em crescimento moderado do mercado interno, nos desdobramentos fi- nanceiros de todas essas vergénteas do capital, ganha um espaco politico unificado e um ponto de partida para enfrentar as conseqiiéncias de uma revolucao politica que ela se recusou a levar avante, das constrigées e cicatrizes do regime ditatorial ¢ da transigao para uma nova era, dita “democratica”. Chegamos, assim, ao que muitos entendem como os “efeitos do témino da guer- ra” e da “derrota do fascismo”. Um palavreado oco, © Brasil se alterara durante a guerra e a principal transformagio aparece nos ritmos da industrializaco, do desenvol- vimento das cidades, do crescimento do mercado interno, da nova associagdo entre a ci- dade e 0 campo sob a primazia da primeira, das migragées intemnas e, especialmente, das modificagées estruturais do regime de classes. A presséo de baixo para cima torna- ra-se demasiado forte para o esquema de paz burguesa, montado pelo Estado Novo. 0 referido esquema de paz social nunca deixou de operar contra os oprimidos, as reivindi- cagées do movimento operario e sindical, a eclosio democritica visada pelo polo pro- letdrio da luta de classes, até hoje. 50 FERNANDES, Florestan. A Constimicfo como projeto politico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S, Paulo, 1(1): 47-56, I.sem. 1989. Pela primeira vez em nossa histéria, as classes dominantes sao forgadas a travar a luta de classes dentro do Parlamento, Todavia, usam a tética de ceder terreno no plano formal ¢ ideolégico, mantendo firmes as rédeas da dominacdo de classes (no que se viam ajudadas pela heranga institucional, legal e politica do Estado Novo, mantida in- tacta nos pontos essenciais). A maioria conservadora favorecia esse procedimento, que colocava as aparéncias em distancias inatingiveis da realidade. A constituigao de 1946 exibe uma modernizacdo espantosa, como se as classes dominantes houvessem absorvi- do as transformagées que o desenvolvimento capitalista propagaram ao regime de clas- ses e a padrio capitalista nascente da luta de classes. No entanto, as modificagées se patentearam ao nfvel de profundidade real, com a implementacao da ilegalidade do Par- tido Comunista, a revitalizagio das técnicas estadonovistas de manipulacao dos sindi- catos e das frustragdes operdrias, 0 recurso 20 populismo como “‘6pio politico do Po- vo". A constituigéo inaugura uma fase inédita de ritualizagao das atividades do Parla- mento, dos partidos ¢ das eleigdes. Uma democracia de fachada mantém-se & tona, sem fazer face as exigéncias da situacdo histérica. As classes dominantes € suas elites se viam postas na parede. A internacionalizacio da economia se iniciara e tomara rumos que indicavam como se daria e quais seriam as conseqiiéncias da incorporagio do Brasil as economias capialistas centrais e da internalizagéo crescente do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista. O fim da década de 1950 e 0 infcio da década de 1960 denunciavam que através dos meios tradicionais (do mandonismo, do paternalismo e do clientelismo) s6 se poderia compor uma maioria parlamentar conservadora, sem deter as eclosées sociais que atingiam gravidade extrema, perfodo da ditadura militar coincide com a maturacdo do modelo monopolista de desenvolvimento capitalista no Brasil. FERNANDES, Florestan. A Constituicdo como projeto politico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. SI Paulo, 1(1): 47-56, I.sem, 1989. Se Apesar de divergéncias setoriais, todas as classes bur- guesas (inclusive o setor hegeménico externo) poem em primeiro plano a estabilidade politica ¢ a represséo policial-militar da luta de classes. Nao hé clima para o populismo nem mesmo um populismo militar ultranacionalista de direita. Nessas condig6es, ocor- rem duas oscilagdes dentro da sociedade civil, no que refere & existéncia do Parlamento, dos partidos, das eleicdes e dos marcos constitucionais. A primeira oscilagdo vem de cima, controlada direta ¢ ferreamente pela composi- 40 de poder civil-militar. Como o fermento das lutas sociais corria no subterraneo da sociedade, essa oscilagao valoriza o embuste constitucional. Surge, assim, a primeira manifestagao de “revisio constitucional’’, que culmina na constituico de 1967 e nos seus complementos, que tomam o nome de “‘constituigao de 1969” e de atos institucio- nais e de casuismos, os quais formam uma ordem ilegal indiscutfvel. Essa ordem ilegal sustentava-se na forga das armas e da violencia concentrada no tope do Governo ou di- fusa no aparelho policial-militar de todo 0 Pais. Falou-se que ela fora legitimada pelo “milagre econémico”. Todavia, nenhum milagre poderia legitimar uma ordem ilegal. Nascida da violéncia, ela teria de ser destrufda pela contravioléncia. As classes domi- nantes ¢ suas elites perceberam aonde se metiam ¢ tentaram amainar a contravioléncia, através de concess6es que provocaram uma ‘‘democratizagao de cima para baixo”, bati- zada de “consentida’”’. Contudo, souberam preservar a ordem ilegal e interromper, por varios artificios, as “eclosdes sociais’”. As classes trabalhadoras e os sindicatos foram os principais pedes dessas concessées, porque provocaram medo entre os de cima. Mas no se deve subestimar o papel que tiveram diversas entidades ¢ organizagdes que com- batiam abertamente a ditadura e recorriam & desobediéncia civil como instrumento de desmoralizagéo da ditadura e de sua desagregagao. Além disso, a ditadura pagou um preco alto & hipocrisia. Para contar com uma fachada democritica, admitira a oposigao consentida. O MDB (¢ 0 PMDB em seguida) se desprenderam da liberdade relativa vi- giada e pds em pritica, in crescendo, a oposicao real. A segunda oscilagio possui um referencial mais complexo. . Compelia os s6- cios hegeménicos, as nagdes capitalistas centrais € as “‘multinacionais”, ¢ as classes dominantes nacionais ¢ suas elites a se exporem em cheio ao Sdio que fermentava nos pordes da sociedade. O Brasil assumia o caréter de um barril de pélvora, prestes a ex- plodir e a destrocar todos os culpados, diretos ¢ indiretos, pelos desmandos e crises 532 FERNANDES, Florestan. A Constimicio como projeto polftico. Tempo Soci Paulo, I(1}: 47-56, L.sem, 1989. Rev. Sociol. USP, S, gerados pela ditadura. Varios setores sociais procuravam, pois, uma altemativa: ou uma retirada estratégica dos militares, que os desmoralizaria e os faria passar & histéria como bodes expiatérios (quando, de fato, eles foram a mo do gato...); ou um movimento que 08 afastaria do poder por via pacifica, mediante eleicGes diretas. O PT encetou 0 segun- do ponto de partida, rapidamente endossado pelas entidades e organizagées que se ba- tiam pela desobediéncia civil e pelo PMDB, engrossado pelos liberais que navegavam nos barcos ¢ nas dguas da ditadura. Em conseqiiéncia dessa evolucao, a oscilagao ga- nhou forca e logo demonstrou que seria imbattvel. Aliaram-se os chefes militares “‘civilizados”, 0 PMDB através de suas ctfpu- las dirigentes e os “democratas” recém-saidos do ventre do regime em decomposicao. Isso significa que a oscilacao foi detida por uma nova conspiragao, que se crismou co- mmo um ato de oneliagéo poten Ela também endossou a formula polio militar de (uma) transi¢ao) demdcratica)lenta, graduial/e/segura! A ordem ilegal atravessou a crise letal, que se esbogara, ¢ protegeu 0 nascimento da “nova Reptiblica”. Convertido em partido da ordem, 0 PMDB deu guarida & Alianca Democritica, pela qual os chefes mi- litares e os notaveis da ditadura iriam cobrar, em conuibio com a maioria conservadora da ctipula do PMDB e do Parlamento, a continuidade da ordem ilegal forjada pela Re- publica institucional. E aqui que se acha o ceme dos dilemas constitucionais do Brasil de hoje. Cortada no Apice do seu fluxo, a oscilacio histsrica apontada comporta duas visées opostas do que deve ser a constituigéo em processo de elaboracao. Os que defendem o “compro- misso sagrado de Tancredo Neves”, malgrado sua vocacéo democritica, afundam no pantano conservador. Para eles, nao existe uma ordem ilegal, mas um “‘entulho autorité- rio”. Ele poderia ser removido como uma leve dor de cabeca, com uma vassourada, De fato, trata-se de uma colossal mistificagao, pela qual a ordem ilegal nao é expelida da cena histérica e condiciona, ao contrério, processo de reconstrugdo da sociedade civil ¢ do Estado. Os juristas que defendem essa posigdo abominam a idéia de uma Assem- bléia Nacional Constituinte exclusiva e soberana e se fixam na consolidagéo da nova Reptiblica como e enquanto rebento da ditadura militar, descrita eufemisticamente como “velha” Repiblica! O Congresso Constituinte reduz-se a um “poder derivado” e, se extravasar desse limite, estaria condenado a instancia judicidria, que poderia anular suas decisées — ¢, 0 que nao se diz, ao quarto poder da Republica, o poder militar, a instén- cia suprema, que poderia elimin4-lo do mapa ... O que se reitera € um aff ultraconser- vador e ultrareacionario (que conta com o apoio da maioria parlamentar e com a tole- rancia das diregdes dos principais partidos da ordem - 0 PMDB ¢ PFL 8 frente), de FERNANDES, Florestan. A Constituigho como projeto polftico. Tempo Social; Rev, Sociol. USP, S. Paulo, 1(1): 47-56, I.sem. 1989. 6 sustentada pelos que, j4 no passa- do, queriam remover a constituigao de 1946 da condicao da letra morta, ¢ pelos que tentaram levar 0 movimento das diretas-jé até o fim e até ao fundo. Sao varios grupos e tendéncias de opiniéio, que compartilham da idéia de que o desenvolvimento capitalista ¢ do regime de classes sociais desembocou em um beco sem saida que s6 pode ser ul- trapassado se os oprimidos ¢ os trabalhadores adquirirem peso ¢ voz na sociedade civil a faculdade de exercerem controle ativo sobre o funcionamento do Estado. Portando, Sem qualquer utopia burguesa salvadora, aceitando-se fria ¢ objetivamente as cruezas € as iniquidades extremas do desenvolvimento capitalista desigual, pretende-se que a for- a e a desigualdade nao conferem privilégios inabalaveis para uma minoria e miséria crescente para a maioria, 1 O que se colo- ca em questo néo € 0 ponto de chegada; é o ponto de partida. Nas condigées brasilei- ras, esse ponto de partida envolve uma ruptura com a ordem existente no plano mais sensfvel € popular do sistema do poder, o Parlamento considerado como poder consti- tuinte. Como poder emanado do Povo, neste momento, a Assembléia Nacional Consti- tuinte derroga a ordem ilegal vigente e a ilegitimidade da nova Republica, ¢ afirma a prdpria faculdade de instituir normas constitucionais civilizadas para o funcionamento da sociedade civil e normas constitucionais democraticas para a organizagao do Estado. O presente e o futuro pertencem 4 Nagéo, nfo 2 minoria no poder. Esse € 0 dilema que a ANC enfrenta, Se a conciliagao conservadora tivesse algum sentido e se a “heranga de Tancredo Neves” alguma validade, a Alianga Democrética deveria ser fiel ac compromisso que ela assumiu ao instalar o PMDB e 0 PFL na dupla condigéo de partidos da ordem e do Governo. Nao obstante, o que foi formulado como uma carta de princfpios era um discurso de ocasiéo e os dois partidos estio divididos entre si — ¢ o PMDB esté dividido internamente — com referéncia aos papéis politicos dos constituintes e ao significado da ANC. Isso acontece porque ambos os partidos néo formam um bloco histérico solidamente burgués. As classes burguesas nao delegaram 54 FERNANDES, Florestan, A Constituigo como projeto politico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(1}: 47-56, I.sem, 1989. aos dois partidos a condic&o de representé-las, no exercicio do poder politico estatal. Cada partido, por conseguinte, retine um conglomerado de interesses burgueses varié- veis e, a0 mesmo tempo, néo possui autonomia para conduzir as reivindicagées das classes burguesas ¢ de suas elites. Nenhum deles pode romper com a situagao de parti- dos da ordem e do Governo, porque os vinculos com as classes burguesas nao alimen- tam semelhante demonstragao de radicalismo politico. De outro lado, nenhum dos dois partidos possui uma esfera de hegemonia prépria e exclusiva. O que prevalece é a he- gemonia das classes dominantes € de stias elites, Elas paralizam os dois partidos, como paralizaram a ditadura militar ¢ esto paralizando a nova Repiiblica. Como conseqiién- cia, ambos esto presos a um imobilismo politico que os dissociam da causa suprema, que seria a soberania da ANC, e, 0 que € pior, que os impede de possuir wn projeto polttico constitucional. Qual 0 projeto politico constitucional do PMDB? Qual € 0 projeto constitucional do PFL? © que a Alianga Democrética se propée fazer dentro da ANC ¢ quais so as bandeiras que ela desfralda? Os dois partidos prendem-se & ordem existente ¢ a0 Governo através de uma forga estética e ficam surdos mudos diante das esperangas que suas promessas eleitorais despertaram nas massas populares, Como explicar essa realidade? A explicac&o é, a um tempo, fécil e grave. Ao es- tudar as lutas sociais na Franga, Karl Marx identificou, hé muito tempo, o que imobiliza as classes burguesas, impele-as a bater-se cruamente pela dominaco de classe pura ¢ simples e, nos limites extremos, as debilita a ponto de obrigé-las a buscar na ditadura (no “bonapartismo”) 0 Abre-te Sésamo de becos sem safda, AS Classes burgUesES eSti0 no Brasil — como sempre estiveram — divididas quanto &s solugdes essenciais que dizem respeito aos dilemas postos pelo funcionamento da sociedade civil e pela organizacéo do Estado. $6 que hoje essas divisées sao claramente explosivas, porque o setor mais forte e decisive da burguesia € 0 capital supranacional e uma internacionalizaco do modo de producdo capitalista que a burguesia brasileira desejou ¢, hoje, no sabe como limitar ou deslindar. A tao orgulhosa “‘oitava economia do mundo” regride ao crescer, porque os lagos de dependéncia ocultam uma modalidade imprevisivel de neocolonia- lismo, Nao s6 nenhum setor da burguesia intema pode bater-se pela conducio ou pela lideranga dos demais estratos burgueses. A burguesia como um todo vacila diante do imperialismo da era atual e de sua multidiversidade destrutiva. [Quando a hegemonia di- reta das classes dominantes atravessa a hegemonia dos partidos politicos da ordem, instalados no Governo, ela desorienta a dominagao de classe e desorganiza 0 Governo. A sociedade civil eleva 0 seu potencial de barbérie e 0 Governo se anula como vetor Politico da vontade coletiva das elites das classes dominantes. O. que redunda em uma curiosa contradigao: a hegemonia de classe ¢ a hegemonia de partido esfarelam-se antes de se converterem em forga politica real. FERNANDES, Florestan. A Constituico como projeto polftico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. 58 Paulo, 1(1): 47-56, l.sem, 1989. Isso desenha uma curiosa situacdo histérica. A constituigao € menos importante que a dominagdo direta de classe ¢ 0 uso do Estado como uma arma de ataque ¢ de de- fesa nas relagdes com os oprimidos e com as classes trabalhadoras. Néo pode haver constituigéo € projeto de constituigo, porque nfo hd promessa ~ prevalece o impulso © apego & repress, Sem resolver o problema principal, suas relagdes com o imperia~ lismo ¢ sua debilidade organica diante dele, com as multinacionais crescendo por dentro da sociedade brasileira, transformada em fronteira do centro imperial, as classes domi- nantes nada tém a oferecer ~ ou dominagéo ou caos. O que fazer diante da miséria? © que fazer com o desemprego crescente? O que fazer com o papel das forgas armadas? O que fazer com a propriedade, a iniciativa privada e o Estado? A sociedade civil, por sua mesma organizacao capitalista, erige-se em uma fonte de ameacas. O Estado, por sua mesma organizaco capitalista, erige-se em um fortim — mas como confiar nele, se ele sofre um gigantismo incontrolavel, necessério & acumulagao capitalista? (O/COnservane tismo é 0 tinico ponto seguro. Mas ele danca sobre si mesmo se até as instituigées-cha- ves, como a familia, a igreja e a escola revoltam-se contra a ordem existente por causa do conservantismo, de suas mazelas e de sua incapacidade de associar a mudanga es- trutural & consolidagao e & defesa inteligente da ordem. Os segmentos mais abertos da burguesia apelam para a alternativa da democracia participativa, Porém, a democracia participativa ~ se deixar de ser uma mistificacdo, aptegoa a esperanga’e repele @ repressio, Ela permitiria inundar a ANC com as massas populares e as forgas sociais anti-elites. Ela almeja a civilizagao rpida da sociedade ci- vil e a democratizagio efetiva do Estado, com o desmantelamento dos aparatos de vio~ léncia institucionalizada, a partir do Estado ou da empresa econémica. Para uma maio- tia parlamentar, que se identifica como conservadora e de centro-conservador, ela soa como © equivalente politico do socialismo. Ora, a democracia participativa constitui, de fato, uma tentativa de evitar a social democracia revoluciondria (coisa do passado) e de aliar 0 capitalismo com a seguranca (da reprodugio do capital) ¢ a liberdade (de manter © capitalismo em um mundo de esperangas minimas, calcadas na reforma distributiva). ‘Avaliada em seu todo, ela é muito pouco em confronto com a tradigao revolucionaria do socialismo. Mas € um fantasma, para a totalidade de uma burguesia presa a privilégios pré-capitalistas e a uma acumulaco capitalista origindria permanente, que no cessa nunca, alimentada pela deformagio do Estado. Ou € um conceito vazio desligado de intengGes propriamente democraticas e de participago das massas no controle do poder, na sociedade civil, nas instituigdes-chaves ¢ no Estado, a instituicao-chave mais com- plexa do mundo modemno, até o aparecimento das grandes corporacées. Serd que a iniciativa popular poderia abrir essa porta de uma democracia partici- pativa? E duvidoso. A iniciativa popular amplia 0 processo de produgdo das leis. Con- tudo, nao existe na sociedade civil nada suficientemente organizado para converter a 56 FERNANDES, Florestan. A Constituicio como projeto polftico. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, I(1}: 47-56, I.sern: 1989. ‘A cada crise profunda repete-se 0 ciclo de compressio conservadora frenética ¢ neurética, na “defesa da ordem contra a anarquia”. E a anarquia néo vem de baixo, procede de cima, Dezenas de exemplos, da independéncia a nova Republica, atestam essa observacao. Os que combatem a anarquia na verdade geram a anarquia e a multiplicam por cem ou por mil, porque néo querem ceder diante do imperativo de for- mas de organizag&o nao-excludentes e mais equitativas. Para concluir, admito que uma atitude funcional diante de avancos seletivos permite, pelo menos, evitar uma regressdo global. Mas tais avancos seletivos so instrumentais para bloquear a a estrutural para retirar da mudanga 0 seu contetido politico revolucionério. -« Nao € 0 seu papel hist6rico. . Na ANC eles compéem uma esquerda Teal, que ndo se confunde com a esquerda dos partidos da ordem e do Governo. A mar- gem desses partidos, eles podem formar, em uma situagao de atraso politico, ao lado daquela esquerda parlamentar. FERNANDES, Florestan. The Constitution as ¢ political project, Tempo Social; Rev, Sociol. USP, So Paulo, 1(1}: 47-56, Lem, 1989. ABSTRACT: This parliamentary discourse develops an_historical-sociological analysis of the social, economic, and political conditions of Brazilian Constitutions’ political dimensions. These Constitutions are seen as projects of the dominant classes, whose object was the reorganization of civil society and the State. First, we will show that our first Constitution established a tradition marked by imported modernism, advanced juridical formalism and the exclusion of the majority of the working class from effective participation in the organization of society. Next, we will examine the dilemmas of the current National Constituent Assembly, which is“ vided between two opposing groups. One group is conservative anc! intends to bring about a mere constitutional revision. The other is radical and aspires to do away with the illegal order, still persisting in the New Republic, which was established by the military dictatorship. UNITERMS: Brazilian Constitutions, National Constituent Assembly.

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