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Casos de Psicoterapia Infantil
Casos de Psicoterapia Infantil
Casos de Psicoterapia Infantil
infantil
Arq. bras. Psic. apl. Rio de Janeiro 24 (2): 85-97 abr.jjun. 1972
Essa comprovação levou-nos a rever um trabalho sobre os dois casos
(1963) no qual procuramos sintetizar a evolução da psicoterapia com
relação a um sintoma particular que ambas apresentavam: enurese no-
turna, cujo sentido profundo foi estudado por Susan Isaacs (1952), ana-
lisando a significação específica, para a criança pequena, do ataque por
meio de urina e fezes.
As duas crianças, na realidade, manifestavam comportamentos bem
diversos: "Berenice" era extremamente maníaca, onipotente e controladora;
"Myriam" tinha, no início do tratamento, crises agudas de ansiedade, com
características fóbicas muito acentuadas.
Não obstante o comprometimento emocional, ambas revelavam inte-
ligência muito acima do normal, tendo "Myriam" se alfabetizado por
conta própria à custa do que via e ouvia na televisão, antes de freqüentar
qualquer escola.
Os sintomas de "Berenice" traziam-lhe lucros secundários; os de
"Myriam", grande sofrimento. Esta será, possivelmente, uma das razões
por que o tratamento de "Berenice" foi mais demorado (cerca de três
anos) que o de "Myriam" (menos de dois anos).
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"as peculiaridades especiais da vida mental infantil necessitam uma téc-
nica especial, a elas adaptada, e que consiste na análise de sua atividade
lúdica. Por meio dessa técnica, podemos atingir as experiências mais
profundas reprimidas e as fixações, e isso nos habilita fundamentalmente
a influenciar o desenvolvimento da criança". Acentua ainda, a seguir,
que o tratamento da criança diferencia-se da análise do adulto apenas
quanto à técnica e não quanto aos principios (Klein, 1950).
No mesmo trabalho, numa nota de rodapé, expõe Klein uma norma
dessa técnica: "Somente examinando os mínimos detalhes do jogo e sua
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interpretação é que as conexões tomam-se claras para nós e a interpretação
torna-se efetiva.
O material que as crianças produzem durante uma hora analítica,
quando passam do uso dos brinquedos para a dramatização, e ainda a
brincar com água, cortar papel ou desenhar, a maneira como o fazem,
a razão por que mudam de uma coisa para outra, os meios que utilizam
para tais representações - toda essa mescla de fatores, que tão freqüen-
temente parece confusa e sem sentido, é vista como consistente e signi-
ficativa, e as fontes subjacentes e os pensamentos se nos revelam, se os
interpretarmos exatamente como sonhos".
O foco essencial do trabalho está na relação do pequeno cliente com I
o terapeuta no qual são projetadas, como diz Rosenbluth (1970) "suas
imagens inconscientes de seus pais internos, ou aspectos de seu pais, ima- I
gens estas criadas por uma fusão de seus próprios (da criança) impulsos
e sentimentos, suas próprias fantasias e a experiência externa".
I
Daí a importância da interpretação das ansiedades, fantasias e senti·
mentos da criança, expressos no jogo ou em qualquer outra forma de
comunicação, inseridos nessa relação, isto é, no quadro transferencial.
Para Melanie Klein, essa interpretação não deve ser adiada, desde
que haja elementos consistentes para sua formulação. Positiva ou negativa, f
diz ela, a transferência deve ser trabalhada desde o início do tratamento:
"Interpretação consistente, resolução firme das resistências, constante
referência, na transferência, a situações primitivas - quer positivas, quer
negativas - é o que estabelece e mantém a correta situação analítica,
com a criança, não menos que com o adulto" (Klein, 1954).
Rosenbluth, cujo trabalho citado fundamenta-se na teoria kleineana,
acentua que "para ser eficiente, a interpretação deve ser emocionalmente
imediata, isto é, estar em contacto, de fato, com os sentimentos e ansie-
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dades ativos no exato momento, e devem ainda ser específicos, minuciosas
e concretas" (Rosenbluth, 1970).
Reportando-se a um trabalho clássico de Strachey (1934) assinala
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ainda a mesma autora a característica essencial da interpretação mutativa,
como abrangendo dois aspectos: tomar a criança consciente de seus senti-
mentos e impulsos para com o terapeuta; e tomá-la consciente de que
esses sentimentos e impulsos originam-se nela própria, na sua relação com
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os próprios pais, que o terapeuta, no momento, representa na sua fantasia.
PsicoteraPia infantil 87 I
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Para que o trabalho terapêutico desenvolva-se nessa linha, há condi-
ções essenciais de neutralidade do ambiente e da atitude do terapeuta,
o qual deve manter-se acessível, sem gratificar nem reprimir, proporcionar
um clima de expressão livre de sentimentos, impulsos e emoções, dentro
de limites mínimos, porém firmes. É exatamente essa posição que permite
à criança colocar nele suas projeções, expressar sua fantasia, a ser inter-
pretada transferencialmente. Por isso mesmo, quaisquer contatos com
o cliente fora da situação terapêutica são contra-indicados.
"Berenice"
B. foi encaminhada a tratamento aos três anos e seis meses, pelo pediatra
que a vem acompanhando desde que nasceu. É segunda filha de um
casal de confortável nível econômico, nível cultural superior, tendo uma
filha mais velha que B. 10 anos. O pai é economista, tinha 38 anos
e a mãe 35, ao começarmos o tratamento. O motivo do encaminhamento
foi a masturbação que surgiu aos dois anos e seis meses, inicialmente à
noite, na cama, depois a todas as horas do dia, em qualquer lugar,
com exceção d~ escola. Esta fora uma tentativa sem êxito de corrigir
a masturbação; outras medidas tinham sido tomadas sem resultado. B.
a "Berenice" e "Myriam" serão referidas daqui por diante pelas iniciais BeM;
e a terapeuta, pela inicial T.
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nunca fora castigada pela masturbação, à qual se referia livremente, sem
inibições, atribuindo-lhe o nome de "fuque-fuque". Além desse problema,
B. apresentava: enurese, asma, irritação na pele, intensos ciúmes da irmã,
onicofagia, comportamento agitado.
B. fora uma filha não desejada. Nasceu de gestação e parto normais,
seu desenvolvimento foi precoce. Amamentada ao seio somente durante
seus primeiros dias, dormiu três a quatro meses no quarto dos pais, por
chorar muito quando chegou da maternidade, incomodando a irmã, em
cujo quarto deveria ficar. Só teve babá após os primeiros oito meses, e
sempre pessoas de confiança, assistidas pela mãe, que declara não terem
tido as empregadas qualquer influência na questão da masturbação. O
treinamento de hábitos higiênicos foi iniciado com um ano. B. não aceitou,
a mãe desistiu, fazendo nova tentativa seis meses mais tarde, com resul-
tado. Desde que pôde fazê-lo, B. preferiu cuidar ela própria de suas ne-
cessidades fisiológicas, comunicando posteriormente à mãe. É caracteriza-
da por esta como muito independente sociável e muito festejada: graciosa
e viva, indiscutivelmente com inteligência muito acima do comum, sua ex-
pressão verbal, gráfica e mímica é espontânea, fácil e rica.
A família de B. mostra um ajustamento satisfatório: há pequenas
divergências na maneira de educar as crianças, deixando o pai as soluções
a cargo da mãe, por ele definida como pessoa de extraordinário equilíbrio
e bom senso. Esse juízo foi plenamente confirmado pela maneira como
a mãe cooperou no tratamento de B. inteligente e sensível, controlada,
pontual e assídua, a mãe seguiu fielmente as instruções da terapeuta
quanto ao seu comportamento durante as sessões de tratamento de B.,
muitas delas realizadas na sua presença, na sala de espera do serviço.
A mãe não trabalha fora, embora tenha habilitações para isso: dedica-se
às filhas, parecendo fazê-lo com compreensão e carinho. Não se podendo
observar causas externas para tantos e tão intensos problemas (a não
ser a rejeição inicial e a amamentação limitada a poucos dias), B. foi
atendida mais de três a quatro vezes por semana. Entrevistas periódicas
com a mãe tiveram apenas caráter informativo, não parecendo haver
qualquer necessidade de modificar sua atitude em relação à filha.
Após o primeiro contato com a criança, muito fácil, entrou ela numa
fase de acentuada resistência, recusando-se a entrar na sala da T., reali-
zando-se então 34 sessões na sala de espera, onde a criança muitas vezes
dormia, fazendo a negação da T. e do tratamento. Conforme material
expresso por B., essa resistência relacionava-se com o medo de que, na
sala de terapia, a T. pudesse juntar-se a ela em práticas sexuais. Inter-
pretada a situação, B. passou à fase seguinte, em que revelou sua enorme
veracidade, competição, inveja e ciúme das pessoas mais velhas, parti-
cularmente da irmã adolescente. Quase sempre, B. defendia-se de suas
ansiedades fugindo da depressão que lhe pudessem causar por meio de
um comportamento maníaco e de fantasias de onipotência. Uma delas
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traduzia-se na masturbação, pela qual, em sua realidade interna, B. iden-
tificava-se com os pais em relação sexual.
Quando se sentiu livre para trazer esse sintoma para dentro do tra-
tamento, B. confirmou a interpretação dada anteriormente, insistindo
muitas vezes em exibir-se e seduzir a T. para práticas sexuais.
É interessante assinalar que, embora nunca tivesse sido censurada
pelos pais por causa da masturbação, esta representava, na fantasia de B.
não somente uma identificação com eles, mas também um ataque, por
inveja e ciúme, aos pais em relação amorosa. Esse aspecto agressivo,
participando da situação erótica e gratificadora, trazia a B. sentimento
de culpa pela masturbação. Verificaram-se então várias sessões em que
B. masturbava-se livremente e, dividindo-se, colocava na T. uma parte
sua, que censurava, exigindo a T. "de castigo, de mãos para trás".
Em sua enorme voracidade, B. aos poucos levou para casa todos os
brinquedos de sua gaveta, o que não a impedia de expressar sua rica
fantasia por meio de jogos de dramatização, em que exigia a participação
da T., fazendo esta o papel da criança pequena e B. o de mãe ou prefesso-
ra. Os brinquedos foram devolvidos, de novo retirados e mais uma vez
trazidos e utilizados.
Focalizando em especial o problema enurese, verificamos que, na fase
inicial do tratamento, segundo relato da mãe em março de 61, B. passou
a molhar a cama ainda mais, o que se explica pela inclusão, em seu
ambiente, de mais uma pessoa - a Terapeuta - a ser agredida, porque
representava para a criança a parte má dos pais. Foi muito evidente
que, nessa fase, a relação transferencial era carregada de hostilidade à
T., visto como objeto intensamente persecutório. Essa situação ainda mais
acentuava-se pela neutralidade da atitude da T., que se destacava no
ambiente de B., criança extremamente gratificada em seu círculo, de
relações e na escola. B. reclamava em casa o fato de que a T. não a
visitava; por várias vezes deu seu endereço a T. e ensinou que condução
deveria tomar para ir à sua casa.
Oito meses após o início do tratamento, a neurose ainda continuava.
B. comunicava à mãe quando não molhava a cama. A essa altura, a
masturbação diminuíra acentuadamente em casa, mas era muito freqüente
nas sessões de tratamento. Com um ano de tratamento em casa a mastur-
bação era rara e a enurese tendia a diminuir. Três meses mais tarde a
mãe declarava que B. só molhara a cama uma vez, em três meses.
Vejamos o que sucedeu nesse período, durante as sessões de terapia.
B. passa a derramar tinta, deliberadamente, no chão. Além disso,
eram freqüentes as sessões em que introduz um jogo: enche um saco
plástico com água, para em seguida apertá-lo, tentando atirar a água
na T. Passa em seguida a encher de água uma banheira plástica e de
cima da cômoda despeja todo o seu conteúdo, no chão da sala, ora
procurando atingir a T., ora preocupando-se em preservá-la. Numa se-
gunda-feira, 2-10, em que tentara jogar água na T., interpretada a agressão
como pretexto pelo abandono da T. que não a vira sábado e domingo
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expressa verbalmente sua queixa: "eu queria meu avô, eu queria minha,
tia, como é que eu podia ficar sozinha naquela casa?" (Convém notar
que B. nunca permanece em casa na ausência da família, nem mesmo
com empregadas).
Verifica-se que grande parte das dificuldades de B. estavam ligadas
com fantasias de falta de amor dos pais, de abandono e desprezo, comple-
tamente discordantes da realidade.
Certa vez observando no chão encerado os sinais de inundação da
véspera, B. diz preocupada: "meu xixi". Mas volta a brincar com água,
e ao perceber sua própria perna molhada, projeta sua parte agressiva
na T. dizendo: "olha o que você fez". Esse jogo de inundação onipotente
permanece durante todo esse mês de outubro, e ainda em novembro e
é alternado com insistentes tentativas de agressão física à pessoa da T.:
tapas, pontapés e dentada, que a T. de acordo com as normas técnicas,
procura impedir, interpretando-as, mas tendo às vezes de contê-las dire-
tamente, -tal a violência das agressões. Por elas, B. procurava externar,
colocar fora dela, todos os seus sentimentos hostis.
Nas entrevistas subseqüentes da mãe, esta declara que a enurese
desaparecera por completo. Houve apenas um incidente isolado, quando
o tratamento psicológico fora interrompido e B. ferira-se numa queda,
tendo de submeter-se a curativos dolorosos.
A mãe relatara que B. usava o vaso, à noite, por iniciativa própria.
Meses depois dizia que B levanta-se à noite, enquanto todos dormem,
para ir ao banheiro sozinha, quando necessita. Este comportamento per-
manece. No intervalo entre as duas datas, a mãe tivera de submeter-se
a uma intervenção cirúrgica, ficando B. em casa dos avós. Não obstante
suas preocupações expressas quanto ao risco de vida da mãe, não houve
recrudescimento da enurese.
Não se pretende, de forma alguma, considerar que foram apenas o
jogo com água e as agressões à T. os responsáveis pelo desaparecimento
da enurese: todo o trabalho terapêutico, a relação terapêutica e a inter-
pretação de todo o material trazido por B., durante esse período, contri-
buíram para o desaparecimento do si!ltoma. Em entrevista, a mãe de B.
observa que a menina passou por um processo de "amadurecimento geral".
Caberia então uma pergunta: não seria o processo de maturação normal
da criança o responsável pelo desaparecimento de todos os sintomas:
enurese, masturbação, asma, onicofagia, comportamento agitado? Não.
O que se verificava com B. era justamente um impedimento desse pro-
cesso de amadurecimento normal, devido a suas dificuldades emocionais.
Comportava-se ela então, ora como bebê, permitindo-se a enurese; ora
como adulta, permitindo-se gratificações de natureza sexual inadequadas
a sua idade. Removidas suas dificuldades emocionais, B. pôde então
desenvolver-se e amadurecer normalmente. Sem a ajuda do tratamento
psicológico, poderia ter permanecido aquele impedimento, e B. conti-
nuaria, como muitas outras crianças, a molhar a cama até muito mais
tarde.
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Em relação aos demais sintomas psicossomáticos, tivemos a colabo-
ração do pediatra, tendo sido B. submetida, inclusive a amidalectomia.
Voltando à motivação do tratamento dessa criança, vale a pena assinalar
que, quando indagara os motivos de sua vinda ao nosso serviço, a mãe
respondera-lhe que a T. era uma pessoa encarregada de ajudar na sua
educação, como o médico e a professora, a fim de que B. fosse mais feliz.
No entanto, na fase final do tratamento é B. que propõe à mãe uma
pergunta sobre até quando teria que vir, uma vez que "não faz mais
"fuque-fuque", não rói mais as unhas e não fai mais pipi na cama".
E é ainda a própria B. que observa o quanto cresceu, no momento exato
em que faz uma decoração de bandeirinhas na sala da T., que lhe pôde
então mostrar, nessa oportunidade, que ela própria assinalava a dife-
rença entre a B. que viera no início roubar os conteúdos da gaveta -
da mãe T. - e aquela que agora traz as bandeirinhas por ela fabricadas,
tomando a iniciativa de gratificar.
"Myriam"
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dades em relação a M. bem como rigidez em seus planos educacionais.
O trabalho da A.S. ajudou-a efetivamente a atenuar sua excessiva idea-
lização em relação aos filhos, o que poderia ter contribuído para que M.
a sentisse como exigente e punitiva; e a melhorar sua posição em relação
à tia-avó de M., que interfere na educação das crianças.
M. nasceu de parto e gestação normais, muito desejada pelos pais.
Amamentada até dois meses, passou sem problema para alimentação arti-
ficial. Teve dificuldade de alimentação, tolerada pela mãe e logo superada.
Andou aos 13 meses, falou as primeiras palavras aos oito meses. Sua lin-
guagem foi sempre correta. O treinamento de hábitos higiênicos foi
iniciado aOs 10 meses, não havendo dificuldades durante o dia. À noite,
quando acordava, usava o vaso, mas com freqüência molhava a cama
dormindo, afligindo-se muito por isso. M. foi preparada para o nasci-
mento das outras crianças. Dormiu no quarto dos pais até dois anos e
seis meses. A mãe considera M. como uma criança sensível, que percebe
facilmente quando a mãe está triste. Na anamnese não foi feita qualquer
referência à dificuldade de contato com pessoas estranhas. Mas, quando
avisamos à mãe de que deveria abster-se de se comunicar com a criança,
caso esta exigisse sua presença na sala de terapia, declarou ser impossível
M. separar-se dela, nessa oportunidade.
M. foi preparada para o tratamento: este lhe foi apresentado pela
mãe como uma ajuda, que deveria preceder a sua entrada na escola,
já por ela ambicionada.
I
No entanto, sua primeira sessão foi dramática: agarrada ao colo da
mãe, fazia-lhe apelos; como, de acordo com as instruções da T., a mãe
não interferia, M. entrou em crise de angústia e passou toda a hora aos
gritos, debatendo-se, pedindo perdão e solicitando à mãe carinhos que
aplacassem o seu desespero, ou pelo menos um sorriso. Interpretada sua
intensa ansiedade persecutória pediu água à T. Daí por diante, durante
longo tempo, de início pedindo água à T., depois servindo-se ela própria,
M. entrou nessa manifestação verdadeiramente compulsiva da negação
da sua enurese. Não tomou conhecimento sequer dos brinquedos à sua
disposição. De início, apenas para beber água afastava-se do colo da mãe.
Declarava que ia dormir, tentando negar também a presença da T., mas
não conseguia fazê-lo, tal a sua situação persecutória. Foi então que se
resolveu atender M. quatro vêzes por semana. Mais tarde a criança passou
a vir acompanhada de uma tia com quem tem boa relação. Deixou então
de se sentar no colo, mantinha-se numa cadeirinha, em atitude impassível,
continuando a beber água em pequenos goles, compulsivamente. A T.
prosseguiu: M. sentia-se acusada, perseguida, queria mostrar que era in-
capaz de agredir, molhar e sujar a T., não tinha recursos para tanto,
estava tão seca por dentro que precisava beber muita água. Esse período
foi de outubro de 62 até janeiro de 63 quando a tia, pretextando compras,
deixou M. só com T. M. passou a falar, principalmente da irmã Irene,
a quem atribuía então sua enurese: I. não quer sair de dentro da banheira,
a torneira corre sem parar, a irmã joga água etc. Nessa ocasião, seus
movimentos na sala eram ainda rígidos, ao entrar e sair. Começou a
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usar os brinquedos e a expressar agressividade contra a mãe e conflito
edípico evidente. Já nessa época, a mãe referia-se a melhoras de M.,
percebidas por pessoas amigas que ignoravam o tratamento. No entanto,
ainda usava chupeta, molhava a cama e desejava roupa igual à de Irene.
M. repetiu, durante semanas, com pequenas variações, um jogo em
que representava seu desejo de roubar a mãe grávida, retirando-lhe as
muitas crianças que imaginava dentro dela: arrumava, dentro de uma
casinha, muitos bonecos. Pegava então um barquinho, ao qual prendia
um barbante, amarrado a um lápis. Preocupava-se primeiro em atar o
barbante a uma cadeira e, só depois dessa operação, permitia-se retirar
os bonecos de dentro da casa e colocá-los no barco, onde tinha grande
dificuldade em equilibrar tantos bonecos, pela desproporção das dimen-
sões. Todo esse material foi interpretado: M. deseja para ela os filhos
que a mãe contém, que recebeu do pai. Mas tem medo de reprovação
e perda de amor da mãe. Por isso precisa da cooperação da T., repre-
sentada pela cadeira, à qual tem de prender o barco, que representa M.
Colocando na T. a responsabilidade de roubo, M. permitia-se expressar
sua fantasia. O aspecto realista foi demonstrado na dificuldade em fazer
com que o barco, que representava M., pequena pudesse caber todas as
crianças que estavam dentro da mãe, adulta. Também as fantasias edí-
picas são colocadas na irmã, Irene: é esta quem deseja ficar sozinha com o
pai, jantar com ele, afastando os demais membros da família. Novamente
a interpretação devolveu a M. a responsabilidade de suas próprias fan-
tasias, e mostrou-lhe o medo de que a mãe, que M. imaginava demasiado
severa e punitiva, retirasse-lhe amor e carinho se ela quisesse roubar-lhe
o pai. Durante esse período, como era de se esperar, M. mostrou pequena
resistência em vir às sessões de terapia, provavelmente assustada com a
verificação de suas fantasias agressivas e sexuais. A cooperação hábil da
mãe levou-a a vencer essa dificuldade; se a mãe a estimulava a vir, sem
pressioná-la com violência, estava permitindo sentir o que expressava
nas sessões.
A essa altura, M. já iniciara freqüência a um centro de recreação,
sem grandes dificuldades de adaptação, enquadrando-se logo muito bem
no grupo. A mãe relatou e M. começou a mostrar nas sessões que con-
seguiu alfabetizar-se, por conta própria, com auxílio da televisão. Começou
inclusive a escrever, com ortografia peculiar.
Com a continuação do trabalho terapêutico, M. passou a ser muito
mais sociável, comunicando-se, sem inibições, com as visitas da família,
falando muito, ela que antes era retraída e fechada. Os pais mostraram-se,
então, um pouco receosos dessa mudança, imaginando que a filha poderia
tornar-se tão desinibida que se afastaria dos padrões da família. Esse
receio traduziu-se, então, em pequenos atrasos na chegada de M. às sessões
de psicoterapia. Quando a A.S. pôde mostrar à mãe que chegar com
atraso significaria limitar a oportunidade de atuação da T. sobre a criança,
restabeleceu-se a pontualidade. A essa altura, M. já não estava molhando
a cama, passando a fazê-lo por ocasião do parto da mãe, por duas vezes.
Nessa época, M. teve uma crise de asma, com dor, à véspera do nasci-
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mento da quarta criança. Posteriormente, numa das sessões, M. revelou
sua curiosidade sobre o parto, utilizando uma bola que faz sair de um
copo, localizando-a posteriormente em suas pernas, na barriga, noutra
perna, como se fizesse indagações sobre de onde teria saído a criança.
O ciúme desta foi, porém, novamente, deslocado para Irene: é esta quem
reclama que o bebê é chorão, que só vive mamando e dormindo. Nova-
I mente tivemos oportunidade de mostrar a M. que ela não se permitia
expressar como seus os sentimentos agressivos e de ciúme com receio de
perder o amor e o prestígio junto à mãe, representada na T. Temia
ainda sentir-se reprovada pela própria mãe, esta funcionando como uma
II
implicâncias para com as outras drianças, principalmente com Irene.
A enurese, no entanto, estava completamente superada. Todos sabemos
que pequenos conflitos entre irmãos são perfeitamente normais e fazem
parte da experiência da criança. M. já se permite expressar seus senti-
1 mentos hostis porque sua agressividade foi analisada, interpretada e aceita.
Não precisa mais utilizar a forma primitiva e secreta da enurese para
expressá-las, sentindo-se depois culpada, humilhada, criticada, diminuída
em seu desejo de crescimento, criando assim, em conseqüência da enurese,
um novo problema. M. tem tido também oportunidade de expressar seus
desejos de ser um menino, o que significaria para ela maior potência,
oportunidade de estudar, prestígio: toda a valorização atribuída à figura
do pai, na família. Chega certa vez a representar-se num boneco (de papel)
com a competente espada, ao qual ela mesma chama de M. Marechal. Uma
vez interpretada a situação, M. despe o boneco de seus atributos masculinos
e se permite ser ela própria, a menina mais velha, representando por meio
do jogo as vantagens que pode obter de sua situação como tal.
O tratamento de M. continuou ainda por alguns meses. Seus gestos
e atitudes tornaram-se mais naturais, perdendo a rigidez a que se sentia
obrigada por aquelas figuras parentais por ela sentidas como inflexíveis.
Digna de nota é a liberação da fantasia de M., que pôde utilizar sua
grande inteligência imaginando jogos e dramatizações que lidera, no seu
pequeno grupo, com grande satisfação para a família.
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consciência, juntamente com seus sentimentos agressivos, tolerados e
aceitos.
Um ponto comum pode-se observar no trabalho realizado com essas
duas crianças: a extraordinária colaboração das duas mães ao tratamento.
A mãe de B., tolerante, sem interferir que a criança se masturbasse num
local de passagem, que se apoderasse do guarda-chuva para agredir a T.,
a mãe de M. suportando de maneira heróica as crises de angústia da crian-
ça nas primeiras sessões, conseguindo isolar-se da situação. Ambas permiti-
ram que a relação terapêutica, entre a criança e a psicóloga, pudesse reali-
zar-se em sua plenitude e com seu caráter próprio.
Referências bibliográficas
Resumo
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Summary
li
I <e EDITES
Empresa Distribuidora de Teste Ltda.
BRASIL-São Paulo-
• seleção profissional
• psicologia em geral
Pedidos à:
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