Herança Daimonica

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A HERANÇA DAIMONICA DE JUNG

James Hillman

Durante os funerais de Jung na Igreja Reformista Suíça em Kusnacht o


pastor descreveu aquele que ali se homenajeava como um herético. É sobre
essa face herética de Jung e seu legado para nossa cultura que gostaria de
refletir neste ensaio. E, para essa reflexão, vamos olhar histórica e
hereticamente para os primeiros trabalhos de Jung na virada do século.
Entre dezembro de 1900 e 1909 Jung trabalhou e viveu no hospital
psiquiátrico de Burghölzli, primeiramente como residente e depois como
chefe-assistente. Ele era um membro praticante da Anstaltpsychiatrie, aquele
estilo e método de atendimento que implica em uma intensa participação e
observação diárias dos pacientes, típica no século XIX, um método que
resultou no diagnóstico diferencial que a psicopatologia continua a empregar
hoje em dia. Ele era, aparentemente, um membro efetivo do grupo.
Foi lá, durante uma das conferências internas habituais, que ele resenhou
A Interpretação dos Sonhos, de Freud, livro do qual Jung foi um dos
primeiros e únicos leitores. Apenas 351 cópias do Die Traumdeutung foram
vendidas nos seis primeiros anos após sua publicação. Quer seja pelo
estímulo de Bleuler, ou por sua própria vontade, Jung tinha o olho voltado
para idéias radicais, heréticas.
Durante esse período, entre os vinte e os trinta e poucos anos de Jung, o
Burghoelzli era o lugar para quem tinha um intenso interesse pelas
associações mentais. A noção empírica da mente, derivada originalmente de
Aristóteles e depois Locke, Hume e Jeremy Bentham em nosso tempo,
afirmava que os eventos mentais poderiam ser modelados em cadeias de
associações. As leis dessas cadeias tornaram-se domínio da psicologia;
tornaram-se, em larga escala, a Psicologia, particularmente depois que ela
foi aperfeiçoada nos experimentos e teorias do século XIX, primeiramente
por Francis Galton e depois por Wundt.
Galton, que era primo de Darwin, ao tempo do nascimento de Jung já
havia elaborado uma lista de palavras e contado o tempo de suas próprias
associações a elas. E Thomas Brown, de Edinburgo, antes ainda no mesmo
século, já havia investigado diferenças individuais nas associações,
elaborando nove ou dez leis sobre como e porque idéias evocam outras
idéias. A tarefa no Burghölzli era entrar na mente do paciente através das
associações, já que as associações, dizia Bleuler, “eram o caminho para se
compreender o homem completo.”
Jung virou de cabeça para baixo a coisa toda. Ele fazia novas e heréticas
perguntas. Não perguntava que caminho seguem as associações, nem como e
porque funcionam. Em vez disso, como, porque e quando a associação não
funciona. Não quais eram suas leis, mas o que as perturbava. Ele voltou-se
para o esquisito, o anormal, o patologizado. A questão, colocada nos termos
do “que” perturba as associações, implica um “que”, algo “outro”, um
bloqueio ou interferência, um ímpeto interveniente para além da inércia de
um idiota ou da resistência voluntária de um beócio. Um “que”, um “algo”,
um “outro” mais forte que as próprias leis das associações. Ele não apenas
tinha divisado um método experimental para a investigação do inconsciente
freudiano; tinha também reimaginado o ser humano como um locus de
complexos semi-autônomos, que depois ele descreveu como daimones,
espíritos, kobolds, pequena gente e Deuses.
Não as associações, mas seus desvios através dos complexos, foram o
caminho para “se compreender o homem completo.” Jung tomou um campo
comum e fez uma pergunta incomum. Mais: ele usou o método empírico
quantitativo para libertar a psicopatologia da noção empírica quantitativa da
personalidade. Utilizou o método científico para subverter a atitude
científica, abrindo assim caminho para uma fenomenologia radical da psique
como um campo autônomo de personificações múltiplas. Seu ensaio mais
brilhante do período mostrava a intercambialidade entre os sintomas
histéricos do corpo, as perturbações mensuráveis das associações verbais e
as figuras de fantasia nos sonhos. Os complexos libertados na linguagem
aparecem fisicamente em nossos sintomas e passeiam todas as noites em
nossos sonhos. Os sintomas neuróticos e também a resposta normal, o
aparato mental e também a reação corporal, mundo noturno e mundo diurno
também estão fundamentalmente imersos na realidade psíquica dos
complexos inconscientes. A personalidade está sempre sujeita a eles;

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estamos sempre inconscientes; o inconsciente está em toda a parte. Jung
resolveu velhos dilemas: mente/corpo, anormal/normal, consciente/
inconsciente na realidade psíquica do complexo, esse in anima.
Claro, Jung já havia feito algo semelhante no outro grande trabalho de
seus primeiros anos, sua tese de doutorado. No parágrafo de abertura, Jung
focaliza seu interesse em “certos estados de consciência.” Ele investiga
“fenômenos ocultos.” Numa dissertação médica! Muito esquisito. Não uma
patografia no sentido comum, um estudo neurológico à la Freud, mas uma
patografia dos espíritos: espiritismo. Um estudo não de Helena, ou Frau S.
W. como foi chamada, mas sim um estudo sobre o “que” perturba a atenção
usual, um estudo sobre os “outros,” as vozes, figuras e ideações que falavam
através de Frau S. W.
Em sua dissertação Jung apresenta uma idéia fundamental que é a idéia
fundamental de minhas observações aqui: “o caso não muito comum,” como
diz Jung, é para onde se deve olhar na busca de “uma riqueza de observações
interessantes.” O insight é ganho a partir daquilo que ele chama de
“inferioridade psicopática.” Esses casos esquisitos, diz Jung já no começo de
sua tese escrita quando tinha 23 ou 24 anos, apontam para algo mais do que
meramente uma relação analógica com a psicologia da normalidade. Aqui
Jung afirma uma característica metodológica, também compartilhada por
Freud e básica a toda a psicologia profunda (ou seja, a psicologia não-
humanista, não-transcendental). Começamos com o anômalo, o estranho, o
excepcional. Esse método foi muito sucintamente colocado por Edgar Wind:
“o lugar comum pode ser entendido como uma redução do excepcional, mas
o excepcional não pode ser entendido ao amplificarmos o lugar comum.... o
excepcional é crucial porque introduz... a categoria mais ampla.”
Sim, ocultismo e espiritismo eram temas comuns e apreciados no começo
do século. Também os experimentos de associação. Mas Jung deu ao
espiritismo uma virada herética — não por reduzi-lo medicamente à
inferioridade psicopática, isto é, a personalidade de Frau S. W., sua
desordem e seu tratamento, tentando curar eliminando as outras vozes e
figuras. A virada herética estava mais em tomar os outros mais seriamente,
dando suporte a suas ideações, substancializando-os e a suas intenções e
traços com analogias literárias e históricas. Novamente, seu olhar radical
estava pousado nesses daimones e sua relativa autonomia. Ele foi ao
encontro da radical independência dos “outros” com a radical independência

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de sua próprias idéias. Ao invés de reduzi-los a seus constructos mentais, ele
expandiu seus constructos mentais por causa deles.
Esses dois exemplos do olho de Jung para o esquisito antecipam sua idéia
posterior essencial de personalidade: a idéia da individuação. “A
personalidade,” como Jung a define, “é a suprema realização da
idiossincrasia inata de um ser vivo” (Collected Works 17, §289). O caminho
rumo à realização dessa idiossincrasia inata, ou “individuação,” Jung define
como um “processo de diferenciação” (CW 6, §757). “Diferenciação,”
declara ele, “significa o desenvolvimento das diferenças, a separação das
partes do todo” (CW 6, §705). Não é a totalidade que define a individuação,
mas a separação das partes: complexos e funções uns dos outros, projeções
de realidades, o individual do coletivo, imagens divinas de Deus e o
metafórico do metafísico. (CW 11, §835-36; CW 13, §73-75) “Diferenciação
significa o desenvolvimento das diferenças,” diz Jung. Diferenciação dá a
sensação da diferença, a sensação de ser diferente, de diferirmo-nos de nós
mesmos e dos outros, de sermos esquisitos. Ele até mesmo caracteriza
diferenciação como “isolamento” e diz que é o sine qua non da consciência
diferenciada. (CW 13, §395) “A individuação é o tornar-se aquilo que não é
o ego... aquilo que você não é... Você se sente como se fosse um
estranho” (SPRING 75, p. 31). A neurose, que nos aparta fazendo-nos sentir
agudamente diferentes, torna-se uma culpa beata pois é a primeira
manifestação de isolamento e de heresia. O radicalismo começa na não-
adaptação, aquele não-conformismo ou anormalidade da idiossincrasia. A
própria autonomia dos sintomas no sofrimento neurótico que não pode ser
suprimida, não pode ser extraída e nem aceita — essa autonomia das partes,
que experimentamos como sintomas — é a primeira evidência de
diferenciação radical. A neurose torna-se o sine qua non da individuação.
Individuação e patologização são inseparáveis, tanto na teoria quanto na
existência.
Já que o olho de Jung era assim tão atraído pelo idiossincrático, quer seja
no fato experimental ou no sofrimento clínico, ele foi forçado a procurar por
modos mais amplos de compreensão normativa, tais como tipos e
arquétipos. Tipos e arquétipos podem generalizar anomalias. De fato, ambos
têm maneiras de abarcar o aspecto patologizado dos fenômenos: os
primeiros como “função inferior,” os segundos como universali fantastici
(Vico), ou seja, personificações míticas repletas de exageros. Contudo, uma

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vez que ninguém é sempre típico e nenhum fenômeno sempre apenas
arquetípico, esses agrupamentos mais amplos sempre desconsideram a
particularidade e devem se submeter eventualmente à prioridade da
individualidade.
Exatamente aqui a idéa junguiana de Self torna-se teoricamente crucial.
Ela resolve este problema entre universais monotéticos e individualidades
idiossincráticas pois, mesmo que a noção de Self afirme um princípio formal
abstrato em funcionamento em todos os seres humanos ao mesmo tempo, ela
insiste na idiossincrasia de cada existência. Sempre que a peculiaridade
única do Self em qualquer indivíduo dá lugar a símbolos, emoções ou
formulações estereotipados, temos a grande patologia do sistema de Jung: a
possessão por ou identificação com o Self, ou seja, a psicose. Para dizê-lo
mais radicalmente, somente a peculiaridade individualizada de nossas
psicopatologias nos protege contra a loucura maior. Somos salvos por nossas
anomalias ou, como costumava dizer Jung, nós não curamos nossos
sintomas, eles nos curam.
As analogias religiosas que Jung emprega — Cristo nascido numa
manjedoura, o lapis como materia vilis, o ouro no estrume, a pedra que os
construtores rejeitaram — expressam o profundo protesto, o profundo
protestantismo que se anunciou nos horrendos e heréticos sonhos de infância
com o monstro fálico e o monte de excremento sobre a igreja. Podemos falar
de “radicalismo congênito,” um impulso daimônico dado com sua natureza?
Ao menos digamos que ele foi forçado a seguir um caminho diferente, um
caminho que exigiu dele fazer de sua real idiossincrasia e abandono pelo
“pai” a virtude abrangente que ele chamou de “individuação.” Mas
individuação não é uma idealizada completude centralizante ou totalidade.
“Eu não acredito que tal centro (Self) exista,” disse numa entrevista a
Miguel Serrano. Nem a individuação é atingida por incrementos de
desenvolvimento. Ao invés, a individuação é a realização da idiossincrasia
inata, da diferença inata. Ela não aparece no futuro fictício do
envelhecimento. Ela aparece fenomenicamente, em qualquer momento
esquisito de diferença. A individuação ocorre sempre que normas e hátitos
usuais do sujeito são deslocados. Somos vítimas da individuação, não seus
patrocinadores.
O olho de Jung para o esquisito recolheu e iluminou fenômenos inusuais
um atrás do outro: misticismo tibetano muito antes dos andarilhos do

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dharma; Zen muito antes de Alan Watts; a sabedoria trickster dos índios
americanos antes de Castañeda e Rothenberg; alquimia, parapsicologia e
astrologia antes destas serem absorvidas pelos viajantes da Nova Era; a
psique da física teórica muito antes de Capra; I Ching antes dos biscoitinhos
da sorte; a ressurreição do feminino antes das feministas; a natureza da
consciência africana antes de van der Post; o colapso do Cristianismo
coletivo antes das filosofias do Deus-está-morto e da teologia do pós
holocausto. Ele inspirou os Alcoólicos Anônimos; foi um dos primeiros a dar
testemunho do poder do mito como uma realidade viva em funcionamento
em ilusões coletivas tais como o Nacional Socialismo e os discos voadores.
E muito antes que Thimothy Leary e Ram Dass tomassem suas formas
humanas ele já havia escrito sobre o fator tóxico nas condições psíquicas
bizarras, ou estados alterados, da psicose.
Não é de espantar que Jung tenha virado um Santo da Nova Era
aparecendo, já no começo dos anos sessenta, entre outros ícones na capa de
um disco dos Beatles.
Mas esses tópicos — sincronicidade, a psique geográfica e racial, ilusões
políticas, zen — não são a herança. A fantasia profética aquariana não é a
herança. Sejamos bem claros. Não as palavras; mas os verbos e advérbios.
Não o campo; mas seu arado. Não o que ele viu; mas como ele viu. Não a
lua; mas o inquisitivo e torto dedo que a aponta. Acreditar que avançar a
psicologia de Jung ainda mais no inconsciente é avançar esses tópicos, é arar
os mesmos sulcos profundos e colher uma safra mais rala. Pior, trata-se do
literalismo errado. Pois o inconsciente não reside nos campos onde ele o
encontrou. O inconsciente toma a si mesmo bem literalmente: busca
permanecer inconsciente, portanto sempre escapa. “A natureza ama se
ocultar,” disse Heráclito. Assumir que os campos que Jung explorou são
hoje as explorações do inconsciente é ficar preso no tempo, como os fãs de
Rudolf Steiner vestindo-se na moda pré-primeira-guerra, como os freudianos
ortodoxos com suas barbas e divãs, ou os hippies ainda usando suas
miçangas e sandálias dos anos sessenta. Entre nós junguianos esse erro de
identificar o inconsciente com seus campos aparece nas preocupações com o
mal, com mandalas pintadas, ou com insultar ou revificar o Cristianismo.
Demonstrar a tipologia com evidências estatísticas, usar imaginação ativa
como uma técnica com guias espirituais, revestir a cultura com o ‘feminino,’
com a sombra ou Mercúrio — esses encargos dos herdeiros de Jung graças

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aos quais, ao menos, eles não o trocam por Kohut, Klein, Grof ou Lacan —
são tentativas de seguir o mestre que não seguem o mestre. Ao invés, eles
fazem ego onde havia id. Eles seguem Freud, a abordagem modernista,
positivista e psicodinâmica, ampliando o âmbito do conhecimento ao
incrementarem a ambição da razão conceitual. Didática. Seguidores podem
ser razoáveis e aceitáveis; Jung só podia ser escandaloso e radical.
Digo tudo isso tão diretamente, com ironia retórica, porque temos apenas
vinte e cinco minutos, tempo para um sermão, uma argumentação persuasiva
que balance e deixe uma impressão emocional. Meu estilo almeja o próprio
discurso de heresia que estou propondo. Sobrevoei o oceano, cruzei os Alpes
para dizê-lo.
E o que estou propondo como herança tem que ser afirmado de modo
negativo e irônico; a opus contra o familiar e natural. O radicalmente
renovador não vai com a maré, mesmo quando aparentemente o tópico é um
evento contemporâneo. Em 1936 Jung escreveu seu ensaio sobre Wotan.
Muito significativo que ele tenha se pronunciado sobre a Alemanha e o
Nacional Socialismo. Extraordinária foi sua percepção de que o mito estava
ativo ali no meio da política, como esteve em Atenas, Roma e na Europa de
Joana d’Arc e Cola di Rienzi. Os poderes arquetípicos não se mostram
apenas nos livros simbólicos, nas religiões exóticas e nos consultórios. Eles
se apoderam das ruas, da mídia, do campo de guerra. Ou, ainda outro
exemplo: quando em 1950 a Igreja proclamou a doutrina da Ascenção de
Maria e a teologia de Jung parecia reconhecida por aquela retificação da
trindade com o quarto feminino, sua teologia era radical, não porque era
atemporal e profética, não porque o conteúdo supria um background para o
feminismo; era radical porque Jung arriscava-se numa teologia psicológica
contra a reificação da Igreja de Pedro, contra noções ridículas de salvação
através de um Jesus inofensivo.
E, quando a isso seguiu-se o escandaloso livro sobre Jó, lá estava mais
uma vez a heresia — não meramente em função da teologia literal em suas
proposições sobre uma figura de Deus inadequada e inconsciente precisando
tornar-se humana, o homem como o salvador de Deus. Não. O escândalo
mais verdadeiro estava na iconoclastia, no desfacelamento da tão cara e
inviolável imagem ocidental de Deus. Jung havia deslocado o maior de
todos os grandes temas. Novamente, o jeito de trabalhar, não o trabalho; o
distúrbio, não a nova doutrina; o agon romântico de Jó e Jung, não o

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solidificado troféu que coroa a luta. É esse Jung biográfico, Jung do falo
monstruoso e da igreja defecada que dá aquela carga paternal vitalizante à
imagem de Jung na psique contemporânea.
Se não mantivermos a imago de Jung dessa maneira, Jung como um
terrorista psicológico, um pós-moderno sempre deslocando o esperado,
estremecendo as bases, sua imagem esmaece num retrato da senilidade
sábia, um membro do clube da história sentado em sua poltrona, mais um rei
de cabelos brancos nas torres da cultura européia; e esquecemos das figuras
heréticas e apaixonadas entre as quais ele figura e por quem foi fascinado:
Abelardo, Paracelso, Freud, von der Flue, os gnósticos e os alquimistas,
Nietszche.
Portanto estou tentando nos afastar da noção de que a herança cultural de
Jung está literalmente nos campos que ele abriu, e assim retornei a tais
tópicos tediosos como experimentos de associação convencionais e sua tese
acadêmica para salientar o esquisito dom de Jung e seu legado à cultura: seu
“deslocar o usual.”
Deslocar o tema usual — este é o escândalo, a heresia; e é aí que Jung —
arcaísta, patriarca, super-conservador — é radical no real sentido da palavra.
Radical porque vai de volta às radices, às raízes, aos archai. Esses archai
revertem adaptações híbridas e convenções coletivas a algo mais velho, mais
profundo e mais essencial. Essas raízes não se conformam. As raízes
protestam contra acomodações. As raízes atravessam qualquer camada de
enxerto, qualquer expectativa, insistindo em torcer e abrir caminhos do seu
jeito. Para estarem certas têm que desviar. Eu uso a metáfora das “raízes;”
Jung falou do “inconsciente arquetípico.” E era, como ainda é, chegar às
raízes do sofrimento, do sofrimento inconsciente, do sofrimento do
inconsciente, das raízes, a preocupação da terapia radical.
Onde está o inconsciente hoje? Onde sofrem as raízes? Onde estão
enterradas as faíscas de Sofia na escuridão de nosso mundo presente? Dar
atenção a elas é a terapia junguiana da cultura.
O inconsciente hoje reside não apenas nos pacientes burgueses que
costumam, eles próprios, se engajarem na mesma profissão terapêutica, não
apenas nos sonhos e nos relacionamentos, e dificilmente nas insignificantes
e tramadas agonias da transferência, o bovarismo de Flaubert agora reescrito
como psicodinâmica do narcisismo. Sofia sofre hoje em nossas cidades, em
nossa tecnologia, em nossas instituições e nossa política paranóica, essas

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furiosas superestruturas egoístas que perderam suas raízes elementais nos
archai; e Sofia sofre nos padrões de produção, distribuição, consumo e lixo,
nas coisas comuns do dia-a-dia que nos cercam neuroticamente chamando
nossa atenção, com suas formas desmoralizadas, falsas personas e sua
tendência para o colapso. O daimônico vive menos em nossos sonhos e mais
em nossos dias, nossa inércia moral e exaustão anestesiada. O inconsciente
se rebela em nosso mundo maníaco, não na sincronicidade, não na
sexualidade, e não nas deusas, nem na primeira infância e nem mesmo no
transcendentalismo trivial. O inconsciente está onde sempre está, nas bordas
da consciência, entrelaçado à consciência, onde não olhamos ou não
queremos ver. Está no meio de nós. Estamos imersos na psique. Como
insistiram os alquimistas, o ouro da possibilidade está no lixo horrendo mais
próximo de nós.
A tarefa de trabalharmos a materia prima do inconsciente real sempre foi
aquela do artista que não expressa meramente seu sofrimento, mas que
reflete o tormento da anima mundi, o sofrimento das raízes. Por artista quero
dizer o artesão, quer seja artista, alquimista ou analista — aquele que toma
nas mãos a madeira abandonada, os sons cacofônicos, os pedaços de
bricolage e retorna essa insconsciência a suas raízes. O artesão trabalha
através da anima rumo à anima mundi.
E assim, para concluir, a abordagem herética de Jung precisa ser
renomeada. Afinal, ela assim foi chamada por um pastor dentro do contexto
religioso de um funeral. Mas aquilo a que o pastor se referiu não é nada mais
do que a visão das artes desde Giotto, Dante e Vitruvius; aquela visão
daimônica que desloca o usual ao revertê-lo a seu archai. O mesmíssimo ato
que esfacela o ícone familiar anuncia sua importância daimônica, elevando a
imagem ao lugar primeiro.
Se a visão de Jung é semelhante àquela do artesão e sua vida conforma-se
ao dever e destino do artista — apesar dos protestos de Jung, apesar de suas
atitudes anti-estéticas, apesar de seu imenso e continuado compromisso com
a religião — ainda assim este é o legado que ele deixa à cultura e é também
sua terapia. Se sua visão é comparável com a do artista, então o trabalho da
terapia também deve ser concebido ou imaginado como um empreendimento
artístico, a reversão da medicina para sua arte, assim como a política para
sua arte, o planejamento das cidades, o serviço social, a indústria, a
educação — cada um como um trabalho com as raízes que sofrem. Cada um

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como uma tentativa de fazer alma a partir da inconsciência. Cada um uma
tentativa de individuação do coletivamente dado. Cada ato da luta diária
levemente em conflito com a luta diária, deslocando o usual, libertando a
imagem cativa e aliviando o sofrimento de Sofia na matéria. Cada
movimento sempre radical, subversivo, particularmente subversivo às
noções confortáveis da psicoterapia usual, psicoterapia como usual, e sempre
uma raiva contra a cega harmonia de uma vida anestesiada. Ao invés, uma
vida entre os salientes, os esquisitos, os patologizados; os machucados e
descontentes, em paz somente num mar revolto.

Este ensaio foi pela primeira vez apresentado em Milão na Conferência “Presente
e Herança Cultural” que comemorava o 25° aniversário da morte de C. G. Jung, no
Centro Italiano di Psicologia Analitica, em 1987. Está publicado na revista
SPHINX 1/1988, Londres, Inglaterra.

Tradução de Gustavo Barcellos

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