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O G Da Questão
O G Da Questão
O DA G
QUESTÃO
2022
Título
O G da Questão
Autoras
Celeste Fortes e Lourdes Fortes
FICHA TÉCNICA
Parceiros: Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), Instituto para a
Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) e Centro de Investigação e Formação em
Género e Família (CIGEF) da Uni-CV.
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Agradecimentos
Celeste e Lourdes
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Nota prévia
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Índice
Prefácio........................................................................................................................................................................................................ 9
Introdução.............................................................................................................................................................................................. 11
Corpo............................................................................................................................................................................................................ 15
Beleza e Pressão Estética................................................................................................................................................ 17
Gordofobia............................................................................................................................................................................................. 23
Plus Size...................................................................................................................................................................................................... 29
Corpo feminino e fisioterapia pélvica......................................................................................................... 35
A primeira menstruação................................................................................................................................................. 39
Dignidade e higiene menstrual............................................................................................................................. 45
A última menstruação......................................................................................................................................................... 51
Sexualidade................................................................................................................................................................................... 57
Sexo na terceira idade......................................................................................................................................................... 59
Saúde sexual e afetiva das mulheres mastectomizadas................................................ 63
Vida sexual e afetiva de mulheres com deficiência física............................................ 69
Saúde sexual e reprodutiva de mulheres com transtornos mentais......... 75
Vida sexual e afetiva de mulheres lésbicas......................................................................................... 81
Trabalho sexual no feminino.................................................................................................................................... 85
Maternidade................................................................................................................................................................................ 91
Desromantizar a maternidade............................................................................................................................. 93
Líbido e maternidade............................................................................................................................................................ 99
Violência Obstétrica................................................................................................................................................................ 103
Não à maternidade.................................................................................................................................................................. 107
Mãe solo na sociedade cabo-verdiana...................................................................................................... 113
O género e a justiça em Cabo Verde.............................................................................................................. 119
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Prefácio
Esses e outros desassossegos – que nada têm a ver com rostos ou nomes
– mobilizam a ler “ O G da Questão”, a interagir com os seus perso-
nagens e imaginar outras e outros ouvintes ou falantes com narrativas
semelhantes. O que poderá estar a acontecer, neste preciso momento,
com crianças e pessoas de todas as identidades de género nas famílias,
casas, ruas, escolas, instituições, organizações partidárias, locais de tra-
balho, no nosso país ou em outro qualquer? O que cada um de nós tem
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de suportar, ou não suportar, para continuar de pé ou, sobretudo, para
se erguer do chão e viver?
Até cerca dos anos setenta falava-se em género para identificar grama-
ticalmente o sexo masculino e o sexo feminino. Entretanto, com mais
e melhores ferramentas de investigação científica, jurídica, política… e
com maior abertura intelectual e cultural juntamente com pressão mais
focada nos Direitos Humanos e uma dinâmica mais esclarecida das Na-
ções Unidas sobre o empoderamento das mulheres, o “Género” foi ado-
tado como um conceito de análise social. É com este conceito que a obra
trabalha e se debruça, trazendo relatos de ocorrências, muitas das quais
relacionadas com a própria existência biológica da mulher – não da sua
condição – seja a menstruação, a vida sexual, a gravidez, a maternidade
e outras. Não sendo estas situações impeditivas de uma prestação re-
gular das mulheres na vida ativa, algumas vezes são transformadas por
pressões de ordem vária em fantasias, constrangimentos ou problemas
que influenciam e marcam negativamente a sua existência.
Foi proveitoso ler estas entrevistas e lembrar a luta diária das mulheres
por mais educação, mais saúde, mais trabalho, mais justiça e mais liber-
dade. A isso chama-se empoderamento das mulheres e, pelas falas, cer-
tamente serão instrumentos para a construção de sociedades sem dor.
Dina Salústio
Dezembro 2022
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Introdução
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a fazer d’O G da Questão um programa que cumpre com a necessária
e urgente estratégia de diálogo entre o conhecimento produzido na
academia e a sua tradução para uma audiência vasta e variada. O
estilo escolhido –informal, pessoal, quase intimista – permite a rápida
identificação de quem ouve com os assuntos abordados e ajuda a
aumentar a literacia dessa mesma audiência.
O G da Questão é, na rádio, uma conversa. Todas as terças-feiras, as
apresentadoras recebem convidadas das mais variadas origens e com
os mais diversos percursos. Investigadoras, especialistas e/ou com
experiências diretas no tema sobre o qual aceitam dialogar. No primeiro
ano de emissões, O G da Questão tirou do silêncio cerca de duas dezenas
de temas, numa temporada com perto de quarenta episódios.
O livro que aqui apresentamos foi o passo natural seguinte. Das
dezenas de comentários positivos que recebemos, de tantas
mensagens de incentivo, resultou a convicção de que poderíamos ir
mais além, passando a texto o essencial dos programas ouvidos na
Rádio Morabeza ou na internet. A abertura e suporte da direção e
administração da rádio e o apoio concedido pelo Fundo das Nações
Unidas para a População (UNFPA), pelo Instituto Cabo-verdiano
para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) e pelo Centro de
Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF) da Uni-CV,
tornaram possível a sua rápida materialização.
O livro encontra-se dividido em três partes, tendo como critério a
palavra-chave que orientou os diferentes episódios. À primeira parte
chamamos “Corpo” e nela olhamos para os nossos corpos femininos,
enquanto tela de inscrição das expectativas e pressões culturais. Na
segunda, “Sexualidade”, discutimos o sexo no feminino nas suas
múltiplas dimensões. Finalmente, na terceira parte entramos no
universo da “Maternidade”, explorando-o para lá do óbvio.
O G da Questão tem procurado ser “um programa como nenhum
outro” (assim mesmo se apresenta no seu spot promocional) e tem
como desejo trazer para o espaço público, através dos media, assuntos
que nos dizem muito, que experimentamos, que vivemos, mas que
guardamos para nós mesmas.
Semanalmente, contrariamos o silenciamento, tornamos nossas as
preocupações, as dores, as queixas, as ansiedades e os traumas de
muitas outras mulheres.
Dizemos que não há tema que não possa ser abordado e discutido. O
nosso desejo é dar voz a assuntos tantas vezes tabu, para que possam
entrar na normalidade das nossas sociabilidades.
As autoras
Mindelo, Dezembro de 2022
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“Qual é a maior lição que uma mulher pode aprender? Que desde o
primeiro dia, ela sempre teve tudo o que precisa dentro de si mesma.
Foi o mundo que a convenceu que ela não tinha”.
Rupi Kaur
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Corpo
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Beleza e Pressão Estética
Sílvia Pires
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Estamos a falar de beleza e pressão estética, tema que
conheces bem...
Conheço e é um tema que faz parte do dia-a-dia das pessoas. É uma
pressão que afeta tanto homens, como mulheres. Quando falamos da
estética, as pessoas ligam logo ao mundo da moda, mas isso é o nosso
dia-a-dia, aquilo que somos, realmente, nos vários tipos de corpos.
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atribuído, em parte, à pressão estética do mundo laboral e
também aos ditos influencers.
Também não podemos ignorar a pressão exercida sobre quem está no
meio da moda, que tem de estar dentro daquela forma determinada. Eu,
em Portugal, cheguei a recusar grandes desfiles por causa da exigência
do corpo perfeito que tens que ter. Quando o corpo perfeito já atinge a
saúde, o nível psicológico da pessoa, vês que já não estás equilibrada.
Estás nos bastidores e estás a comparar-te com as outras. Estamos a
falar de jovens. Se não estás mentalmente preparada automaticamente
podes ser desviada e surgem doenças, como anorexia, síndrome da
magreza, etc.
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Há muita concorrência no mundo da moda. Vais a um casting, tens o
número 1551 e apenas vão escolher uma pessoa. Chegas, vês as tuas
adversárias, o cenário e sentes-te um objeto. Temos de entender que
há variadíssimas pessoas a concorrer para um trabalho, não temos
de ser sempre magras, mais avantajadas. Algumas pessoas têm peito,
outras têm pernas.
Mas ao fim ao cabo, é isto que acaba por ditar as regras sobre
o dito corpo belo...
E os adolescentes, principalmente, porque ainda não têm maturidade
suficiente para separar as águas e entender os processos de casting,
são afetados com isso e vão crescendo com esta insegurança que, ao
longo do tempo, cria uma imagem errada da relação que as pessoas
devem ter com os seus corpos. Com o tempo, adquires maturidade.
Com o apoio das pessoas que te apoiam, consegues desenvolver os
teus anticorpos e aprendes a separar as coisas.
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A beleza é uma opinião e não um consenso?
Não é um consenso. A beleza é relativa, muito pessoal, e tem muito
a ver com a autoestima, com a forma como nos sentimos, como nos
vemos como pessoa. É uma questão de personalidade. Se sei quem sou
e o que quero, é mais fácil gerir essa pressão social.
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Gordofobia
Agnes Arruda
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O que se entende por gordofobia?
Gordofobia, em linhas gerais, é o preconceito contra pessoas gordas.
Num primeiro momento, tendemos a associar este preconceito a uma
questão meramente estética, considerando que associamos o padrão
de beleza atual, que é o padrão magro, ao bonito, e o corpo gordo, em
oposição, a algo feio. Na capa da estética, vivenciamos uma camada
superficial do preconceito que é muito relevante, mas a gordofobia
atinge uma série de outros espaços. As pessoas gordas são violentadas
e privadas dos seus direitos mais básicos. A gordofobia leva a pessoa
gorda a um espaço de segregação social, familiar, política e económica
e tem consequências numa série de esferas, tanto da vida pública,
quanto da vida privada.
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esta característica do meu corpo, até de maneiras nada saudáveis.
Dentro deste contexto, temos a cultura das dietas, dos medicamentos
e procedimentos para emagrecer. Processos que são muito violentos
em relação aos nossos corpos e que, quando não reconhecemos a
existência do preconceito, acabamos por praticar como uma espécie
de ocultação desse corpo. Quando dizemos “espera aí, existe o
preconceito e eu não vou esconder o meu corpo por causa disso”, esse
corpo também ganha um espaço de referência e visibilidade.
Neste caso, a mulher gorda é tida como uma mulher que não
segue as normas patriarcais e machistas, considerando que
há uma expectativa social sobre os corpos femininos…
Exatamente. A performance de feminilidade não contempla os corpos
gordos. A mulher gorda não performa esta feminilidade do patriarcado,
não representa o que é feminino.
A gordura é algo feminino, na realidade. Os volumes, os seios, os
quadris, as coxas fazem parte do corpo feminino que o patriarcado
tenta apagar. Então, a partir do momento em que nos preocupamos
com esta performance, apagamos, inclusive, o que temos de feminino.
Esta é uma questão extremamente relevante dentro da discussão da
gordofobia.
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a operação comercial é o lucro. Quando falamos de produção de bens
de consumo, temos a produção em massa e tudo o que é produzido
em maior quantidade tem o seu custo de produção diminuído. Quanto
mais se produz, mais barato fica, maior o lucro.
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E que papel têm os media sociais nesta equação?
Os media reforçam e reproduzem estereótipos o tempo todo, fazendo
com que as pessoas continuem a ser violentadas, hostilizadas. É todo
um ciclo de reações do preconceito.
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Plus Size
Aliana Aires
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A forma como olhamos para o nosso corpo tem evoluído
ao longo dos anos e é inegável o papel da moda nesta
diferenciação dos corpos e na definição de novos padrões.
O termo plus size é recente e foi utilizado pela primeira vez
nos Estados Unidos da América. Como é que surgiu este
termo dentro do mundo da moda?
Plus size é um nome – não sei se podemos chamar conceito – que, na
tradução do inglês para português, significa ‘tamanho grande’. Durante
muito tempo, as mulheres gordas foram privadas de consumir moda.
Nos últimos anos, observamos a criação e intensificação do mercado
de moda plus size, impulsionado por movimentos de valorização da
diversidade que emergem na esfera das culturas contemporâneas do
consumo, dando visibilidade à mulher gorda, numa perspetiva de
consumidora.
Como é que uma mulher que era gorda ganhou uma nova
identidade através de um nome que significa ‘tamanho
grande’? Houve um enquadramento desse indivíduo gordo?
A mulher lenta, que não consome bem, doente… todos esses conceitos
negativos que estavam colados à identidade do gordo não combinavam
com o que a publicidade passa. Para enquadrar esse indivíduo gordo,
ele não poderia continuar a ser o gordo tradicional, então, o termo
plus size serve como uma nova identidade. Não podendo reconstruir
a mulher gorda, que já foi difamada o suficiente, cria-se uma nova
categoria de público consumidor, plus size, que é uma espécie de
gorda magra.
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identidade pejorativa que a história carrega em torno da obesidade.
Apanho um ser estigmatizado e ressignifico-o, colocando-o na lógica
de consumo.
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Como é que se vestiam?
Quando houve a mediatização da obesidade, as pessoas eram
retratadas sem rosto e a moda foi a mesma coisa, simplesmente
colocou as pessoas no limbo. Não sabemos como elas se vestiam,
historiograficamente. No Brasil, não tive grandes informações. Há
poucas evidências de lojas com numerações maiores. Essas pessoas,
deduzo através de relatos, vestiam-se ou no departamento masculino
ou com costureiras individuais ou, como recebi relato de pessoas com
numeração 70, com toalhas e lençóis, porque não existiam roupas
para números muito grandes
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O que significa para as mulheres gordas poderem consumir
moda plus size? Liberdade, empoderamento, resistência?
É um pouco de tudo, não é só uma coisa. Tento sempre fazer uma
análise racional. É inegável que os adolescentes de hoje têm modelos
gordos para se espelhar. É um empoderamento relativo, não total. É
empoderador abrires uma revista e veres corpos que não são aqueles
de sempre.
A minha geração, tenho 39 anos, abria uma revista e via corpos
extremamente magros. Hoje há uma preocupação, no seio da sociedade
de consumo, de produzir objetos que fujam ao perfil tradicional do
magro, jovem, cabelo liso, branco. Já vemos negras, crespas. Já vemos
alguma democratização, mas ainda é muito fraca.
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Corpo feminino e fisioterapia pélvica
Eileen Spencer Santos
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O que é o pavimento pélvico?
Vamos imaginar o nosso corpo como uma lata de refrigerante. O
pavimento pélvico vai corresponder à base dessa lata, ou seja, nada
mais é do que a base do nosso corpo. É constituído por vários músculos
e ligamentos, que vão servir de rede de apoio e suporte dos órgãos
pélvicos, nomeadamente, a bexiga, o útero, o intestino, nos homens
a próstata, controlando a urina, as fezes, gases. É fundamental para a
nossa saúde sexual e nas grávidas tem uma função ativa no momento
da expulsão do bebé.
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mulheres devem tocar-se e é importante que se toquem para terem um
mínimo de perceção daquilo que sentem.
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pélvica, mesmo sem ter nenhuma queixa. Não existe uma queixa
especifica ou idade ideal para fazer uma avaliação. Uma grávida,
uma mulher de certa idade ou uma jovem devem sempre fazer uma
avaliação, de modo a terem consciência, a saberem como se encontra
essa musculatura, porque enfraquece gradualmente com a idade.
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A primeira menstruação
Gisele Modesto
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Nem sempre é fácil falar sobre a menstruação. Comecemos
por entender o que é isso da ‘primeira menstruação’?
Realmente, é um tema muito importante e pertinente, sobre o qual se
fala muito pouco.
A primeira menstruação, cientificamente chamada de menarca, é uma
das fases da puberdade. Durante o desenvolvimento do corpo, tanto
meninas como rapazes passam por fases específicas, até chegarem
à vida adulta. No caso das meninas, uma dessas etapas é a primeira
menstruação, um fenômeno biológico que leva a transformações
físicas e psicológicas.
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sabemos que a primeira menstruação é que demonstra que há uma
maturação do eixo que controla o ciclo menstrual. Podemos começar
a menstruar de forma regular ou irregular, porque inicialmente a
maturação não é completa.
Temos de orientar as meninas, porque se iniciarem a sua vida sexual,
pode ocorrer o risco de uma gravidez precoce.
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na informação, para permitir que as informações cheguem a todos,
tanto às raparigas, como aos rapazes, para que eles possam perceber
e respeitar o momento delas. Também ao pai, como forma de orientar
os filhos sobre o tema.
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Quando se tem a perceção de que há um atraso na ocorrência
da primeira menstruação, o que deve ser feito?
Como disse há pouco, a primeira menstruação surge cerca de 2 anos
após o início da puberdade. Normalmente, a idade da menarca é entre
os 10 e os 14 anos, em média 12 a 13, embora nalguns casos possa
ocorrer aos 9 anos. Se, até aos 15 anos, a menina, com mamas e pelos,
ainda não teve a primeira menstruação, é critério para procurar
avaliação especializada, porque temos de identificar a causa na origem
desse atraso. Noutras situações, podemos antecipar esta avaliação.
Por exemplo, quando a menina com 13 anos, ainda não tem mamas
e não tem pelos, isso chama a atenção para procurarmos orientação
especializada.
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Dignidade e higiene menstrual
Lara Amado
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O que é isto da dignidade menstrual?
Como diriam muitas pessoas, a dignidade menstrual está na moda,
mas na realidade nunca esteve, nem estará. Segundo as Nações Unidas,
a dignidade menstrual é um direito humano e por isso estamos aqui
para falar deste tema tão importante.
Dignidade menstrual nada mais é do que termos as condições mínimas
para nos trazer essa tal dignidade. Quais são essas condições? Ter uma
casa de banho limpa, com privacidade, para que as meninas possam
fazer a sua troca com segurança, higiene e dignidade. Acesso à água,
produtos menstruais, como toalhitas, pensos higiênicos, entre outros,
dependendo da capacidade financeira de cada consumidor.
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É isso que designamos de pobreza menstrual?
É isso e um bocadinho mais. Há ainda o facto de essas meninas não
terem acesso à assistência médica e medicamentosa, no caso de meninas
que têm muitas dores. Sabemos que há meninas com endometriose
desde os 11 anos e que nunca souberam que têm endometriose, porque
nunca foram a uma consulta, porque não têm como pagá-la. Também
temos a questão do estigma, porque a menstruação é associada a algo
sujo, vergonhoso, que as mulheres têm de esconder.
Também para nós, que comercializamos produtos menstruais, a
tributação é enorme. Os meus produtos são ecológicos. Temos carros
ecológicos em Cabo Verde, com uma tributação menor por serem
ecológicos, mas os meus produtos não têm uma tributação menor, se
calhar até é maior.
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em casa dois ou três dias, se for o caso. Tudo o que diz respeito à
menstruação e à gravidez precisa de ser olhado com mais cuidado.
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Exatamente. É por isso que estou a lutar. Já consegui algumas
parcerias com o Estado e é isso que vamos fazer. Tenho muitas clientes
que perguntam o preço, que fazem o esforço e dois a três meses depois
vêm fazer a compra. Mas é um esforço enorme, conseguirem juntar
esse dinheiro e comprar o coletor.
O que ensino é um pouco de educação financeira: se queres ter
mais saúde e mais poupança, tens de pensar a tua vida, ser uma
consumidora racional e lidar com a menstruação de forma mais
consciente e ecológica.
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A última menstruação
Teresa Martins
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O que é a menopausa?
Começamos por dizer que a menopausa é a paragem da menstruação,
ou seja, a última menstruação. Mas só vais saber disso em retrospetiva.
Olhando para trás, depois de um ano sem menstruar, dizes “sim, estou
na menopausa”. Para se perceber do que se trata, temos de ir ao início
da atividade dos hormónios nas meninas, que começa dentro do útero,
tem o seu aumento brusco ao entrar na primeira menstruação e essa
‘tempestade’ vai ficar alta durante muito tempo, até chegar um dia…
Não conseguimos dizer a nenhuma mulher que a menopausa será na
idade ‘x’, mas sabemos as médias de idade em que as pessoas entram
na menopausa.
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hormônios vão fazer aquilo que é físico, mas a cabeça vai determinar
como é que se lida com a mudança. Uma boa parte das mulheres não
sente muita coisa, não tem nenhum calor infrontód, ao contrário do
mito. Muitas sentem um calor que é perfeitamente controlável.
Isto é um evento fisiológico normal, o corpo vai caminhar para lá e o
que vai determinar se fazes algum tratamento ou não são os sintomas.
Tem gente sem sintomas, outras mulheres com sintomas moderados
e há aquelas, em menor quantidade, com sintomas realmente severos,
em que fica muito difícil viver o dia-a-dia – essas são as pessoas que
têm medicação. Se está a incomodar e precisa de tratamento, trata-se.
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fica vermelha no rosto e depois passa. Habitualmente, é mais noturno,
o que pode perturbar um bocadinho a vida do casal. Durante o dia, nas
interações sociais está toda suada, com a blusa colada ao corpo. Para
essa mulher, provavelmente, haverá uma indicação de tratamento
sistémico.
Para sintomas locais, trata-se com medicação local. É o caso da vagina
seca. Quando o estrogénio cai, a pele fica mais fina e, por isso, é comum
vermos que as pessoas mais velhas se machucam com facilidade. Isso
acontece também na parte de dentro da vagina, porque tudo fica mais
fino. A mulher tem dificuldade na relação sexual porque vai doer, vai
incomodar, pode ter uma propensão maior para infeção urinária.
Tudo isso vai perturbar a vida do casal e da mulher, como ela se sente.
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chegar à menopausa? Esta é mais uma. Não é o que está a acontecer,
é a maneira como lido com o que está a acontecer. A menopausa não
pode ser vista como o fim da linha.
Mas isso tem muito a ver com o facto de o nosso corpo ser
constantemente escrutinado, sobretudo na parte mais
sexual. De se olhar para as mulheres em menopausa como
se estivessem no fim…
O coletivo vai olhar para ti consoante te posicionares. Se te
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posicionares como uma velhinha que já está no final e não tem mais
nada para descobrir na vida, é assim que te vão encarar. Mas não te
vais posicionar desta forma, mas sim como alguém que está a entrar
numa outra fase da vida. Não podes usar a conversa alheia como bitola.
Tu és a bitola da tua vida. Visto-me como quero, ando como quero e se
quiser sair por aí feita maluca, com um chapéu lilás na cabeça, é meu
problema. O pessoal vai falar? Que fale!
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Sexualidade
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Sexo na terceira idade
Deisa Semedo
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A sexualidade das pessoas na terceira idade é um assunto
envolto em vários tabus e que precisa de ser conversado e
desmistificado.
É uma temática que continua a trazer alguns burburinhos. Se
a sexualidade ainda é um tema complexo, quando falamos da
sexualidade dos idosos o assunto torna-se mais intrincado, devido à
forma como as pessoas encaram o tema.
A primeira coisa em que pensamos quando se fala da sexualidade
é em sexo. Então, é extremamente importante percebermos que a
sexualidade vai além do sexo. O sexo é um componente que faz parte
da nossa sexualidade, mas esta é formada por várias dimensões, é algo
que faz parte do nosso ciclo vital.
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De que forma devemos colocar o conceito de idoso?
Houve um período em que todos pensavam na pessoa que cuida
dos netos, que fica em casa, que usa roupas longas. Tínhamos um
estereótipo do que é ser idoso. Neste momento, já não, porque
encontramos pessoas a partir dos 60 anos – idade a partir da qual,
segundo a OMS [Organização Mundial de Saúde] se é considerado
idoso nos países em desenvolvimento, como é o caso de Cabo Verde –
que são ativas, que querem fazer mais e que podem fazer mais.
Os idosos estão cada vez mais ativos, independentes, até
financeiramente. Embora a nossa realidade seja um pouco diferente,
já encontramos idosos com algum poder de compra e que querem
viajar, divertir-se, sair. Tudo isso acaba por descrever os ‘novos idosos’,
que ambicionam fazer tudo o que não lhes foi permitido enquanto
trabalhavam ou enquanto cuidavam dos filhos.
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é isso que faz com que as pessoas sintam vergonha e tabu para falar
sobre o tema. Se comemos uma coisa, dizemos “comi tal coisa”, mas
ninguém se levanta e diz “hoje fiz sexo”.
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Saúde sexual e afetiva das
mulheres mastectomizadas
Ariana Monteiro Carvalhal
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Comecemos pelo início. Como é que lidaste com o
diagnóstico?
É complicado, ninguém está preparado para receber um diagnóstico
de cancro da mama, sobretudo tendo informações nem sempre
positivas de pessoas que já passaram por tal. Receber a notícia foi um
pouco complicado, num momento que considerava estável a minha
vida amorosa e com um filho pequeno de 2 anos.
Entretanto, algo mexeu comigo e consegui ter uma força, que acredito
ter vindo de Deus, porque quis viver, tudo o que queria era viver.
Agarrei-me ao tratamento e fiz de tudo para vencer.
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meu corpo. Tiraram-me uma parte do meu corpo, sinto aquele vazio.
Estava sozinha em Portugal ou pelo menos não estava na companhia
do meu marido e filho, as pessoas mais próximas, mas o apoio que
tive durante o processo amenizou ligeiramente o sofrimento. Fui-me
familiarizando com a situação.
Primeiro, tinha gazes que faziam inchaços na frente e não sentia, mas
quando tirei os pontos, fui ver e praticamente é pele nos ossos. Aí senti
mesmo aquele vazio. Choca, mas depois, com o tempo, fui-me adaptando
e preparando para o momento de estar na companhia do meu marido,
na intimidade, para outros momentos. Foi um outro processo. No pós-
operação, foi uma adaptação minha com o meu novo corpo.
| 66 |
um estímulo em termos da sexualidade, de ter prazer. Também são
importantes na amamentação de uma criança.
No primeiro encontro que tivemos do grupo de Diva’s, fizeram-
me uma surpresa. O meu marido deu um depoimento, disse que
se foi adaptando, que teve de se preparar para me receber de volta,
para refazermos a nossa vidas. Como ele disse, foi um turbilhão de
informações, mas conversando, com companheirismo, a ligação
permitiu-nos, juntos, ultrapassar.
Passei também por um processo de reconstrução, fomos descobrindo
outras formas de prazer (risos). Agora posso rir. Tive momentos de
tristeza e angústia, mas ele ajudou-me.
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Vivemos numa sociedade muito pequena, onde as pessoas
querem saber de tudo e opinar em tudo. Como foi esse
processo de te abrires e falares às pessoas sobre o que estás
a viver?
No fundo, eu tive esta conversa com o meu marido e no grupo de
guerreiras onde partilhamos essas informações. Com os familiares
mais próximos, fui-me abrindo aos poucos.
A primeira vez que fui abordada por uma pessoa desconhecida, tinha
sido operada, estava sem mamas e fui visitada por alguém que não
conhecia e que dizia ser da família. A primeira coisa que me perguntou
foi se eu tirei a mama. Não gostei e pesou-me bastante.
Mas estas coisas, que considero negativas, magoam-te no primeiro
momento, mas preparam-te para uma abordagem posterior.
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Vida sexual e afetiva de mulheres
com deficiência física
Jamira Dias
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Foste atropelada aos 10 anos e desse atropelamento resultou
a amputação das duas pernas. Como tem sido este processo
de aceitação, que pensamos ser contínuo?
Tem sido uma luta constante. Viver com uma deficiência, ainda por
cima sendo mulher... Quando se é criança, não se tem aquela perceção
do que é uma deficiência. Apenas se vive. Comecei a crescer, entrei
na adolescência e aí comecei a ter vergonha e preconceito da minha
deficiência.
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Como é lidar com a vida sexual e afetiva tendo uma
deficiência?
No início foi complicado para mim. Namorava, mas não deixava
que a pessoa me tocasse, até me chegaram a perguntar se tinha sido
violada. Estive com o meu primeiro namorado durante um ano sem
que ele me tocasse. Primeiro queria ter certeza do sentimento dele e
se valia a pena viver aquilo tudo. Só me tocava da cintura para cima.
Não deixava que me tocasse nas pernas. Usava calças, ténis. Comecei
a usar vestidos depois dos 25 anos.
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No teu caso, és mãe e tens uma relação conjugal. Como é que
a sociedade olha para ti?
As pessoas pensam que não fazemos sexo, não temos desejo, que não
temos orgasmos. Temos e costumo dizer que se não conseguimos de
uma maneira, arranjamos outra forma. Eu tenho uma relação conjugal
e sou mãe. Algumas pessoas quando me veem com o meu marido, ou
quando trocamos carícias em público, fazem aquele olhar… mas eu
nem ligo.
| 73 |
Ainda há um longo caminho a percorrer...
A primeira coisa a fazer é respeitar. Sem respeito, não vamos a lado
nenhum. Precisamos de criar acessibilidades em todos os serviços.
Temos direito de ir e vir, tal como as pessoas ditas ‘normais’. Temos de
mudar a mentalidade. Quando vamos a uma instituição, tratam-nos
como crianças, falam connosco de forma infantilizada. Percebemos
tudo, a minha deficiência não me tira capacidades, o que há em mim é
um corpo com limitação.
Enquanto não mudarmos a mentalidade, vamos continuar a tratar as
pessoas com deficiência como sendo deficientes. A sociedade vê-nos
como incapazes. Não somos incapazes, apenas temos um corpo com
alguma limitação, mas é um corpo com desejos e sonhos.
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Saúde sexual e reprodutiva de mulheres
com transtornos mentais
Daniela Fortes
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Ajuda-nos a entender o que são transtornos mentais.
A doença mental refere-se a uma condição de saúde onde vamos encontrar
algumas mudanças nas funções mentais, que podem ser da emoção,
do pensamento, da sensopercepção, da linguagem, memória,
comportamentos, etc. Dependendo do tipo de transtorno mental que a
pessoa apresenta, pode ter algumas funções mentais mais alteradas em
determinadas situações, do que noutras.
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Aqui não falamos apenas do tratamento a nível da medicação.
É uma questão de saúde que pode ser tratável e quando digo tratável
é para apostar um pouco mais além do tratamento medicamentoso
e hospitalar. É preciso inserir essas pessoas na sociedade, como
sujeitos de direito. Os direitos humanos dessas pessoas devem ser
mais valorizados e protegidos.
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A saúde sexual e reprodutiva fica resumida ao controle da
natalidade, portanto…
E isso acaba por fazer com que a mulher tenha uma atenção
fragmentada. Acontece, por exemplo, quando a mulher já está grávida
e a família procura os serviços de saúde, ou quando a família procura
os serviços de saúde para prevenir a gravidez. Isto compromete a
assistência, o profissional não vai fazer uma educação sexual, não vai
fazer uma educação para a saúde. O cuidado não é dirigido à mulher,
mas sim às expectativas da família, da sociedade e do profissional de
saúde.
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Mas há que ter cuidado, porque a linha é bastante ténue, e não se pode
confundir todo e qualquer ato sexual da pessoa com transtorno mental
com violação.
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A questão é que, muitas vezes, a família não está preparada,
não sabe como lidar...
Aqui entraria o trabalho do profissional de saúde, para capacitar as
famílias.
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Vida sexual e afetiva de mulheres lésbicas
Josiane Lopes
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O que significa para ti ser mulher homossexual?
Para mim, ser homossexual é um desafio. Quando és homossexual,
tens vários desafios, barreiras, preconceitos na sociedade e na família.
Mas é tudo superável.
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Achas que existe essa liberdade feminina? Por exemplo, no
espaço público há lugar para manifestação de carinho entre
duas mulheres?
Atualmente, posso dizer que sim, em 80% dos casos. A nova geração
tem uma mente mais aberta. Antes, referia-se que era doença, que isto
mais aquilo, mas agora a sociedade consegue aceitar bem as pessoas
homossexuais e não só. Isso é bom, está-se a evoluir.
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Na nossa sociedade, pouco se fala de temas que podem, de
certa forma, ferir aquilo que são os padrões e a construção
social pré-estabelecida. Quando temos um tema que precisa
de espaço no debate social, simplesmente fazemos silêncio.
As pessoas quando não entendem, não conhecem o assunto, vão para
o silêncio, para a violência, mas nunca param para ouvir, não sabem
escutar.
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Trabalho sexual no feminino
Alexandra Oliveira
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Tens feito um trabalho particular na desmontagem de alguns
preconceitos e ideias menos debatidas sobre o trabalho
sexual no feminino. Comecemos por entender o conceito.
De forma simples, posso dizer que é toda a atividade sexual comercial.
Depois, podemos especificar, dizendo que se trata de produtos e
serviços com conteúdo sexual ou erótico, trocados por dinheiro e/ou
outros bens. Aquilo que mais facilmente as pessoas identificam como
trabalho sexual é a prostituição, mas o trabalho sexual acaba por ser
um conceito guarda-chuva para uma série de outras atividades que
têm que ver com a troca de sexo por dinheiro, ou uma prestação sexual
a troco de uma remuneração, sendo que aqui pode estar incluído o
striptease, os atores e as atrizes de filmes pornográficos, as pessoas
que vendem serviços sexuais através da internet…
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excluída de qualquer direito, que não tem direito a segurança social,
como outros trabalhadores.
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das mulheres, dizendo o que podem ou não fazer. Eu acho que as
mulheres devem poder escolher livremente o que podem fazer com o
seu corpo. Eu posso achar que não é o que quero para mim, mas tenho
de respeitar se outra mulher decidir fazê-lo.
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O argumento de que não há escolha é trazido por aqueles
que defendem a abolição do trabalho sexual, apontado que
não há escolha e que as mulheres estão lá coagidas...
Eu acho que o problema de muitas vozes que falam sobre trabalho
sexual, nomeadamente essas que querem acabar com o trabalho
sexual, é que olham só para uma parte do fenómeno.
Queria aqui dizer que é óbvio e claro que para algumas mulheres é
uma questão de pobreza. Há mulheres que o fazem porque têm de pôr
comida na mesa dos filhos. Agora, não são todas e o nosso discurso
não pode ser só para essas.
Às mulheres que estão na prostituição por última escolha e que
gostariam de sair, o Estado tem a obrigação de lhes dar condições
para que saiam. Mas também tem de dar garantias e direitos àquelas
que querem continuar a fazê-lo. O discurso não pode ser feito só para
uma parte.
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E quanto à discussão criminalização/descriminalização do
trabalho sexual?
Há vasta evidência científica de que a criminalização do trabalho
sexual tem consequências devastadoras na saúde, na segurança e nas
condições de vida e trabalho das pessoas que prestam serviços sexuais
a troco de dinheiro.
Uma revisão sistemática de literatura, que fizemos em 2020, para
compreender o impacto das políticas de prostituição da União Europeia
sobre as pessoas que fazem trabalho sexual, concluiu que a eliminação
de quaisquer leis penais e da aplicação da lei contra trabalhadores do
sexo, clientes e terceiros, poderia melhorar significativamente a saúde
física e mental, a segurança e as condições de vida e de trabalho dos
trabalhadores do sexo.
A descriminalização é isto: a retirada do Código Penal de todos os
aspetos relativos ao trabalho sexual – o que tem sido avaliado de
forma muito positiva.
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Maternidade
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Desromantizar a maternidade
Lia Medina
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O que significa desromantizar a maternidade?
Desaromatizar significa que vamos deixar de ter ideias fantasiosas e
imaginadas sobre o ser mãe e vamos falar sobre a realidade, tal como
ela é, ou seja, algo muito bom, mas que tem muitas dificuldades,
barreiras, muitas fases em que não nos sentimos felizes, nem capazes.
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Porque é que não falamos? Por medo de sermos julgadas?
Por não termos um lugar de fala na sociedade?
Acho que é por sentirmos que não vamos ser compreendidas. Creio
que falta esse acolhimento de percebermos que hoje as coisas não
estão a correr bem e que se calhar esta mãe está a precisar de ajuda
urgente.
Muitas vezes, o que sentimos é que deixamos de ser outras coisas, de
ser mulheres, de nos cuidarmos, de trabalhar como deve ser, porque
estamos sempre angustiadas e preocupadas. Vamos perdendo a nossa
identidade. Eu diria que isto é um círculo, do qual queremos sair, mas
não sabemos como.
Mas em Cabo Verde existem também umas figuras maravilhosas,
que devem ser referidas, as avós, que acabam por dar um apoio que
noutras paragens muitas vezes não acontece.
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Estamos numa sociedade em constante mudança, onde o
que vivemos hoje pode não se repetir amanhã. Será que esta
mentalidade, esta pressão, irá acompanhar-nos sempre, ou
teremos um ponto de viragem?
Sou sempre positiva, acho que sim, que as coisas vão melhorar, mais
não seja porque, pelo menos da minha parte, estou a tentar fazê-lo
com a minha filha, a tentar mostrar que há outras formas de estar e de
ser feliz, de seguir aquilo que queremos.
Mas essa mudança demora muito tempo, porque o trabalho individual,
de uma, duas ou três famílias não se reflete na sociedade. Assinalar
também que, muitas vezes, são as próprias mulheres que acabam
por fazer essa cobrança. Não necessariamente com má intenção, mas
acaba por acontecer.
A maternidade dói?
A maternidade dói, mas não é difícil de ser romantizada, porque todos
os dias somos bombardeados com imagens de felicidade e plenitude,
associadas à maternidade. Mas ela dói. Começa na gravidez, toda a
gente diz que vais ser feliz, sentir isto ou aquilo, mas há mulheres
que passam a gravidez deitadas, com vómitos, má disposição e outras
coisas. Felizmente, eu não passei por isso.
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A maternidade não se pode desligar da paternidade.
Não. Neste exercício de ser mãe, tenho a companhia de alguém que
também está a fazer o exercício de ser pai. O que acontece é que a
sociedade esquece que o homem também se torna pai, a partir do
momento que engravida uma mulher. Para as mulheres, o peso é
maior, as expectativas são maiores e os pais não se queixam porque, se
calhar, não vivem isso ou vivem-no de forma diferente. As expectativas
socioculturais que recaem sobre as mulheres são maiores.
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Líbido e maternidade
Nilce Medina
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Abordamos aqui um dos assuntos que no universo feminino
tem gerado muito tabu e silêncio. O que se entende por
líbido?
É tudo o que é considerado desejo, anseio ou impulso sexual. Uma
busca instintiva pelo prazer sexual. O termo em si remete-nos para a
ideia de desejo sexual. Em alguns momentos da vida da mulher, essa
libido fica mais fraca e o pós-parto é um desses períodos
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responsáveis pela falta de libido. Temos pelo menos três hormonas que
se alteram durante a gravidez e durante o pós-parto, principalmente. O
estrógeno, responsável pelo desejo sexual e pela lubrificação, diminui.
A testosterona, outro hormónio responsável pelo desejo, também
diminui durante o pós-parto. E temos o aumento da prolactina, que é
uma hormona responsável pela amamentação, mas que tem um efeito
inibidor na parte da lubrificação e do desejo, deixando a vagina mais
ressequida e mais sensível.
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tem de compreender que é uma fase que não vai durar para sempre. O
acolhimento é fundamental.
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Violência Obstétrica
Denise Cardoso
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Violência obstétrica é um assunto tabu em Cabo Verde, mas
faz parte do nosso universo feminino. O que é a violência
obstétrica?
A violência obstétrica é definida como todo o ato e procedimento,
intervenção ou omissão, realizada a nível de uma instituição, seja
ela pública ou privada, por profissionais de saúde, em que se põe em
causa a sexualidade e os direitos da mulher. Pode ocorrer durante toda
a fase de gestação, seja no pré-parto, durante o trabalho de parto ou
no pós-parto.
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As pessoas são preparadas para implementar e executar
qualquer outro trabalho, para o trabalho de parto deveria
existir esta mesma preparação...
Sim. O trabalho de parto exige uma preparação prévia e muitas vezes
essa preparação não é feita no pré-natal, o que torna natural que, no
momento, a mulher não saiba exatamente como se posicionar, se o
que está a ser feito infringe ou não algum direito seu. Os profissionais
aproveitam-se muitas vezes desse facto para exercer a sua autoridade,
acabando por se apoderar de um corpo e de um parto que não são
seus.
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diretrizes da OMS (Organização Mundial de Saúde) para o parto
humanizado. Diretrizes que nos explicam, enquanto parteiras, qual o
nosso papel na sala de parto e o que devemos fazer. Só que as pessoas
não cumprem.
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Não à maternidade
Cátia Costa
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A maternidade é vista como uma condição imposta às
mulheres. Esquecemos que há mulheres que tomaram a
decisão de não serem mães. Como é que a sociedade cabo-
verdiana olha para as mulheres que decidiram não ser mães
ou ainda estão indecisas?
Acho que a sociedade ainda não está preparada para receber mulheres
que decidiram não ser mães ou que até agora não são mães. No
meu caso, já depois dos 40, ainda não senti aquele tal bichinho que
desperta, a maternidade a chamar. Com 42 anos, ainda não vivenciei
este momento e realmente a sociedade não está preparada, porque
acha que a mulher nasce, cresce e tem de ser mãe, quando não é bem
assim.
Cada um tem o seu propósito, a sua decisão de vida. Sempre digo que é
uma coisa que, quem sabe, no futuro pode mudar. Nessa altura, se eu
decidir ser mãe e não puder, não será nada que me vá afetar.
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Vejo muitas mães e ser mãe não é apenas gerar. Vejo mulheres com
dois ou três filhos cantando aos quatro ventos que são mães, mas até
que ponto são mães?
Todos dizem: “você é médica, já está preparada”. Outros pensam que
como tenho condições económicas, posso ser mãe. Vejo muita gente
com excelentes condições económicas que não está a ser boa mãe.
Esse é o problema da sociedade. Se já fiz o liceu, formei-me, tenho
uma profissão, estou a ganhar um salário que a sociedade considera
ser bom, decide-se logo que estou preparada para ser mãe. Tem de ser
uma decisão da mulher.
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Aquelas que decidem ser mães, que o sejam realmente e não gerem
filhos para os deixar ao cuidado de outros. Aquelas que tomaram a
decisão de não ter filhos, e que podem mudar de ideias no futuro, não
há problema nenhum nisso.
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Levando em conta que o planeamento familiar é um direito
da mulher, esta ‘obrigação da maternidade’ não pode ser
considerada uma forma de violência?
Creio que pode ser considerada uma forma de violência. A primeira
forma de violência é não exercitares o teu direito a decidir e sentires-te
violentada por isso.
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Mãe solo na sociedade cabo-verdiana
Natacha Magalhães
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Que olhares e que expectativas a sociedade cabo-verdiana
tem vindo a projetar sobre as famílias monoparentais,
particularmente no feminino?
Sou uma pessoa que acompanha de perto e com muito interesse alguns
fenómenos e problemas socais, a dinâmica da nossa sociedade. O tema
toca-me muito. Falamos da mãe a que em Cabo Verde chamamos de
mãe solteira, mas precisamos de mudar esta terminologia. É-se mãe e
pronto, não há mãe casada, nem mãe solteira.
A terminologia ‘mãe solo’ já é adotada em muitos países que deixaram
de falar em mães solteiras. Mãe solo que cria e educa o seu filho
sozinha, que não tem nada a ver com a condição civil. Há muitas mães
solo que também são casadas ou que vivem maritalmente, mas que são
mães solo, porque têm a maior responsabilidade, quase exclusiva, de
prover ao filho aquilo que é essencial. Estamos a falar da alimentação,
dos cuidados, do dar à criança qualidade de vida, amor. Há crianças
que estão num lar, que têm a mãe e o pai, mas mesmo assim aquela
mãe é uma mãe solo, porque o pai, praticamente, se ausenta de tudo o
que é essencial para a criança.
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Como é que se explica a importância dada à conjugalidade
como condição para se ser mãe e constituir família?
É uma questão interessante. Aqui, socio-historicamente pensa-se a
família como estrutura. A família saudável é uma família nuclear, com
a presença do homem, da mulher, sendo o homem chefe de família,
ou seja, uma família nuclear patriarcal. A sociedade espera que as
mulheres se tornem mulheres e mães a partir da conjugalidade. É
nesta perspetiva que acho que a sociedade impõe essa condição sine
qua non para nos tornarmos mães. De resto, olha-se para quem é mãe
solo de forma diferente e muito vitimizante.
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não respondem à nova realidade social cabo-verdiana. Temos de olhar
e aceitar, normalizar as famílias chefiadas por mulheres que são mães
solo e seguir com políticas que de facto deem resposta a esta realidade.
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estatísticos mostram que cerca de 40% das casas cabo-verdianas são
monoparentais. Como vais desenhar uma política pública pensando
que tens de forçar a mulher a sair da monoparentalidade?
Às vezes eu digo isto e as pessoas não entendem, mas a sociocultura,
ou a cultura, também matam. Neste caso, não podemos forçar uma
mulher que escolheu, por razões várias, ser mãe solteira ou mãe solo,
a entrar numa relação onde pode ser vítima de violência e outros
constrangimentos. A sociedade cabo-verdiana não está preparada
para lidar com esta questão.
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O género e a justiça em Cabo Verde
Milanka Vera Cruz
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A primeira questão é se a justiça tem género. Tem?
Em princípio, a justiça não deve ter género, porque se tivesse feriria
de forma mortal o sacrossanto princípio da igualdade. Não se quer
uma justiça com género, mas claro que, com certeza, há ordenamentos
jurídicos que podem, de alguma forma, tender para um lado ou para
o outro, de acordo com a conjuntura sociocultural de onde este
ordenamento emerge.
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Por um lado, temos o pensamento de que é uma vergonha
ter de subir as escadas do tribunal. Por outro, a falta
de conhecimento daquilo que é necessário para fazer
desenrolar o processo. Será isto?
Eu acho que não é uma questão de vergonha, mas mais uma questão
de orgulho, de não ter que ir ao tribunal exigir pensão de alimentos,
porque tenho força suficiente para educar e sustentar o meu filho e
não preciso de um homem para o fazer. Esta opção é valida, mas não
quer dizer que esteja certa.
Há um outro elemento que é determinante nessa questão, que são
os valores atribuídos. São irrisórios e não fazem muita diferença
no universo das despesas. Fala-se em pensão de alimentos, mas é
preciso ter noção de que não se trata apenas do leite. Inclui vestuários,
educação, lazer e saúde. E também sublinhar que os valores atribuídos
são de acordo com a realidade e as possibilidades do progenitor.
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