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CELESTE FORTES LOURDES FORTES

PREFÁCIO DE DINA SALÚSTIO

O DA G
QUESTÃO

2022
Título
O G da Questão

Autoras
Celeste Fortes e Lourdes Fortes

Edição: Rádio Morabeza


Mindelo • São Vicente • CABO VERDE

FICHA TÉCNICA

Editor: Nuno Andrade Ferreira


Revisor: Manuel Brito-Semedo
Capa: Yuran Henrique
Paginação: Heder Soares
Impressão: Tipografia Santos
ISBN: 978-989-334074
Depósito Legal: 31/2022

Parceiros: Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), Instituto para a
Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) e Centro de Investigação e Formação em
Género e Família (CIGEF) da Uni-CV.

Tiragem: 400 exemplares


Dezembro de 2022.
À liberdade!
As autoras

Celeste Fortes, safra de 81. Cabo-verdiana. Antropóloga. Docente


e Investigadora na Uni-CV. Ativista social e cultural, feminista e
consumidora compulsiva da liberdade.

Lourdes Fortes nasceu em Corda, ilha cabo-verdiana de Santo Antão,


em 1988. É jornalista na Rádio Morabeza. Acredita na liberdade, na
força das ideias e no poder das palavras.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradecemos a todas as entrevistadas pela


confiança. A partir dos seus diferentes lugares de fala, aceitaram
conversar e partilhar visões sobre os vários assuntos do Universo
Feminino, sem tabus.
À Dina Salústio, pelo generoso prefácio, muito obrigada.
Agradecemos à Rádio Morabeza, que abraçou a iniciativa e nos
permitiu ousar. Ao Expresso das Ilhas, por ajudar a ampliar a
audiência do nosso programa. Ao Nuno Andrade Ferreira e à Lígia
Pinto pela cumplicidade, apoio e permanente disponibilidade.
Ao Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), que permitiu
que O G da Questão ganhasse corpo, também, em forma de livro.
Agradecemos as parcerias do Instituto Cabo-Verdiano para a Igualdade
e Equidade de Género (ICIEG) e o Centro de Investigação e Formação
em Género da Universidade de Cabo Verde (CIGEF).
O nosso sentido obrigado ao Manuel Brito-Semedo, pela revisão, ao
Yuran Henriques, pela capa, e ao Heder Soares, pela paginação.

Celeste e Lourdes

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Nota prévia

A comunicação social só pode ser livre, plural, polifónica e


desassossegada. Caso negue alguma destas caraterísticas, nega-se a si
própria e à sua relevância no espaço público. Enquanto projeto privado
de comunicação, a Rádio Morabeza faz por ser tudo isso. Apesar de
todas as dificuldades que enfrentamos, não obstante os inúmeros
constrangimentos financeiros com que lidamos, não perdemos o foco
daquilo que nos parece ser um dever de serviço público.

O G da Questão, produto da criatividade, profissionalismo e empenho


da Celeste e da Lourdes, e que aqui apresentamos em livro, é um de
muitos exemplos de conteúdos que refletem a forma como encaramos
e cumprimos a nossa missão. A rádio é isto.

Nuno Andrade Ferreira


Diretor executivo da Rádio Morabeza

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Índice

Prefácio........................................................................................................................................................................................................ 9
Introdução.............................................................................................................................................................................................. 11
Corpo............................................................................................................................................................................................................ 15
Beleza e Pressão Estética................................................................................................................................................ 17
Gordofobia............................................................................................................................................................................................. 23
Plus Size...................................................................................................................................................................................................... 29
Corpo feminino e fisioterapia pélvica......................................................................................................... 35
A primeira menstruação................................................................................................................................................. 39
Dignidade e higiene menstrual............................................................................................................................. 45
A última menstruação......................................................................................................................................................... 51
Sexualidade................................................................................................................................................................................... 57
Sexo na terceira idade......................................................................................................................................................... 59
Saúde sexual e afetiva das mulheres mastectomizadas................................................ 63
Vida sexual e afetiva de mulheres com deficiência física............................................ 69
Saúde sexual e reprodutiva de mulheres com transtornos mentais......... 75
Vida sexual e afetiva de mulheres lésbicas......................................................................................... 81
Trabalho sexual no feminino.................................................................................................................................... 85
Maternidade................................................................................................................................................................................ 91
Desromantizar a maternidade............................................................................................................................. 93
Líbido e maternidade............................................................................................................................................................ 99
Violência Obstétrica................................................................................................................................................................ 103
Não à maternidade.................................................................................................................................................................. 107
Mãe solo na sociedade cabo-verdiana...................................................................................................... 113
O género e a justiça em Cabo Verde.............................................................................................................. 119

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Prefácio

Dezanove mulheres das ilhas cabo-verdianas, da diáspora e de outros


países, olham nos olhos ou na alma dos ouvintes ou leitores e falam de
si e das suas profissões em entrevistas conduzidas por uma jornalista
com o suporte analítico-didático de uma antropóloga. Perante esse
quadro tão bem composto, quer de casos quer de profissionais, a minha
perplexidade ao ser convidada para prefaciar o livro “O G da Questão”.
O que poderia acrescentar à motivação para a leitura desta obra de cariz
informativo e, diga-se, denunciadora, mas também didática e científica
promovida pela Rádio Morabeza e pelo jornal Expresso das Ilhas?
Como reforçar o interesse para o conhecimento dos temas trazidos pelas
autoras que desvendam alguns assuntos da vida da mulher, não muito
referidos em público, ou como corroborar no alerta para a discussão dos
direitos das pessoas LGBTI, do bullying, do silenciamento de pessoas
baseado na sua identidade de género, na pobreza, entre outros? De que
forma ajudar a convocar para o empoderamento das mulheres, pela
não discriminação e por tantos outros nãos explicitados com imensa
força no título da obra, “O G da Questão”, nas vozes das entrevistadas
e nas intervenções especializadas? Mas a coragem é contagiante e,
por isso, honrada, aceitei participar neste projeto com algumas notas
ponderadas na leitura dos textos.

De um modo geral, quando se contacta alguma notícia, uma narrativa


ou canção, qualquer coisa que nos provoca interesse ou impacto, a
curiosidade e a vontade de dialogar pressionam e naturalmente surgem
perguntas: quem está por trás deste enredo e imaginou o suspense?
Como se esconde tanta revolta? Que mundo grita essas vitórias? Com
que forças responderam as ou os protagonistas aos desafios? Como é
o dia-a-dia de quem tem de justificar a existência? Quem se engasgou
com o riso ou arquitetou este trocadilho?

Esses e outros desassossegos – que nada têm a ver com rostos ou nomes
– mobilizam a ler “ O G da Questão”, a interagir com os seus perso-
nagens e imaginar outras e outros ouvintes ou falantes com narrativas
semelhantes. O que poderá estar a acontecer, neste preciso momento,
com crianças e pessoas de todas as identidades de género nas famílias,
casas, ruas, escolas, instituições, organizações partidárias, locais de tra-
balho, no nosso país ou em outro qualquer? O que cada um de nós tem

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de suportar, ou não suportar, para continuar de pé ou, sobretudo, para
se erguer do chão e viver?

As narradoras, algumas vezes vítimas, não se aproveitam do anonimato


a que tinham direito, ou de uma capa seja ela qual for e de que material
for para comporem personagens mais ou menos simpáticas e atraentes,
viajando no limbo e ignorando a vida. Pelo contrário, constrangidas no
tom, algumas poucas vezes, corajosamente vitoriosas sempre, revelam a
vida, expõem o barro, riscam as feridas, sempre que as há e abrem a voz
e os cenários para mostrarem a sua, nossas realidades, algumas vezes
injustas, tantas vezes fragilizadas.

Até cerca dos anos setenta falava-se em género para identificar grama-
ticalmente o sexo masculino e o sexo feminino. Entretanto, com mais
e melhores ferramentas de investigação científica, jurídica, política… e
com maior abertura intelectual e cultural juntamente com pressão mais
focada nos Direitos Humanos e uma dinâmica mais esclarecida das Na-
ções Unidas sobre o empoderamento das mulheres, o “Género” foi ado-
tado como um conceito de análise social. É com este conceito que a obra
trabalha e se debruça, trazendo relatos de ocorrências, muitas das quais
relacionadas com a própria existência biológica da mulher – não da sua
condição – seja a menstruação, a vida sexual, a gravidez, a maternidade
e outras. Não sendo estas situações impeditivas de uma prestação re-
gular das mulheres na vida ativa, algumas vezes são transformadas por
pressões de ordem vária em fantasias, constrangimentos ou problemas
que influenciam e marcam negativamente a sua existência.

As situações de conflito partilhadas na rádio e neste livro acontecem


porque no mundo organizado os indivíduos relacionam-se entre si e
com a sociedade e desempenham papéis e funções os mais diversos
que muitas vezes entram em choque com a cultura global ou de gru-
po, muitas vezes opressora, a política normalmente machista, a justiça
despreparada, os preconceitos e tudo o que pode ser enquadrado no
definido como relações de vida, relações de Género. Daí, penso, o títu-
lo do livro “O G da Questão”.

Foi proveitoso ler estas entrevistas e lembrar a luta diária das mulheres
por mais educação, mais saúde, mais trabalho, mais justiça e mais liber-
dade. A isso chama-se empoderamento das mulheres e, pelas falas, cer-
tamente serão instrumentos para a construção de sociedades sem dor.

Dina Salústio
Dezembro 2022

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Introdução

O G da Questão e a polifonia das


experiências femininas em Cabo Verde
O universo feminino em Cabo Verde é povoado de assuntos que,
por razões pessoais e socioculturais, se mantêm numa espécie de
zona sombra, sobretudo no que toca à sexualidade, ao corpo e suas
transformações, ao amor, à maternidade, e outras dimensões da
identidade feminina.
Quando, há quase três anos, a Celeste foi mãe, viveu um turbilhão
de sentimentos contraditórios em relação a este momento muito
desejado. Sentia-se estranha. Por um lado, queria muito aquela criança
que chegou bonita e saudável, de quem todos gostavam. Por outro,
sentia-se fora do seu Eu, mergulhada num poço de choro e angústia.
Não compreendia. Era a última do grupo restrito de amigas que ainda
não tinha tido filhos, mas nunca as tinha ouvido queixarem-se sobre
estes sentimentos antagónicos.
Porque é que há assuntos de que as mulheres não falam? Será porque
são assuntos pessoais e acham que são experiências únicas que não
podem ser vividas por outras mulheres? Ou será porque nos ensinam,
desde há muito, a cultivar o silêncio?
Passando as duas autoras pela experiência da maternidade (a Lourdes
mãe de três), partilhando estas e outras inquietações, combinámos
um encontro para falarmos sobre a ideia de criarmos um programa
de rádio que abordasse assuntos do universo feminino. Dessa troca de
ideias surgiu O G da Questão, projeto imediatamente abraçado pela
Rádio Morabeza.
As motivações para a criação do programa foram, podemos dizê-lo,
a junção de experiências pessoais, com a vontade de participar numa
agenda de ativismo social e cultural, usando a rádio como recurso
de comunicação inclusiva e valorizando o seu potencial polifónico,
ampliado pela distribuição em formato podcast.
Semanalmente, desde fevereiro de 2022, juntam-se, assim, a Celeste,
antropóloga, feminista, com percurso académico e de ativismo social
e cultural para a promoção da igualdade e equidade de género, e a
Lourdes, jornalista, empenhada em causas sociais e comunitárias.
Pela pluralidade das suas trajetórias pessoais e profissionais, ajudam

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a fazer d’O G da Questão um programa que cumpre com a necessária
e urgente estratégia de diálogo entre o conhecimento produzido na
academia e a sua tradução para uma audiência vasta e variada. O
estilo escolhido –informal, pessoal, quase intimista – permite a rápida
identificação de quem ouve com os assuntos abordados e ajuda a
aumentar a literacia dessa mesma audiência.
O G da Questão é, na rádio, uma conversa. Todas as terças-feiras, as
apresentadoras recebem convidadas das mais variadas origens e com
os mais diversos percursos. Investigadoras, especialistas e/ou com
experiências diretas no tema sobre o qual aceitam dialogar. No primeiro
ano de emissões, O G da Questão tirou do silêncio cerca de duas dezenas
de temas, numa temporada com perto de quarenta episódios.
O livro que aqui apresentamos foi o passo natural seguinte. Das
dezenas de comentários positivos que recebemos, de tantas
mensagens de incentivo, resultou a convicção de que poderíamos ir
mais além, passando a texto o essencial dos programas ouvidos na
Rádio Morabeza ou na internet. A abertura e suporte da direção e
administração da rádio e o apoio concedido pelo Fundo das Nações
Unidas para a População (UNFPA), pelo Instituto Cabo-verdiano
para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG) e pelo Centro de
Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF) da Uni-CV,
tornaram possível a sua rápida materialização.
O livro encontra-se dividido em três partes, tendo como critério a
palavra-chave que orientou os diferentes episódios. À primeira parte
chamamos “Corpo” e nela olhamos para os nossos corpos femininos,
enquanto tela de inscrição das expectativas e pressões culturais. Na
segunda, “Sexualidade”, discutimos o sexo no feminino nas suas
múltiplas dimensões. Finalmente, na terceira parte entramos no
universo da “Maternidade”, explorando-o para lá do óbvio.
O G da Questão tem procurado ser “um programa como nenhum
outro” (assim mesmo se apresenta no seu spot promocional) e tem
como desejo trazer para o espaço público, através dos media, assuntos
que nos dizem muito, que experimentamos, que vivemos, mas que
guardamos para nós mesmas.
Semanalmente, contrariamos o silenciamento, tornamos nossas as
preocupações, as dores, as queixas, as ansiedades e os traumas de
muitas outras mulheres.
Dizemos que não há tema que não possa ser abordado e discutido. O
nosso desejo é dar voz a assuntos tantas vezes tabu, para que possam
entrar na normalidade das nossas sociabilidades.

As autoras
Mindelo, Dezembro de 2022

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“Qual é a maior lição que uma mulher pode aprender? Que desde o
primeiro dia, ela sempre teve tudo o que precisa dentro de si mesma.
Foi o mundo que a convenceu que ela não tinha”.

Rupi Kaur

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Corpo

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Beleza e Pressão Estética
Sílvia Pires

“Acredito que os nossos corpos, enquanto mulheres, são às vezes


objetificados”

O corpo é um dos lugares centrais de construção da nossa


identidade e das nossas pertenças coletivas. No corpo
inscrevemos o que somos e o que o contexto sociocultural
determina que temos de ser, de forma a sermos aceites.
A padronização do que é a beleza e um corpo belo está,
na sociedade, diretamente relacionada com um corpo
magro.

As pressões para um corpo belo e magro podem ser


sentidas de diferentes formas, conforme as nossas
pertenças de género. No caso das mulheres, argumenta-
se que esta pressão é ainda maior.

Sílvia Pires trabalhou durante muitos anos como modelo


e manequim fotográfico fora de Cabo Verde. Agora em
São Vicente, é produtora do programa Espaço SP, na
Rádio Morabeza, dedicado a temas relacionados com
beleza, bem-estar e autoestima. É consultora imobiliária.

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Estamos a falar de beleza e pressão estética, tema que
conheces bem...
Conheço e é um tema que faz parte do dia-a-dia das pessoas. É uma
pressão que afeta tanto homens, como mulheres. Quando falamos da
estética, as pessoas ligam logo ao mundo da moda, mas isso é o nosso
dia-a-dia, aquilo que somos, realmente, nos vários tipos de corpos.

Estás a falar dos corpos ‘na moda’?


Sim. No ramo da moda temos modelos comerciais, modelos que fazem
publicidade, atrizes. Há toda uma exigência à volta desses modelos
comerciais, que são os modelos de passarelas. É um mundo exigente,
onde se vê as mulheres mais magras e mais altas. É um mundo à parte.
Ao longo dos tempos, construiu-se uma ideia de beleza, particularmente
de beleza feminina, muito presa a um certo padrão de corpo.

Mesmo assim, podemos ver modelos fotográficos com um,


digamos, tamanho mais acessível…
Sim, houve uma altura em que se quebraram vários tabus em termos
de corpos e o mundo comercial começou a aceitar mulheres na sua
totalidade, como são realmente, tanto que agora vemos várias pessoas
com bastante sucesso, por exemplo, em plus size. Ou seja, estamos
a verificar uma mudança para a aceitação da diversidade, o que, na
verdade, é o que vale mesmo. Em muitas campanhas publicitárias, as
pessoas estão mais voltadas para a personalidade.

Antes de chegarmos à parte de quebrar tabus, temos de


recuar para a pressão social associada à moda. De que
forma é que a pressão estética impacta a perceção do género
feminino?
Acredito que os nossos corpos, enquanto mulheres, são às vezes
objetificados. Às vezes, tenta-se colocar o corpo da mulher dentro de
uma caixa, de um padrão, sobretudo para que seja dominado. Quando
alguém sofre pressão social para ter determinado corpo, está a ser
vítima de uma forma de violência. Claro que todos os corpos importam
e todos têm o seu lugar, mas há corpos que historicamente têm tido
maior visibilidade e valorização do que outros. Corpos e partes do
corpo, também é preciso acentuar isso.

Em Cabo Verde não temos dados, ainda não começámos a


olhar para estas questões de forma sistemática, estudando-
as empiricamente, mas a perceção é que grande parte das
mulheres não está satisfeita com o próprio corpo. Isto é

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atribuído, em parte, à pressão estética do mundo laboral e
também aos ditos influencers.
Também não podemos ignorar a pressão exercida sobre quem está no
meio da moda, que tem de estar dentro daquela forma determinada. Eu,
em Portugal, cheguei a recusar grandes desfiles por causa da exigência
do corpo perfeito que tens que ter. Quando o corpo perfeito já atinge a
saúde, o nível psicológico da pessoa, vês que já não estás equilibrada.
Estás nos bastidores e estás a comparar-te com as outras. Estamos a
falar de jovens. Se não estás mentalmente preparada automaticamente
podes ser desviada e surgem doenças, como anorexia, síndrome da
magreza, etc.

Esta pressão social para um corpo belo, magro e jovem acaba


por ter inúmeros impactos nas nossas vidas, particularmente
nas mulheres que não conseguem ou não querem encaixar-
se neste padrão.
Isto é aterrador, porque tem de se perder peso, estar-se magra que, no
fundo, é o que se espera que aconteça com a modelo, esquecendo-se
ou ignorando-se que, para além da estrutura óssea, existem pessoas
que têm tendência a aumentar de peso, mesmo que comam salada –
que é o que as pessoas pensam que comemos.
Mas há outra coisa. Quando se é modelo, há uma altura em que
estás entre o modelo comercial e o modelo de passarela e aí exigem-
te que estejas, ora mais magra, ora com mais alguns quilinhos. Essa
instabilidade também te perturba mentalmente.

A ideia do corpo perfeito muda sazonalmente, consoante a


tendência, e quem segue a tendência sofre mais. Como é que
isto impacta a definição e a construção do eu feminino?
Eu que vivo entre os dois mundos, bastidores e palco, já tenho uma
personalidade própria, sei quem sou e o que eu quero. Não me
perturbo porque outra pessoa é assim ou assado, mas isso vem de uma
sequência de aprendizagem ao longo do meu percurso. Acredito que
não seja um processo fácil para quem esteja a começar ou para quem
ainda está na construção da sua personalidade.

Que caminhos trilhaste para chegares a essa consciência


de ti, essa certeza de que não precisas de sucumbir às tais
pressões?
Sempre procurei manter-me fiel à minha essência. Em Cabo Verde,
já sofria muita pressão por ser tímida. Depois, com o contacto que
estabeleces com outras pessoas, começas a delinear o teu processo,
inicialmente como uma espécie de proteção.

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Há muita concorrência no mundo da moda. Vais a um casting, tens o
número 1551 e apenas vão escolher uma pessoa. Chegas, vês as tuas
adversárias, o cenário e sentes-te um objeto. Temos de entender que
há variadíssimas pessoas a concorrer para um trabalho, não temos
de ser sempre magras, mais avantajadas. Algumas pessoas têm peito,
outras têm pernas.

Mas ao fim ao cabo, é isto que acaba por ditar as regras sobre
o dito corpo belo...
E os adolescentes, principalmente, porque ainda não têm maturidade
suficiente para separar as águas e entender os processos de casting,
são afetados com isso e vão crescendo com esta insegurança que, ao
longo do tempo, cria uma imagem errada da relação que as pessoas
devem ter com os seus corpos. Com o tempo, adquires maturidade.
Com o apoio das pessoas que te apoiam, consegues desenvolver os
teus anticorpos e aprendes a separar as coisas.

Um processo doloroso para se encontrar o ideal de beleza,


portanto. Isto leva-nos a uma pergunta: o que é a beleza,
afinal?
É uma pergunta complexa. A beleza existe em todos, porque cada
um tem o seu diferencial, é belo dentro daquilo que é. A beleza não
é apenas o corpo, é tudo o que complementa a pessoa, é um conceito
relativo.
Estamos aqui a falar da beleza a partir do corpo, porque é daí que
vem a primeira impressão. As pessoas avaliam-te logo pelo corpo, pela
forma como te vestes, mas a beleza é uma construção social, cultural e
temporal. Hoje a tendência é isto, amanhã é aquilo.

Nos últimos anos, trocamos as capas de revista por


influenciadores digitais, com apelos recorrentes e
publicidade ao corpo magro, fitness. Isto deturpa a perceção
real que devemos ter sobre o corpo?
Sabemos que há pessoas com várias transformações estéticas,
cirurgias, botox e por aí fora, embora muitas dessas coisas não estejam
disponíveis em Cabo Verde. Vemos homens bastante musculados,
mulheres bastante ‘saradas’ e a nossa tendência é seguir estes apelos,
na procura do corpo perfeito que nos é vendido. Esquecemo-nos que o
mais importante é o nosso corpo e o que vivemos no dia-a-dia. Temos
o poder de escolha, podíamos separar o bom do mau, mas acabamos
por ficar presos no tamanho que nos é imposto.

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A beleza é uma opinião e não um consenso?
Não é um consenso. A beleza é relativa, muito pessoal, e tem muito
a ver com a autoestima, com a forma como nos sentimos, como nos
vemos como pessoa. É uma questão de personalidade. Se sei quem sou
e o que quero, é mais fácil gerir essa pressão social.

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Gordofobia
Agnes Arruda

“A performance de feminilidade não contempla os corpos gordos”

O nosso corpo é, também, produto do contexto


sociocultural e histórico em que vivemos e é um ‘lugar’
de marcação das nossas pertenças identitárias enquanto
pessoas que fazem parte ou querem fazer parte de um
determinado grupo. Tendo em conta as dimensões da
estética e padrões de beleza, que corpos são aceites e que
corpos são excluídos nesta arena de relações pessoais e
coletivas?

Os corpos gordos são alvo de gordofobia, vivenciando


experiências que geram baixa autoestima e segregação a
todos os níveis, violando direitos.

Gordofobia não é apenas uma questão de estética


(corpos gordos vistos como feios e doentes) é, sobretudo,
uma questão ética (corpos gordos são desobedientes e
precisam de ser punidos e controlados).

Agnes Arruda, brasileira, jornalista, mestre e doutora


em Comunicação. Mulher gorda, é autora de O Peso e a
Mídia: as faces da gordofobia (2021), da obra infantil
Medusa: a história que não te contaram (2020) e, mais
recentemente, do Pequeno Dicionário Antigordofóbico
(2022).

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O que se entende por gordofobia?
Gordofobia, em linhas gerais, é o preconceito contra pessoas gordas.
Num primeiro momento, tendemos a associar este preconceito a uma
questão meramente estética, considerando que associamos o padrão
de beleza atual, que é o padrão magro, ao bonito, e o corpo gordo, em
oposição, a algo feio. Na capa da estética, vivenciamos uma camada
superficial do preconceito que é muito relevante, mas a gordofobia
atinge uma série de outros espaços. As pessoas gordas são violentadas
e privadas dos seus direitos mais básicos. A gordofobia leva a pessoa
gorda a um espaço de segregação social, familiar, política e económica
e tem consequências numa série de esferas, tanto da vida pública,
quanto da vida privada.

Em que situações é que as pessoas podem ser vítimas de


gordofobia? Como é que ela se manifesta no quotidiano?
Numa série de espaços e ocasiões. A gordofobia acontece dentro de casa,
quando a criança é reprimida por causa do seu corpo. Pode acontecer
no mercado de trabalho. Aqui no Brasil, 60% dos recrutadores optam
por não contratar pessoas gordas, mesmo que sejam qualificadas para
o cargo. Com isto, temos uma segregação económica. São situações em
que essa violência acontece.

A gordura é usada como medidor de capacidades, para além


de toda a pressão estética social. Como trabalhamos isto?
O primeiro passo é reconhecer que isto existe, que este tipo de
violência acontece e acolher quem dá depoimentos, quem passa por
ela. Gordofobia é uma palavra nova, só no início de 2020 é que a
Academia Brasileira de Letras a incluiu no nosso léxico. A violência
e o preconceito contra pessoas gordas são antigos, mas como não
havia um nome, era difícil dizer que estava a acontecer, porque é
muito estrutural e institucionalizado e não conseguimos ver estas
microviolências que se tornam gigantescas dentro do âmbito do
preconceito.

Não deixa de ser ‘engraçado’ pensar que uma situação


que acompanha a própria humanidade só agora seja
reconhecida. Ter esta palavra no léxico traz mais visibilidade
a esses corpos, ou não?
Penso que sim. Eu sempre fui gorda, desde a infância, e sempre sofri
esta violência e esse preconceito, mas até entender que isso existia…
Depois de muito tempo, quase 30 anos, sempre me vi como culpada,
responsável por esta violência. Então, tentei de todas as formas tirar

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esta característica do meu corpo, até de maneiras nada saudáveis.
Dentro deste contexto, temos a cultura das dietas, dos medicamentos
e procedimentos para emagrecer. Processos que são muito violentos
em relação aos nossos corpos e que, quando não reconhecemos a
existência do preconceito, acabamos por praticar como uma espécie
de ocultação desse corpo. Quando dizemos “espera aí, existe o
preconceito e eu não vou esconder o meu corpo por causa disso”, esse
corpo também ganha um espaço de referência e visibilidade.

As mulheres sofrem mais pressão em torno do seu corpo.


Como relacionar gordofobia com questões de género?
As questões de género estão totalmente atravessadas na dimensão
do preconceito. Começamos com a perspetiva estética, em que as
mulheres na sociedade patriarcal são objetificadas, idealizadas como
pertencentes ao homem. Neste sentido, elas precisam de entender que
há um determinado padrão para que o homem a que pertencem se
possa vangloriar dessa posse. Falamos disto num sentido simbólico,
mas a dimensão estética a que a mulher gorda não atende coloca-a
num lugar de mulher desobediente, sujeita a uma série de punições,
de violências. Então, o recorte de género agrava-se muito quando
falamos da gordofobia.

Neste caso, a mulher gorda é tida como uma mulher que não
segue as normas patriarcais e machistas, considerando que
há uma expectativa social sobre os corpos femininos…
Exatamente. A performance de feminilidade não contempla os corpos
gordos. A mulher gorda não performa esta feminilidade do patriarcado,
não representa o que é feminino.
A gordura é algo feminino, na realidade. Os volumes, os seios, os
quadris, as coxas fazem parte do corpo feminino que o patriarcado
tenta apagar. Então, a partir do momento em que nos preocupamos
com esta performance, apagamos, inclusive, o que temos de feminino.
Esta é uma questão extremamente relevante dentro da discussão da
gordofobia.

Falamos de um padrão de comportamento...


É um padrão de comportamento. Se ela se desvia, precisa de voltar
ao eixo. Aí entram as dietas, os medicamentos, os procedimentos
estéticos para emagrecer.
Há uma outra questão muito debatida na academia, que é esta relação
entre a pressão estética para um corpo magro e o facto de vivermos
nesta onda de capitalismo. No sistema capitalista, a finalidade de toda

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a operação comercial é o lucro. Quando falamos de produção de bens
de consumo, temos a produção em massa e tudo o que é produzido
em maior quantidade tem o seu custo de produção diminuído. Quanto
mais se produz, mais barato fica, maior o lucro.

Qual é o lugar das mulheres gordas nesta sociedade


capitalista?
Temos tentado ressignificar isto com muita luta, militância, ativismo
e pesquisa, mas as mulheres gordas ainda estão num lugar de
subjugação. Pegamos nas interseccionalidades do feminino e vamos
traçando a mulher periférica, a mulher gorda, a mulher preta. Todas
estas relações se intensificam a partir do momento em que existem
interseccionalidades do preconceito, porque o impacto da gordofobia
não é só estético. Com corpos que não são aceites socialmente, as
pessoas gordas sofrem traumas psicológicos e são privadas de direitos
fundamentais, como forma de correção de um comportamento
considerado errado.

Perante isto, não podemos negar que há uma


institucionalização do preconceito contra o corpo.
Exato. Quando invertemos esta relação e colocamos o tema para ser
falado ou ouvido por um homem, este perde o sentido, porque é o tipo
de coisas que não se dizem aos homens. Na nossa sociedade, o homem
vem de um lugar de respeito que a mulher não recebe. Por exemplo,
se ele precisa de um atendimento médico, as pessoas vão respeitá-lo, o
médico vai pensar duas vezes antes de falar um absurdo gordofóbico.
Tudo isto reforça a ideia patriarcal de que só somos validadas com a
presença de um homem.

Isto está relacionado com a padronização do corpo e começa


em criança, na família...
É como se toda a nossa família tivesse medo de nos sentirmos excluídas
no futuro ou mesmo em criança. Talvez seja um processo de educação,
de socialização e há esse medo de não cabermos nessa roupa social.
As sociedades patriarcais quase que dizem às mulheres “para terem
uma identidade, para passarem a existir, têm de ser validadas pelo
sistema”. Educamos as crianças já com medo de as ver sofrer, neste
caso, por causa da gordofobia, mas sem deixar de interligar com outras
questões, como racismo ou questões de classe.

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E que papel têm os media sociais nesta equação?
Os media reforçam e reproduzem estereótipos o tempo todo, fazendo
com que as pessoas continuem a ser violentadas, hostilizadas. É todo
um ciclo de reações do preconceito.

Enquanto investigadora e ativista, que estratégias achas que


devem ser adotadas para trazer a gordofobia para o espaço
de debate e combater os seus impactos?
Espaços como O G da Questão são fundamentais. Temos atingido
outras pessoas com a discussão, com a pesquisa e com militância, mas
isso tem que ser feito com muita luta e resistência de quem sofre este
preconceito todos os dias. Creio que as pessoas que não são gordas
precisam de se engajar nessa luta, tornando-se aliadas, abrindo espaço
nas instituições. Precisamos de falar sobre isto, dentro de casa, na
escola. Precisamos de políticas públicas que garantam que as pessoas
gordas têm os seus direitos respeitados e garantidos, de facto.

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Plus Size
Aliana Aires

“Não podendo reconstruir a mulher gorda, que já foi difamada o


suficiente, cria-se uma nova categoria de público consumidor”

Qual é o lugar do corpo gordo no espaço público,


mediático, da publicidade e da moda?
Na sociedade de consumo, onde os corpos vestem
tendências, o conceito de gordo foi redefinido. Hoje fala-
se em plus size, isto é, roupa de tamanho grande para
pessoas gordas. O conceito e a categoria de gordo, ao
longo dos tempos marginalizado, conotado com algo feio,
fora da moda, é ressignificado.

A mulher gorda, através da moda plus size, recebeu uma


nova identidade, ganhou visibilidade, deixou de ser vista
como doente e passou a ser encarada como consumidora.
Procuramos entender esta transformação do corpo
feminino, de gordo a plus size, para caber na moda e na
sua indústria.

Aliana Aires, brasileira, é doutora pelo programa de pós-


graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da
Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São
Paulo, com ‘doutoramento sanduíche’ na Parsons, em
Nova York. Em 2019, publicou De gorda a plus size: a
moda do tamanho grande.

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A forma como olhamos para o nosso corpo tem evoluído
ao longo dos anos e é inegável o papel da moda nesta
diferenciação dos corpos e na definição de novos padrões.
O termo plus size é recente e foi utilizado pela primeira vez
nos Estados Unidos da América. Como é que surgiu este
termo dentro do mundo da moda?
Plus size é um nome – não sei se podemos chamar conceito – que, na
tradução do inglês para português, significa ‘tamanho grande’. Durante
muito tempo, as mulheres gordas foram privadas de consumir moda.
Nos últimos anos, observamos a criação e intensificação do mercado
de moda plus size, impulsionado por movimentos de valorização da
diversidade que emergem na esfera das culturas contemporâneas do
consumo, dando visibilidade à mulher gorda, numa perspetiva de
consumidora.

Como é que uma mulher que era gorda ganhou uma nova
identidade através de um nome que significa ‘tamanho
grande’? Houve um enquadramento desse indivíduo gordo?
A mulher lenta, que não consome bem, doente… todos esses conceitos
negativos que estavam colados à identidade do gordo não combinavam
com o que a publicidade passa. Para enquadrar esse indivíduo gordo,
ele não poderia continuar a ser o gordo tradicional, então, o termo
plus size serve como uma nova identidade. Não podendo reconstruir
a mulher gorda, que já foi difamada o suficiente, cria-se uma nova
categoria de público consumidor, plus size, que é uma espécie de
gorda magra.

Como é que se dá essa mudança, essa ressignificação do


corpo gordo?
Por muito tempo, a nossa sociedade, presa a modelos corporais, tratou
a mulher gorda como um insulto: “eu sou gorda, mas chamar-me de
gorda é um insulto”. Então, os activistas tentam ressignificar o termo
gordo. A ideia é mostrar que, do mesmo jeito que posso dizer que você
é magro, posso dizer que você é gordo.
Contudo, a moda, que é o lado do consumo, entende que gordo é um
termo pejorativo, porque o sujeito gordo era invisível, nunca esteve
nas campanhas de publicidade, na preocupação das marcas.

Falamos de um indivíduo que não existia na lógica do


consumo...
E então, para ressignificar, para esta mulher ser colocada dentro da
loja de consumo magro, ela precisava de ser separada de toda aquela

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identidade pejorativa que a história carrega em torno da obesidade.
Apanho um ser estigmatizado e ressignifico-o, colocando-o na lógica
de consumo.

Pensando na sua relação com o corpo, o que significa a


moda?
Muitas pesquisadoras dizem que antes tínhamos moda e que agora
temos a moda do corpo. Quando digo que o corpo veste a moda é
porque assistimos a um processo histórico, muito relacionado com a
sociedade de consumo, em que o corpo passa a ser mais importante
do que a roupa em si. Por exemplo, na sociedade medieval existia uma
diferenciação entre os tipos de tecido, tipo de roupas disponíveis e
que podiam ser adotados por pessoas da elite e pessoas da classe mais
pobre – a roupa diferenciava até a classe social do indivíduo. A partir
do momento em que o processo da moda é massificado, aparenta
uma democratização a nível do estilo das peças, mas não quanto ao
tamanho.

Com esta suposta democratização, ao invés do poder


económico, é a estética do corpo que passa a diferenciar a
pessoa.
Com a mudança dos conceitos da sociedade, a hipervalorização do
consumo, do corpo e da estética, o que diferencia o indivíduo não
é mais a estética da roupa, mas sim o corpo, o facto de ser magro,
musculado. São esses valores que se sobrepõem à roupa. A roupa é
feita para exaltar aquele corpo, exaltar as formas trabalhadas. O status
da pessoa está ligado à aparência corporal e as características pessoais
valem menos do que as corporais. É a sociedade de aparência em que
vivemos, em que a aparência diz mais o que és do que o Eu inteiro.

Que corpos eram esses no período em que o corpo vestia a


moda?
Essa foi uma das perguntas que moveu a minha pesquisa sobre a década
de 90, uma das décadas que estudei. Nessa época, as numerações
eram menores, porque foi uma década de muita magreza. Nas lojas, as
roupas vinham numeradas até 42, no máximo – numeração brasileira.
Questionei-me onde estavam essas pessoas? Como é que se vestiam
quando a epidemia da obesidade era um assunto que estava todos os
dias nos jornais e essas pessoas eram invisibilizadas?

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Como é que se vestiam?
Quando houve a mediatização da obesidade, as pessoas eram
retratadas sem rosto e a moda foi a mesma coisa, simplesmente
colocou as pessoas no limbo. Não sabemos como elas se vestiam,
historiograficamente. No Brasil, não tive grandes informações. Há
poucas evidências de lojas com numerações maiores. Essas pessoas,
deduzo através de relatos, vestiam-se ou no departamento masculino
ou com costureiras individuais ou, como recebi relato de pessoas com
numeração 70, com toalhas e lençóis, porque não existiam roupas
para números muito grandes

Neste caso, como é que explicas o conceito de ‘democratização


da moda’?
Estou mais para achar que é uma falácia. Como académica, sou crítica
e tenho que olhar para as informações. O que percebo é que há um
aumento da numeração, há sem dúvida uma preocupação com esse
público, até por uma questão de consumo, de crise no mercado e da
necessidade de olhar para outros públicos e explorar outros nichos de
mercado...

Contudo, é uma democratização que ainda não abrange


todos os corpos.
É uma relativa democratização, ainda longe de ser aquilo de que
realmente precisamos. Muitos historiadores relatam que as roupas
continuaram a ir para as lojas e departamentos em numerações mais
baixas, ou seja, a experiência de ir a uma loja e experimentar a roupa
num provador não foi vivida por mulheres acima do número x. Há
uma democratização pontual. O preço talvez tenha melhorado, mas
não houve nenhuma democratização quanto ao tamanho.

Fazer compras em lojas físicas continua a ser um problema.


Sim, as mulheres que são realmente um pouco maiores fazem a
maior parte das compras online. São privadas da experiência de
fazer compras numa loja física. O sector do consumo continua muito
guiado por questões culturais e sociais, com o preconceito contra o
corpo gordo, que faz com que esse corpo não ganhe visibilidade no
mercado tradicional, quando representa metade ou mais de metade
do mercado. Perguntamos: para quem são feitas essas roupas, se a
maioria das mulheres não veste até 38?

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O que significa para as mulheres gordas poderem consumir
moda plus size? Liberdade, empoderamento, resistência?
É um pouco de tudo, não é só uma coisa. Tento sempre fazer uma
análise racional. É inegável que os adolescentes de hoje têm modelos
gordos para se espelhar. É um empoderamento relativo, não total. É
empoderador abrires uma revista e veres corpos que não são aqueles
de sempre.
A minha geração, tenho 39 anos, abria uma revista e via corpos
extremamente magros. Hoje há uma preocupação, no seio da sociedade
de consumo, de produzir objetos que fujam ao perfil tradicional do
magro, jovem, cabelo liso, branco. Já vemos negras, crespas. Já vemos
alguma democratização, mas ainda é muito fraca.

Uma visibilidade frágil...


Sim, está cheia de fragilidades. Não sei como é em Cabo Verde, mas aqui
no Brasil as roupas de tamanho grande têm um preço mais elevado do
que as roupas de tamanho ‘tradicional’ e as lojas que vendem roupas
a um preço mais popular ainda não trazem todos os tamanhos. Para
as mulheres levemente gordas, que ultrapassam o que a medicina
chama de obesidade, há uma variedade maior de peças, embora não
venham com os estilos e as tendências que vemos no circuito de moda
tradicional, ainda trazem conceitos super estigmatizantes, como se a
mulher gorda não pudesse disfrutar das mesmas tendências de moda.

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Corpo feminino e fisioterapia pélvica
Eileen Spencer Santos

“Para além da prevenção, vamos trabalhar no sentido de aumentar


o conhecimento, entender mais acerca da anatomia”

O conhecimento do nosso próprio corpo, o seu


funcionamento, os seus modos normais de comportar
e avisos perante possíveis alterações anormais são
fundamentais para o cuidado e bem-estar feminino.
Falamos sobre o pavimento pélvico, conjunto de músculos
e ligamentos que servem de apoio e suporte dos órgãos
pélvicos, que durante a gravidez suporta o bebé. Apesar
dessa importância, continua a ser um mistério para
grande parte das mulheres.

Descobrir esta região exige que as mulheres toquem


o próprio corpo, à frente de um espelho, e ponham em
prática alguns exercícios de contração do pavimento
pélvico. Igualmente, o seu fortalecimento pode ser feito
com a ajuda de um fisioterapeuta pélvico, cuja orientação
é crucial para prevenir algumas disfunções: urinária,
anorretais, sexuais e dor pélvica.

Eileen Elaine Spencer Santos é licenciada em Fisioterapia


pela Escola Superior de Tecnologia e Saúde de Coimbra
e especializada em Fisioterapia Materno-Infantil. Cabo-
verdiana a morar em Portugal, tem formações adicionais
em Osteopatia Ginecológica e Gestacional, Osteopatia
Pediátrica, exercícios no pré e pós-parto e pilates MW1.

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O que é o pavimento pélvico?
Vamos imaginar o nosso corpo como uma lata de refrigerante. O
pavimento pélvico vai corresponder à base dessa lata, ou seja, nada
mais é do que a base do nosso corpo. É constituído por vários músculos
e ligamentos, que vão servir de rede de apoio e suporte dos órgãos
pélvicos, nomeadamente, a bexiga, o útero, o intestino, nos homens
a próstata, controlando a urina, as fezes, gases. É fundamental para a
nossa saúde sexual e nas grávidas tem uma função ativa no momento
da expulsão do bebé.

Qual é a importância, em termos de saúde da mulher, de


descobrirmos e conhecermos esta região.
É importante que, desde cedo, as mulheres deem atenção a essa
estrutura do corpo, porque com o tempo, alguma disfunção pode
afetar o nosso estilo de vida. É importante por vários fatores e funções.
Muitas mulheres não sabem fazer a ativação do pavimento pélvico,
por ser uma musculatura muito pouco falada e conhecida. Quando
não tens uma perceção do que está a acontecer no pavimento pélvico,
ou não tens uma avaliação específica nessa área, acabamos por ter
algumas disfunções e nem nos apercebemos disso.

Que problemas podem ocorrer nesta região, particularmente


a nível da mulher?
Quando o músculo está mais enfraquecido, ou tem alguma alteração, a
mulher vai sentir as disfunções urinárias. Por exemplo, a incontinência
urinária, as disfunções anorretais, que é a incontinência fecal,
disfunções sexuais, a dor pélvica e muitas outras. O mais frequente é a
incontinência urinária.

E como é que chegamos lá? Porque apesar de ser tão


importante, é uma parte desconhecida para a maioria das
mulheres…
Os músculos do pavimento pélvico estão localizados na nossa bacia, ou
seja, nas nossas pélvis. A forma mais fácil de os encontrar é sentarmo-
nos numa posição confortável, com uma toalha por baixo e com um
espelho – o espelho ajuda em termos de visualização. Colocamos as
mãos em baixo, tentando fazer o movimento da bacia, para a frente
e para trás. Os músculos que queremos encontrar vão estar sempre à
volta do ânus e da vagina. Com uma leve pressão dos dedos, em baixo,
vamos sentir a zona da região pélvica fazendo uma ligeira contração.
Ou seja, a forma de lá chegar é mesmo através do toque. Para isso,
é preciso perder o tabu de que as mulheres não devem se tocar. As

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mulheres devem tocar-se e é importante que se toquem para terem um
mínimo de perceção daquilo que sentem.

Enquanto mulheres, temos que apreender a identificar os


sinais de alterações nesta região. Que sinais podem ser?
Há várias causas possíveis para um enfraquecimento desta
musculatura, nomeadamente, a obesidade, a própria gestação em si
(devido à projeção da barriga, o que vai criar uma certa pressão na
cavidade pélvica), a menopausa, as pessoas que têm tosse crónica,
pessoas que têm asma, etc. De resto, é normal que, com a idade, o
pavimento pélvico vá diminuindo e enfraquecendo. Os sintomas são
aqueles que já havia mencionado, por exemplo, perdas de urina ao
saltar, em corridas, coisas simples que fazemos diariamente, dor e
desconforto na relação sexual…

Mas cá está, não vamos falar ou tocar aquilo que não


conhecemos. Qual deve ser o papel dos profissionais de
saúde para sabermos o que temos no nosso corpo?
O nosso trabalho vai no sentido de atuar na prevenção e tratamento
dessas disfunções, principalmente na prevenção, porque não tens de
ir à procura de um fisioterapeuta pélvico apenas quando tens queixas.

O que faz um fisioterapeuta pélvico?


Para além da prevenção, vamos trabalhar no sentido de aumentar o
conhecimento, entender mais acerca da anatomia e mostrar às pessoas
como é que estes músculos funcionam, porque muita gente não sabe.
Ou seja, trabalhamos no sentido da consciencialização corporal.
Depois, no ensino de técnicas experimentadas, para mostrar como é
que os exercícios que podem ser feitos ficam mais eficazes, para que
a contração do pavimento pélvico seja a melhor possível. Fisioterapia
pélvica é uma área especifica da fisioterapia, que pode intervir tanto
na população feminina, como masculina. Os jovens também têm um
pavimento pélvico e podem ter disfunções nessa área. Atuamos na
prevenção dessas disfunções.
Da mesma forma que procuramos um ginecologista para ver se está
tudo bem, devemos procurar um fisioterapeuta pélvico para avaliar o
nosso pavimento pélvico.

Centrando a conversa no pavimento pélvico das mulheres,


em que momentos consideras importante consultar um
fisioterapeuta pélvico?
É importante dizer que todas as mulheres se beneficiam da fisioterapia

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pélvica, mesmo sem ter nenhuma queixa. Não existe uma queixa
especifica ou idade ideal para fazer uma avaliação. Uma grávida,
uma mulher de certa idade ou uma jovem devem sempre fazer uma
avaliação, de modo a terem consciência, a saberem como se encontra
essa musculatura, porque enfraquece gradualmente com a idade.

É possível trabalhar este músculo nos ginásios?


Há sempre exercícios que podemos fazer, tanto em casa, como nos
ginásios, conciliando o exercício com a contração do pavimento pélvico.
Não se deve é fazer nada sem aconselhamento de um profissional,
porque aquilo que posso indicar para uma pessoa poderá ser diferente
para outra. Mas há exercícios para trabalhar o pavimento pélvico,
tendo em conta outros fatores, como a otimização da respiração.

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A primeira menstruação
Gisele Modesto

“É muito importante prepararmos as meninas sobre todas as


alterações que vão ocorrer no seu corpo”

Menstruar é, para muitas meninas, uma experiência


solitária. A menstruação é um acontecimento inevitável
na vida de qualquer mulher, mas continua um tabu no
seio de muitas famílias.

Tendo em conta a sua especificidade, a perceção é que


esta conversa deve acontecer, sobretudo, entre mãe e
filha, mas nada impede que o pai também possa fazê-lo.
Falar com as meninas, e também com os meninos, numa
conversa adaptada à idade, sobre a primeira menstruação
da filha, irmã ou amiga é um importante caminho para a
construção consciente da sexualidade feminina.

Gisele Cristine Duarte Modesto é médica, quadro


do Ministério da Saúde de Cabo Verde desde 2004.
Especialista em Ginecologia e Obstetrícia pela
Universidade Federal do Ceará, no Brasil, é pós-graduada
em Doenças Infeciosas pela Faculdade de Medicina da
Universidade de Lisboa, em Portugal. Atualmente, é
formanda no master em Ginecologia Endócrina.

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Nem sempre é fácil falar sobre a menstruação. Comecemos
por entender o que é isso da ‘primeira menstruação’?
Realmente, é um tema muito importante e pertinente, sobre o qual se
fala muito pouco.
A primeira menstruação, cientificamente chamada de menarca, é uma
das fases da puberdade. Durante o desenvolvimento do corpo, tanto
meninas como rapazes passam por fases específicas, até chegarem
à vida adulta. No caso das meninas, uma dessas etapas é a primeira
menstruação, um fenômeno biológico que leva a transformações
físicas e psicológicas.

Como perceber que se aproxima a idade da primeira


menstruação?
Geralmente, a menarca  ocorre mais ou menos 2 anos após algumas
manifestações prévias da puberdade. Como referi, a primeira
menstruação é uma das fases da puberdade, mas não é a única, nem a
mais precoce. Nas outras fases, temos a telarca, que é o aparecimento
das mamas, e a pubarca, que é o aparecimento dos pelos na região
genital e na região axilar. Quando aparecem essas alterações da
puberdade, que são manifestações iniciais, geralmente dois anos
depois aguardamos a primeira menstruação.

Geralmente, é esperado que as mães falem com as filhas


antes dessa primeira menstruação. Quando é que esta
conversa deve ser feita?
É muito importante prepararmos as meninas para todas as alterações
que vão ocorrer no seu corpo, não só a nível físico, como também
psicológico, para que possam encarar este processo de forma mais
tranquila. Devemos conversar e para isso é necessário que as mães
também tenham informação sobre o tema. Conversar sobre o
aparecimento dos pelos, a formação das mamas, prepará-las para a
primeira menstruação, que pode vir acompanhada de alguns sintomas.

Quais são os sintomas da menarca?


Algumas meninas podem apresentar dor no baixo-ventre antes do
período menstrual ou durante, podem ter irritabilidade, ou seja,
mudança de humor. São as manifestações mais frequentes.

Essa é a altura para levar as meninas para uma consulta de


ginecologia?
O ideal é logo na primeira menstruação marcar uma consulta de
ginecologia, onde as meninas possam tirar as suas dúvidas, porque

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sabemos que a primeira menstruação é que demonstra que há uma
maturação do eixo que controla o ciclo menstrual. Podemos começar
a menstruar de forma regular ou irregular, porque inicialmente a
maturação não é completa.
Temos de orientar as meninas, porque se iniciarem a sua vida sexual,
pode ocorrer o risco de uma gravidez precoce.

A verdade é que, em muitos casos, quando ocorre a primeira


menstruação, a menina lida sozinha com o processo,
seja porque não houve a tal conversa de preparação, seja
porque quem conversou com ela não tinha informações
detalhadas sobre o assunto. O que é que condiciona esta
primeira conversa?
Atualmente, já temos maior abertura, muitas mães informam as
meninas e não podemos esquecer que a informação está mais acessível.
Mas quando falamos da primeira menstruação, isso vai levar-nos a
outros temas, como a sexualidade, o uso de métodos contracetivos, o
que gera um certo desconforto à mãe, como se, ao falar-se do assunto,
se abram portas para que ocorra.
Ter esta conversa é uma forma de proteger as meninas, porque se não
houver conhecimento, se não forem bem orientadas, se não houver
informação, corre-se o risco de sofrerem abusos, violência sexual ou
uma doença sexualmente transmissível.

Quem é que normalmente acompanha a menina nessa


primeira consulta?
Geralmente, pelo que noto, são as mães. Por isso é que é importante
informarmos as mães. Quando as mulheres vêm à consulta e sabemos
que têm uma filha, vamos informando paulatinamente sobre a
importância de falarem com elas sobre a primeira menstruação,
sobre a sexualidade, as mudanças que ocorrem no corpo, para tentar
desmistificar o tema.

Que estratégias podemos adotar para vencer o silêncio?


Tanto a primeira menstruação, como a sexualidade são um tabu
muito grande na nossa sociedade. Às vezes, o que influencia muito é
a educação que vem de há muito, de gerações anteriores, associada à
educação religiosa.
Temos necessidade de desmistificar isso, de mostrar que não é
um tema que deva ser abordado com vergonha, porque é algo
fisiológico e qualquer mulher passa por isso, da mesma forma que
ocorrem alterações nos meninos. Temos de apostar na educação,

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na informação, para permitir que as informações cheguem a todos,
tanto às raparigas, como aos rapazes, para que eles possam perceber
e respeitar o momento delas. Também ao pai, como forma de orientar
os filhos sobre o tema.

O que muda depois da primeira menstruação?


A perceção do corpo e a sua maturidade psicológica. As alterações que
decorrem no corpo durante a puberdade levam a menina a pensar
que já é quase uma mulher e sente uma responsabilidade por ter de
lidar agora com algo de mulher… a menstruação, o uso de pensos, os
cuidados da higiene íntima. Mas não se deve permitir que essa fase lhes
roube a infância, de acordo com a idade em que tenham menstruado.

Entender o ciclo menstrual é sempre uma dor de cabeça


nessa fase inicial. Como é que podemos ajudar as nossas
meninas a entenderem este processo?
O ciclo menstrual engloba perceber o funcionamento das diferentes
estruturas e hormonas que fazem parte do eixo hipotálamo-hipófise
e ovários, o que é complexo. É importante orientar as meninas na
realização do calendário menstrual, o que irá permitir conhecer a
duração do ciclo, com média de 28 dias, e a quantidade de sangramento
durante a menstruação. Isso permite, por exemplo, identificar
situações em que possa ser necessária alguma avaliação ou orientação
de profissionais.

É aqui que se deve começar a falar sobre contracetivos?


Os temas estão interligados. Ao abordarmos a primeira menstruação,
temos de falar também sobre sexualidade e gravidez precoce. Se a
mãe não se sente preparada para dar esta informação, deve procurar
a ajuda de um profissional que possa orientar, tanto a adolescente,
como a mãe ou outra pessoa que esteja a acompanhá-la.

Que medos é que normalmente são levados para a primeira


consulta?
A maioria está ansiosa, com vergonha, porque é a primeira vez. Não
sabem como falar do tema ao lado de quem as acompanha. Tento
deixá-las à vontade. Dependendo da idade, pergunto se já abordaram
o tema na escola e vamos conversando. Algumas vão à consulta porque
ainda não tiveram a primeira menstruação.

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Quando se tem a perceção de que há um atraso na ocorrência
da primeira menstruação, o que deve ser feito?
Como disse há pouco, a primeira menstruação surge cerca de 2 anos
após o início da puberdade. Normalmente, a idade da menarca é entre
os 10 e os 14 anos, em média 12 a 13, embora nalguns casos possa
ocorrer aos 9 anos. Se, até aos 15 anos, a menina, com mamas e pelos,
ainda não teve a primeira menstruação, é critério para procurar
avaliação especializada, porque temos de identificar a causa na origem
desse atraso. Noutras situações, podemos antecipar esta avaliação.
Por exemplo, quando a menina com 13 anos, ainda não tem mamas
e não tem pelos, isso chama a atenção para procurarmos orientação
especializada.

Em geral, as pessoas estão consciencializadas ou há um


trabalho de fundo por fazer?
Há um trabalho de fundo por fazer, um grande trabalho. Há necessidade
de mudar a nossa forma de ver as coisas, de como a informação chega às
pessoas nos diferentes pontos do país. Dependendo da compreensão
de cada um, assim se vai dar importância ao tema.
Temos de fazer um trabalho muito grande de informação e formação
da nossa população, sensibilizando sobre a necessidade de levar as
meninas, mas também os rapazes, às consultas, para se poderem
identificar atempadamente as alterações que possam surgir nesta fase
das suas vidas.

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Dignidade e higiene menstrual
Lara Amado

“As mulheres precisam de assistência e a solução nada mais é do


que ter um Estado que apoie e ampare meninas e mulheres em
situação de pobreza menstrual”

A pobreza menstrual é um problema global que afeta as


mulheres e meninas pobres, impedindo-as de ter acesso
aos produtos básicos adequados durante o período
menstrual.

Segundo dados das Nações Unidas, uma em cada dez


meninas falta à escola durante a menstruação, por não
poder comprar pensos higiênicos. Em Cabo Verde, não
temos dados sobre esta problemática, mas estima-se que
a pobreza menstrual afete grande parte das meninas e
mulheres.

A falta de pensos higiénicos é apenas mais um problema


num país onde o acesso ao saneamento continua a não
ser universal.

O problema não se resolve no imediato, mas é necessário


quebrar os tabus que ainda envolvem o tema, enquanto
se desenvolvem medidas públicas que promovam a
dignidade menstrual.

Lara Amado, formada em Auditoria Financeira, é  CEO


da empresa Nha Pombinha, uma marca cabo-verdiana
de pensos higiénicos reutilizáveis.

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O que é isto da dignidade menstrual?
Como diriam muitas pessoas, a dignidade menstrual está na moda,
mas na realidade nunca esteve, nem estará. Segundo as Nações Unidas,
a dignidade menstrual é um direito humano e por isso estamos aqui
para falar deste tema tão importante.
Dignidade menstrual nada mais é do que termos as condições mínimas
para nos trazer essa tal dignidade. Quais são essas condições? Ter uma
casa de banho limpa, com privacidade, para que as meninas possam
fazer a sua troca com segurança, higiene e dignidade. Acesso à água,
produtos menstruais, como toalhitas, pensos higiênicos, entre outros,
dependendo da capacidade financeira de cada consumidor.

E quem não tem estas condições, como é que vive este


momento?
É uma situação muito precária, aquela que vivemos, não só em Cabo
Verde, mas um pouco por todo o mundo. Essas pessoas precisam ser
amparadas, cuidadas, porque a menstruação é um processo natural
e é nossa responsabilidade amparar essas meninas. É importante
perceber que a dignidade menstrual é um problema de saúde pública.

Falamos de acesso a saneamento, água, produtos higiénicos,


mas sabemos que no país, nas diferentes comunidades,
dependendo da sua proximidade aos centros urbanos, esta é
uma realidade inexistente. Há pontos do país onde durante
o período menstrual falhamos no apoio a estas meninas
que, ou faltam à escola ou vivem a menstruação de forma
negligenciada…
Exatamente. Há alguns meses, estive a tentar levantar alguns dados
nesse sentido, para saber quantas meninas é que faltam às aulas por
não terem estas condições. Não temos dados tão específicos, mas
temos os dados do INE que indicam que uma parte importante da
população cabo-verdiana não tem acesso a água potável e canalizada
nas suas casas. Isto é um forte indicador de que as meninas em Cabo
Verde estão a passar por um grave problema de pobreza menstrual.
Junta-se a isto o acesso aos produtos, que são caríssimos, o que faz
com que as meninas não se sintam à vontade para pedir dinheiro à
mãe ou aos pais, com um salário de 15 mil escudos, para comprarem
duas bolsas de pensos. Elas vão ter uma bolsinha de pensos, se tanto, e
se não, o que vão colocar são pedaços de tecido ou qualquer coisa que
tiverem à mão.

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É isso que designamos de pobreza menstrual?
É isso e um bocadinho mais. Há ainda o facto de essas meninas não
terem acesso à assistência médica e medicamentosa, no caso de meninas
que têm muitas dores. Sabemos que há meninas com endometriose
desde os 11 anos e que nunca souberam que têm endometriose, porque
nunca foram a uma consulta, porque não têm como pagá-la. Também
temos a questão do estigma, porque a menstruação é associada a algo
sujo, vergonhoso, que as mulheres têm de esconder.
Também para nós, que comercializamos produtos menstruais, a
tributação é enorme. Os meus produtos são ecológicos. Temos carros
ecológicos em Cabo Verde, com uma tributação menor por serem
ecológicos, mas os meus produtos não têm uma tributação menor, se
calhar até é maior.

Falámos da forma como as meninas vivem a menstruação,


os mitos, os tabus, a falta de informação e diálogo, aquilo
que a sociedade rotula de cosa de corp de amdjer…
As meninas e mulheres bem informadas vão conseguir viver a sua
menstruação de outra forma, tomar decisões de forma mais consciente
em relação ao seu corpo, para conseguirem ter esta equidade e
igualdade de género que é tão necessária, de modo a não sofrerem
violência e discriminação.

Como é que se combate a pobreza menstrual?


Tem de ser não só a nível dos privados, mas também do Estado, por ser
um direito humano. As mulheres precisam de assistência e a solução
nada mais é do que ter um Estado que apoie e ampare meninas e
mulheres em situação de pobreza menstrual, através da distribuição
de produtos menstruais de forma gratuita.
O problema agrava-se quando falamos de pessoas em situação de rua
e também em situação de reclusão, pelo facto de, simplesmente, essas
pessoas não terem acesso a casas de banho condignas e muito menos
a produtos menstruais.

Para além do apoio social, não seria o caso de haver medidas


legislativas concretas? Por exemplo, desde 2014 que as
Nações Unidas reconhecem a importância dos direitos das
mulheres e da gestão menstrual adequada.
Precisamos de mais homens feministas a governar este país, que
percebam a necessidade de leis amigas da mulher, que compreendam
que precisamos de ser amparadas, porque temos de lidar com algo
mensalmente. Precisamos de leis que permitam que mulheres fiquem

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em casa dois ou três dias, se for o caso. Tudo o que diz respeito à
menstruação e à gravidez precisa de ser olhado com mais cuidado.

Dados da ONU indicam que cerca de cerca de 12,5% da


população feminina, a nível mundial, não tem acesso
a produtos higiénicos para ter dignidade menstrual,
principalmente por causa dos custos associados. Daquilo
que tens constatado, consegues traçar um retrato da
realidade cabo-verdiana?
Em Cabo Verde, temos um cenário velado e por vezes temos a
sensação de que não há tanta pobreza menstrual, o que é mentira.
Depois da pandemia, temos tido um enorme aumento do preço dos
produtos. Além disso, os produtos menstruais não são considerados
bens de primeira necessidade e por isso são extremamente tributados,
com preços elevados e de difícil acesso. Se não temos acesso a estes
produtos, é mais um sinal de que a nossa situação não é das ideais.

Quando falamos da menstruação, falamos das dificuldades


financeiras para sustentar esta despesa mensal, o que nos
leva a questionar sobre a disponibilidade de produtos
reutilizáveis, como alternativa para minimizar o problema.
É também nesta perspetiva que devemos olhar para a gestão
menstrual de forma sustentável?
Com Nha Pombinha, relativamente à dignidade menstrual, a peça que
consigo mudar neste cenário é trazer para Cabo Verde produtos que
são ecológicos. Comecei com absorventes reutilizáveis.
No passado, as mães utilizavam umas toalhinhas. Agora, a proposta
é praticamente a mesma. O que muda é que, ao usar este tipo de
absorvente, as mulheres não molham as suas roupas com sangue.
O aspeto financeiro disto tudo é que, quando compras um coletor
menstrual de 2.500 escudos, estás a poupar imenso, porque ele tem
uma vida útil de até 10 anos. Imagina o que é não comprar pensos
durante 10 anos, a poupança que estás a fazer.

Uma pessoa que não tem acesso a saneamento, que tem


um salário que mal chega para cobrir as despesas, entre
comprar um pacote de pensos por 200 escudos e um coletor
por 2.500, ao pensar no imediato, vai optar pelo mais barato.
Não seria o caso de existirem medidas que facultassem de
forma gratuita estes itens às pessoas vulneráveis e sem
condições para os adquirir?

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Exatamente. É por isso que estou a lutar. Já consegui algumas
parcerias com o Estado e é isso que vamos fazer. Tenho muitas clientes
que perguntam o preço, que fazem o esforço e dois a três meses depois
vêm fazer a compra. Mas é um esforço enorme, conseguirem juntar
esse dinheiro e comprar o coletor.
O que ensino é um pouco de educação financeira: se queres ter
mais saúde e mais poupança, tens de pensar a tua vida, ser uma
consumidora racional e lidar com a menstruação de forma mais
consciente e ecológica.

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A última menstruação
Teresa Martins

“A menopausa não é o fim da linha”

A menopausa carrega, ainda hoje, uma carga


estigmatizante muito grande, quase sempre conotada
como o ‘fim da linha’ para as mulheres. São muitas as
mulheres que têm trazido este tema para o debate social,
com o objetivo de normalizar a última menstruação.

A vida da mulher não acaba aos 50 e ela não cabe no lugar


a que a sociedade a tenta relegar, medindo o seu valor
pelo início e fim da procriação, contando entre a primeira
e a última menstruação.

O tema, assim como muitos outros ligados ao universo e


à sexualidade feminina, continua envolto em silêncios. É
preciso desconstruir preconceitos.
Longe de ser o fim, a menopausa é apenas mais uma
mudança.

Teresa Martins é médica ginecologista. Foi durante cerca


de 20 anos diretora da maternidade do Hospital Baptista
de Sousa, em São Vicente.

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O que é a menopausa?
Começamos por dizer que a menopausa é a paragem da menstruação,
ou seja, a última menstruação. Mas só vais saber disso em retrospetiva.
Olhando para trás, depois de um ano sem menstruar, dizes “sim, estou
na menopausa”. Para se perceber do que se trata, temos de ir ao início
da atividade dos hormónios nas meninas, que começa dentro do útero,
tem o seu aumento brusco ao entrar na primeira menstruação e essa
‘tempestade’ vai ficar alta durante muito tempo, até chegar um dia…
Não conseguimos dizer a nenhuma mulher que a menopausa será na
idade ‘x’, mas sabemos as médias de idade em que as pessoas entram
na menopausa.

Antes de chegar à menopausa, a mulher passa por um


período de transição...
Entra num período chamado de climatério, que pode durar anos, em
média 5. É o período em que começa a diminuir o hormônio. Não é um
evento que aconteça de repente, mas que vai acontecendo devagarinho.
As mulheres apresentam alguns sintomas, algumas modificações e
finalmente eclode a última menstruação.

De que tipo de sintomas estamos a falar?


O climatério é uma coisa pouco falada mas, para nós, médicos,
ginecologistas, é importantíssimo porque  a maior parte do que vai
acontecer na menopausa começa com o climatério.
Para a maior parte das mulheres será um processo, uma irregularidade
na menstruação, também ciclos muito curtos ou menstruações
abundantes, que às vezes chegam a hemorragias. Lentamente vão
começando a ocorrer mudanças físicas e, finalmente, a menstruação
começa  a rarear, um mês vem, outro não, desaparece seis meses
e depois volta. Menstruar regularmente e abruptamente parar de
menstruar, acontece, mas não é tão comum.

Qual a idade média em que pode ocorrer?


Consideramos que acima de 40 anos é aceitável e não é considerada
precoce, mas habitualmente a menopausa ocorre na população
entre os 45 e os 55 anos, em média, 50 anos. Aqui, a maior parte das
mulheres passa dos 50, ligeiramente ou muito.

Há algum tratamento para aliviar os sintomas que referiu?


Como é que as mulheres lidam com esses sintomas?
Cada mulher lida a seu modo. A mudança na vida de uma mulher ou de
qualquer ser humano depende muito da cabeça da pessoa. Claro que os

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hormônios vão fazer aquilo que é físico, mas a cabeça vai determinar
como é que se lida com a mudança. Uma boa parte das mulheres não
sente muita coisa, não tem nenhum calor infrontód, ao contrário do
mito. Muitas sentem um calor que é perfeitamente controlável.
Isto é um evento fisiológico normal, o corpo vai caminhar para lá e o
que vai determinar se fazes algum tratamento ou não são os sintomas.
Tem gente sem sintomas, outras mulheres com sintomas moderados
e há aquelas, em menor quantidade, com sintomas realmente severos,
em que fica muito difícil viver o dia-a-dia – essas são as pessoas que
têm medicação. Se está a incomodar e precisa de tratamento, trata-se.

Neste caso, valem as recomendações para prevenir os


sintomas...
Realmente, as mulheres bem resolvidas, que fazem exercícios, que
têm uma alimentação saudável, reagem melhor. Isso está mais do que
sabido. A quem não segue estes parâmetros, nós avisamos: emagreça,
faça exercício, coma mais vegetais, proteína e frutas, vai precisar de
zinco, magnésio e coisas que vão fazer a diferença. Se a mulher não
come coisas frescas, não vai ter um aporte suficiente para fazer frente
a todas as mudanças, que são grandes.
Também há mudanças físicas de que nenhuma mulher gosta. A pele
fica ressequida, os cabelos ficam mais secos. Tudo isso são alterações
que não agradam, mas uma boa alimentação e exercício regular
ajudam infinitamente. É importante que todo o mundo o saiba e tente
aplicar.

As mulheres têm medo da última menstruação?


Uma boa parte não fica apavorada. Quem não baseia a sua feminilidade
toda no facto de menstruar, de ser fértil, encara melhor. A menstruação
é uma bênção e uma maldição ao mesmo tempo e muita gente até fica
aliviada de não ter que encarar isso mensalmente. Outros casos, embora
mais raros, são mulheres que ficam tremendamente aliviadas por já não
terem de combater a fertilidade e por finalmente se libertarem do susto
mensal: “será que estou grávida?”. Quem encara mal, normalmente, são
as mulheres que estão menos seguras de quem são.
Faz parte do processo e é preciso tentar fazer o melhor possível, dentro
daquilo que se pode fazer, e pode-se fazer muita coisa. O recurso ao
tratamento é deixado exclusivamente para aquilo que está patológico.

Quando é que se transforma em algo patológico?


O sintoma mais comum do climatério é fugaz, aqueles calores. Faz um
calor que dá no pescoço, ombro, sobe para a cabeça, a mulher transpira,

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fica vermelha no rosto e depois passa. Habitualmente, é mais noturno,
o que pode perturbar um bocadinho a vida do casal. Durante o dia, nas
interações sociais está toda suada, com a blusa colada ao corpo. Para
essa mulher, provavelmente, haverá uma indicação de tratamento
sistémico.
Para sintomas locais, trata-se com medicação local. É o caso da vagina
seca. Quando o estrogénio cai, a pele fica mais fina e, por isso, é comum
vermos que as pessoas mais velhas se machucam com facilidade. Isso
acontece também na parte de dentro da vagina, porque tudo fica mais
fino. A mulher tem dificuldade na relação sexual porque vai doer, vai
incomodar, pode ter uma propensão maior para infeção urinária.
Tudo isso vai perturbar a vida do casal e da mulher, como ela se sente.

Todas temos medo da menopausa, sobretudo por causa dos


relatos, mitos e tabus que envolvem o tema. Há de facto
motivo para este medo?
Não. Para a maior parte das mulheres não haverá, sequer, necessidade
de tratamento, basta que cuidem de si. Temos de fazer isso
constantemente, não é dar uma corridinha de vez em quando. Se estás
a cuidar de ti, a cabeça está boa. Para a maior parte das mulheres, não
haverá problemas e naquilo que for problema, o médico vai intervir.
Já agora, dizer que a mulher deve ir regularmente ao médico, já que
esse é um período no qual não só por causa da menopausa, mas por
várias outras razões, incidem várias doenças. Há que fazer consultas
regulares e não esperar sentir alguma coisa. O médico vai saber o que
fazer e orientar a mulher.

Nesta altura, é muito comum as mulheres perguntarem


pelos fitoterápicos.
Os fitoterápicos ajudam, embora não nos casos severos. Mas é preciso
ter certeza de que é menopausa. Por exemplo, se existir uma alteração
da tiroide, isso às vezes dá sintomas como se fosse menopausa, o
famoso fogacho, o calor, e se a mulher tomar soja vai piorar.

Outra questão relacionada com a chegada da menopausa é a


insegurança em relação ao corpo.
É outra questão que costuma deixar as mulheres tensas. Pensam: “já
não sou fértil, estou  a ficar menos bonita”. Os seios tendem a cair,
porque ficam com mais gordura do que glândula, tende a depositar-se
gordura em áreas mais críticas, como a barriga, a forma que se tinha na
juventude, não é a forma que se tem na perimenopausa. A vida acabou
para mim? Não. O que vou fazer é o que fiz a vida inteira, encarar as
mudanças. Por quantas mudanças passamos desde que nascemos até

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chegar à menopausa? Esta é mais uma. Não é o que está a acontecer,
é a maneira como lido com o que está a acontecer. A menopausa não
pode ser vista como o fim da linha.

As mulheres, a sociedade, associam a menopausa à velhice.


Como é que colocamos de parte este preconceito da velhice
e encaramos a menopausa como mais uma fase nas nossas
vidas?
Tudo o que encaras e enfrentas tem lados bons e menos bons. Se
desencadeias uma patologia, coisa que parece doença, vais ter de
tratar, vais fazer mudanças na tua vida.
Vamos falar, por exemplo, da sexualidade, a maneira como se encara
o sexo. A maior parte das mulheres relata que o sexo é diferente. É
facto que os orgasmos demoram um bocadinho mais, mas aí é uma
oportunidade de descobrir coisas que não tinhas descoberto antes. Por
exemplo, que podes jogar com muitas coisas no teu corpo, toda a tua
pele pode ser explorada para ajudar no sexo, coisa que talvez, quando
tens mais pressa e estás mais eficiente, não descobres. Vais descobrir
novas sensações, é uma oportunidade para isso. Terás de fazer uma
mudança, vais explorar e essa exploração pode ser super divertida. É
só ir em frente.

E como lidar com a perda de libido?


Libido é a vontade de ter sexo, diminui tanto para os homens, como
para as mulheres e nós ainda temos uma vantagem, porque não temos
de demonstrar nada fisicamente, então, não estamos assim tão mal.
Se fizeres exercício, desencadeias determinadas substâncias no teu
corpo que ajudam à libido e, portanto, vais contrabalançar. Mas
também te vais sentir mais tonificada, mais bonita, com melhor
ânimo. A líbido acompanha isso.
Se tens dor quando tens relações, porque a vagina está menos
elástica, existem lubrificantes maravilhosos, à base de água, que não
atrapalham em nada.
Portanto, pode-se ajudar de várias maneiras. A cabeça das mulheres é
que tem de se posicionar muito bem quanto a isso. A mulher não pode
sentir que não é mulher, porque não tem o corpo que tinha aos 20
anos. Não tem aquele corpo, mas continua a ser mulher.

Mas isso tem muito a ver com o facto de o nosso corpo ser
constantemente escrutinado, sobretudo na parte mais
sexual. De se olhar para as mulheres em menopausa como
se estivessem no fim…
O coletivo vai olhar para ti consoante te posicionares. Se te

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posicionares como uma velhinha que já está no final e não tem mais
nada para descobrir na vida, é assim que te vão encarar. Mas não te
vais posicionar desta forma, mas sim como alguém que está a entrar
numa outra fase da vida. Não podes usar a conversa alheia como bitola.
Tu és a bitola da tua vida. Visto-me como quero, ando como quero e se
quiser sair por aí feita maluca, com um chapéu lilás na cabeça, é meu
problema. O pessoal vai falar? Que fale!

Isto começa quando resolvemos a relação que temos com o


nosso corpo.
Está em como te vês. O que percebemos nesta sociedade é que as
mulheres se posicionam conforme têm ou não atenção masculina.
Quando a atenção se desvia, deixam de se sentir desejáveis. Eu posso ser
uma mulher desejável e não o ser para um determinado grupo. Pronto,
sê-lo-ei para outros e levo a minha vida da melhor maneira possível.

As mulheres têm dificuldade em gerir as emoções,


principalmente a insegurança…
Como mulheres, não podemos ligar a nossa autoestima àquilo que os
outros acham de nós. Se fizermos isso, estamos fritas, porque alguns
vão adorar e outros vão achar que não prestas para nada. Eu é que me
posiciono e quem se posiciona com autoestima, convence os outros,
porque uma das coisas mais atraentes neste mundo é a autoconfiança.

Como é que a família se deve posicionar?


Quem está à nossa volta e gosta de nós tem de entender o momento.
Algumas mulheres ficam mais irritadas, é facto. Estamos acostumadas
a ter quedas de estrogénio, mesmo fora da menopausa, a famosa TPM
[Tensão Pré-Menstrual]. No pós-parto muitas mulheres chegam até à
depressão, também pela queda brusca do estrogénio.

Isto é particularmente importante, sobretudo pelo seu


impacto na saúde mental da mulher…
A mulher tem de ser ativa, mesmo que seja dona de casa. A mulher tem
de fazer coisas, ter projetos, sejam eles pintar uma parede ou plantar
um jardim. Tem de ter uma motivação, alguma coisa a acontecer. Isso
é importante para qualquer pessoa.
Construir relações estáveis de amizade, ao longo da vida, no trabalho,
ajuda a saúde mental a ser mais firme, a não balançar tanto quando
entra a tempestade hormonal. A felicidade é harmonia, estabilidade e
não estar de mal com o mundo. É preciso estar bem consigo mesma,
se não, não funciona.

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Sexualidade

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Sexo na terceira idade
Deisa Semedo

“A pessoa não se torna assexual quando envelhece”

Falar sobre sexualidade na terceira idade cria


constrangimentos nos idosos, nas famílias e na própria
sociedade.

A pessoa não deixa de ter prazer sexual porque está na


terceira idade e é preciso perceber que o tema deve ser
encarado com naturalidade, por fazer parte da vida.
Assunto delicado e íntimo, não é muitas vezes abordado
junto do profissional de saúde por receio que este entenda
tratar-se de uma questão desadequada ou por se achar à
partida que não há solução para um eventual problema.

Olhamos sobretudo para a forma como as mulheres


encaram a sexualidade, muitas vezes acomodadas e
resignadas à expectativa social.

Deisa Semedo é licenciada em Enfermagem, mestre


em Saúde Pública e doutora em Enfermagem, com
especialidade em Gerontologia e Geriatria. É professora
da Universidade de Cabo Verde.

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A sexualidade das pessoas na terceira idade é um assunto
envolto em vários tabus e que precisa de ser conversado e
desmistificado.
É uma temática que continua a trazer alguns burburinhos. Se
a sexualidade ainda é um tema complexo, quando falamos da
sexualidade dos idosos o assunto torna-se mais intrincado, devido à
forma como as pessoas encaram o tema.
A primeira coisa em que pensamos quando se fala da sexualidade
é em sexo. Então, é extremamente importante percebermos que a
sexualidade vai além do sexo. O sexo é um componente que faz parte
da nossa sexualidade, mas esta é formada por várias dimensões, é algo
que faz parte do nosso ciclo vital.

É preciso um trabalho para que a sociedade possa quebrar


tabus...
Primeiramente, temos de colocar nas pessoas a ideia de que todos
envelhecemos. Se gostamos de sexo enquanto jovens, vamos gostar
quando idosos, porque não deixamos de ser quem somos. As pessoas
precisam de estar informadas porque quando há falta de informação
surgem os ‘achismos’. Para desmistificar, fazer com que falar de sexo
na terceira idade deixe de ser tabu, é preciso que as pessoas estejam
informadas.

Há que repensar estas questões: os idosos ainda fazem sexo?


Também fazem sexo? Podem fazer sexo?
Eu diria que não só podem, como devem fazer. “Ainda fazem”, “podem”,
são expressões, por si só, carregadas de preconceito e relacionadas
com a nossa falta de informação. Quando usamos estas expressões,
estamos a criar a dúvida sobre se é uma possibilidade ou não. A pessoa
idosa, se quiser, faz sexo, se não quiser, não faz. A energia que utiliza
é realmente diferente, o que é normal, mas a pessoa não se torna
assexual quando envelhece porque todos os quesitos associados à
questão do sexo continuam lá. Aliás, se pensarmos na experiência que
a pessoa tem, provavelmente consegue ter sexo ainda melhor.
Esse processo tem de ser parado, tem de parar a associação a um
comportamento inadequado e incorreto por parte dos idosos.

Sabemos dos inúmeros benefícios que o sexo traz à vida das


pessoas. Na terceira idade não é diferente.
A primeira questão é a satisfação que traz uma pessoa desejar-nos. A
nossa autoestima, a diminuição da carga de stress, dá mais energia.
Todos esses pontos são necessários e são benéficos para o sexo na
terceira idade.

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De que forma devemos colocar o conceito de idoso?
Houve um período em que todos pensavam na pessoa que cuida
dos netos, que fica em casa, que usa roupas longas. Tínhamos um
estereótipo do que é ser idoso. Neste momento, já não, porque
encontramos pessoas a partir dos 60 anos – idade a partir da qual,
segundo a OMS [Organização Mundial de Saúde] se é considerado
idoso nos países em desenvolvimento, como é o caso de Cabo Verde –
que são ativas, que querem fazer mais e que podem fazer mais.
Os idosos estão cada vez mais ativos, independentes, até
financeiramente. Embora a nossa realidade seja um pouco diferente,
já encontramos idosos com algum poder de compra e que querem
viajar, divertir-se, sair. Tudo isso acaba por descrever os ‘novos idosos’,
que ambicionam fazer tudo o que não lhes foi permitido enquanto
trabalhavam ou enquanto cuidavam dos filhos.

Em que medida é que os nossos valores e crenças implicam


na definição daquilo que é ser idoso, inclusive se o idoso
pode ou deve fazer sexo?
É interessante pensar o idoso cabo-verdiano como o avô ou a avó,
aquele que deseja ter e cuidar dos netos, que nos pressiona para termos
filhos. Mas esta imagem está a mudar, porque a cultura também é
dinâmica. As sociedades são dinâmicas e vemos como é que hoje uma
pessoa de 60 anos não tem o mesmo corpo e a mesma participação
social que tinham as pessoas com a mesma idade, há alguns anos.
Nessa altura, pessoas com 60 anos tinham mais problemas de saúde,
estavam mais fechadas em casa, mais limitadas ao espaço doméstico,
particularmente as mulheres.
Agora, os idosos são as tais pessoas que querem viajar, conviver. Isto
é um ponto importante e que também toca na questão de ter prazer,
sentir prazer e fazer sexo.

Como é que nos podes ajudar a desmistificar essa relação


entre sexualidade e sexo?
O sexo é só um elemento da sexualidade. Quando se fala da sexualidade,
temos de pegar em toda a questão biológica, psicológica e social. O
sexo não define a sexualidade. Esta conversa que estamos aqui a ter, a
forma como movimento as mãos, como me expresso, tudo isto é uma
forma de sexualidade.
Acho que as pessoas dão muito valor ao sexo, em si, por causa da
intimidade que é fazer sexo. A forma como nos despimos – literalmente
– de tudo para estar com a pessoa. As pessoas valorizam muito a
proximidade de que precisamos na hora do sexo. Acho que também

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é isso que faz com que as pessoas sintam vergonha e tabu para falar
sobre o tema. Se comemos uma coisa, dizemos “comi tal coisa”, mas
ninguém se levanta e diz “hoje fiz sexo”.

Como é que podemos falar da sexualidade do idoso numa


perspetiva de género?
Uma mulher idosa assumir que faz sexo torna a situação mais complexa
do que se for um homem a fazê-lo. Na sociedade cabo-verdiana tudo é
mais permitido ao homem, a mulher é cobrada socialmente. A partir
de um determinado momento, supostamente, já não se pode ter
vontade, sequer. Começa com os próprios parceiros porque o homem
não entende que a mulher possa continuar a ter vontade de fazer sexo.
Chegamos ao ponto de entender que elas querem e o marido não,
precisamente, porque acha que a mulher não deve fazer sexo.

Perante isto, de que forma se pode trabalhar a mentalidade


para que se perceba que é normal a mulher na terceira idade
querer fazer sexo?
É algo que ainda tem de ser muito trabalhado. Não conseguimos ter
casais idosos a fazer consultas relacionadas com planeamento familiar
em conjunto. Posso receber a idosa, dar todas as orientações, mas
nunca o seu marido vai à consulta ter aconselhamento, principalmente
na nossa realidade. Os homens não procuram nenhum tipo de ajuda,
mesmo tendo problemas.

Aqui entra a questão da educação para a sexualidade...


A questão tem que ver com a educação desde cedo. Não é quando for
idoso que vou desmistificar isso. Temos de educar os nossos filhos
para que entendam o assunto e, mais tarde, consigam lidar com estas
questões de forma mais natural.

Queríamos recuperar a função sociocultural do sexo, a ideia


de que serve apenas para a procriação. A perceção que se
tem é que não faz sentido o idoso fazer sexo, porque não vai
servir para esse fim.
Sabemos que as mulheres, antigamente, nem aproveitavam o sexo.
O sexo era para parir. Procriou, já está. Com o tempo, foi-se vendo
que há outras formas de viver, que o sexo não é só para reprodução,
também é para nosso bel-prazer. A maior parte do sexo que fazemos
na vida é por prazer e não para ter filhos. O idoso precisa de fazer sexo,
precisamente, para ter esse prazer, que lhe vai trazer bem-estar físico
e mental.

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Saúde sexual e afetiva das
mulheres mastectomizadas
Ariana Monteiro Carvalhal

“O meu foco era viver”

As mamas são consideradas uma parte importante da


imagem da mulher e da sexualidade feminina.
A retirada parcial ou completa das mamas, em resultado
do diagnóstico de cancro, tem grande impacto na vida
sexual e afetiva das mulheres. Estas experienciam vários
sentimentos: medo, vergonha, autorrepulsa, mutilação,
etc.

Sentimentos e experiências que influenciam a sua


autoestima enquanto mulheres e parceiras sexuais e que,
por conseguinte, também podem ter impacto na sua vida
afetiva e sexual.

Ariana Augusta Gomes Monteiro Carvalhal, natural da


cidade da Praia, nasceu em 1979 e é licenciada em Ciências
Sociais pela Universidade Federal da Paraíba, no Brasil.
Mestranda em Ciências Sociais na Universidade de Cabo
Verde, autora do livro Prometo Nunca Desistir (2021)
e vice-presidente da Diva’s, associação que trabalha
na promoção da prevenção das doenças oncológicas e
humanização do tratamento.

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Comecemos pelo início. Como é que lidaste com o
diagnóstico?
É complicado, ninguém está preparado para receber um diagnóstico
de cancro da mama, sobretudo tendo informações nem sempre
positivas de pessoas que já passaram por tal. Receber a notícia foi um
pouco complicado, num momento que considerava estável a minha
vida amorosa e com um filho pequeno de 2 anos.
Entretanto, algo mexeu comigo e consegui ter uma força, que acredito
ter vindo de Deus, porque quis viver, tudo o que queria era viver.
Agarrei-me ao tratamento e fiz de tudo para vencer.

Como lidaste com o facto de teres de retirar as mamas, o


caminho apontado para vencer a doença?
O meu foco era viver. Passei por um processo, quando recebi o
diagnóstico pela primeira vez, por telefone, de Dakar. A forma como
o médico me deu  a informação, achei-a um pouco cruel, porque
disse “tens um carcinoma e precisas de regressar urgentemente
para a retirada total da mama”. Liguei imediatamente a uma amiga
ginecologista em São Vicente, que me motivou a procurar os médicos cá,
para ver se conseguia uma evacuação e possivelmente um tratamento,
porque indo para Dakar, teria de ser eu a suportar os custos, que iam
ser elevados. Foi nesse sentido que, nesse primeiro momento, foi mais
doloroso, mas para o processo de evacuação, preparei-me.

Foste evacuada para tratamento, só que o caminho foi mais


longo do que pensavas...
Nessa primeira vez, estando em Portugal, foi mais tranquilo. Aceitei a
mastectomia, que era apenas para parar a invasão, para depois fazer
a quimioterapia e a radioterapia. Só que posteriormente fui fazer uma
avaliação genética e esta parte mexeu comigo.
Já tinha feito todo o caminho e estava à espera de uma resposta
de que estava tudo bem e que ia regressar a casa. Infelizmente, na
avaliação, disseram que tinha uma mutação genética e a proposta que
me apresentaram era a retirada total da outra mama. Isso sim, mexeu
com tudo. Tive de suspender a ideia de regressar a casa e preparar-me
para a mastectomia total.

Passaste por um processo longo e doloroso. As mamas fazem


parte do nosso corpo e feminilidade, crescemos a olhar para
elas e de repente não tens mamas. Como é que foi para ti
olhar ao espelho e encarar o teu novo corpo?
Foi difícil, sempre gostei das minhas mamas, fazem parte de mim, do

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meu corpo. Tiraram-me uma parte do meu corpo, sinto aquele vazio.
Estava sozinha em Portugal ou pelo menos não estava na companhia
do meu marido e filho, as pessoas mais próximas, mas o apoio que
tive durante o processo amenizou ligeiramente o sofrimento. Fui-me
familiarizando com a situação.
Primeiro, tinha gazes que faziam inchaços na frente e não sentia, mas
quando tirei os pontos, fui ver e praticamente é pele nos ossos. Aí senti
mesmo aquele vazio. Choca, mas depois, com o tempo, fui-me adaptando
e preparando para o momento de estar na companhia do meu marido,
na intimidade, para outros momentos. Foi um outro processo. No pós-
operação, foi uma adaptação minha com o meu novo corpo.

Como foi viver os sentimentos nesta fase? Há sempre o


medo, a vergonha, o receio de rejeição...
Acho que os dividi por fases, porque às vezes as pessoas dão-nos
muitas informações negativas e tentei tapar os ouvidos. Temos
medo de tudo, do desconhecido, de algo novo. Eu queria era viver,
independentemente disso. Pensei “é a minha vida, foi esta a solução”.
Em relação ao meu marido, disse que seria uma prova. Se gostasse
realmente de mim, seria esse o momento de o demostrar. E ele foi uma
pessoa que me ajudou mesmo. Desde o primeiro momento, ao colocar
cremes gordos nas cicatrizes, estimulava-me, dava-me todo o apoio.
Juntos descobrimos uma forma de viver com essa situação.

Disseste que ‘tapaste os ouvidos’ para o que as pessoas


diziam, também foi uma forma de lidar com a situação?
É complicado. Tive amigas que foram abandonadas durante o
processo. Isso acho que é de uma insensatez… A pessoa que dizia que
as amava abandonou-as num momento delicado em que precisavam
de apoio. Apelo mesmo aos companheiros a darem um apoio máximo
a quem esteja a passar por esse momento. Sentimo-nos fragilizadas,
precisamos de encorajamento de quem está do nosso lado. Chorava por
qualquer coisa, necessitava de ajuda até para comer. Ser desprezada,
abandonada nesse momento, acho que ia mexer ainda mais comigo,
seria doloroso. Agradeço a Deus pelo companheiro que me deu e pelo
apoio que tive e tenho.

A sexualidade não passa somente pelo sexo. Há outras


formas de ser vivida. Como é que se deve abordar esta
questão?
É uma questão muito delicada. Temos um corpo e desde pequenas
crescemos com a vontade de ter mamas. As mamas fazem parte de

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um estímulo em termos da sexualidade, de ter prazer. Também são
importantes na amamentação de uma criança.
No primeiro encontro que tivemos do grupo de Diva’s, fizeram-
me uma surpresa. O meu marido deu um depoimento, disse que
se foi adaptando, que teve de se preparar para me receber de volta,
para refazermos a nossa vidas. Como ele disse, foi um turbilhão de
informações, mas conversando, com companheirismo, a ligação
permitiu-nos, juntos, ultrapassar.
Passei também por um processo de reconstrução, fomos descobrindo
outras formas de prazer (risos). Agora posso rir. Tive momentos de
tristeza e angústia, mas ele ajudou-me.

Como é que colocas este teu outro corpo num contexto de


relações sociais? Por exemplo, como é para ti uma simples
ida à praia?
Num primeiro momento, usava esponjas, tapava-me, cobria-me muito,
porque achava que era uma parte muito íntima e não mostrava. Com
a cirurgia de reconstrução, passei por um outro processo, de adaptar-
me a algo que não era meu, porque é pele, algo estranho que colocaram
em mim. Usava um biquíni que cobria essa parte e onde tenho as
cicatrizes. A tendência era sempre tapar tudo.  Mas no outro dia fui
à praia, meti-me numa onda, o meu fato de banho desceu e a mama
ficou exposta. Reagi de forma mais natural. Já estou aceitando e já não
ligo tanto como no início, em que tinha uma série de sentimentos que
me levavam a tapar e a cobrir tudo. Agora sinto-me natural.

Ouvindo as tuas declarações, a ideia que fica é que a postura


do companheiro durante o processo influencia, em parte, a
forma como lidas com a situação, na retoma da vida sexual,
na melhoria da autoestima e em muitos outros aspetos de
contacto social. Tiveste um companheiro que te acompanhou
e ajudou, mas outras mulheres não tiveram a mesma sorte.
Quando criámos as Diva’s, foi principalmente uma forma de nos
ajudarmos umas às outras. Entre nós, partilhamos informações sobre
como reagimos perante as situações. As colegas partilham informações
de negações por parte dos maridos e a forma é tentarmos, entre nós,
ter autoestima, criarmos essa vontade de viver, de gostarmos de nós,
de nos valorizarmos, acima de tudo. Ao estarmos mais confiantes, as
pessoas prestam mais atenção.

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Vivemos numa sociedade muito pequena, onde as pessoas
querem saber de tudo e opinar em tudo. Como foi esse
processo de te abrires e falares às pessoas sobre o que estás
a viver?
No fundo, eu tive esta conversa com o meu marido e no grupo de
guerreiras onde partilhamos essas informações. Com os familiares
mais próximos, fui-me abrindo aos poucos.
A primeira vez que fui abordada por uma pessoa desconhecida, tinha
sido operada, estava sem mamas e fui visitada por alguém que não
conhecia e que dizia ser da família. A primeira coisa que me perguntou
foi se eu tirei a mama. Não gostei e pesou-me bastante.
Mas estas coisas, que considero negativas,  magoam-te no primeiro
momento, mas preparam-te para uma abordagem posterior.

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Vida sexual e afetiva de mulheres
com deficiência física
Jamira Dias

“A minha deficiência não me define como mulher”

Na nossa sociedade persiste uma visão deturpada e


carregada de preconceitos sobre a sexualidade da mulher
com deficiência. As mulheres com deficiência física e
motora enfrentam vários desafios e constrangimentos,
na luta para terem direito a uma vida sexual e afetiva
livre e sem imposições.

É preciso desconstruir e combater esta visão infantilizada


da sociedade para com as mulheres com deficiência e
perceber que não são seres assexuados. Que têm desejos,
vontades, sonhos e direitos iguais às mulheres ditas
‘normais’, sem discriminação.

Jamira Dias, 37 anos, mãe da Bruna, nasceu em Cabo


Verde e vive entre as ilhas e Portugal. Dançarina do
grupo Mon na Roda, desde setembro de 2011. Tem uma
deficiência adquirida em resultado de um atropelamento
que sofreu aos 10 anos.

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Foste atropelada aos 10 anos e desse atropelamento resultou
a amputação das duas pernas. Como tem sido este processo
de aceitação, que pensamos ser contínuo?
Tem sido uma luta constante. Viver com uma deficiência, ainda por
cima sendo mulher... Quando se é criança, não se tem aquela perceção
do que é uma deficiência. Apenas se vive. Comecei a crescer, entrei
na adolescência e aí comecei a ter vergonha e preconceito da minha
deficiência.

A partir dos 10 anos começas a adaptar-te a um novo corpo e


tiveste de lidar com a exclusão, o autopreconceito. Como foi
lidar com tudo isso?
Não foi fácil porque não me aceitava, porque tinha de me adaptar a
um novo corpo, à nova forma de andar. Levei muito tempo para me
adaptar. Depois, não tinha autoestima. Por exemplo, não frequentava
o mar, nem piscina e muito menos casas de amigas, por mais que
fossem próximas. Não aceitava dormir em casa delas e isso acabava
por me magoar. Tinha vergonha do meu corpo.

O autopreconceito é um pouco o resultado da forma como a


sociedade lida com estas questões.
A sociedade tem muita dificuldade em que existam muitos corpos,
muitas formas de ser, que o mundo é colorido. Temos dificuldade em
aceitar aquilo que não compreendemos ou conhecemos.

Construíste o teu eu, como mulher, a partir desta tua nova


condição. Como é que a forma como a nossa sociedade lida
com isto e a forma como tu própria lidaste com a situação
condicionaram ou ajudaram a construir a Jamira que és
hoje?
Comecei a aceitar o meu eu, a minha deficiência, a mostrar quem era,
a libertar-me, graças à dança em cadeira de rodas, ao mostrar que as
pessoas com deficiência, principalmente as mulheres, também são
capazes.
Nunca fui de me acomodar, sempre fui à luta, tanto que depois de
viver muitos anos em Portugal, mudei-me para cá, encontrei o grupo
Mon na Roda e a partir daí comecei a deixar o preconceito de lado
porque comecei a conviver com pessoas com deficiência, mulheres,
meninas e homens. Comecei a conhecer o meu lado e o lado deles. Era
como se fossem um espelho para mim.

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Como é lidar com a vida sexual e afetiva tendo uma
deficiência?
No início foi complicado para mim. Namorava, mas não deixava
que a pessoa me tocasse, até me chegaram a perguntar se tinha sido
violada. Estive com o meu primeiro namorado durante um ano sem
que ele me tocasse. Primeiro queria ter certeza do sentimento dele e
se valia a pena viver aquilo tudo. Só me tocava da cintura para cima.
Não deixava que me tocasse nas pernas. Usava calças, ténis. Comecei
a usar vestidos depois dos 25 anos.

E a primeira relação sexual?


Foi um turbilhão de sentimentos, nervosismo. Conheci o meu
primeiro namorado pela internet, só falávamos online. Passámos
meses naquilo, mas não lhe tinha contado da minha deficiência, tinha
medo de estragar as coisas, não sabia como iria ser a reação. Nunca lhe
tinha dito que usava próteses, mas ele já sabia, tínhamos amigos em
comum. Reagiu normalmente.
A minha primeira vez não foi um mar de rosas, não sabia como me
posicionar, estava nua pela primeira vez à frente do meu namorado,
mas foi um grande passo que dei na minha aceitação.

A insegurança e o medo da rejeição pesam muito nestas


situações. Todas passamos pela insegurança da primeira
vez, mas a tua foi a multiplicar.
Sim, já trazia para mim a expectativa que o meu companheiro poderia
colocar no momento. Por exemplo, estou aqui sentada, as pessoas
estão a ver a Jamira, apenas, mas se eu pegar nas muletas, a primeira
coisa que vão pensar é: “ela tem uma deficiência”.
A nossa sociedade não olha para mim como uma mulher, no primeiro
instante. A deficiência fala mais alto, não o facto de eu ser mulher,
apenas. Tem de ser mulher com deficiência.

Chegas a um centro de saúde e dizes que vais buscar métodos


contracetivos. Qual é a reação?
Há sempre a mudança de semblante, mas não dizem na tua cara.
Quando solicitamos um método contracetivo, há aquela mudança
na expressão: “fazes sexo?” ou “o que estás a fazer da tua vida?” Não
esperam que tenhamos uma vida sexual ativa. Acho que pensam que
somos pessoas assexuadas.

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No teu caso, és mãe e tens uma relação conjugal. Como é que
a sociedade olha para ti?
As pessoas pensam que não fazemos sexo, não temos desejo, que não
temos orgasmos. Temos e costumo dizer que se não conseguimos de
uma maneira, arranjamos outra forma. Eu tenho uma relação conjugal
e sou mãe. Algumas pessoas quando me veem com o meu marido, ou
quando trocamos carícias em público, fazem aquele olhar… mas eu
nem ligo.

Como é que correu a gravidez?


No início não foi fácil. Sempre quis ser mãe, engravidei com 33 anos.
Entre amigas, há sempre aquela pergunta do “quando pensas ser
mãe”, mas a mim nunca ninguém me perguntou se queria ser mãe.
Acho que na cabeça das pessoas, não tinha capacidade de ser mãe.
O facto de as pessoas nunca me perguntarem levou-me muitas vezes
a perguntar se teria capacidade para tal. Quando comecei a minha
relação o meu marido já tinha filhos e eu achava que ele não ia querer.
Aí ele perguntou-me. Passei um ano a pensar no assunto, como é que ia
ser. Das experiências que conheço, não é fácil, não por dificuldade em
engravidar, mas a questão da acessibilidade, o serviço disponibilizado
nas estruturas de saúde.

Passaste por uma espécie de preparação mental e análise


daquilo que poderias encontrar em termos dos cuidados de
saúde.
Sabia que não ia ser fácil. O corpo da mulher modifica-se e sabia que
o meu corpo ia modificar-se muito, porque ia deixar de usar próteses
para passar a usar uma cadeira de rodas. Foi isso que aconteceu.
Quando engravidei, estava a trabalhar na cidade da Praia e procurar
serviços de saúde também não foi fácil. Tinha de ter consultas no
hospital, para conseguir uma baixa médica, mas para ter consultas no
hospital, tinha de subir ao primeiro andar e as escadas eram difíceis
porque já tinha começado a ganhar peso – ainda dava para usar  a
prótese.
No início da gravidez, devido à força que fazia, tive de ser internada,
porque estava a ter contrações. Então, decidi que tinha de ir para
Portugal, para ter lá a minha filha. Em termos de estrutura, foi mais
fácil em Portugal.
Enquanto estava grávida, numa cadeira de rodas, as pessoas olhavam
com ar de pena, “ai, quem fez isso com ela”.

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Ainda há um longo caminho a percorrer...
A primeira coisa a fazer é respeitar. Sem respeito, não vamos a lado
nenhum. Precisamos de criar acessibilidades em todos os serviços.
Temos direito de ir e vir, tal como as pessoas ditas ‘normais’. Temos de
mudar a mentalidade. Quando vamos a uma instituição, tratam-nos
como crianças, falam connosco de forma infantilizada. Percebemos
tudo, a minha deficiência não me tira capacidades, o que há em mim é
um corpo com limitação.
Enquanto não mudarmos a mentalidade, vamos continuar a tratar as
pessoas com deficiência como sendo deficientes. A sociedade vê-nos
como incapazes. Não somos incapazes, apenas temos um corpo com
alguma limitação, mas é um corpo com desejos e sonhos.

Temos estado a conversar sobre a dificuldade e resistência


da sociedade em aceitar os corpos com deficiência, mas em
pesquisas que fizemos e conversas que tivemos, descobrimos
que, ao mesmo tempo, essas mulheres são muito assediadas
pelos homens.
Sim, há muito assédio. Há muitos homens que nos procuram, que
nos mandam mensagens. Já recebi uma mensagem que dizia “gosto
de mulheres assim”. Há muito assédio sobre o corpo da mulher com
deficiência. Tenho algumas amigas que bloqueiam o Facebook durante
algum tempo, porque é aborrecido.

O que significa ser para ti ser uma mulher com deficiência?


Sinto-me uma mulher como qualquer outra, claro que com limitações.
As mulheres com deficiência vivem uma luta constante contra
estereótipos que desvalorizam as nossas capacidades. Antes de
qualquer deficiência, sou uma mulher, mas infelizmente, primeiro, as
pessoas vêm a minha deficiência. As pessoas acham que não somos
capazes. No meu caso, e de outras colegas, através da dança mostramos
a nossa força.
Se me perguntassem há alguns anos o que é ser mulher com deficiência,
seria difícil responder, porque não acreditava no meu potencial. Mas
hoje digo que a minha deficiência não me define como mulher.

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Saúde sexual e reprodutiva de mulheres
com transtornos mentais
Daniela Fortes

“Se as mulheres forem vistas como mulheres de direito, que


têm uma vida sexual ativa, estaremos a empoderá-las para o
autocuidado”

Os direitos sexuais e reprodutivos devem ser entendidos


como parte integrante dos direitos humanos, alinhados
com a salvaguarda das liberdades individuais.

No caso de Cabo Verde, considerando o seu contexto


sociocultural, a saúde mental continua a merecer pouca
atenção e a ser fonte de produção de vários estereótipos.
A liberdade sexual e reprodutiva das mulheres com
perturbações mentais não está salvaguardada. Não se
concebe que elas possam ser sexualmente ativas e mães,
querendo.

O desafio consiste em mostrar que as mulheres com


transtornos mentais devem ser empoderadas e que
devem ser criadas redes de suporte, para que possam
vivenciar a sua saúde sexual e reprodutiva livre de riscos
e coerção.

Daniela Silva Fortes é enfermeira, formada na


Universidade de Cabo Verde, mestre e doutoranda em
Enfermagem pela Universidade Federal do Rio Grande,
no Brasil. Integra o Grupo de Estudo e Pesquisa da
Família, Enfermagem e Saúde.

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Ajuda-nos a entender o que são transtornos mentais.
A doença mental refere-se a uma condição de saúde onde vamos encontrar
algumas mudanças nas funções mentais, que podem ser da emoção,
do pensamento, da sensopercepção, da linguagem, memória,
comportamentos, etc. Dependendo do tipo de transtorno mental que a
pessoa apresenta, pode ter algumas funções mentais mais alteradas em
determinadas situações, do que noutras.

Como é que a sociedade cabo-verdiana olha para as pessoas


com transtornos mentais? Que atenção tem sido dada à saúde
mental em Cabo Verde?
A relação que temos com as pessoas com transtorno mental está
muito associada à cultura da sociedade onde estamos inseridos. Em
Cabo Verde, ainda olhamos para a doença mental  com estigma e
preconceito. A visão que temos é que são pessoas incapacitadas, que
representam algum grau de agressividade, que nos causa medo.
Devido ao estigma e ao preconceito, são pessoas que estão à margem
da sociedade, não estão incluídas  nas várias esferas sociais, não
trabalham, não constituem família. Ou seja, esta participação social
está muito comprometida devido à visão que temos de que, devido
à condição de serem doentes mentais, perdem a sua identidade e
capacidade para fazer as coisas.   

Os transtornos mentais afetam tanto homens como


mulheres. Neste caso, olhamos especificamente para a
situação das mulheres. A perceção que se tem é que as
mulheres estão mais vulneráveis e não têm apoio social…
A saúde mental em Cabo Verde ainda está aquém do esperado, ainda
faltam apoios ao nível das políticas públicas, apoios na capacitação
dos profissionais de saúde, mas também há que trabalhar a questão
social, a questão cultural, a forma como a sociedade olha para os
doentes mentais. Se temos um olhar estigmatizante, estas pessoas vão
ficar sempre à margem da sociedade.
Há uma associação da mulher como pessoa mais vulnerável, passível de
ser vítima. O homem é olhado como uma pessoa mais agressiva. Daí
ser necessário trabalhar a forma como lidamos com a doença mental.

Esta dimensão da estigmatização é passível de mudança?


Sim, desde que existam intervenções na questão sociocultural, com
a consciencialização das pessoas sobre o transtorno mental, para se
ressignificar o conceito de saúde mental em Cabo Verde.

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Aqui não falamos apenas do tratamento a nível da medicação.
É uma questão de saúde que pode ser tratável e quando digo tratável
é para  apostar um pouco mais além do tratamento medicamentoso
e hospitalar. É preciso inserir essas pessoas na sociedade, como
sujeitos  de direito. Os direitos humanos  dessas pessoas devem ser
mais valorizados e protegidos.

Como é que fica a questão da liberdade sexual e reprodutiva


das mulheres com transtornos mentais? Está salvaguardada?
Quando olhamos para uma pessoa com transtorno mental,
primeiramente achamos que ela não tem capacidade de se cuidar, que
não tem capacidade para gerir uma vida afetiva, que não consegue
constituir família. Uma pessoa que a sociedade entende não ter
necessidade de vivenciar a sua vida sexual e reprodutiva.

A perceção é que lhes falta informação e acesso a um serviço


de saúde que responda às suas reais necessidades.
Falta-lhes autonomia e liberdade para decidir. Quando estamos a falar
de um grupo de pessoas em condição de vulnerabilidade, que não tem
autonomia para decidir sobre a sua saúde sexual e reprodutiva, os seus
direitos estão comprometidos.
A forma como vemos a saúde sexual e reprodutiva do doente mental
é como se esta não estivesse dentro dos padrões  que consideramos
normais. Essa visão estigmatizante acaba por negligenciar  ou não
reconhecer a necessidade que estas pessoas têm, comprometendo os
seus direitos sexuais e reprodutivos  e, consequentemente, os seus
direitos humanos.

Quanto aos profissionais de saúde, como é que em Cabo


Verde se lida com esta questão, particularmente no que toca
à saúde sexual e reprodutiva?
Há uma fragmentação da saúde reprodutiva e da saúde sexual e,
posteriormente, destes dois eixos com o da saúde mental. Quando
se olha para a saúde sexual e reprodutiva da mulher com transtorno
mental, o discurso apresentado tem foco no controlo da natalidade e é
preciso entender que a saúde sexual e reprodutiva é mais abrangente
do que apenas parir ou ter relações sexuais.
Quando o foco é o controlo da natalidade, o objetivo é que essas
mulheres não engravidem, porque à partida existe a perceção de que
não serão capazes de cuidar de si e de um terceiro. Essa visão acaba por
comprometer a atenção dispensada ao paciente nos serviços de saúde.

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A saúde sexual e reprodutiva fica resumida ao controle da
natalidade, portanto…
E isso acaba por fazer com que a mulher tenha uma atenção
fragmentada. Acontece, por exemplo, quando a mulher já está grávida
e a família procura os serviços de saúde, ou quando a família procura
os serviços de saúde para prevenir a gravidez. Isto compromete a
assistência, o profissional não vai fazer uma educação sexual, não vai
fazer uma educação para a saúde. O cuidado não é dirigido à mulher,
mas sim às expectativas da família, da sociedade e do profissional de
saúde.

Quanto aos métodos contracetivos, as mulheres têm


liberdade de escolha?
Até há bem pouco tempo, ainda se fazia a laqueação tubária dessas
mulheres, para prevenir gravidezes. Agora, para fazer a laqueação,
tem de se ter outro cuidado, recorrer à justiça.
Geralmente, não foi a mulher que decidiu que método usar, se quer
ter filhos e quando ter filhos. Faz-se uso de um método contracetivo de
longo prazo ou definitivo. Falta essa autonomia.

Aqui convém realçar a utilização de um método contracetivo


ditado por um terceiro.
O serviço de saúde ou a família estão a garantir que esta mulher não
venha a procriar. Já estamos a passar por cima de um direito da
pessoa, que é a maternidade e a sua saúde reprodutiva. Também esta
mulher fica mais vulnerável a infeções sexualmente transmissíveis e
ao HIV, porque o método contracetivo não vai garantir que não venha
a contrair uma doença sexualmente transmissível.

As mulheres com transtornos mentais estão mais expostas


a violência sexual?
O que pude constatar é que os profissionais de saúde associam todo
e qualquer ato sexual da pessoa com transtorno mental à violação,
não reconhecendo que essa mulher pode ter um companheiro ou
companheira.
Essas mulheres podem, sim, estar mais vulneráveis a sofrer agressão
sexual e muitas vezes a agressão pode ocorrer no seio familiar, por
familiares próximos ou amigos. Há mulheres que vivem em condição
de rua e geralmente não têm apoio social, nem familiar. Quando estão
numa fase descompensada da doença, mesmo que alguém diga que
houve consentimento, ela não estava na plenitude das suas faculdades
mentais e pode configurar um caso de abuso sexual.

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Mas há que ter cuidado, porque a linha é bastante ténue, e não se pode
confundir todo e qualquer ato sexual da pessoa com transtorno mental
com violação.

Como é que se consegue fazer essa distinção?


Se as mulheres forem vistas como mulheres de direito, que têm
uma vida sexual ativa, apostando-se em educação sexual, em dar
informações corretas, educação para a saúde, estaremos a empoderar
essas mulheres para o autocuidado.
Quando temos a noção de que a pessoa com transtorno mental tem
uma vida sexual, que isso é biológico, então teremos essa consciência
de que é uma necessidade da própria pessoa. Pode não ter namorado
ou namorada, mas tem essa necessidade.
Há diversos tipos de transtorno. Não se pode, por exemplo, comparar
uma pessoa com esquizofrenia,  com uma pessoa com depressão,
porque são situações diferentes. Mesmo dentro de uma doença, há
diferenças no seu estágio e no nível de competência social e pessoal.
Claro que há especificidades e momentos em que as pessoas estão
descompensadas e precisam de ser protegidas. Ter relações sexuais
com uma pessoa descompensada é violação. Mas há que ter esse
cuidado, para não lhes negar um direito ao tentar protegê-las. 

Como é que se espera que a sociedade cumpra o seu papel


quando, aparentemente, os próprios profissionais de saúde
não reconhecem esse direito às mulheres?
Temos de levar em consideração que embora os profissionais de saúde
tenham conhecimento técnico e científico para dar assistência à saúde
sexual e reprodutiva, são pessoas que fazem parte da nossa cultura.
A visão sociocultural que temos da saúde mental é também, muitas
vezes, agregada por esses profissionais. Então, há risco de se levar isso
para a prática e de a pessoa com transtorno mental ser vista como
alguém aquém daquilo que é social e culturalmente esperado.

Qual é o papel das famílias na vida dessas mulheres?


Primeiro, a família tem dificuldade em lidar com a doença mental, logo,
não sabe lidar com a saúde sexual e reprodutiva. Muitas vezes, acaba
por manter essas  mulheres  fechadas em  casa, ou recorre ao serviço
de  saúde  para uso de um  método  contracetivo que evite a gravidez.
Embora isso possa ser visto como um cuidado, na prática não é. É uma
forma de violar os direitos sexuais e reprodutivos destas mulheres.

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A questão é que, muitas vezes, a família não está preparada,
não sabe como lidar...
Aqui entraria o trabalho  do profissional  de  saúde,  para capacitar as
famílias.

Trabalhar questões enraizadas nas sociedades é um


processo difícil, particularmente quando envolve temas
delicados e complexos. Por onde se deve começar para que
o respeito pelos direitos sexuais e da saúde reprodutiva
das mulheres com transtornos mentais seja uma realidade?
Por ser algo que envolve questões culturais, é de esperar que leve tempo,
mas é uma condição passível de mudança, se houver investimento
para a capacitação anti estigma em relação à doença mental e para
uma ressignificação das necessidades de saúde sexual e reprodutiva da
pessoa com transtorno mental.
Apostar na educação para a pessoa com transtorno mental, para
que família, sociedade e profissionais de saúde entendam que essas
mulheres são sujeitas de direito.

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Vida sexual e afetiva de mulheres lésbicas
Josiane Lopes

“O facto de nascer uma menina não define a minha sexualidade”

Apesar dos avanços sociais, é prematuro falar de um


comportamento sexual espontâneo em Cabo Verde.

As liberdades sexuais são realizadas de forma velada,


com medo do preconceito e da estigmatização, muitas
vezes devido ao medo de rejeição familiar e social, o que
faz com que as mulheres lésbicas vivam presas à sua
consciência. A sexualidade não é vista como algo natural.

Coragem e persistência marcam a trajetória de muitas


mulheres que ousaram e legitimaram o seu desejo
feminino e que tentam, todos os dias, provar que a
felicidade não pode ser definida com base nas normas e
ambições impostas pelas leis sociais, mas sim no respeito
pelas escolhas individuais, sem tabus.

Josy Lopes, cabo-verdiana, estuda enfermagem na


Universidade de Lisboa, Portugal. É artista e compositora.

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O que significa para ti ser mulher homossexual?
Para mim, ser homossexual é um desafio. Quando és homossexual,
tens vários desafios, barreiras, preconceitos na sociedade e na família.
Mas é tudo superável.

Como foi o processo de descobrir ou perceber o desejo


sexual e afetivo por mulheres?
Desde pequena, sentia atração por mulheres, só que não sabia explicar
o que era. Aos 12 anos, tive a curiosidade de pesquisar. Com as minhas
pesquisas, comecei a ver informações sobre LGBT. Ali defini, soube
o que realmente era e comecei a rabelar. Não tive medo de enfrentar
barreiras.

E como correu este processo de revelação? Quais foram os


primeiros impactos?
A maior barreira foi da parte familiar. Amigos, professores e sociedade
em geral nunca disseram nada sobre a minha sexualidade, a não ser
quando fazem aquelas brincadeiras, mas aí digo logo que não gosto e
que são homofóbicas. Na família foi uma grande confusão, foi mesmo
complicado, mas eu nunca mudei quem sou por causa de ninguém e
com o tempo os meus pais viram que não havia solução, que nada do
que fizessem me faria mudar. Podia até ser que não aceitassem, mas
acabaram por respeitar a minha opção sexual.

Dentro da família é onde conversamos sobre isto, em


primeiro lugar, e foi de onde veio mais conflito…
Quando falei com os meus pais, já estava com 14, 15 anos, porque
comecei a mudar de personalidade, a ficar mais ‘masculino’. Um dia,
a minha mãe veio falar comigo, disse-lhe que sim, que era lésbica, e
que não iria mudar. Depois disse “já sabes que não gosto desse teu
estilo masculino” e eu só lhe respondi, “mas essa sou eu”. A minha
maior dificuldade e barreira foram os meus pais. Foi difícil para eles
aceitarem.

Quando se nasce menina é como se viesse predefinida a


casar, ter filhos e dar netos aos pais.
Sim, é isso. Só que não vejo nenhuma diferença, porque mulher
com mulher pode casar, ter filhos, há vários métodos. O complicado
é fazer as pessoas entenderem. Por causa das expectativas, não
compreendem as nossas liberdades femininas. O facto de nascer
menina não define a minha sexualidade.

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Achas que existe essa liberdade feminina? Por exemplo, no
espaço público há lugar para manifestação de carinho entre
duas mulheres?
Atualmente, posso dizer que sim, em 80% dos casos. A nova geração
tem uma mente mais aberta. Antes, referia-se que era doença, que isto
mais aquilo, mas agora a sociedade consegue aceitar bem as pessoas
homossexuais e não só. Isso é bom, está-se a evoluir.

Nunca foste assediada ou te sentiste excluída de algum


processo por seres lésbica?
Assédio acontece, mas rejeição social, graças a Deus, nunca tive. A
discriminação que senti foi mesmo da parte familiar.

Como ficou a tua relação com os teus irmãos depois da


revelação?
Foi tudo ótimo. Os meus irmãos vivem em Portugal há muitos anos, já
têm uma mente aberta. Um dos meus irmãos disse-me que tinha sido
muito corajosa porque enfrentei o pai e não deixei de ser aquilo que
sou por causa dele, porque no início ele não aceitava mesmo.  

Neste momento estás em Portugal, mas já viveste em Cabo


Verde. Como é que olhas para esta questão, do ponto de vista
da comparação das duas realidades?
Em Cabo Verde, ser lésbica causa espanto, também admiração, outras
vezes nojo. Está a melhorar a forma de lidar com isto, mas ainda notas
nas pessoas aquele olhar de sujo. Aqui em Portugal não ligam, cada
um sabe da sua vida e faz o que quer, mesmo se estás no trabalho, na
escola ou noutro sítio, não há nenhum problema. Aqui tudo é normal.

Já sofreste alguma violência homofóbica?


Graças a Deus não e espero que nunca aconteça.

Preocupa-te esta violência, ressaltando que não estamos


apenas a falar de violência física?
Sim. Conheço pessoas que já sofreram violência verbal e psicológica e
isso ataca muito mais. Numa situação, eu, como já sei das coisas, falei
com a pessoa e disse-lhe que tem de ser forte porque há várias coisas
para enfrentar, para ouvir, coisas que te magoam mesmo na alma.
Temos de ser fortes e não deixar de ser aquilo que somos por causa do
que os outros dizem ou por causa do que querem que sejamos. Temos
de seguir aquilo que somos de cabeça erguida.

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Na nossa sociedade, pouco se fala de temas que podem, de
certa forma, ferir aquilo que são os padrões e a construção
social pré-estabelecida. Quando temos um tema que precisa
de espaço no debate social, simplesmente fazemos silêncio.
As pessoas quando não entendem, não conhecem o assunto, vão para
o silêncio, para a violência, mas nunca param para ouvir, não sabem
escutar.

A questão da educação sexual em Cabo Verde acontece quase


por meio de experimentos. Não tens na escola, na família
nem sempre há abertura para tal…
Realmente, não há nas escolas, nem as famílias se sentam para falar
com os filhos sobre a sexualidade. Pode até haver hoje em dia, mas há
alguns anos isso não acontecia.

A questão do casamento de pessoas de mesmo sexo em


Cabo Verde. Num país que respeita os direitos e liberdades
individuais, precisamos de dar mais este passo.
Acho que seria interessante abrirmos este debate. Sempre digo que as
leis foram criadas pelos homens. Não há nada de mal em pessoas do
mesmo sexo se casarem e terem filhos, se for da sua vontade. Também
acho que Cabo Verde já deveria ter pensado nisso, em criar uma lei
que permitisse o casamento gay. Toda a forma de amor é válida.

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Trabalho sexual no feminino
Alexandra Oliveira

“O conservadorismo moral impede-nos de olhar para esta atividade


como deve ser olhada, como um trabalho”

O trabalho sexual deve ser visto como igual a qualquer


outra profissão?
Para uns, uma forma de exploração da liberdade sexual
da mulher, dado que se instrumentaliza o seu corpo
e a sua condição de vulnerabilidade económica, para
satisfação de caprichos e desejos de terceiros.

Para outros, uma atividade a descriminalizar, garantindo


o seu reconhecimento e regulamentação, sob o argumento
de que, além de uma forma de liberdade sexual e de
direito à decisão sobre o próprio corpo, nem sempre são
as mulheres mais pobres que têm este trabalho.

Abordamos questões não consensuais ligadas ao trabalho


sexual no feminino.

Alexandra Oliveira é professora e investigadora do


Departamento de Psicologia da Universidade do Porto,
em Portugal. É doutorada em Psicologia, com interesses
de investigação na área da sexualidade, saúde pública e
justiça, com enfoque no estudo do trabalho sexual.

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Tens feito um trabalho particular na desmontagem de alguns
preconceitos e ideias menos debatidas sobre o trabalho
sexual no feminino. Comecemos por entender o conceito.
De forma simples, posso dizer que é toda a atividade sexual comercial.
Depois, podemos especificar, dizendo que se trata de produtos e
serviços com conteúdo sexual ou erótico, trocados por dinheiro e/ou
outros bens. Aquilo que mais facilmente as pessoas identificam como
trabalho sexual é a prostituição, mas o trabalho sexual acaba por ser
um conceito guarda-chuva para uma série de outras atividades que
têm que ver com a troca de sexo por dinheiro, ou uma prestação sexual
a troco de uma remuneração, sendo que aqui pode estar incluído o
striptease, os atores e as atrizes de filmes pornográficos, as pessoas
que vendem serviços sexuais através da internet…

O trabalho sexual deve ser visto como igual a qualquer outra


profissão?
Acho que profissão é exatamente aquilo que ele é, porque a grande
maioria das pessoas que estão nesta atividade fazem-no como
uma profissão, para terem rendimentos, para fazerem face às suas
necessidades económicas. Acho que é assim que ele deve ser visto.
Como uma qualquer outra profissão, não, porque tem características
muitas especificas, mas tem de ser visto de forma igual em termos
de direitos. Se as pessoas que estão envolvidas no trabalho sexual o
fazem como profissão, devem ter os mesmos direitos que os restantes
trabalhadores.

Na maioria dos países, esta é uma atividade não reconhecida


pelo Estado, sendo até ilegal, muitas vezes. Se o trabalho não
é reconhecido, isso faz com que as mulheres não tenham
acesso a assistência social, o que compromete muitos outros
direitos.
Sim. Por exemplo, durante a covid foi dramático para as mulheres que
trabalham na prostituição. Com os confinamentos e a paragem de todas
as atividades, os trabalhadores que ficaram sem rendimento tiveram
direito a uma assistência por parte do Estado. Estas mulheres, que
também não puderem continuar a trabalhar, deixaram simplesmente
de ter rendimentos – e muitas vezes são as únicas provedoras da
família ou o elemento do agregado familiar com o rendimento mais
importante. São mulheres com filhos que, de repente, ficaram numa
situação de desespero total, sem dinheiro para comparar alimentos,
para medicamentos ou para a renda de casa. Isso mostra-nos quais
são as consequências de haver uma parte da população que está

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excluída de qualquer direito, que não tem direito a segurança social,
como outros trabalhadores.

Esta é uma profissão que também comporta riscos. Quais


são os riscos associados ao trabalho sexual?
Tenho uma vasta investigação com pessoas que fazem trabalho sexual,
já fiz entrevistas a centenas de mulheres que fazem prostituição ou
outras formas de trabalho sexual. Quando lhes pergunto o que é que
esta atividade tem de pior, há três aspetos que surgem imediatamente:
o estigma, as doenças e a violência. O estigma é a marca que é colocada
sobre certas pessoas e que lhes confere um descrédito profundo. As
pessoas são desacreditadas, excluídas, marginalizadas, porque têm
esse estigma que recai sobre elas. Depois, há o risco das doenças,
embora aqui também não dependa tanto da atividade, mas mais da
forma como é exercida. E finalmente, o risco de violência. Os estudos
mostram que a violência sobre as pessoas que se prostituem, sobretudo
aquelas que o fazem na rua, é bastante elevada. Chamo a atenção que
não considero que seja um risco intrínseco à atividade, mas que tem
mais que ver com as condições em que a atividade é exercida.

Até que ponto a forma como as nossas sociedades estão


construídas, por exemplo, o peso das religiões, condiciona
e aumenta esta estigmatização das mulheres trabalhadoras
sexuais?
Todas as religiões tiveram um papel preponderante, ao longo dos
tempos, na estigmatização destas mulheres. Não é só a igreja, o
Estado também é responsável por isso, por exemplo, ao não aceitar
a atividade, ao não a reconhecer ou, pior, ao ter uma legislação que
é lesiva aos direitos dessas pessoas. Ao longo dos anos, dos séculos,
as prostitutas sempre foram excluídas, remetidas para as margens da
sociedade. Acho que as responsabilidades podem ser apontadas às
religiões, mas também à sociedade em geral.

A prostituição é um dos comportamentos que tem dividido


os movimentos feministas...
Eu sou feminista. A prostituição é um dos comportamentos que tem
dividido os movimentos feministas, porque há movimentos feministas
que consideram que devemos acabar com a prostituição. Para mim, o
que faz sentido é defender a liberdade das mulheres para fazerem o
que bem entenderem com o seu corpo, seja para fazer um aborto, seja
para prestar serviços sexuais, a troco de dinheiro ou outro. Aquilo que
tem feito o machismo é o oposto disto, é controlar o comportamento

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das mulheres, dizendo o que podem ou não fazer. Eu acho que as
mulheres devem poder escolher livremente o que podem fazer com o
seu corpo. Eu posso achar que não é o que quero para mim, mas tenho
de respeitar se outra mulher decidir fazê-lo.

Qual é a linha que separa o trabalho sexual da exploração


sexual?
É uma pergunta complexa. Há que salientar que, quando falo em
trabalho sexual, refiro-me a pessoas adultas que o fazem de forma livre
e consentida. Se não for feito de forma livre, se não forem adultos, se
forem crianças, trata-se de abuso e coação sexual.
Acho que a questão do consentimento é muito importante, para
separar o trabalho sexual da exploração sexual.

Posto isto, como é que podemos evitar a exploração no


trabalho sexual?
As melhores estratégicas para prevenir a exploração são aquelas
que reduzem as vulnerabilidades dos trabalhadores do sexo, que
limitam as oportunidades de exploração. Conseguimos isso através da
legislação laboral e organização sindical, que é coisa que não temos
muito no trabalho sexual. Mas acho que mais do que a linha que
separa o trabalho da exploração sexual, se calhar, a questão faz mais
sentido sobre o que separa o trabalho sexual da coação. Aqui volto a
falar na questão do consentimento.

Há pessoas que tendem simplisticamente a associar o


trabalho sexual à pobreza, à falta de escolha. Há um perfil
das mulheres trabalhadoras do sexo?
Falando da realidade que eu conheço, em Portugal, é preciso salientar
que não há um perfil único. Há uma diversidade grande de pessoas e
contextos. É um fenómeno bastante complexo.
Um dos grandes erros de quem fala sobre trabalho sexual é o de
reduzi-lo aos estereótipos. Isto para dizer que que nem todas as
pessoas que fazem trabalho sexual estão imediatamente ligadas à
pobreza. É verdade que parte dessas pessoas, particularmente quem
faz prostituição de rua, tem uma grande associação com a pobreza. São
pessoas que estão numa situação económica bastante desfavorecida,
têm baixa escolaridade, pouca formação académica e profissional.
Contudo, o que nos indicam os estudos feitos nos países ocidentais
é que a prostituição de rua representa apenas 10 a 30% do total de
pessoas que se prostituem.

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O argumento de que não há escolha é trazido por aqueles
que defendem a abolição do trabalho sexual, apontado que
não há escolha e que as mulheres estão lá coagidas...
Eu acho que o problema de muitas vozes que falam sobre trabalho
sexual, nomeadamente essas que querem acabar com o trabalho
sexual, é que olham só para uma parte do fenómeno.
Queria aqui dizer que é óbvio e claro que para algumas mulheres é
uma questão de pobreza. Há mulheres que o fazem porque têm de pôr
comida na mesa dos filhos. Agora, não são todas e o nosso discurso
não pode ser só para essas.
Às mulheres que estão na prostituição por última escolha e que
gostariam de sair, o Estado tem a obrigação de lhes dar condições
para que saiam. Mas também tem de dar garantias e direitos àquelas
que querem continuar a fazê-lo. O discurso não pode ser feito só para
uma parte.

Noutra frente, temos quem defenda que o trabalho sexual


é útil.
Concordo que seja um trabalho útil e acho que há exemplos
que demonstram essa utilidade. Veja-se o caso de pessoas com
neurodiversidade, diversidade funcional ou diversidade sensorial – o
que na linguagem mais comum se chama de ‘pessoas com deficiência’
– que não conseguem ter parceiros sexuais de outra forma que não
seja através de serviços pagos. Alguns países têm a figura da assistente
sexual, que é alguém que é treinado para poder prestar um serviço
sexual pago a pessoas com deficiência. O que acontece em países onde
não existe esta figura, nomeadamente Portugal, é que trabalhadores
do sexo fazem este papel, ou seja, atendem pessoas com diversidade.
Muitas vezes, esses trabalhadores sentem a necessidade de ter
formação para saberem como lidar com aquelas pessoas, para atendê-
las melhor.

Mas também há quem defenda também que as mulheres vão


sacrificar o seu corpo para estar ao serviço de outra pessoa…
Mas isso é a opção por estar nesta atividade, por prestar este serviço.
Estamos aqui a falar de pessoas que consentem ter esta atividade.
Qual é a diferença entre uma massagem erótica e uma massagem
terapêutica, em termos do trabalho que a pessoa faz? Estamos a falar
de atos semelhantes, mas sobre os quais recai um julgamento moral
diferente.
Creio que é o conservadorismo moral que impede que se olhe para esta
atividade como ela deve ser olhada, como um trabalho.

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E quanto à discussão criminalização/descriminalização do
trabalho sexual?
Há vasta evidência científica de que a criminalização do trabalho
sexual tem consequências devastadoras na saúde, na segurança e nas
condições de vida e trabalho das pessoas que prestam serviços sexuais
a troco de dinheiro.
Uma revisão sistemática de literatura, que fizemos em 2020, para
compreender o impacto das políticas de prostituição da União Europeia
sobre as pessoas que fazem trabalho sexual, concluiu que a eliminação
de quaisquer leis penais e da aplicação da lei contra trabalhadores do
sexo, clientes e terceiros, poderia melhorar significativamente a saúde
física e mental, a segurança e as condições de vida e de trabalho dos
trabalhadores do sexo.
A descriminalização é isto: a retirada do Código Penal de todos os
aspetos relativos ao trabalho sexual – o que tem sido avaliado de
forma muito positiva.

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Maternidade

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Desromantizar a maternidade
Lia Medina

“A sociedade espera que deixemos de ser outras coisas para


sermos mães”

Se considerarmos que socioculturalmente se criam uma


série de expectativas sobre como as mulheres devem
ser, sentir e agir quando são mães, a maternidade é uma
tarefa individual e coletiva.

Ser a mãe ideal é fruto da romantização da maternidade


que valoriza a maternidade como condição natural
feminina.

Desromantizar a maternidade significa falar da


desnaturalização da maternidade, das dores de se ser
mãe, da necessária libertação da culpa no feminino
e dos julgamentos e (o)pressões sociais que recaem,
particularmente, sobre as mulheres que decidiram não
ser apenas mães.

Lia Medina trabalha desde 2008 como docente, com


cargos de direção no ensino superior. Licenciada em
Sociologia e Mestre em Demografia e Sociologia da
População, atualmente é pró-reitora da Universidade
Técnica do Atlântico, no Mindelo, e doutoranda em
Ciências Sociais.

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O que significa desromantizar a maternidade?
Desaromatizar significa que vamos deixar de ter ideias fantasiosas e
imaginadas sobre o ser mãe e vamos falar sobre a realidade, tal como
ela é, ou seja, algo muito bom, mas que tem muitas dificuldades,
barreiras, muitas fases em que não nos sentimos felizes, nem capazes.

O que significa ser mãe, enquanto mulher cabo-verdiana?


Para já, em Cabo Verde utiliza-se muito o facto de se ser mãe para
justificar sermos mulheres, inclusive aquelas mulheres que não
querem ser mães são vistas como ‘não mulheres’, são relegadas
para um cantinho onde não têm qualquer utilidade. Ser mãe foi
uma escolha, no meu caso, e uma escolha sem certezas, com muitas
dúvidas e medos. Sinto-me feliz, mas é muito difícil, pelo menos
para mim. Há poucas certezas sobre as coisas. Havia muitas ideias
românticas, lindas, como vemos nas redes sociais, mães plenas, com
os filhos saudáveis. O nosso dia-a-dia é muito complicado, com birras
porque não querem ir à escola, por isto e aquilo. O dia-a-dia é de altos
e baixos, como a vida, e o grande problema é que culturalmente a mãe
não se pode queixar.

Como se explicam estas expectativas socioculturais sobre o


ser mãe?
Em Cabo Verde, tornas-te mulher quando te tornas mãe. Depois, há a
expectativa de que tens de ser mãe como a sociedade espera. Tens de
cuidar e não te podes queixar. Também há a expectativa sociocultural
de que somos sempre mães, porque para a sociedade tornamo-nos
mães e só. A sociedade espera que deixemos de ser outras coisas para
sermos mães, passa a ser a atividade principal e às vezes única.

O que é que a sociedade espera de uma mãe?


Espera um ser perfeito, essencialmente. Alguém que consiga dar conta
de tudo e que consiga, nalguns casos, trabalhar, desde que não ponha
em causa o seu papel de mãe. Se tiver uma profissão que implica
algumas ausências, a mãe é criticada.
É uma exigência cultural, ser-se mãe. Ouvimos desde sempre as
pessoas mais velhas dizerem “cuidado, porque ficas para tia”, mas
depois de nos tornarmos mães, acabamos por ser excluídas de alguns
sítios, já não podemos sair à noite porque não fica bem. Depois, vem
toda aquela questão de que tudo tem de ser muito bonito, perfeitinho.

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Porque é que não falamos? Por medo de sermos julgadas?
Por não termos um lugar de fala na sociedade?
Acho que é por sentirmos que não vamos ser compreendidas. Creio
que falta esse acolhimento de percebermos que hoje as coisas não
estão a correr bem e que se calhar esta mãe está a precisar de ajuda
urgente.
Muitas vezes, o que sentimos é que deixamos de ser outras coisas, de
ser mulheres, de nos cuidarmos, de trabalhar como deve ser, porque
estamos sempre angustiadas e preocupadas. Vamos perdendo a nossa
identidade. Eu diria que isto é um círculo, do qual queremos sair, mas
não sabemos como.
Mas em Cabo Verde existem também umas figuras maravilhosas,
que devem ser referidas, as avós, que acabam por dar um apoio que
noutras paragens muitas vezes não acontece.

Como é que trabalhamos ou preparamos a sociedade para


isto?
Não é um processo fácil, sabemos que tudo o que é social leva
sempre o seu tempo. Eu costumo perguntar: se há cursos para nos
preparar para sermos mães, no sentido de como dar banho, trocar
fraldas, porque é que não há cursos de como exercer a maternidade,
onde as mães se possam sentar em círculos e partilhar experiências
e compreensão? Ouvirmos a pessoa e não desvalorizarmos o que ela
está a passar. A pessoa pode ter muito apoio em casa, mas isso não
invalida o facto de se sentir cansada, frustrada, porque de facto é uma
grande responsabilidade.

Esta carga de expectativa, a pressão social, é fruto das


nossas vivências, de vivermos numa sociedade patriarcal
onde se define o que é esperado da mulher, mas ninguém
exige responsabilidades ao homem?
Acho que tem a ver com o facto de sermos uma sociedade patriarcal e
matrifocal, porque há um peso excessivo sobre as mulheres, a partir
dessa ideia de que as mulheres é que educam, é que têm de responder
quando o filho faz uma birra. O homem só impõe respeito.
Eu gosto de dizer que me tornei mãe e no mesmo processo o meu
companheiro se tornou pai. Há perguntas que nos são feitas e que
não se colocam aos homens, enquanto pais. Isso acaba por criar essa
sensação de culpa, de estarmos a trabalhar até tarde e a pensar que
deveríamos estar com o nosso filho, de estarmos sempre a justificar o
que fazemos. As pessoas não respeitam o nosso espaço enquanto mães
e não sabem como lidar com as nossas queixas.

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Estamos numa sociedade em constante mudança, onde o
que vivemos hoje pode não se repetir amanhã. Será que esta
mentalidade, esta pressão, irá acompanhar-nos sempre, ou
teremos um ponto de viragem?
Sou sempre positiva, acho que sim, que as coisas vão melhorar, mais
não seja porque, pelo menos da minha parte, estou a tentar fazê-lo
com a minha filha, a tentar mostrar que há outras formas de estar e de
ser feliz, de seguir aquilo que queremos.
Mas essa mudança demora muito tempo, porque o trabalho individual,
de uma, duas ou três famílias não se reflete na sociedade. Assinalar
também que, muitas vezes, são as próprias mulheres que acabam
por fazer essa cobrança. Não necessariamente com má intenção, mas
acaba por acontecer.

A maternidade dói?
A maternidade dói, mas não é difícil de ser romantizada, porque todos
os dias somos bombardeados com imagens de felicidade e plenitude,
associadas à maternidade. Mas ela dói. Começa na gravidez, toda a
gente diz que vais ser feliz, sentir isto ou aquilo, mas há mulheres
que passam a gravidez deitadas, com vómitos, má disposição e outras
coisas. Felizmente, eu não passei por isso.

É comum veres nas redes sociais fotos de mulheres que


estão a passar por este processo, mas plenas…
Vês aquela mãe a amamentar a criança, com aquele ar de felicidade,
e ficas a pensar: onde é que eu errei? O meu filho não gosta de sopa,
não consigo tirar uma fotografia sem caretas. Vejo aquelas fotos, todos
com ar muito zen, e a minha realidade, e acredito que a de muita gente,
é toda a correr, sempre atrasada. O gap que existe entre a realidade
e essas fotos é muito grande. Felizmente, nas redes sociais tenho
conseguido encontrar algumas mães que já falam da maternidade de
forma realista, o que me permite dizer que não sou a única e que há
outras pessoas a passar por isto.

Há necessidade de se criarem espaços para se falar sobre a


maternidade?
Sim, e da paternidade, já agora. Se calhar, muitos homens, como é
novo, não aprenderam e precisam de partilhar, conversar, precisam
de estratégias para ajudar a lidar com o processo.

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A maternidade não se pode desligar da paternidade.
Não. Neste exercício de ser mãe, tenho a companhia de alguém que
também está a fazer o exercício de ser pai. O que acontece é que a
sociedade esquece que o homem também se torna pai, a partir do
momento que engravida uma mulher. Para as mulheres, o peso é
maior, as expectativas são maiores e os pais não se queixam porque, se
calhar, não vivem isso ou vivem-no de forma diferente. As expectativas
socioculturais que recaem sobre as mulheres são maiores.

É possível estabelecer uma maternidade não opressora na


nossa sociedade?
Começa na nossa própria cabeça. Frases como “já tens 30 anos e ainda
não tens um filho”, “estás com fulano há tanto tempo e ainda não
lhe deste um filho” ou quando se pergunta ao homem se não está a
conseguir engravidar a mulher. Depois, o facto de todos acharem que
sabem o que é melhor para ti, em todos os instantes da tua vida.
Há um conceito que a mim, particularmente, me aflige, que é o da mãe
guerreira. Eu pergunto: porque é que a mãe tem de estar sempre em
guerra com alguma coisa? Sei que as pessoas não o fazem por mal, mas
eu não estou em guerra com ninguém, o que quero é paz.
Fomos educadas num determinado contexto e agora estamos a educar
seres num contexto diferente.

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Líbido e maternidade
Nilce Medina

“Precisamos de conversar sobre líbido e maternidade. Há um


silêncio à volta do tema.”

O puerpério ou o pós-parto é um momento em que a


mulher vive várias transformações físicas e emocionais,
depois de uma relação umbilical de nove meses com a
filha ou o filho.

O nascimento de um bebé e a sua chegada à família


tem implicações profundas na rotina física, emocional e
familiar de todos os membros do agregado familiar.

Trata-se de um novo ambiente, em que a relação a dois,


da mulher e do seu companheiro, também se altera.
O regresso à vida sexual ativa é um dos aspetos do
quotidiano do casal onde se nota o impacto da chegada
do bebé.

Nilce Ariane Spencer Santos Medina é licenciada em


Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, no Brasil, e especializada em Ginecologia e
Obstetrícia pela Universidade Federal do Ceará, também
no Brasil.  Exerce funções de médica ginecologista-
obstetra em São Vicente, desde 2016. 

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Abordamos aqui um dos assuntos que no universo feminino
tem gerado muito tabu e silêncio. O que se entende por
líbido?
É tudo o que é considerado desejo, anseio ou impulso sexual. Uma
busca instintiva pelo prazer sexual. O termo em si remete-nos para a
ideia de desejo sexual. Em alguns momentos da vida da mulher, essa
libido fica mais fraca e o pós-parto é um desses períodos

Como é que fica o desejo com a maternidade?


Na maternidade existem vários fatores que implicam a perda de
líbido durante esta fase. É um período em que a mulher tem outras
preocupações, não está preocupada em procurar prazer, em se
satisfazer a si ou ao companheiro, mas em cuidar do recém-nascido.

O sexo após a gravidez é um tabu na vida de muitos pais


e nem sempre é fácil retomar a vida sexual ativa após a
chegada de um bebé.
É uma queixa bastante comum. A maioria das mulheres passam por
isso, mas nem sempre falam sobre o assunto ou cogitam a hipótese
de ser uma alteração que possa precisar de ajuda ou aconselhamento.

A forma como lidamos com o assunto está relacionada com


a forma como as sociedades estão construídas?
Exato. Precisamos de conversar sobre líbido e maternidade. Há
um silêncio à volta do tema. Quando nos tornamos mães, estamos
preocupadas com o filho ou a filha e também estamos cansadas.
Contudo, do lado da sociedade há esta pressão para, em simultâneo,
sermos mulheres e esposas. Socioculturalmente, há esta pressão e até
temos aquela expressão já bo tra bofareira.

Nas consultas, as mulheres abordam este assunto?


Não é algo abordado pelas mulheres nas consultas. Normalmente,
a dúvida é se estão a recuperar bem ou se têm alguma infeção, se
ficaram com alguma cicatriz. Dificilmente questionam abertamente o
porquê de ainda não terem vontade sexual e o que podem fazer para
melhorar. Podemos até conseguir isso ao longo da conversa, mas não
é uma queixa que levem inicialmente.

E quais são as causas para esta perda ou alteração do desejo


sexual?
O que acontece é que durante a maternidade ocorrem intensas
mudanças, tanto a nível físico, como hormonal e psicológico,

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responsáveis pela falta de libido. Temos pelo menos três hormonas que
se alteram durante a gravidez e durante o pós-parto, principalmente. O
estrógeno, responsável pelo desejo sexual e pela lubrificação, diminui.
A testosterona, outro hormónio responsável pelo desejo, também
diminui durante o pós-parto. E temos o aumento da prolactina, que é
uma hormona responsável pela amamentação, mas que tem um efeito
inibidor na parte da lubrificação e do desejo, deixando a vagina mais
ressequida e mais sensível.

Sem falar que existe também a questão da inibição física da


própria mulher…
É isso. Se na parte hormonal não temos os hormônios responsáveis
para este estímulo, então, já temos uma inibição física que não
deixa a mulher ter desejo. Associado a isso, temos todas as outras
modificações, físicas ou psicológicas.
As mulheres estão a adaptar-se à sua nova condição de mãe, temos
uma certa rejeição ao corpo no pós-parto. A barriga fica flácida, se foi
necessário um ponto cirúrgico, a mulher fica com receio, as mamas
estão cheias e a qualquer estímulo sai leite. Para a nossa perceção
como mulher, é algo difícil de aceitar inicialmente. Tudo isso gera
uma certa inibição que vai, consequentemente, refletir-se na falta de
desejo.

Quanto tempo pode durar este período de alteração do


desejo sexual?
É bastante relativo. Inicialmente temos o período de resguardo, de 40
a 45 dias, e que é o período onde a mulher ainda se recupera do parto.
Posteriormente, alguns estudos notam que pode durar de 3 meses a 1
ano.

Como ultrapassar esta falta de libido?


Há que se pensar que para ter desejo sexual é preciso pensar em ter
relações sexuais, porque o que acontece é essa anulação, em que a mãe
começa a fazer outras coisas, a ter outras preocupações, está cansada,
exausta, e anula-se como mulher.
É importante que, quando se começa a sentir mais equilibrada, mais
restabelecida, a mulher comece a procurar, a pensar, a ter desejos,
mesmo que sejam apenas uma carícia, um momento mais afetivo,
como forma de estimular aquele desejo sexual que está inibido. É
necessário iniciar um processo, que vem da parte psicológica, para
poder estimular a parte física.
Mas tem de haver compreensão, respeito e tempo. O companheiro

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tem de compreender que é uma fase que não vai durar para sempre. O
acolhimento é fundamental.

Falamos aqui da necessidade de dar tempo à mulher, para


que ela se reencontre, mas podem existir casos em que é o
homem que não se sente à vontade para tocar naquele corpo.
Acontece no pós-parto, assim como na gravidez, homens que não
conseguem ter relações sexuais com as suas mulheres. Temos situações
em que o homem já não reconhece a mulher como anteriormente.
Pode ter alguma aversão, medo ou preocupação, mas isto também é
uma questão de tempo e adaptação.
O casal, a nova família que se criou, precisa desse tempo de adaptação,
diálogo e construção de pequenas coisas. Começa na cabeça. Não
importa apenas a penetração, é todo o contexto sexual que vai
estimular até chegar à penetração.

Aqui entra também a equação ‘relação sexual versus choro


de bebé’. Como é que se lida com isto?
É algo que inevitavelmente vai acontecer. Encarar o risco e, se acontecer,
levar na desportiva e tentar retomar o clímax. Em alternativa, tentar
criar situações em que o bebé não esteja presente, para que se possa
ter mais à vontade. É algo que pode gerar alguma frustração, mas a
partir do momento em que se encara a situação com naturalidade,
torna-se mais fácil.

Diz-se que as mulheres se anulam durante este período, mas


do ponto de vista sociocultural alguns homens também se
ausentam da participação no cuidado ao bebé.
Realmente, temos de mudar isso. A sociedade determina que as tarefas
da maternidade são exclusivas da mulher, mas se a mãe não estiver tão
sobrecarregada, tão insatisfeita, poderá satisfazer-se melhor a si e ao
parceiro, porque fica numa condição de maior entrega.

Cabe aqui aquela questão de o bebé precisar de ter o seu


espaço fora do quarto dos pais.
Isto é fundamental e importantíssimo para que se restabeleça a
intimidade e a separação de espaços. Quando o bebé está no quarto,
inevitavelmente, vai acordar à noite, a mãe vai acabar por colocá-lo na
cama e o pai vai ficar de lado, acolhendo, mas de lado. O bebé precisa
de entender que tem o seu espaço. É uma coisa que se deve começar a
criar desde cedo. Com o tempo, o bebé melhora o seu sono e há menos
risco de o casal ter a sua intimidade interrompida.

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Violência Obstétrica
Denise Cardoso

“As pessoas têm de começar a abraçar o parto humanizado”

Apesar de ainda se manter como um assunto tabu, a


violência obstétrica é uma realidade, com a existência de
relatos de mulheres que foram vítimas de más práticas,
particularmente durante o parto.

Por ser um momento em que as mulheres estão numa


situação de grande fragilidade física e emocional e por
haver uma relação de dependência face aos profissionais
de saúde presentes, estas podem ser vítimas de violência
obstétrica, sem o saber.

Denise Castro Fortes Lopes Cardoso é mestre e especialista


em Enfermagem de Saúde Materna e Obstetrícia pela
Escola Superior de Enfermagem do Porto, em Portugal.
É docente na Universidade de Cabo Verde desde 2015 e
apresentadora do programa Mais Saúde, na TCV. Desde
2019, gere o projeto Mamita, com foco na preparação
para o parto e parentalidade

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Violência obstétrica é um assunto tabu em Cabo Verde, mas
faz parte do nosso universo feminino. O que é a violência
obstétrica?
A violência obstétrica é definida como todo o ato e procedimento,
intervenção ou omissão, realizada a nível de uma instituição, seja
ela pública ou privada, por profissionais de saúde, em que se põe em
causa a sexualidade e os direitos da mulher. Pode ocorrer durante toda
a fase de gestação, seja no pré-parto, durante o trabalho de parto ou
no pós-parto.

Esta violência é facilmente compreendida e detetada por


um profissional, mas para uma mulher não é fácil de ser
identificada.
Para uma mulher é mais difícil, porque geralmente só consegue
identificar as violências que têm a ver com um atendimento mais
bruto, uma conversa menos agradável, uma falta de respeito imediata
ou uma humilhação. A violência obstétrica envolve procedimentos
que muitas mulheres pensam serem normais, por serem feitos por um
profissional, “ele sabe o que está a fazer”. Há vários procedimentos
que constituem, na verdade, numa violência.

No que toca, por exemplo, à questão dos comentários que


as mulheres ouvem dos profissionais durante o trabalho de
parto. Podemos alinhar isso com aquilo que são as nossas
vivências e um pouco daquilo que é a nossa cultura?
As pessoas têm medo de falar e de fazer valer os seus direitos durante
o trabalho de parto, ou mesmo durante toda a gravidez, por receio de
represálias. Nós frisamos muito a questão do parto, mas há mulheres
que na própria gravidez, no pré-natal, já vêm sofrendo algum tipo de
violência: “ah, porque este já é o teu quarto filho, não tens dinheiro
para sustentar os outros e estás grávida outra vez”. Enfim, tudo acaba
por ser uma violência, uma humilhação.
Nós, profissionais, acabamos por assumir um papel muito autoritário,
o parto é nosso e, então, tomamos a frente em tudo, esquecendo-nos
que quem está a parir é a mulher.

Se o corpo é dela, ela deveria estar informada de tudo o que


lhe é feito...
Com certeza. E deveria ser melhor acompanhada na questão da
dor, amenização dessa dor, acompanhada psicologicamente por
um psicólogo, porque nem todas as mulheres estão devidamente
preparadas para parir.

| 105 |
As pessoas são preparadas para implementar e executar
qualquer outro trabalho, para o trabalho de parto deveria
existir esta mesma preparação...
Sim. O trabalho de parto exige uma preparação prévia e muitas vezes
essa preparação não é feita no pré-natal, o que torna natural que, no
momento, a mulher não saiba exatamente como se posicionar, se o
que está a ser feito infringe ou não algum direito seu. Os profissionais
aproveitam-se muitas vezes desse facto para exercer a sua autoridade,
acabando por se apoderar de um corpo e de um parto que não são
seus.

Muitas vezes, nem deixam a pessoa expressar a sua dor.


Estamos a falar de parto, mas poderíamos falar de qualquer outro
sector da saúde. Isto acontece de forma geral nos serviços. As pessoas
veem os profissionais de saúde como o elemento mais alto e têm
receio de contrariar o que é dito ou feito. Quando começamos a
perceber e a ser informados das coisas, percebemos que alguns desses
procedimentos ou atitudes não são os mais corretos, mas para isso é
necessária uma preparação prévia da qual, infelizmente, ainda não se
fala na nossa realidade.

Como identificar situações de violência obstétrica?


As mulheres têm muita dificuldade em identificar casos de violência,
mas o que eu digo às grávidas que acompanho é: sempre que ocorra
alguma situação no seu parto, no pré-natal ou pós-parto, com a
qual não se sinta confortável – seja porque lhe foi dito algo que não
encaixou bem ou porque lhe foi feito algum procedimento cujo motivo
não lhe foi explicado, ou que lhe trouxe algum sofrimento, físico ou
psicológico – é violência obstétrica.
Existe, não só em Portugal, mas também noutros sítios, uma coisa que
se chama plano de parto, que é feito no pré-natal, com a tua enfermeira,
que te ajuda a planear ou a perceber o que poderá acontecer num parto
dito normal e onde te explica os procedimentos e ações que podem
acontecer. Vais tomando conhecimento e assinalando se concordas
ou não. É tipo uma carta à enfermeira da sala de parto, onde dás
indicações claras daquilo que queres.

Por que não temos isto cá?


Tem a ver com a parte cultural, tem a ver com a questão de não
aceitarmos bem que alguém vá ao nosso trabalho dizer o que temos
de fazer ou deixar de fazer. Isto não era necessário se toda a gente
cumprisse o seu papel e fizesse o que está estipulado, porque existem

| 106 |
diretrizes da OMS (Organização Mundial de Saúde) para o parto
humanizado. Diretrizes que nos explicam, enquanto parteiras, qual o
nosso papel na sala de parto e o que devemos fazer. Só que as pessoas
não cumprem.

Não questionamos a figura do médico, mas há aqui uma


questão fundamental: a comunicação. Somos submissos
perante os médicos.
É uma questão cultural. Somos um povo submisso perante uma
autoridade ou alguém que achamos que é autoridade. Estamos a
lutar contra estas coisas e esta partilha de informação serve para
consciencializar as pessoas sobre essa questão do seu corpo, de terem
mais autonomia. Para isso, precisamos de preparar melhor as pessoas,
para tomarem decisões conscientes e com responsabilidade.

Que traumas ficam, habitualmente?


De uma forma geral, toda a mulher que teve uma gravidez traumática,
com atendimento péssimo, com trabalho de parto e mesmo pós-parto
traumático, em que não houve assistência, ou onde houve assistência,
mas ocorreu algum tipo de violência, essa mulher, geralmente, acaba
por desenvolver depressão no pós-parto ou ficar com receio de uma
próxima gestação, pelo medo de enfrentar todo o processo novamente.
Outras mulheres ficam com marcas físicas, com cicatrizes, fobia ao
toque. Para algumas, no pós-parto, a questão sexual é difícil, não só
por motivos hormonais, mas também pelo trauma que tiveram.
As pessoas têm de começar a abraçar o parto humanizado.

| 107 |
Não à maternidade
Cátia Costa

“Cada um tem o seu propósito, a sua decisão de vida”

A pressão sociocultural em Cabo Verde para a maternidade


é muito forte, particularmente a partir do momento em
que as mulheres assumem uma relação conjugal, têm
alguma estabilidade económica ou quando ultrapassam
a idade considerada socioculturalmente ideal para serem
mães. “Vais ficar para tia” é uma expressão muitas vezes
ouvida.

Apesar dessas pressões, indo contra elas, há mulheres a


quem se lhes reconhece que reúnem todas as condições,
mas que tomaram a opção de dizer não à maternidade.
Mulheres que desmontam a ideia naturalizada da
maternidade.

Cátia Costa é médica pela Facultad de Ciencias


Médicas de Camaguey, em Cuba e especialista em
Pediatria e Neonatologia pelo Instituto de Medicina
Integral Professor Fernando Figueira, no Recife,
Brasil. Atualmente, é diretora do Serviço de Neonatologia
e chefe do Departamento da Mulher e Criança do Hospital
Baptista de Sousa, em São Vicente.

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A maternidade é vista como uma condição imposta às
mulheres. Esquecemos que há mulheres que tomaram a
decisão de não serem mães. Como é que a sociedade cabo-
verdiana olha para as mulheres que decidiram não ser mães
ou ainda estão indecisas?
Acho que a sociedade ainda não está preparada para receber mulheres
que decidiram não ser mães ou que até agora não são mães. No
meu caso, já depois dos 40, ainda não senti aquele tal bichinho que
desperta, a maternidade a chamar. Com 42 anos, ainda não vivenciei
este momento e realmente a sociedade não está preparada, porque
acha que a mulher nasce, cresce e tem de ser mãe, quando não é bem
assim.
Cada um tem o seu propósito, a sua decisão de vida. Sempre digo que é
uma coisa que, quem sabe, no futuro pode mudar. Nessa altura, se eu
decidir ser mãe e não puder, não será nada que me vá afetar.

Em que momento foi tomada a decisão de não querer ser


mãe?
Os anos foram passando e sempre fui tendo outras prioridades. Às
vezes, a vida profissional fica à frente e as pessoas atrás. Depois de
um certo tempo a viver feliz à minha maneira, conseguindo o que
ambicionei para mim, acho que, ao contrário do que muitas pessoas
dizem, não me falta um filho para me completar, já sou completa.

És pediatra e quando as pessoas olham para um pediatra,


normalmente dizem: “gosta muito de crianças”. Quando te
perguntam se ainda não tens filhos e dizes que não e que não
queres ser mãe, pelo menos por enquanto, qual é reação?
Perguntam sempre como é que uma pediatra que gosta de crianças não
quer ser mãe. Digo que para ser pediatra, em especial neonatalogista,
primeiro tive de gostar das crianças dos outros. Não tive antes uma
criança minha para gostar e decidi seguir esta profissão. Eu gosto
muito de crianças e por isso me tornei pediatra e neonatalogista, mas
não é condição obrigatória ter filhos.

Na nossa sociedade, o não à maternidade parece um caso de


curiosidade ou desconfiança. Ninguém perguntou a quem
tem filhos porque é que teve um filho, mas todos perguntam
porque é que fulano não quer ter filhos.
Acho que as cabo-verdianas estão mais preocupadas em agradar à
sociedade e ao padrão que se criou de que a mulher tem de ser mãe, pa
dá povo satisfação. Eu não quero ser mãe só para dar uma satisfação.

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Vejo muitas mães e ser mãe não é apenas gerar. Vejo mulheres com
dois ou três filhos cantando aos quatro ventos que são mães, mas até
que ponto são mães?
Todos dizem: “você é médica, já está preparada”. Outros pensam que
como tenho condições económicas, posso ser mãe. Vejo muita gente
com excelentes condições económicas que não está a ser boa mãe.
Esse é o problema da sociedade. Se já fiz o liceu, formei-me, tenho
uma profissão, estou a ganhar um salário que a sociedade considera
ser bom, decide-se logo que estou preparada para ser mãe. Tem de ser
uma decisão da mulher.

Presumo que desde que começaste a pensar no assunto


tens trabalhado esta questão de mostrar que a maternidade
é uma escolha e nunca uma imposição social. Como é que
tentas mudar a mentalidade das pessoas?
Eu lido bem com isto porque é uma decisão minha e não é uma decisão
eterna. Como digo, se daqui a dois anos decidir que quero ter um filho,
se ainda estiver apta a fecundar, vou ser. E se não for possível, não vou
lamentar, porque é uma decisão que tomei.

Há esta pressão para a maternidade, sobretudo quando as


pessoas olham para ti e decidem que estás em condições
de ter um filho. Chamam-te egoísta, porque dizem que tens
todas as condições para ser mãe...
A mim nunca me aconteceu e não estou preocupada em dar essa
satisfação à sociedade. Sou uma pessoa que gosta de ter a sua liberdade.
Se me ligarem agora a dizer que vai haver algo, não sei onde, às tantas
horas, quero estar pronta para ir. Não quero lamentar que o filho está
a ser um fardo e não me está a deixar viver.

Normalmente, a geração das nossas mães é que também


incute esse desejo…
A minha mãe ainda diz que tenho de ter um filho. O meu pai diz que
gostaria que tivesse uma filha, mas que já entendeu a minha decisão.

De certeza que há pessoas na mesma situação que tu. A


pergunta é: devo ter um filho, mesmo que não tenha vontade
de ser mãe?
Jamais. Não faço nada contra a minha vontade, não faço nada para
agradar a ninguém. Coloco-me em primeiro lugar, porque se é minha
decisão, as pessoas têm que respeitar. Quem quer ser mãe, nada
contra, evidentemente.

| 110 |
Aquelas que decidem ser mães, que o sejam realmente e não gerem
filhos para os deixar ao cuidado de outros. Aquelas que tomaram a
decisão de não ter filhos, e que podem mudar de ideias no futuro, não
há problema nenhum nisso.

As pessoas associam a decisão de não maternidade à


orientação sexual?
Nunca puseram a minha orientação sexual em causa, que talvez seja
lésbica ou por aí, mas o povo tenta justificar o injustificável, justificar o
que não é da sua conta, procura soluções para problemas inexistentes.
Às vezes, as pessoas associam a outras questões, tipo, deve ser por falta
de namorado. Eu já namorei, agora estou solteira, mas por anos namorei
com alguém que tinha desejo em ser pai e eu não queria ser mãe.
Para mim, o não à maternidade não é problema, pelo que não tenho de
estar à procura de soluções ou justificações.

Como é que esta decisão pesa dentro de uma relação?


Nunca terminei uma relação por conta desta minha decisão e acho que
nunca vai afetar.

Acreditas que há tratamento diferenciado entre homens e


mulheres que decidiram não ser pai ou mãe?
Eu tenho colegas homens com a minha idade que não são pais e nunca
ouvi ninguém lhes perguntar porque é que ainda não são pais. As
pessoas estão preocupadas é com a mulher que ainda não é mãe.
Muitas vezes, querem saber porque é que não sou mãe, mas não
sabem como abordar o tema. Por vezes, são mauzinhos. Tenho
amigas e colegas, com a minha idade ou mais velhas, que querem
ser mães, estão a tentar há algum tempo, não estão a conseguir e
são confrontadas com perguntas do género: “tu já estás com 40 anos
e ainda não és mãe? Estás à espera de quê?”. Não sabem a dor que
causam nas pessoas.

A pressão sociocultural para a maternidade é muito grande.


Como trabalhamos isto?
Somos uma sociedade muito coletiva. Tudo o que fazemos tem de se
tornar uma coisa coletiva. Se vais ser mãe ou pai, tens que noticiar a
todo o mundo. Fomos educados para partilharmos as nossas coisas
com o mundo e o coletivo acaba por entrar nas nossas casas. Estarmos
sempre a responder a perguntas e as pessoas não ficam satisfeitas com
um simples “sim” ou “não”. Temos essa sede cultural de ter o pé na
vida das outras pessoas.

| 111 |
Levando em conta que o planeamento familiar é um direito
da mulher, esta ‘obrigação da maternidade’ não pode ser
considerada uma forma de violência?
Creio que pode ser considerada uma forma de violência. A primeira
forma de violência é não exercitares o teu direito a decidir e sentires-te
violentada por isso.

| 112 |
Mãe solo na sociedade cabo-verdiana
Natacha Magalhães

“Não podemos continuar a importar modelos que não se adequam e


não respondem à nova realidade social cabo-verdiana”

A sociocultura cabo-verdiana atribui grande importância


à conjugalidade como condição para que se seja mãe e se
constitua uma família?

Em Cabo Verde, o rosto das famílias é feminino, se


considerarmos que cerca de 50% dos agregados familiares
são monoparentais no feminino.

As mulheres que, por várias razões, não se mantiveram


numa relação conjugal após serem mães, são
categorizadas como mães solteiras. Contudo, não se
pode ligar a maternidade ao estado civil, dado que,
em resultado desta conotação, se criam preconceitos e
imagens negativas em relação a quem é mãe e não vive
uma relação conjugal com o pai da filha ou do filho.

Natacha Magalhães, mora na Praia. Licenciada em


Ciências da Comunicação, mestranda em Políticas
Públicas e Desenvolvimento Local, exerce funções na
área da comunicação numa organização de cooperação
internacional.

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Que olhares e que expectativas a sociedade cabo-verdiana
tem vindo a projetar sobre as famílias monoparentais,
particularmente no feminino?
Sou uma pessoa que acompanha de perto e com muito interesse alguns
fenómenos e problemas socais, a dinâmica da nossa sociedade. O tema
toca-me muito. Falamos da mãe a que em Cabo Verde chamamos de
mãe solteira, mas precisamos de mudar esta terminologia. É-se mãe e
pronto, não há mãe casada, nem mãe solteira.
A terminologia ‘mãe solo’ já é adotada em muitos países que deixaram
de falar em mães solteiras. Mãe solo que cria e educa o seu filho
sozinha, que não tem nada a ver com a condição civil. Há muitas mães
solo que também são casadas ou que vivem maritalmente, mas que são
mães solo, porque têm a maior responsabilidade, quase exclusiva, de
prover ao filho aquilo que é essencial. Estamos a falar da alimentação,
dos cuidados, do dar à criança qualidade de vida, amor. Há crianças
que estão num lar, que têm a mãe e o pai, mas mesmo assim aquela
mãe é uma mãe solo, porque o pai, praticamente, se ausenta de tudo o
que é essencial para a criança.

Achas que existe diferença de tratamento entre uma mãe


casada e uma mãe solo?
Claro que existe e daí ser importante mudar a terminologia de ‘mãe
solteira’, porque a palavra, muitas vezes, já vem acompanhada de uma
certa carga negativa. As pessoas olham para uma mãe solo e vêm uma
mulher libertina que teve um filho, uma mulher irresponsável, capaz
de deixar o filho sozinho para sair à noite, para estar por aí a passear e
não cuidar do filho. Muitos olham para uma mãe solo como uma mãe
sofredora, que não tem um homem que a ajude a cuidar da criança.

Notamos que é preciso combater a ideia de que as famílias


monoparentais são desestruturadas.
Colocas aqui uma questão interessante, porque há alguma coisas que
temos estado a tentar desmontar em Cabo Verde, mas é difícil.
Existe esta ideia de que as famílias monoparentais são desestruturadas,
ou seja, que a opção pela monoparentalidade é uma coisa má, quando
muitas mulheres que decidem ter famílias uni ou monoparentais saíram
de situações de perigo e de conflito, em que a família monoparental é
uma resposta a um constrangimento.
Por outro lado, há uma pressão social para criação do vínculo conjugal
e afetivo com um homem, para que a mulher se torne mãe. Hoje em
dia, já sabemos que o casamento não é uma prática muito sociocultural
em Cabo Verde.

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Como é que se explica a importância dada à conjugalidade
como condição para se ser mãe e constituir família?
É uma questão interessante. Aqui, socio-historicamente pensa-se a
família como estrutura. A família saudável é uma família nuclear, com
a presença do homem, da mulher, sendo o homem chefe de família,
ou seja, uma família nuclear patriarcal. A sociedade espera que as
mulheres se tornem mulheres e mães a partir da conjugalidade. É
nesta perspetiva que acho que a sociedade impõe essa condição sine
qua non para nos tornarmos mães. De resto, olha-se para quem é mãe
solo de forma diferente e muito vitimizante.

Onde teremos ido buscar este espelho de família que tem de


ser pai e mãe?
Acho que tem a ver com a religião, de sermos um país – já o fomos
muito mais – católico. A igreja, principalmente a igreja católica,
sempre teve um peso muito grande na construção da família cabo-
verdiana. Exibimos ou seguimos o que diz a Bíblia. Para a Bíblia é
a sagrada família – Maria, José e Jesus. Este é o modelo de família
que nos foi imposto, chefiado por homens. Isso perpetua-se até hoje e
estamos a passá-lo às nossas crianças, principalmente às nossas filhas,
quando definimos que para se realizarem como mulheres, após a
formação e o emprego, têm de constituir família, a família tradicional
que nos foi imposta.

Estamos a acompanhar essa dinâmica e ainda não aceitamos


que temos um modelo familiar que foge completamente
àquilo que é o tradicional. A maior parte das famílias cabo-
verdianas são chefiadas por mulheres, mães solo. Que
consequências isso traz?
Influencia nas políticas públicas, porque ao invés de estarmos a
responder a este fenómeno, estamos a correr atrás de um modelo
que já não é um modelo. Em termos de contribuições sociais, não
há uma diferenciação positiva para as famílias que são chefiadas por
mães solo, mete-se tudo no mesmo saco, quando se podia fazer uma
diferenciação, porque não é a mesma coisa. As despesas que uma mãe
solo tem, com a criação e educação do seu filho, não são as mesmas
de uma mãe que tem um companheiro ao seu lado, na mesma casa, a
dividir.

Há esta questão do peso de se ser mãe solo, que é preciso


desmontar, inclusive ao nível das políticas públicas.
Não podemos continuar a importar modelos que não se adequam e

| 116 |
não respondem à nova realidade social cabo-verdiana. Temos de olhar
e aceitar, normalizar as famílias chefiadas por mulheres que são mães
solo e seguir com políticas que de facto deem resposta a esta realidade.

Como mães solo, que pressões socioculturais sentem as


mulheres?
Há diferentes nuances. Há uma mãe solo só de um filho, há uma mãe
solo só com um filho, mas em que se conhece o pai, não vivem juntos,
mas é fulano de tal. Pior é quando não se sabe. Parece que a mulher
tem que andar com uma tabuleta na testa a dizer quem é o pai, porque
não saber é uma aflição para muita gente. O que se nota é que quando
se é mãe solo com vários filhos que não têm o mesmo pai, nem há
preocupação em saber as razões. As pessoas não querem saber e vão
logo julgar.
Há ainda uma outra nuance, que é quando és mãe solo, mas tens uma
condição socioeconómica diferente, estás resolvida profissionalmente.
Claramente, existe diferenciação face a uma mulher que esteja numa
situação de maior vulnerabilidade económica e social. Aí, o preconceito
e o julgamento são maiores.

Olhamos também para a questão do assédio...


Sim, esse é um outro lado da questão do ser mãe solo: como é que os
homens olham para as mulheres que são mães solo. Toda a mulher
que é mãe solo quer ter um companheiro. Não é pensar que a mulher,
por ter um, ou dois filhos, não quer ter um companheiro. Mas ela,
por ter passado por uma relação que não deu certo, tornou-se mais
cautelosa. Não nos deixamos seduzir ‘pelo canto da sereia’, como se
costuma dizer.
Há muito assédio em relação às mulheres que são mães solo, por parte
de homens a autoconvidarem-se para frequentarem a casa dessas
mulheres, a pensarem que a nossa casa, como diz a expressão, é a ‘casa
da mãe Joana’, que as portas estão escancaradas para quem quiser
entrar. Não é assim. Uma casa sem homem é associada a uma casa
disponível para relações promíscuas.

A nossa sociedade não está preparada para lidar com uma


mãe solo?
Acho que a sociedade cabo-verdiana está muito formatada. É preciso,
e eu tenho estado a dizer isso, repensar as políticas públicas no que
toca às dinâmicas familiares e relações de género, porque o quadro
que estamos aqui a mostrar não casa bem com políticas públicas de
outros países. Não podemos forçar um quadro que não existe. Os dados

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estatísticos mostram que cerca de 40% das casas cabo-verdianas são
monoparentais. Como vais desenhar uma política pública pensando
que tens de forçar a mulher a sair da monoparentalidade?
Às vezes eu digo isto e as pessoas não entendem, mas a sociocultura,
ou a cultura, também matam. Neste caso, não podemos forçar uma
mulher que escolheu, por razões várias, ser mãe solteira ou mãe solo,
a entrar numa relação onde pode ser vítima de violência e outros
constrangimentos. A sociedade cabo-verdiana não está preparada
para lidar com esta questão.

Como é que trabalhamos esta mudança de mentalidade? Por


onde começar?
Obviamente, em casa, com a educação. Aceitarmos que não temos esse
modelo de família que nos foi imposto há séculos, que isso já não é a
realidade total de Cabo Verde. Aceitar que temos outros modelos de
família e ir educando as nossas crianças com este pensamento. Educar
e empoderar as meninas e os meninos. Claro que a escola poderia
ajudar, mas por mais que a escola faça, se em casa as famílias não
fizerem o trabalho, vai ser mais difícil.

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O género e a justiça em Cabo Verde
Milanka Vera Cruz

“É preciso sair da informalidade e começar a estabelecer valores


e padrões no sentido de se criar uma consciencialização da
responsabilidade paternal”

A apropriação das leis por parte dos cidadãos é


fortemente influenciada pelos contextos em que vivem e
pelas expectativas e papéis de género estabelecidos.

Em Cabo Verde – sociedade que no quotidiano das


dinâmicas familiares é altamente matrifocal – muitas
mulheres que também são mães não se apropriam
do estabelecido nas leis da família, para exigirem
responsabilidades do pai da filha ou filho, o que se traduz,
por exemplo, no não pagamento da pensão alimentícia.

Subir as escadas de um tribunal para exigir direitos


é, além de um desgaste emocional, físico e familiar,
encarado como uma vergonha, como se a mãe admitisse,
de alguma forma, não ser capaz de sustentar a sua própria
família.

Milanka Vera Cruz é, nas suas próprias palavras, ativista


na reserva. Mora em São Vicente e também é jurista,
advogada, mãe-pai, artista e uma flor de revolução,
sempre que preciso.

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A primeira questão é se a justiça tem género. Tem?
Em princípio, a justiça não deve ter género, porque se tivesse feriria
de forma mortal o sacrossanto princípio da igualdade. Não se quer
uma justiça com género, mas claro que, com certeza, há ordenamentos
jurídicos que podem, de alguma forma, tender para um lado ou para
o outro, de acordo com a conjuntura sociocultural de onde este
ordenamento emerge.

As mulheres em Cabo Verde apropriam-se da justiça?


As mulheres em Cabo Verde estão demasiado ocupadas a cuidar dos
filhos e deve ser por causa disso que não se apropriam da justiça
para fazer valer os seus direitos, enquanto mulheres e mães. Mas à
medida que a sociedade vai evoluindo, as pessoas já começam a ter
mais consciência dos seus direitos e deveres e começam a ter noção de
que se deve recorrer à justiça para dirimir conflitos que na rua não se
podem resolver. As mulheres cabo-verdianas estão ocupadas a cuidar
das famílias, dos filhos, a tratar da sua própria vida e muitas vezes
nem têm essa visão de que podem e devem recorrer à justiça.

Olhando para a questão da pensão alimentícia, algumas


mulheres dizem que não vão “buscar leite no tribunal”…
Quando estás numa situação em que o pai não assume a sua
responsabilidade, essa responsabilidade de sustentar os filhos passa a
ser da mãe. É daí que digo que as mulheres estão demasiado ocupadas.
Eu sou uma delas e nunca recorri à justiça para exigir ou reclamar
pensão de alimentos para a minha filha. Posso até estar errada, mas
sempre acreditei que não devo ir ao tribunal exigir de um adulto que
em princípio deveria ser responsável pelo sustento e proteção do filho.
Não quero dizer que estou certa. É a minha perspetiva. Acredito que
seja também a realidade de muitas mulheres cabo-verdianas. Estamos
tão ocupadas a suprir aquela irresponsabilidade do pai, que não
vislumbramos que temos de ir ao tribunal demandar por pensão de
alimentos.

Mas há fatores socioculturais que podem influenciar esta


resistência?
Claro que sim. Somos uma sociedade altamente monoparental,
altamente matriarcal, onde sempre nos ensinaram que temos de
ser fortes, resistentes. Há um orgulho, a nossa rigidez, a nossa força
enquanto mulheres. Até parece que é uma fraqueza termos de ir a
tribunal. A perspetiva com que encaramos esta questão é moldada
muitas vezes pela nossa vivência, por aquilo que a sociedade requer
de nós.

| 121 |
Por um lado, temos o pensamento de que é uma vergonha
ter de subir as escadas do tribunal. Por outro, a falta
de conhecimento daquilo que é necessário para fazer
desenrolar o processo. Será isto?
Eu acho que não é uma questão de vergonha, mas mais uma questão
de orgulho, de não ter que ir ao tribunal exigir pensão de alimentos,
porque tenho força suficiente para educar e sustentar o meu filho e
não preciso de um homem para o fazer. Esta opção é valida, mas não
quer dizer que esteja certa.
Há um outro elemento que é determinante nessa questão, que são
os valores atribuídos. São irrisórios e não fazem muita diferença
no universo das despesas. Fala-se em pensão de alimentos, mas é
preciso ter noção de que não se trata apenas do leite. Inclui vestuários,
educação, lazer e saúde. E também sublinhar que os valores atribuídos
são de acordo com a realidade e as possibilidades do progenitor.

Tomaste a decisão de não recorrer a tribunal e conseguiste


resolver, com o apoio de familiares, os problemas que te
foram surgindo. Contudo, há mulheres que não têm essa
rede de apoio.
E há outra situação, que são mulheres com três ou quatro filhos, de
pais diferentes, em que nenhum cumpre a sua responsabilidade.
Todos os dias há dificuldades, vamos ultrapassando as dificuldades e
é nesse processo que não nos resta tempo para ir a tribunal. A minha
filha está a estudar fora, não tem bolsa, e só eu sei das dificuldades.
Mas estou inserida na tal rede de apoio de familiares e amigos.

Qual tem sido a eficácia da justiça e das leis da família?


A questão da família, no ordenamento jurídico em Cabo Verde, é um pouco
complexa porque temos várias estruturas familiares e o Código Civil que
utilizamos é inspirado no Código Civil português. O capítulo dedicado
à família é onde foram feitas alterações profundas, exatamente para
responder à nossa realidade. A família tradicional portuguesa é diferente
da nossa, porque temos famílias maioritariamente monoparentais e
muitas vezes quem tem responsabilidades parentais são os avós.

A justiça tem cumprido o seu papel?


A justiça em Cabo Verde vai servindo para estabelecer aquilo que
estamos a exigir, que é a responsabilização parental, tanto do lado do
pai, como do lado da mãe. Sair um pouco da informalidade, em termos
da responsabilidade, e começar a estabelecer valores e padrões no
sentido de criar uma consciencialização. Acredito que tem sido feito
um bom trabalho nesse sentido.

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