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| MACHADO | MAXIXE: | OCASO PESTANA JOSE | MIGUEL | WISNIK Resumo O conto Uim homem célebre”€ 0 micleo de uma série de textos de Machado de Assis, entre crdnicas, contos e romance, em quea miisica tem destaque. Por trés do descompasso evidente entre o erudito¢ o popular no Brasil, trata-se da emergéncia nionomeada do maxixe, que envolve cifradamenteescravidaoe mesticagem. Aboligéo, ‘Monarquia e Repiiblica convertem-se, nesses textos, em elementos de ma interpre- ‘ago musical da Histéria.O conto prefigura, anda linkas problematicas que vieram a marcar a miisica brasileira no século 20. Palavras-chave Machado de Assis; “Um hhomem célebres literatura e mésica; erudito e popular; polcae maxixe. Abstract The short story'A celebrity man? the nucleus ofa series of texts, among chronicles, shor stories, and romance in which writer Machado de Assis gives music a privileged place. Behindtheclea gap between the popular an theerudtein Broil it addresses the nonnamed ‘emergency ofthe maxixe which dsguisely tackles the issues of slavery andthe mixing of races, Abolition, Monarchy, and Republic are all converted into elements of « musical interpretation of History, This short story also prefigures problematic issues that played an important role in Brazilian music of the 208 century. Keywords Machado de Assis; ‘A celebrity man’; literature and musi; popular and erudite; polka and maxixe. E preciso ser muito grossero para se poder ser célebre a vontade! [Fernando Pessoa] Sucesso e gléria A primeira leitura, “Um homem célebre” (Vdrias histdrias, 1896) exp6e o suplicio do misico popular que busca atingir a sublimidade da obra prima classica, e com ela a galeria dos imortais, mas que é tra{do por uma dispo- sigdo interior incontrolével que o empurra implacevelmente na diregéo oposta. Pestana, célebre nos saraus, sal6es, bailes e ruas do Rio de Janeiro por suas com- posigGes irresistivelmente dancantes, esconde-se dos rumores 4 sua volta num quarto povoado de icones da grande mtsica européia, mergulha nas sonatas do classicismo vienense, prepara-se para o supremo salto criativo, e, quando dé por si €0 autor de mais uma inelutével e satitante polca. ‘3508 Fernando, A celebridade” In: Obras em prosa Ro de Jancra:Nova Aguila, 1982, p.502-3. 14 WISNIK, José Miguel, Machado maxixe:0 caso Pestana A discrepincia entre o objetivo idealizado (“uma familia de obras espiituais" de al- taestirpe) ea natureza do resultado (a prolifica sucessio de sucessos como “Can- dlongas nao fazem festa” e “Nao bula comigo, nhonho”) envolve a localizacio do drama num terreno ironicamente escorregadio: 0 das telacées entre o popular e 0 erudito no Brasil. Machado de Assis jé tinha tratado do assunto, de maneira inau- gural, embora num tom tendente ao melodramético, no conto“O machete”, publi- cado em 1878 no Jornal das Familias. Em “Um homem célebre” volta a: atacar, agora comicamente, ¢ com implicagoes completamente novas,a nossa velha e conhecida disparidade entre o lugar precario ocupado pela misica de concerto no Brasil ea onipresenga da masica popular que repuxa e invade tudo, 0 sucesso do compositor compulsério de polcas confunde-se inextricavelmente como fracasso de suas ambigbes eruditas, este, ditado ao que parece por uma im- Petiosa vocasio do meio, néo deixa de se metamorfosear no sucesso de polcas sempre renovadas, completando o ctculo vicioso.O deseo realizado de gléria, categoria ligada & imortalidade dos cléssicos, contorce-se no ‘giro perpétuo e tortu- rante do sucesso, categoria afeita ao mercado e ao mundo de massas nascente. E af balanceia o ponto insobivel dessa singular celebridade: 0 sucesso ¢inseparivel do fracasso {atimo, ¢ tanto maior este quanto maior o seu contrétio, ja que, afinal, quanto mais mira o alvo sublime mais Pestana acerta, inapelavelmente, no seu bu- licoso avesso. Que verdade a polca devolve, entio, 20 infeliz compositor,como um segredo? Aqui reside 0 ponto de inflexdo da letura, Pois, em primeiro lugar, significado da inca- pacidade de compor a obra almejada ndo se esgota, em “Um homem célebre”, na- 4uela impoténcia criativa que assombra, por exemplo, o esforgado Mestre Roméo de “Cantiga de esponsais” (Histérias sem data, 884). Neste caso, o do modesto ¢ admirado regente que néo chega nunca a compositor, embora o queita mais que tudo, trata-se de uma daquelas“vocagGes sem lingua”, que néo logram ultrapassar intimamente a barreira da expresso, numa “luta constante e estéril entre o ‘impul- so interior e a auséncia de um modo de comunicacao com os homens”. horizon- te dessa impossbilidade encontra-se nos desviosinsondaveis da psique, numa l- téncia sem objeto, em suma, numa prisio interior cujas paredes a inspiracéo, “como um péssaro que acaba deser pres. forceja por tanspor ..],sem poder Teresa revista de Literatura Brasileira [4|5];S40 Paulo, p.13-79,2004, = a5 sair, sem achar uma porta, nada’? Jé a impossibilidade de criar sonatas, sinfonias e réquiens, em Pestana, ndo se resume na incapacidade de compor, mas correspon de aum deslocamento involuntério do impulso criativo em direcéo a lingua co- mum das poleas, com espantosa forca propria, o que faz do compositor néo sé uma individualidade em crise mas um indice gritante da cultura, um sinal da vida cole- tiva, um sintoma exemplar de processos que 0 conto pde em jogo com grande al- cance analitico, que sao muito mais complexos do que a leveza dancante da nar- rativa faz supor de imediato. [Nesse sentido, seria estreito demais o entendimento do conto por meio de uma iro- nia reduzida a seu primeito nivel, lendo-se o eterno retorno da polca como uma simples evidénciaristvel da condi¢éo menor do miisico popular frente as exigen- cias da cultura alta, Segundo essa dtica, 0 pianeiro celebrado pagatia a pretenséo contida em sua incurséo pela seara dos grandes mestres com a repeticao estéril de seus esforgos, terminados sempre com a queda no itris6rio — a montanha sinfo- nica parindo um rato bailante, Se somados a essa ilusio os interesses do mercado, que 0 conto satiriza com preci- séo hilariante,¢ que comecavam a explorar, no fim do século x1x o futuroso filo da mésica popular urbana por meio do comércio de partituras, temos, mais refina- dda, embora ainda insuficiente, uma leitura que identifica no conto uma critica pio- neira da cultura de massas,e pela qual restaria ao artista o papel do pedo impoten- te entre aalienago de uma arte que néo descreve o meio em que atua e de um. mercado que instrumentaliza seus esforgos vas para os fins do lucto. Ser negar valor a esse nivel de apreenséo, vale notar, no entanto, para abrir uma utra ordem de consideragées com uma complicacio a mais, que a “eterna peteca entre 2 ambicio ea vocarao”, em cujo balanceio padece a alma de Pestana, segun- do as palavras do conto, nao gira sé no vazio das impulsbes néo formadas e das, produgSes goradas,simplérias einauténticas.Pois a polca, que persegue o compo- sitor como a maldigéo que o condena a vida rasteira dos bailes e“assustados” — os tradicionais arrasta-pés —,¢ ao mesmo tempo a propensao inata e inerente ao seu {mpulso composicional auttntico. lementos do conto permitem insinuarironica- coo Deas; Joaquim MCantiga de esponsas In: stra em dota Rio de Janeivo:Civiizacdo Brest ‘era Brain, 1975 9.837. 16 WISNIK, José Miguel. Machado maxixe:o caso Pestana mente que essa propensto ¢ néo 6 congénita (ao vincula acriagdo musical a0 te- ‘ma da paternidade e da filiacdo, como veremos), mas também, e mais propriamen- fe, 0 testemunho congenial de uma formacio musical consistente — expressao, ‘malgré hui, de um talento pessoal quintessenciado. Na cena notével em que o vemos compora pole, inspirado involuntariamente pela “musa de olhos marotos egestos arredondaclos, facile gracioss’, Pestana nao pensa mais no publico que o aplaude, no editor que encomenda, nos vultos clissicos que admira, em suma, nos avate- res da celebridade, do mercado e da Arte:“Compunha s6, teclando ou escrevendo, ‘sem os vaos esforcos da véspera, sem exasperagao, sem nada pedir ao céu, sem in- terrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graca, novidade, escorriam-lhe daalma como de uma fonte perene”,? AA passagem nao deixa duvide: a congenialidade daquelas pecas dispoe do valor ‘nestimével da espontaneidade,beirando enviesadamenteo genial, como ficarécla- ro, malgrado a alienagées da publicidade, da mercantilizagoe da fetichizacdo da arte,¢ para além da depreciagao a que as submete o pr6prio compositor. Ao final, quando se dé o retorno taro de Pestana a composicio dle poles, depois de t-las abandonado mais uma veu na esperange vi de comporo réquiem, éo texto que di “apesar do longo tempo desiléncio no perdera a originalidade nem ainspiracé, ‘Trazia a mesma nota genial”, Aronia sofre, portanto, uma outra torséo: o sucesso popular ‘galopante e onipre- sente,elimentado eealimentado pelo incipiente comércio musical — sucesso que € a0 mesmo tempo o rotundo fracasso intimo peranteo ideal de arte de gloria al ‘mejado —, contém secretamente um outro sucesso de dificil apreenséo, no sentido de um acontecimento praticamente inacessfvel ao entendimento do proprio com- positor, assim como do insciente meio que o envolve:a graca ea novidade ineren- tes Aquelas composigdes supostamente banais sio indices de algo ainda nao no- meado — que nos propomos.a examinar aqui. Mas € pré-condigio desse exame suportar o fato de que 0 conto trabalha com aam- bivalencia do que podemos chamar de un logro — aproveitando o dup sentido da As citagbes deUm homem célebre'serdo extraidas de waciaoo Deas, Joaquim M Ia. Varias hiséros {texto epurado pela 3* ede 1904, e notas por Adriano da Gama Kury. Rio de Janeiro /Belo Hovizonte: Livatia Gari, 1999,p.47-57 Teresa revista de Literatura Bras ra [4| 5]; S80 Paulo, p. 13-79, 2004, — 17 palavra—, dado que nele se encontram e se cruzam, a um sé tempo, engano,ireali- aco e conseguimento, Nesse sentido, fracasso e sucesso so aspectos de um mesmo processo, de um logro complexo aser visto em outro nfve de anise e sob miltplos ngulos. Ao focaizar o balango aparentemente insolivel do fracasso-sucesso que se constitui para a personagem num doloroso imbroglio e, por vezes, num lancinante pesadelo, Machado fez, como veremos, uma curiosa e penetrante andlise da vida mu- sical brasileira em fins do sSculo xtx, armando uma equacio nada simples, em cujas incdgnitas desenham-se precocementelinhas do destino da mésica popular urbana no Brasil, para dizer pouco, Porque, entre outras coisas, em que se inclu a sinaliza- io sbilina da transformagio histérica da polca em maxixe, ue entao se dava, Ma~ chado acaba — se nfo revelando — resvalando em algo que nunca disse de si mes- smo,em lugar nenhum: a condicio do mulato, A picada do machete Uma primeira intuigdo do poder esmagador da miisica deatrativo popular sobre os incipientesesforgos da musica séria no Brasil pode ser acompanhada em“O machete”, publicado, como jé dissemos, em 1878, no Jornal das Familias — dez anos antes da primeira publicagao de“Um homem célebre”, na Gazeta de noticias, em 1888, Machado exploreva, com forte carga sentimental, a desventura do aplicado e talentoso violoncelista Indcio Ramos, cuja mulher, Carlo- tinha, mocinha de movimentos “vivos e rdpidos”, de“rosto amorenado, olhos ne- gros travessos”(lembrando a propria musa da polca,a“de olhos marotosegestos arredondados”), acabaré por abandoné-o fugindo com Barbosa, o tocador de ca- vaquinho — ow machete, como se dizia —, seduzida pelos requebros do pequeno mas eletrizante instrumento que conquista a todos, £m “Um homem célebre” os mundos da miisica erudita e da misica popular apa- recem confundidos, como vimos, com resultados burlescos, Em “O machete”, a0 contrdtio eles aparecem contrapostos pelo crivo de uma completa diferenga de tome de valor. Faz-se uma clara afirmagao da superioridade moral, intelectual e es- pititual do violoncelista sobre o cavaquiniste, “um espirito mediocre”, avesso a qualquer ida, com mais nervos do que alma, e cuja pericia instrumental se com- bina com exibicionismo puro: 18 WISNIK, José Miguel. Machado maxixezo caso Pestana aed ‘Todo ele acompanhave a gradacio e variagbes das notes; inclinava-se sobre o instrumen- ‘o,retesavao compo, pendiaacaberaoraa um lado, ora a outro, lgavaaperna sorta, der- Tetia os olhos ou fechava-os nos lugares que the pareciam patéticos, Ouvi-lotocer era 0 ‘menos, yé-o era o mais. Quem somente o ouvisse nao poderia compreendé-lo,* Jos primeitos pardgrafos dO machete” sao talvez o mais circunstanciado testema- rho sobre trabalhosa e sacrificada formacao de um musico pobre devotado & musi- ca classica em nosso meio (assim como Memdrias de urn. sargento de milfcias, em ou- tra medida, €a mais completa representagioliteréra do que terd sido animada vida musical popular brasileira nos inicios do século x1x), Filho de um mtisico da ‘impe- al pela, que Ie transmite dedicadamente os seus parcosconhecimentos da gra- ‘mética, unto com sua experifncia e exemplo como cantor de mtisica sacra, Inicio ‘Ramos, vocago musical precoce e mais conhecedora, por herana paterna, “dos be- nis do que dos verbos”, devora, ainda assim, “a historia da miisica e dos grandes estes”, atira-se “com todas as forgas da alma a arte do seu coraga”¢ torna-se em ppouco tempo “um rabequista de primeira categoria”, Nao satisfeito com as limitagies da rabeca, eimbutdo do mesmo esforgo de permanente superaczo, conhece ovielon- celo gracas& passagem de uma velho misico alemo pelo Rio de Janeiro, com quem consegue ter algumas aul, e depois vem a compra, “mediante economias de longo tempo”, o“sonhado instrumento”, que estuda nas horas roubadas ao trabalho de en- sinar e de tocar, “ora num teatro, ora num saldo, ora numa igreja”, O pardgrafo seguinte ¢ exemplar: Heavia no violoncelo uma poesia austerae pura, ume feiio melancdlica e severa que ca- savamn com aalina de Indcio Ramos. A rabeca, que ele ainda emava como o primeiro ve- culo de seus sentimentos de artista, ndo Ihe insprava mais oentusiasmo antigo, Passara a serum simples meio de vida; ni a tocava com alma, mas com as mos; ndo eraa sua at- ‘e:mas seu ofcio.O violoncelo sim; para esse guardava Indcio as melhores das suas as- Piragtesintimas, os sentimentos mais puro, aimaginagéo, fervor 0 entuslasmo. Toca- va abeca para os outros,o violoncelo para si quando muito para sua velha mée. 4 Asctagbes de" machete’ so extraldas de mrc1ao00= a3, Joaquim M. Contos:uma antologia (selecdo, ‘ntrodueto e notas de John Gledsor) Séo Paula: Companhia das ets, 198 v.1,p.241-S4 Teresa revista de Literature Brasileira [4|5} S30 Paulo,p.13-79,2004, + 19 O contraste é completo entre o show de exterioridade do virtuos{sticoe esperto to- cador de cavaquinho, ¢ o aspecto sdbrio e concentrado do praticante de violonce- Jo,alheio a qualquer apelo exibicionista e todo voltado & essencialidade da msica, para transcender o oficio em arte, Vale notar, também, que, passando da rabeca ao violoncelo,o instrumentista migra da condigdo de misico de conjunto para con- digdo diferenciada de solista em potencial. No entanto, Indcio é 0 solista s6, encon- trando correspondéncia, além de sua “velha mae” e da atengao flutuante de Carlo- tinha, apenas em Amaral, estudante de direito em Sao Paulo, “todo arte e literatura”, com “a alma cheia de musica alemi e poesia romantica, [...) um exem- plar daquela flange académica fervorosa e moa animada de todass paixbes, s0- nhos, delitios e efus6es da geracio moderna”. Enquanto esses dois amantes da ar- teideal voltam-se para a profunda Europa, dante de um pubblico ausente, Barbosa, ‘que também é estudante de direito, mas esquecido disso, ¢ em perfeita adequagao com 0 “tamanho fluminense”, galvaniza o quarteirao, tocando algo que “nao era ‘Weber nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua, obra de ocasiéo”. ‘Vé-se por af que Machado se depara, nesse momento final da sua primeira fase, dez anos antes de“Um homem célebre”, com a identificacao de uma fratura, operante no meio cultural brasileiro, entre o repert6rio da misica erudita, que estd longe de fazer parte de um sistema integrado de autores, obras, piblico ¢ intérpretes,¢ a ‘emergéncia de um fendmeno novo, uma mtisica popular urbana que desponta pa- ra arepercussio de massas,a identificacio coma demanda do publico ea norma- lizagdo como mercadoria. Esse abismo entre a cultura escrita e a ndo-escrita (“en- trea arte e o passatempo” nos termos do conto), que a milsica exibe com sacudido. estrépito, nfo deixa de dizer algo sintomiético, também, sobre a posicéo da lteratu- rae de seu reduzido piblico, no Brasil, o que interessa certamente ao desdobre- mento do assunto em Machado, “O machete” acena para um leitor no minimo medianamente culto, que dividiria como ponto de vista narrativo 0 pressuposto implicito da superioridade da cultura letrada, isenta dos apelosféceis da misica vulgar. O texto supe e promove a identi- ficagio positiva com o mundo representado pelo violoncelo, em clara oposicio a0 mundo representado pelo cavaquinho. O misico erudito éauténtico na relagio com asua arte, enquanto que o popular se serve fartamente de apelos inauténticos na exi- bigéo da sua, Mais precisamente, num caso € 0 oficio que se transcende em“arte’,en- 20. WISNIK, José Miguel. Machado maxixe:o caso Pestana frentando as severas exigencias das mediacdes implicadas nesta; no outro, 0 mero exercicio do “passatemmpo”, que visa 2 imediatez do entretenimento, que se prevalece da incutura imperante no meio edo desejo, sb tego e generaizado, de gozar ede es- WISNIK,José Miguel. Machado maxixe:o caso Pestana ‘0 decsivos, de que uma outra cose estéacontecendo,eexigindo uma perspectiva diferente, desde os bastidores. Nesse movimento Machado de Assis parece chance- {ar ambiguamente o recalque das implicagdes s6cio-culturaise raciais da polca- ‘maxixe, ao mesmo tempo em que as desvela,sutle incsivamente, para nfo perder © costume. Guarda, aqui, no entanto, uma distincia e uma proximidade toda pré- ria na relago com o assunto, porque ele envolve uma questao nunca tratada de frente em sua obra, e que Ihe concerne intimamente: a mesti¢agem. Vamos acom- Panhar aqui esses dois movimentos: a constatagéo primeira do furor do género dangante em franca proliferegoe,em seguimento,a indicagdo obliqua das trans- formagéese contraigdes, dos ratros e dos rastilhos sociais que permeiam o ama- xixamento das polcas, Trinta anos de aclimatagéo, desde a sua introduséo no Brasil, parecem ter sido mais do que suficientes para que a crGnica machadiana, publicada em junho de 3878 em O Cruzeiro, vé encontrar a linguagem da polca plenamente implantada co- ‘mo moeda musical corrent, fluent eintercambiavel. Eo que comprova um fend- meno curioso, anotado e recriado hilariantemente pelo cronista: a ocorréncia de poleas cujos ttulos, engracados ebizarros, onversam ene sem forma de per- sunta ede resposta, numa animada e polimorfa correspondéncia que ora beira ora descamba alegremente no nonsense. “Seeu pedir vooé me di” 60 titulo de uma polca distribuide hé algumas semanes. Nao ficou sem resposta; saiu agora outra polca denominada:*Peca $6, e voct vera”. Este sis- tema telefonico,aplicado a composicio musical nao € novo, data de alguns anos; mas até onde ird é que ninguém pode prever!* O fato por sis jé éum indice elogiente de: que a polca tinha se incorporado, @ es- saaltura,a.um sistema de autores, obras e puiblico,e que se realimentava velozmen- te de sua propria vendabilidede ¢ familiaridade. O tom sestroso e inconclusivo, cheio dernegaca e nuance, em que se compartlia com cumplicidade algo que se diz ndo dizendo, atravessa os titulos pipocantes e atesta que elas, as polcas, se compor- 10 waciano oe ass, Joaquim M.Crdnicas (1878-1888) Rio de Jneit/Séo Paulo/Porto Alegre. WML Jackson Inc. Ecitores 1953.04 9.289. Teresa revista de Literatura Brasileira [4|5];Sd0 Paulo,p.13-79,2008. = 27 tam num certo espaco puiblico com desenvoltura ¢ intimidade, secretando recados ao léu O fato de serem em geral pecas dancantes instrumentais, sem letra, s6 refor- a0 seu cerdter falante por si mesmo, cheio de referéncias esquivas ¢ aderido & mi sica, Uma outra crénica, sumamente importante para 0 nosso assunto, publicada em versos na “Gazeta de Holanda”, em 1887, cerca de um ano antes da escritura de “Um homem célebre”, tece variagées sobre o mesmo tema: ‘Vema polca: Tire as pats, : ‘Nhonho! — Vem a polca: O gentes! Outta &:— Bife com batatas! Outra: Que bonits dents! —Ai,ndo me pegue, que morro! —Nhonké, seja menos seco! — Vocé me adora! — Oke eu corro! — Que gragal — Caia no beco! Ecomo se nao bastara Isto,jé de casa, veio Coisa muito mais que rar, Coisa nova e de recreio. Veioa polca de pergunta Sobre qualquer coisa posta Impress, vendida ejunta Com a polca de resposta" Voltemos’ crbnica de 1878,no ponto em que a deixamos. O cronista se pergunta- va onde iria parar esse impulso que animava as musicas,atcavés dos seus titulos,a dialogarem entre si num movimento proliferante. A cronica embarca, entdo, na 1 Tider, p.323-4Gazeta de Holanda’ era ums seqo de conicas em versos mantd por Machadlo ni Ga- _zetadeNoticis de 188621888, 28 WISNIK, José Miguel, Machado maxixe:o caso Pestana mesma cadéncia, e expande zo absurdo as possibilidades infinitas da conversa en- treapolca de pergunta” ea “polca de resposta” imaginando-as capazes de se alas- trar por toda parte, de se imiscuir na vida publica e privada, de tomar a forma da propaganda (ou dar forma a esta), de timbrar a vida nacional, Especula que esse método responsivo e telefénico (a invengao do telefone tinha sido anunciada por Graham Bell dois anos antes, em 1876) ‘chegard talveza. correspondéncia politica e Particular, os anttacios do Holloway, simples e nacional mofina” — tudo falaré, enfim, “pelo telefone” das polcas, Que se pode esperar deo bérbaro governo valsa em dois tempos.— A opascto deliv, polcaa quatro méos.— Sr Dr. Chef de poica, lance suas vistas para as casas de avola- _get, fantasia em Ké menor, por Unt que sABs, —~ Descanse uN QUE SABE; a autoridade cumpre seu deve, varias para piano. Tremos a prfecio do g2nerono dia em que © compositor responder asi prépro, Exemplo: Onde é que se vende o melhor queljo de ‘Minas? — melodia. — No beco do Popésito 102 — sonata." Carlos Sandroni dé farts exemplos do procedimento, colhidos em pesquisa de partituras constantes do arquivo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. pol- ca-lunduSai, poeira’, por exerplo, editada por Canongia entre 1866 e 1872, raza observacio:“em resposta a polca ‘Sai, cinza!”™. A polea-lundu “Que é da chave?de- sencadeia a série “Que é da trancat”, “Nao sei da chave”e finalmente “Achou-se a chave”.“Capenga néo forma” inaugura a série“Gago nio faz discurso”,“Vesgo nao namora”,“Dentuca nao fecha a boca”, “Barrigudo nao danca”, “Careca nao vai A mnissa’“Corcunda nao perfila’, numa seqiéncia que arriscaria prosseguir indefni- damente no fosse ‘providencialmente arrematada?, segundo Sandroni, por“La- ‘ndrias do capenga e do careca”. Contrasta com essa o “primor de concisio” forma- do pela dupla “Moro longe”e“Muce-se para perto”(}). Curiosamente aplicados a pecas instrumentais sem letra, os animados titulos das polcas nao recobrem uma narrativa literal, mas compéem uma narrativa alusiva, implicta nessa obra aberta “em progresso” e cumplicemente compartilhade, cujo 1 Ibidemp.29. 13 sapien Carlos Op.ctt,p.704. Teresa evista de Literature Brasileira (4 5};Sa0 Paulo, p, 13-79, 2004. - 29 humor combina de alguma maneira com o seu cardter dangante e bulioso. San- droni sugere de passagem que os ttulos das polcas brasileiras poderiam ser pensa- dos, maneira de cettos grupos de mitos estudados por Lévi-Strauss em Le cru et le cuit,como uma recorrente exploragio, visando ao esgotamento, de todas as pos- sibilidades contidas num paradigma dado”, De ambito mais modesto, mas de con- seqiéncias imediatas para o nosso trabalho, observagao de que a conversa en- tre as polcas através dos titulos participa da afirmago de um género: {..] quando um compositor de polcasentrava no didlogo dos titulos, estava postulan- do implictamente uma afinidade musical genérica entre as peces correspondentes — protagonista do conto" Marana publcado em 1871 no Jornal das Familias (no republicado por Ma- chadoe recolido por ledson em sua citada Contos/ uma analog). Mas a questaosecoloca de fat ameuverna auséncia do homem livre multe caro, também, que a pertnéncia da questao se liga 30 Seu carter sintomdtico,naguilo em que ela umina Teresa revista de Literatura Brasileira (4 51;S80 Paulo, p.13-79, 2004. = 61 st do globo ocular”, ena “tira costurada a uma pega de vestuério e guarnecida de ca- sas pata abotoamento, em que os botées ficam ocultos”." 0 quarteto semistico Uma tltima volta da narcatva:fracassado na esperanca do casamento artistico, Pestana, sentindo nos dedos a comichéo libidinal da polca como“ um frémito particular e conhecido”, compée e faz publicar novas poleas sob pseudOnimo, & maneira de aventuras extraconjugais. Em paralelo, Maria, sabida- mente tuberculosa desde antes do casamento, definha e morre numa noite de Na- tal, seguindo-se a cena pungente do velrio solitério em que, invadides pela mtsi- ca dancante de um baile vizinho, cujo repert6rio soa como um pot-pourr infernal, de sua autoria, 2s horas dancam ume espécie de polca macabra, ‘imidas de kége- mas e de suor, de aguas de Colénia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som [..] de um grande Pestana invisive!”. No ano que se segue, Pestana tenta compor, numa iiltima cartada, na qual jé amar- ga 0 gérmen da desistencia,o requiem dedicado a Maria, isto é,a obra solitéria que o redimiria em tiltima instincia, depois do que promete depor as armas e se trans- formar definitivamente em “escrevente, carteiro, mascate, qualquer cousa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda’ Fracassado também esse projeto derra- deiro, retorna o editor, voltam as polcas, amortece-se o drama, esgotado em sua prépria Logica interna, dissipa-se, ao gue tudo indica, o cabedal, desaparece 0 es- cravo, ¢ resta a coda, ante mortem, da piada sardénica sobre os conservadores ¢ os liberais. Esse ultimo movimento fecha um circuito cuja perfeicao contribui para dar a0 conto esse cardter, que ele tem, de exposicio e desenvolvimento de uma férmula, em que todos 0s elementos se precipitam e condensam numa configuragio algé- brica cerrada. Em termos esqueméticos, a narrativa se desenvolve num giro entre quatro modos de expresso musical: a polca, a sonata, o maxixe e o réquiem. Esses niveis de signfcacdo no evidentes na obra endo como pretensa€ mera citicaideol6gica da omiso, Para algumas ours cicunstincias biogrdficas, ver MAGALAESR Raimundo: Negros e mulatos nas ela- bes de Machado de Asi In:Ao redorde Machado de Ass Ro de Janel: Chizagbo Bras p. 105-12. Conforme nouns Anténio ewan Maur de Salles, Diiondrio Hovas do Lingua Portuguesa Ro de Jane bjetiva, 2001 627 WISNIK,José Miguel, Machado maxixe:o caso Pestana

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