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@) livro de Michael Angold é uma clara, concisa e autorizada historia do sucessor do poder imperial romano: o Império Bizantino, Bizancio eri uma polis grega no Bésforo que ganhou importincia em 324 d.C, ao ser restabelecida por Constantino, o Grande, e rebatizada como, -Constantinopla, Uma das mais destacadas cidades da Idade Média, Constantinopla desempenhou papel crucial no surgimento da ordem medieval, em que Bizancio, o cristianismo ocidental e o islamismo se tornaram trés civilizag6es distintas, o!7e651'208072 Tino Orginal Byzantum The Bridge rom Antiquity tothe Mie Ages Copyright © 2005 Michael Angokt Primita elgg pulse n ngisters fom 2001 por Weide & Nicolson sp ‘erane Moreno (tP-arai,Catslogarso-nafonts Site Nasional cos Ele de Livos, ‘saab Angal, Michae “canals ponte da angie pa a Wade Wadia Michael Ango reagan Ada Porto Santos, — le de ari: mago, 2002 186 “rau de: Byzanum: te rkge rom Antiquity fo he Wide Ages Inet ogra Ison as-ar2.08078 4. para Bizantna —Giizse80 |. Tilo. 8, coo— ates oa COU — 949.8 Reservas dos as dretos, Nenhuma pc- te desta obra poderd se reproduida porto tects, mirotime, process flamenco 1u eltronico gon perso exoresaa ds ators, 2002 ‘Maco EDITORA ‘els 21) 2242-0827 — Fa: 21} 2026-3960 ua de Quitenss, 628 andar — Cento 29011-030 — Rio de Janeiro — RI mal magoimagosdtora.com br ‘ww imannedtrs com be Inpraso no Bras — Sumario Lista de Mustragies Notas aos Viajantes Mapas A Cidade de Constantino izancio A Divisao dos Caminhos ‘A Formacio da Cultura Islimica Ieonoclasmo Bizantino Bizincio e 0 Ocidente O Triunfo da Ortodoxia ASietli Normanda: Epilogo Ghessério Biblografia hudice 7 28 44 58 68 87 106 124 139 141 45 10 u 12 13 4 18 16 W 18 19 Lista de Ilustragdes A.cabega de Constantino, 0 Grande Mosaico de Constat no em Sta. Sofia, Istambul Justi Relevo de obeliseo mostrando Teodésio | nos jogos ‘As muralhas da cidade de Conscantinopla Mosaico da Rotunda, ‘Tessalonica Interior de S. Sérgio e S. Baco, Istambul Interior de Sta, Sofia, Istambul Mosaico da abside de Sta. Catarina, Sinai icone de Cristo de Sta. Catarina, Sinai Mariim do Arcanjo Miguel Justiniano e sua corte “Teodora e sua corte Ilustragdo do Skylitzes de Madri Tone ‘A Escada da Virtude” de Sea. Catarina, Si Prato de Davi mostrando Davi matando Golias Exterior do Domo da Rocha, Jerusalém Interior do Domo da Rocha, Jerusalém Mosaico do interior da Grande Mesquita, Damasco Prato de Nichapur pizAncro 20. Entrada para o mitrab, Grande Mesquita, Gérdova 21. Interior de Sta, Irene, Istambul 22, Gristo em Majestade, manuserito de Godeseale Evangelistiary 23. Bstétua-relicério de Sainte-Foy 24. Mosaico de Sta. Sofia, Istambul 25. Mosaico da Igreja do Dormitio, lznik 26. Mosaico de Sta. Sofia, Tessalonica 27 Vista do interior da edpula de Sta. Sofia 28. Ilustragiio do Saltério de Paris 29. Ilustragio do Saltério de Paris 430. Painel de Constantino Porfirogeneta 31 Bxtremidade ocidental da Capela Palatina, Palermo 32 Mosaico da Catedral de Cefalu 33. Campandrio da Igreja da Martorana, Palermo Oautore os editores gostariam de agradecer as seguintes institulgbes a per missio para reproduc as imagens: AKG, Londres, 7; AKG, Londres/Brich Lessing, 14, 16; Ancient Arc and Archivecture Collection, 9, 10, 19.26% Art ‘AcchivelDagli Orti,2, 3, 11,12, 20, 325 Are Archive/Bibliothéque Nationale, Paris, 22; Bridgeman Arc Library, 30; Lauros-Giraudon/Bridgeman Art Li- brary, 23; Metropolitan Museum of Art, Nova Torque, 15; Werner Forman Archive, 27. Notas aos Viajantes rande parte dos fatos descritos neste livro ocorre em torno do Me~ diterraneo. A melhor época para viajar é na primavera ou no outono. Podem aventurar-se em margo, mas é com freqigneia um més frioe chuvoso; abril ¢ maio sio apostas mais seguras. O ourono encontra-se em sua melhor fase em outubro, mas, com um pouco de sorte, 0 veranico dura as veres até bem adentrado novembro, Os monumentos do inicio da [dade ‘Média acham-se em geral muito dispersos, parém varios dos mais bem pre- servados ¢ evocativos concentram-se nas cidades de Roma, Ravena, Tessalo- nica ¢ Istambul. ‘Accivilizagao bizantina foi muito mais original ecriativa do que em geral Ihe creditam. Suas igrejas abobadadas desafiam em originalidade ¢ ousadia 6s templos eldssicos e as catedrais goticas, enquanto os mosaicos competem como suptemas obras de arte com a escultura eldssica ¢ a pintura renascen- tista, A civilizagio bizantina foi em grande parte criagio da cidade de Bizan- cio, ou Constantinopla, que € de onde precisamos comegar. A imensa € impressionante transformagio por que passou a cidade nos séculos pasterio- res a 1453 — quando se tornou Istambul, capital do Império romano — nfo eliminou a cidade bizantina. Como poderia? A justiniana Igreja de Sta. Sofia continua « dominar. A nave com sua gigantesca cGpula ainda nos ator- doa. Muito se tem feito para preservar 0 que restou dos mosaicos bizanti- 1nos, O mosaico da Virgem com o Menino Jesus na abside permanece entre as maiores obras da arte bizantina. A uma razodvel distdincia de Sta, Sofia, localizam-se outras igrejas justinianas. Nao se pode perder a Igreja de S, Sér- gio ¢ 8. Baco (Kiigitk Ayasofya Cami), pela ousadia do plano e pela beleza dos detalhes arquiteténicos. Em contraste, hi a Igreja de Sta. Irene (Aya Irini Kilisesi), que impressiona pela austeridade. Observem a cruz icono- clasta na abside. A igreja hoje fica nos reciritos do Palicio Topkapi. Essa resi- déncia dos sultoes ovomanos sobrevive intacta, mais do que se pode dizer do palicio imperial bizantino, que se ergue no lado oposto de Sta. Sofia. Quase 6 restou um famoso piso de mosaicos, qué sc transformou no Museu dos 9 Mosaicos (Mosaik Misesi), mas 0 trabalho arqucolégico na area promere revelar mais dos esplendores do paldcio, Junto-ao palicio ficava o hipédromo (At Meydani), onde se faziam as corridas dc bigas. Em muitos aspectos, era o centro da vida da cidade, Hoje é um parque, onde continuam de pé alguns dos antigos monumentos, em particular um obeliseo egipcio, montado pelos bizantinos numa base que exibia cenas do hipédromo (ou circo). Ainda mais evocativos da primeira cidade bizantina sio os monumentos pGblicos. Pré- ximo & Teteja de Sta. Sofia fica a grande cisterna da Basilica (Yerebatan Saray), construida por Justiniano. Bra abastecida por égua trazida pelo “Aqueduto de Valente (Bozdogan Kemer) acima da Atatirk Bulvari prin- cipal arcéria da moderna cidade. As muralhias de Constantinopla nao devem ser perdidas. Construidss no inicio do século V, sio a suprema realizagio da tengenharia militar romana, Vale a pena fazer uma viagem especial 8 pons do mar de Mérmara para ver a fortaleza de Yedikule, que sbriga 0 Portio Dourado— hoje trancado—, entrada cerimonial da cidade de Constantino- pla, A pouca distancia, fica © mosteiro de S. Joo Studita (Imrahor Cami). Embora hoje apenas uma easca, foi durante mil anos 0 mais espléndido dos ‘mosteiros bizantinos. Ravena ¢ Tessalonica complementam a Constantinopla inicial. A pri- meira gaba-se de ter o maior conjunto sobrevivente de prédios eclesidsticos do século VI, e conserva intacta a maioria de sua decoragdo em mosaico. Vé-se af San Vitale, com seus famosos mosaicos das cortes de Justiniano © “Teodora, e muito mais; San Apollinare Nuovo, com suas procissoes de ma res ¢ virgens — no percam o pequeno retrato de Justiniano como um velho escondido na ponta oeste. San Apollinarc in Classe, com as lindas colunas de mérmore cinzento, e a famosa abside cm mosaico da Transfigurago, mos- trando 0s apéstolos como ovelhas e Cristo como uma cruz. Hit os batistérios © o mausoléu de Galla Placidia, com o teto coberto de reluzentes estrelas. Longos trechos das muralhas medievais continuam intactos. Na Via de Roma, vizinha a San Apollinare Nuovo, ainda se pode deduzir a fachada do palécio do governador bizantino. Vale o esforgo da curta viagem ao mausoléu do Rei Teodorico nos arredores da cidade. “Tessalonica nfo tem exatamente a mesma concentraglo dos primeitos prédios ¢ monumentos medievais, mas abriga a Tgreja de S. Demétrio, de intensa peregrinagdo e ainda 0 ndcleo da cidade, que remonta a meados do séoulo V. Sobreviveu a terremotos e a uma sucessio de incéndios. De algum modo, preservou algumas de suas antigas obras medievais em mosaico. Afi- cil alcance de S. Demétrio ficam a Igreja da Virgem Acheiropoietos (arqueo- poctas), uma primitiva basilica cristi de impressionantes dimensoes; a Catedral de Sta. Sofia, construida em meados da Idade Média — desajei- 10 NOTAS AOS VIAJANTES tada mas intensamente s6lida, com vigorosos mosaicas na abside ¢ na cGpu- la; c a Rotunda, vitima do terremoto de 1978. A Giltima foi restaurada e tal- vex logo seja aberta a0 piblico, Embora construfda originalmente por volta ‘de 300 d.C. como mausoléu do Imperador Galério — notério perscguidor dos cristios —, foi mais tarde transformada numa igreja, quando se acres- centaram os mosaicos de ouro exibindo um calendtio dos santos. infur- nada ao longe, entre as serpeantes alamedas que levavam até a cidadela, vé-se a pequena Igreja de Osias Davi, famosa pelo mosaico da abside mos- trando Cristo em sua gloria. Data do século V ¢ &, se nao o primeito, o mais antigo dos mosaicos de abside a ter sobrevivide, Uma ingreme subida os levard ao circuito superior de muros que datam mais ou menos da mesma época. B quase impossivel fazer justiga a Roma em poueas palavras. A antiga cidade medieval Id esté, mas voces precisam procuré-la, porque é obscure- cida por acréscimos postcriores. Uma maravilhosa excecio so as ruinas de Santa Maria Antiqua, no sopé do Monte Palatino, Seus suntuasos afrescos ‘io uma indicagio da riqueza da primitiva decoragio medieval. Poram pre- servadas porque um deslizamento de lama as cobtiu no século LX, sendo redescobertas mil anos depois. Vocés na certa ho de visitar o Pantego, mas reflitam que sua sobrevivencia foi conseqiéncia de haver sido transformado numa igreja evista, Santa Maria ad Martyres (Rotunda), que se tornou uma das grandes igrejas de peregrinacio da Idade Média. Os peregrinos afluiam para venerar um {cone da Virgem Maria, doado por um imperador bizantino 1 inicio do século VII. Igrejas como Santa Maria em Cosmedin e, em parti- cular, San Prassede, que pouco foram alteradas, hes dardo uma boa impres- dio dos templos de peregrinagio da época. Nao deixem de visitar as criptas, onde se depositaram as reliquias recothidas des eatacumbas, Mas hxé muito mais. ‘Vio encontrar, mais que em qualquer outso lugar, antigos locais ¢ pré- dios medievais espalhados em torno da Sitia, da Palestina c de Istacl, embora menos acessiveis. Palécios,aldeias, cidades de feira desertas ¢ cida- des arruinadas ostentam inGmeras igtejas. Todos os que se interessam pelo inicio do istamismo no devem perder a Grande Mesquita em Damasco ¢ 0 Domo da Rocha em Jerusalém. Se tiverem oportunidade, visitem o mosteiro de Sta. Catarina no sopé do Monte Sinai, Construido pelo Imperador Justi- niano como mosteiro fortificado, preservou seu mosaico da abside mostran- do a Tiansfiguragio, Foi um importante local de peregrinagio, a prinefpio por causa de suas associagdes com Moisés, mais tarde devido a0 culto de Sta, Catarina de Alexandria, famosa por ter sido torturada na roda, u nIZANCIO. AA Sicilia normanda dé-nos a oportunidade de rever as mudangas que ocorreram no inicio da Idade Média. A maioria dos monumentos se concen- tra dentro ¢ em torno do centro de Palermo. O Patécio Real €0 ponto de par- tida, S6 uma dependéncia do palicio normando —a Sala di Ruggero — foi preservada, mas vale ser vista. F imperdivel a capela do palécio. Mistura ‘mosaicos bizancinos, arquicetura italiana € artesanato mugulmano, criando tum conjunto estonteante. Nao peream 0 arruinado mosteiso de San Gio- vanni degli Eremiti, préximo. Saindo do palécio, fica a catedral. Embora construida em fins do século XII no local da principal mesquita, foi desde entio muito alterada, Abriga os ttimulos de pérfiro dos reis normandos seus sucessores. Continuem descendo até a principal rua de Palermo (Via Maqueda). Logo a dieita, fica uma praga dominada pelas igrejas de San Cataldo e Santa Maria dell’Ammiraglio (a da Martorana). A primeira pode ser apreciada por sua auscera arquitetura a Gltima por seu campansrio edes- Iumbrantes mosaicos. Saindo do Paldcio Real acima, na Piazza Indepen- dena, tomem um 6nibus que os levard num curto trajeto a La Cuba, um dos palicios mouros dos reis normandos ¢, mais distante, a Monreale — cerca de tmeia hora de énibus —e sua estupenda catedral. Tmpressionante, a decora- gio original em mosaico esta quase intacca. Nao percam o claustro. Hi ‘muuito mais ao lado para se ver em Palermo € 20 redor da cidade, ineluindo vérias igrejas no caracteristico estilo siciliano normando, Sem a menor diivida, vale 0 esforgo de ir até La Zisa, 0 mais impressionante e bem-con- servado palicio mouro dos teis normandos. Mas, acima de tudo, € impres- cindivel ver Cefalu — a uns quarenta minutos de trem de Palermo: um maravilhoso cenério no litoral e uma catedral que de algum modo harmoniza a arquitetura francesa do norte com os mosaicos bizantinos. a “ebizonds cesses Limit do ImpéioBizantno na senso de Justiniano lem 327 BBB cas conquicads sb Jniniane aces yy 2p 42H XIV IIA SOTNOE! OaNVaNA.LIGAW OG CAPITULO UM A Cidade de Constantino témachave do desenvolvimento dos primérdios do mundo medieval, que viu a unidade ceder@ divisto; que viv Bizincio perdera predomi- rancia cultural ao enfrentar novos adversirios em forma do Isli ¢ do Oci- dente latino. Para entender como perdcu sua soberania cultural, precisamos primeiro determinar 0 modo como a obteve desde ¢ inicio. O ponto de par- tida € a transformagio do mundo clissico que preparou o caminho para a dade Média. Bizancio cra o cadinho, c scu desenvolvimento, portanto, eru- cial B izincio, em todos os seus sentidos, est no centro deste livro. Con- Bizincio era uma antiga pols grega, ou cidade-estado, as margens do Bésforo, jamais de grande importncia na antigiidade, Mas isso mudou quan- doo Imperador Constantino, 0 Grande (306-37), a restabeleceu como a no- vva capital imperial ¢ a rebatizou como Constantinopla —a cidade de Cons- tantino — em sua propria homenagem. Devia servir como uma nova Roma, partir da qual o Imperador podia inspecionar as mais vulnerdveis fronteiras do império, que se estendiam ao longo do Dantibio ¢ do Eufrates. A decisio de situar 0 nGicleo da autoridade imperial 4s margens do Bésforo teve Sbvias implicagées para o relacionamento entre as duas metades do império, Se no fim apontou para a divisio, a principio deu esperancas de que a cidade se tornasse um stove centro de unidade para 0 mundo romano. Esse foi o ideal que inspirou mais tarde Justiniano | (527-65), mas realizado apenas em par- te, Em vez de unidade renovada, a transformagao da ordem romana em tomo de Biziincio criou uma nova entidade, a qual é adequado referir-nos como Império Bizantino. Trata-se de uma denominagio que visa a destacar que tanto o Império Romano quanto o proprio povo eram diferentes de scus precursores romanos — nfo importa que os bizantinos o chamassem quase sempre de Império Romano, a si mesmos de romanos. A esséncia da distin- gf0 entre romano e bizantino deve ser encontrada na sede do governo, @ cidade de Bizancio, onde se forjaram de antigos elementos uma nova cultura e sistema politico, "7 brzAncio. (0 primero e essencial passo foi a fundagio de uma nova capital. O que {foi complementado pela obra de Justiniano, ao mesmo tempo come legisla- dor e construtor, ¢ simbolizado pela Igreja de Sta. Sofia, que ape 0 indelé- yel selo justiniano em Bizaincio. A capital ea civiligagao assim criadas extra ram importéncia adicional da forma como eram vistas, uma agradecida ofe- senda Mae de Deus, que, segundo a fervorosa erenga, as salvaguardava, Os bizantinos eram 0 povo cleito do Novo ‘Testamento, os novos israclitas; ‘Constantinopla,a cidade guardada por Deus, a nova Jerusalém. A civilizagdo bizantina era impregnada da crenga no favor ¢ vigilancia divinos. Em seu Imago, havia um processo de reagio ¢ interagio entre a capital, o cargo imperial e a Igreja e f cristis, Os padres constituidos determinaram a forma adquirida por clementos herdados do passado eristdo, romano ¢ helé- nico: o que seria preferido ou descartado, que combinagdes seriam feias. A civilizagio bizantina era imperial, cristé e metropolitans. Mas essa civilizagio nio brotou plenamente formada da cabega de Cons- tantino. Ele muito fizera para fortalecer o componente cristdo na ordem romana em termos de organizagio © bem-estar material, mas por ocasifo de sua morte, em 337, sua fealizagio ainda parecia vulnerdvel. O cristianismo revelou um talento para a divergéncia que a perseguigio ocultara, além da relutincia em aceitar toda a intimidade do abrago imperial. Individuos podem dar inicio a uma dristica mudanga, mas esta precisa de insticuigoes —estados ou cidades — para levécla até o fim, A cidade de Constantino € que levaria sua obra de cristianizagio do império a um desfecho bem-su- cedido. Contudo, quando cle morteu, construfra-se apenas metade da cidade; 0 foro € as ruas em areadas tinham sido erguidos as pressas; é conce- bivel que scu verdadeito cariter, ainda no definido com clareza, houvesse mortido com ele. fato de isso nfo ocorrer foi obra de seu filho Constincio (337-61), a quem haviam sido legadas Constantinopla ¢ as provineias orientais por oca- sito da morte do pai. Scus dois irmios receberam respectivamente 2s pro~ vincias ocidentais ¢ contrais do império. Foi a receita para uma série de guer- das quais Constiincio emergiu vitorioso. A vitéria confirmou Cons- tancinopla como a capital imperial. Consténcio ampliou os planos do pai para a cidade. Aumentou suas pretenses de sera nova Roma, dando-Ihe um senado equipardvel ao de Roma, Concluiu a [greja dos Santos Apéstolos, que foi o mausoléu do pai. Enfatizou o aspecto cristao da cidade, construindo a primeira Igreja de Sta. Sofia para servir de catedral da cidade, Em 360, a cidade atuou como anficria de um Concilio Geral da Igreja convocado por Constiincio, que buscava com isso elevar a Igreja de Constantinopla ao stares patriarcal. Acabou-se revelando prematuro, pois 0 concilio foi mais tarde 18 A CIDADE DE CONSTANTINO repudiado, sob a alegacio de que ele o usava para promover uma forma de outrina ariana, ji condenada como heresia por impugnar a total divindade de Cristo. A morte de Consténcio, em 361, seguiu-se um periodo de confusio que jo especial de Constantinopta. Constincio foi sucedide pe- 1, um pagio que odiava a nova ordem crista, para ele sim- bolizada pelos lacaios da corte imperial em Constantinopla. Antioquia satis- fazia mais scu gosto, embora cle morresse em 363, em campanha contra a Pérsia, brineando de ser Alexandre, 0 Grande. Em conseqiéncia de sua morte, houve uma divisio do império, com as provineias orientais acabando nas mos de Flavio Valente (364-78), outro que no tinha o menor amor por Constantinopla, Também ele fez de Antioquia a sede do império, melhor para controlar a fronteira persa. O que significou deixé-lo sem contato coma situagdo ao longo do Danébio, onde o repentino aparecimento dos hunos levara 0s visigodos em pAnico a procurarrefiigio em solo romano, O assenta- mento deles foi mal administrado. Os visigodos se rebelaram ¢ capturaram Valente seu exéreito em Adrianépolis, em 378. O Impetador foi morto. Um desastre total, que impeliu 0s visigodos até bem préximo de Constantinopla ‘c ameagou suas pretensdes de ser a capital imperial. Mas a obra de Constantino no fora em vio. Forneceu a base em que pode trabalhar o homem enviado do Ocidente para salvara situagtio. Chama vyarse Teodésio (379-95). De origem espanhola, era um bom general ¢ um catblieo devoto, Sua primeira medida, assim que conteve a ameaga visigoda, foi convocar a Constantinopla um Coneitio Geral da Tgreja em 381. O principal objetivo era confirmar que o ramo catélico do cristianismo era a ortodoxia aceita. A forma ariana foi proscrita ¢ Teod6sio depois deeretou uma lei que tornava a nova ortodoxia a religido do Império Romano, Daf em diante, Gis romanus c Christianas catholicus passaram a set intercambidveis. Mas 0 concitio ‘de 381 fez mais que impor 0 catolicismo & Igreja universal, Na verdade, ele~ vou a Igreja de Constantinopla ao satus patriarcal, Recebeu a mesma classi ficacio da lgreja de Jerusalém, acentuando que Constantinopla nao era ape- nas anova Roma, mas também a nova Jerusalém. Apesar da falta de origens apostélicas — estas teriam de ser criadas, em forma da fenda de Santo André —, Constantinopla incluiu-se na categoria de um dos principais centros do cristianismo, “Teodésio fez mais que apenas garantir que a Igreja de Constantinopla tivesse watus patriarcal. Recomecou a obra de construgio, deixada mais ou menos suspensa desde a morte de Constancio, vinte anos antes. Como Constantino, construiu para si mesmo um foro. Inaugurado ao longo da “Ave~ nida Imperial”, a Mesa, uns quatrocentos metros a leste do de Constantino, 19 BiZAncio foi embelezado com uma grande arcada de triunfo. No centro do foro, cerguia-se uma imensa coluna, no topo da qual se fixou uma estdtua de prata de Teodésio, Outra forma de apor seu selo em Constantinopla foi a amplia- iio do hipédromo, onde o imperador ¢ 08 cidadios se uniam no prazer da cortida de bigas. Teodésio mandou trazer um obelisco de Karnak no Bgito © instalou-o no eixo central, a spina, do hipédromo. E mandou decorar a base com varias cenas, como 0 imperador ¢ sua familia assistindo 3 corrida do ‘camarote imperial e rtecebendo tributo de povos dertotados. O hipédromo proporcionava um paleo no qual se podiam renavar continuamente 0s lagos {que vinculavam 0 imperador a0 povo: em pé no camarote imperial ele apre- sentava-se ao povo e recebia aclamagées. O papel da populaga nao era intei- ramente passivo, pois o imperador is vezes tinha de ficar em pé e ouvir 0 relato de suas queixas, sendo imprudente ignoré-las. Levaria tempo para ‘que 0 relacionamento do imperador com o povo ficasse claro, mas, aoatrair a tengo para a importincia do hipédromo, Teodésio ajudou a iniciar o pro- ccesso pelo qual o cargo imperial se enraizou na sociedade da capital. ‘Sob o patrocinio de’ Teodésio, inaugurou-se um novo perfodo de cresci- mento, Um orador da corte da 6poca observou que afrea construfda entre as moralhas comegava a exceder 0s espagos abertos, © passou-se a recuperar @ terra do mar para fins de construgio. Afinal, em 412, 0 governo do neto & homénimo de’Teodésio construiu uma fileira de muros, que continua de pé, cerca de um quilometro e meio a oeste das muralhas de Constantino, Talvez se tenha acrescentado um ergo rea da cidade, Um contempordneo obser- you que a populagio da nova Roma comegava entio a ultrapassar a da anciga. Portanto, podemos pensar em termos de uma populaglo de pelo menos um quarto de milhao. ACIDADE ADQUIRE FORMA Constantinopla comegava a assumir sua forma caracteristiea, Era cortada por duas avenidas principais. Partindo do Porto Dourado, a entrada cerimonial da cidade, préxima a extremidade norte das Muralhas de Teodésio, ¢ 0 Por- tio de Carisio, perto da ponta sul, encontravam-se no Foro de Teodésio © continuavam a leste pelo Foro de Constantino até a Augustaion. Essa praga cao centro do império. Dominava-a uma coluna de pérfiro ostentando uma ‘estétua da Augusta: mie do Imperador Constantino, Sta, Helena, descobri- dora da verdadeira cruz. A entrada, ficava 0 milion, ou marco milidrio. Em forma de arco de triunfo, dali eram medidas as distancias para todos os pon- tos nos limites do império, ‘Todos os eaminhos Ievavam entio a nova Roma, como enfatiza 0 maps-mtindi posto no milion por ordem de Teodésio II (408-50). Distribuidos em corno da Augustaion, erguiam-se a Catedral de Sta, Sofia; a casa do Senado; o Porto Chalke, ou Metélico, a entrada cerimo- nial do palicio imperial; €, perto, o hip6dromo, Todas as principais insticui- goes do Império ficavam ao redor da praga. Os visitantes oficiais de Constan- tinopla percorriam a grande avenida da Mesa, que se abria a intervalos em imensas pragas, até acabarem, apés uma viagem de quase seis quilOmetros, ‘entrando no santudrio final da Augustaion. Causava imensa impressio mes- ‘mo nos anos de declinio do império, quando os grandes monumentos se achavam em ruinas ¢ grandes trechos da cidade abandanados. Mas no século V, quando tudo era original, 0 efeito devia ser esmagador. Se tentarmos recriar na mente a cidade de Constantinopla, as grandes pracas péblicas, ‘com suas colunas, estétuas, arcos de triunfo e arcadas, lembrariam uma fan- tistica paisagem urbana neoclissica. Os aspectos caracteristicas de Constantinopla cram suas arcadas co- merciais e escadas monumentais. Um inventério oficial dos monumentos da cidade feito no inicio do século V relaciona nada menos que 52 arcedas © 117 cescadas. A configuragio de Constantinopla— um cume central precipitan- do-se dos dois lados em abrupto declive para a Agua — exigia escadarias levando de um patamar a outro, Sua importincia para a vida da cidade era scentuada pelo fato de serem 0 panto de distribuigao da raglo de trigo: con- sistia em uma assisténcia didria de seis formas de po a que tinha dircito cada cidadio livre. A parce as principais avenidas, as pragas pablicas, as arca- das comerciais ¢ as monumnentais escadas, pouco havia em termos de plane- jamento. Via-se um acentuado contraste entre a ordem que caracterizava a face ptblica ¢ cerimonial da cidade c a falta de ordem evidente no deseavol- viento privado. [grejas, mansbes, cortigos € lojas eram construidos aleato- riamente num labirinto de vielas que desembocavam nas principais vias blicas. Leis proibiam a construgio de prédios privados em espagos pili cos, ou regulamentavam a altura permitida dos blocos dos cortigos, e a di tincia permisstvel entre eles de algum modo realgava o caético desenvolvi mento de uma grande cidade, que por volta do inicio do século V cresci organicamente; deixara de ser a criagio artificial de um grande imperador. Constantinopla era uma cidade de baitros. Estes surgiram muito répido desde a época de Teodésio I. Um surpreendente ntimero deles tomou 0 nome de homens que se haviam projetado no governo de Teodésio I, € nos de seu filho € seu neto. A origem desses bairras na certa deve ser encontrada nna propriedade pertencente as pessoas em questio, Talvez se tratasse de ‘uma preocupagio de tomara terra lucrativa pela construgio, mas é mais pro- viivel que esses bairros passassem a existir ao redor das residéncias das gran- 2 des familias respectivas. Podemos ter uma idéia de como eram por um inventdrio, feito em cerca do ano 400, das propriedades que pertenciam a tuma das herdciras de uma das mais influcntes familias da época. Chama vva-se Olimpia e era neta de um ministro de confianga do Imperadar Cons- tancio, Herdou propriedades perto de Constantinopla, além de outras dis- persas pela Tricia e pela Anatélia, que Ihe forneciam a maior parte de sua enda,¢ que ela administrava de sua residéncia préxima & Igreja dos Santos ‘Apéstolos em Constantinopla. Também era proprievdria de outro complexo de iméveis na capital, junto a Igreja de Sta. Sofia. Consistia nao apenas em uma residéncia com banhos privados e uma padaria, mas também nos pré- dios circunvizinhos, alugados como oficinas, Iojas ¢ cortigos. Grande parte Ga atividade da érea era voltada para 0 suprimento das necessidades de sua residéncia, Um detalhe revelador sugere que 0s habitantes do lugar viam Olimpia como uma protetora: cla controlava virias cotas da assisréncia de pio que, com o passar do tempo, fora fieando cada vez mais sob o controle Gos ricos e poderosos. Isso indica os lacos de clientelismo como um aspect dda criagio dos novos bairros. No caso em particular, ocomplexo foi usado por Olimpia para fundar um convento, 0 que explica como em alguns exemplos as fundagées mondsticas surgiram no centro de vérios bairros. Outro bom ‘exemplo 6 0 mosteiro de S. Jofo Studita, ainda de pé, em estado de ruinas, nio longe do Portio Dourado. Foi fundado em meados do século V por Stu- dita, homem importante o bastante para ter sido cbnsul. [A partir do reinado de'Teodésio, os mosteiros desempenharam conside- rivel papel na criagdo da estrutura da cidade. Monges ¢ mosteiros se torna- riam uma caracteristica da cidade crist’4 medieval, mas Constantinopla pa~ rece nesse aspecto ter-se antecipado aos fatos. Os primeiros monges de Constantinopla se haviam inspirado num ideal que os diferencia dos mon- ‘ges do deserto cgfpcio: ndo descjavam lovar vidas que os isotassem da vida {quotidianas a0 contrério, visavam a manter viva a ética eristd na sociedade secular, O meio mais précico que thes possibilitou fazer isso foram as obras de caridade, Esse ideal ajudou a moldar o carter do monasticismo de Cons- ‘antinopla. Embora com muita freqiléncia fundados pelos ricos ¢ paderosos, ‘0s mostcitos da capital cuidaram das necessidades dos pobres ¢ permanece- ram como agentes do ideal de caridade cristd. Sua obra ajudou a favorecer a estabilizagio da sociedade numa época de répida expansio, quando imigran- tes procedentes das provinciasaflufam cm massa a cidade, Bra “uma cidade na'Tricia que enriquece com o suor das provincias”, segundo um contempo- rineo de Antioquia. Por intermédio dos mostcitos, desviava-se uma parte da riqueza das grandes famtlias para fins de assisténeia social. Os mosteiros tiveram, desde o inicio, uma fungdo fundamental em Constantinopla, como ‘mediadores entre os ricos e os pobres. Os monges sempre foram uma pode~ rosa forga na capital, eapazes de opor-se a imperadores desafiar pacriarcas, Foram parte integrante da erescimenco de uma nova capital cristd, onde a autoridade imperial adquiriu um cardter mais rico ¢ complexo pela asso- ciagio com uma sociedade viva. A ccriagéo de uma nova capital inverteu as tendéncias em andamento desde 0 século III em virtude da negligéneia imperial de Roma, O progres- sivo abandono de Roma como o centro de operagdes imperial significara @ perda de definicéo da cultura oficial de fins do Impétio Romano e a conse- gliente dificuldade de entendé-la. Os efeitos so dbvios na arte imperial da Epoca, que tentou desvincular a autoridade imperial do espago e do tempo. Sem uma capital propria, @ auroridade imperial perdeu contato com a reali- dade. Bsse concato foi aos poucos restaurado a partirda virada do século IVa medida que # autoridude imperial passou mais uma ver-a enraizar-se numa capital nova, mas fervorosamente crist. Iss0 exprimiu em termos draméti- cos um importante problema: como o cristianismo ia alterar a qualidade da autoridade imperial? RELIGIAO E POLITICA, Os imperadores romanos haviam cada vez mais adotado a idéia helenistiea de que 0 imperador paticipava do divino. Era 0 ponto de intersegéo entre a divindade suprema ea sociedade romana. A conversfo a0 cristianismo exigiu algumas modificagdes. Constantino, 0 Grande, teve de definir com mais cla- reza sua posigio. Afirmava ser “igual aos Apéstolos” ¢ “amigo de Jesus Cris- to”. Queria injetar uma dimensio pessoal em seu relacionamento com Cristo, Alguns estudiosos detcctaram um clemento de auto-identificagio. Sem dtvida, houve um qué de escandaloso no plano de Constantino para scu mausoléu na Igreja dos Santos Apéstolos, onde ele seria enterrado, ro- deado por reliquias dos disefpulos de Jesus. Uma prevensiio ao status de se- midivino ajuda a explicara oposi¢do que Constantino teve de enfrentar den- tro da Igreja, liderada por Atanisio, Patriarca de Alexandria (328-73). Atand- sio era um paladino da autonomia da Igreja, € ressentia-se do que via como uma inrerferéneia em seus assuntos. Embora mandado para o exilio, conti- rnuou sua oposicda sob os sucessores de Constantino, com base em que eles haviam adotado o arianismo, uma forma herética de cristianismo com que Constantino andara brincando em seus iltimos anos. Teodésio | abandonou 4 posigdo religiosa de seus antecessores ¢ accitou a linha ortodoxa, ou cat6- lica, que fora defendida por Atandsio. Aprendeu & propria custa 0 que isso 2B significava quando the reeusaram a comunhio por agdes julgadas prejudi- ‘dais Igreja. No ato talver. mais alijador de todos, Ambrésio, Bispo de Milo, recusow-lhe a comunhio depois que a Imperador ganhou uma grande bata tha, que ibertou o Lmpério do Ocidente de um regime paganizador. O Bispo disse que Teodésio devia expiar 0 sangue humano que desramara, Foi uma demonstragio de que nem um imperador era imune a autoridade morale aos poderes de disciplina exercidos pela Igreja, 0 que deve ter apressado a morte de Teodésio alguns meses depois. ‘Arelagio entre autoridade imperial ¢ espiritual ia ser sempre intravivel [A-expetigncia de Teoddsio sugeriu que 0 cargo imperial se achava entio sujeito supervisio moral eespiritual da Igreja,e ndo mais podia arvorar-se a festar em contato direto com 0 divino. Por um momento, pareceu provével que 0 Imperador ia perder toda a iniciativa nas questbes eclesiésticas, Se isso nfo oorreu, foi em conseqiéncia da alianga que se estabeleceu entre 0 Imperador e seu patriarea em Constantinopla, Nao era exatamente tio sim- ples quanto o patriarea atuar como 0 agente do Imperador nas questdes ret giosas ou o Lmperadar agir como o protetor do patriarea. Sempre exisciu umn tlemento de ensaio e erro na relagdo entre o imperador € 0 patriarca, que no inicio do século V continuava tendo de ser trabalhado, O patsiarcado de Joao riséstomo (398-404) foi crucial nesse aspecto. Bstabeleceu um padriio de cooperagio, conflito ¢ reetiminagio. Criséstoma foi uma figura carismtiea, 0 maior pregidor de sua era. A in~ fluéncia que exercia na cidade confirmou-se quando, em 399, cle sublevou a plebe contra os merceniios godos aquartelados em Constantinople. A pre- senga deles era um insulto a ortodoxia. Era um dever do povo sublevar-se € rechagé-los. Foi a primeira demonstragio de uma caracteristica da historia de Constantinopla: a estreita relagio entre religiio politica. Nao foi ainica Forma pela qual Criséscome indicov 0 caminho para o progresso. As exigén~ cias de satus patriarcal de sua igreja haviam surgide do Cone'fio de 381, mas grande parte dos privilégios que recebeu ainda era honorfica. Foi cle quem tratou de transformé-los numa coisa mais concreta. Estendeu a jurisdigao de sua igreja Tricia © Anata. Fambém tentou intensificar sua forgafinan- ceira, procurando conquistar o controle das ticasinstituigGes de caridade da cidade, O que the rendeu a inimizade dos monges que proviam esses lugares de pessoal, Criado na aseétiea tradigio do monasticismo sitio, Cris6stomo achava as atividades dos monges de Constantinopla uma perversio do ideal monistico, Queria-os expulsos da cidade, O desfecho dessa luta mostrou {que os monges represencavam uma forga independence na vida da capital © ponto de partida foi uma disputa no patriarcado de Alexandria, sub- metida ao drbitro do Imperador Arcédio (395-408). O Imperador mandou chamat Criséstomo para uma decisio. Areédio parecia supor que a igreja da capital imperial se tornava um tribunal de apelagdo para os casos vindos de outras igrejas. A implicagio era a de que a Igreja de Constantinopla exigia ‘uma primazia de jurisdigio sobre a Igreja em geral. Criséstomo opds-se aos desejos imperiais ¢ com muita cortegio recusou a misszo, alegando que esta- ria excedendo seus paderes. Logo perdeu o apoio da corte imperial, que viv sua ago como uma traiglo de confianga. Gragas a0 apoio dos monges, prevaleceu a vontade imperial. Os monges foram entio fundamentais para destituir Criséstomo do cargo. Exilaram-no —um drama que foi ainda mais intensificado pela completa destruigio de Sta. Sofia por um incéndio. O curto patriarcado de apenas seis anos de Ci séstomo antecipou quase todos os aspectos das relagbes Igreja-estado em Bizancio. Um relacionamento dinmico, muitas vezes explosivo, que envol- via tanto 0 povo quanto os monges da capital. Contucio, as tempestuosas cenas que cerearam a deposigdo de Criséstomo revelaram os perigos de um confronto entre oimperadore o patriarca, e enfatizaram como era necesséria a cooperagio deles para um correto governo imperial, Iss passou a ser essencial para a ideologia do Império Romano eristio, que eontinuava em plena elaboragiv, Um importante passo foi tomado em 415, quando o impe- rador € 0 patriarca sc uniram para mais uma vez consagrar a recém-cons- truida Igreja de Sta Sofia. Havia, c continuov havendo, muitas contradigées na idéia de um Impé- rio eristio. Eram atenuadas pela mancira como 0 imperador mostrava uma {ace diferente segundo o cenétio. Na patriarcal Igreja de Sta. Sofia, o impe- adore 0 patriarea reconheciam suas obrigagdes mituas. O Indo secular da autoridade imperial era exibido no hipédromo, onde o imperador se unia a ‘seu povo em comemoracées de vit6ria. No palicio imperial, ele era a perso- nificagio da majestade terrena, 2 enearagéo da Ici, o herdciro do Imperador ‘Augusto, mas também o legatitio da conversio de Constantinopla ao cristia- rnismo. Era af que se via com mais obviedade o imperador como o vice-re- gente do Deus eristio na terra, O palicio imperial de Constantinopla rece- beu, portanto, um cunho eristdo especial. Sob o Imperador Teodésio II (408- 50), comecaria a se tornar uma tesouraria de relfquias. O espirito instigador cra a devota itma do Imperador, Pulquéria, Ela trouxe a Cruz de Constan- tino para dentro do paldeio como um palidio de vit6ria, e mandou que se depositassem as reliquias de Sto. Estévao numa capela que constrvira espe- cialmente para isso. Transforrar o paticio imperial num santudrio cristo foi um meio de adaptar a auroridade as suscetibilidades crists, A arte imperial extrafa grande parte de seu poder do ccrimonial, que oferecia o sentido e 0 contexto. Também podia plasmar a autoridade impe- 25 nIZANCIO. rial em um momento importante. Desse modo, era possivel usar a arte para disseminé-la em favor das finalidades do império. Os retratos imperiais foram colocados em locais pablicos por todo 0 império, ¢ era normal prestar as mesmas honras tanto a imagem quanto pessoa imperial, Usava-se a arte para concentrar ¢ transmitir 0 poder imperial. Era um meio de comunicar a ‘complexa ideologia imperial que enfatizava a aprovagio divina Os cidadaos de Constantinopla orgulhavam-se da magnificéncia do pa- perial, que era um sinal do favor divino. Isto se achava no amago da identificagio entre 0 império e a capital que era um aspecto tao importante da ideologia bizantina, Nutria o senso de importincia pessoal dos cidadios ¢ era causa de ressentimento em outras partes. Suscitava a questio do novo status da nova capital em relago nfo apenas ao império, mas também a Igreja em geral. Os antigos centros estabelecidos do cristianismo, como Antioquia, ‘Alexandria c Roma, viam a Igreja de Constantinopla porencialmente como ‘um instrumento de controle imperial da Igreja universal. Seu prestigio ficou 1no momento limitado pela falta de boas origens apostolicas ¢ por nfo eonse- guir estabelecer qualquer posigo doutrinal distinta, em contraste com Ale- xandria, Antioquia ¢ Roma, na chamada disputa cristolégica, Esta girava em tomo da questo de coma se relacionavam as naturezas divina e humana de Cristo. Alexandria favorecia uma solugdo monofisista, que admitia em Cris- to a fusdo das duas naturezas em uma s6, Roma e Antioquia queriam manter ‘uma distingio, para que a humanidade de Cristo nao devorasse sua divin- dade. A Igreja de Constantinopla viu-se colhida no meio. Em termos teolé- ‘gicos, cla valia muito pouco em comparagdo com Roma ¢ Alexandria, Em 451, 0 Papa Led I (440-61) usou todo o peso da influéncia de Roma para convencet a corte de Constantinopla a convocar outro Goncflio Geral da Igreja a fim de resolver o problema. O encontro rcalizou-se cm Caleedéni bem defronte de Constantinopla, do outro lado do Bésforo. Cristo, deci- diu-se entéo, existia “em duas navurczas, distintas mas insepardveis”: a de homem perfeito c a de Deus perfeito. Isso cortespondia aos ensinamentos do Papa Lefo I ¢ foi uma vitéria para Roma, Calceddnia resolveu muito pouco cm longo prazo. E facil remontar as divisdes posteriores do mundo medieval 3s origens dessas disputas do inicio do século V. O Ocidente, sob a lideranga de Roma, parecia estar assumindo uma determinada identidade religiosa, assim como as provincias orientais sob Alexandria, Até entio, Constantinopla nao tinha qualquer vor distintiva. Criava, em ver disso, uma fungao distintiva. Seu pape! era coneciliar; promo- ver a unidade eclesiéstiea como um fundamento essencial da auroridade imperial, Parecia de cerca forma correto que o pattiarca de Constantinopla assumisse o citulo de patriarca ecuménico. A CIDADE DE CONSTANTINO Em meados do século V, Constantinopla jé surgira como uma grande cidade, em termos de tamanho e influgncia, provavelmente 0 mais poderoso centro do mundo romano, Lembrando-se de que um século.¢ meio antes era tuma obscura cidade da Tidcia, sua emergéncia como a capital imperial foi ‘em todos os sentides perturbadora. Era uma criagio artificial, $6 na virada do século IV Constantinopla adquiriv existéncia prépria, baseada numa combinagio de crescimento orginico com um papel ideol6gico. Camegou a ctiar um dinamismo capaz de transformar a ordem romana, embora a natu- teza en extensio dessa transformagio con inuassem ainda longe de ficar cla- ras, O ideal era preservar a unidade do mundo romano em toro dessa nova capital, mas, diante das divisdes eclesiésticas ¢ da queda do Império do Ocidente para os birbaros, parecia que Constantinopla talvez ndo tivesse 0 poder ¢ recursos para concretizar isso. Apesar da obra de ‘Teodésio | ¢ seus sucessores, o legado de Constantino continuava vulnerivel. E possivel vis- tumbrar em meados do século Vas feigées de Bizincio, mas ainda thes falta clara definigao. CAPITULO DOI BizAncio io de uma capital imperial em Constantinopla, no século IVe no A ire ina ion rr de terra desde as costas do Mar Egeu até as margens do Mar Negro. Apesar da presenga da grande cidade “universitéria” de Atenas, a regio se atrasara até o ponto de estagnagio sob o Império Romano, como parte do cortedor que ligava as bandas oriental ¢ ocidental. As cidades provincianas prosperaram como dependentes da nova capital imperial. O PODER PASSA PARA O ORIENTE, A fundagio eo crescimento de Constantinopla alteraram inteitamente 0 ‘equilfbrio do Império Romano: seu centro de gravidade passou para o Orien- tc. Deixou-se 0 Ocidente aberto a conquista dos barbaros, que foi tanto ‘mais um insulto porque os conquistadores alemies adotaram a forma heré- tica ariana do cristianismo, Os imperadores em Constantinopla a prinetpio cumpriram suas responsabilidades de ir em ajuda do Ocidente. Isso culmi- ‘now na grande expedigo que o Imperador Leao I (457-74) langou em 468 contra o Norte da Africa, numa tentativa de arrancé-la dos véindalos. Ao mesmo tempo, despachou outro exército para. Irélia, com 0 objetivo de por uum candidato oriental no trono ocidental. Essa tentativa de recuperar 0 Império do Ocidente antecipou os planos de Justiniano, mas foi um desas- tue total. Os sucessores de Leao abandonaram o Ocidente a prépria sorte. O governo imperial em Constantinopla reduziu suas perdas ¢ reconheceu a autoridade dos Iideres barbaros que controlavam a Italia, Até os lagos ecle- sitstieos foram, para todos os efeitos, cortados. (O credo acertado em Calceddnia em 451 devia muito as formulagdes do Papa Leao I. Nao foi, contudo, aceitsvel para a maioria das provincias orien- tais, onde a opinigo favorecia uma interpretagio monofisista, enfatizando a divindade de Cristo, © governo imperial nfo demonstrou 4 menor vontade 28 BIZANcto de convocar outro Concitio Geral da Igreja para decidir a questao. Caleedd- nia ceve certas vantagens. Apresentou uma teologia conciliatéria e contir- mou as pretenses da Igreja de Constantinopla a stanus patriarcal. Bra, em codo 0 caso, responsabilidad do imperador por em pratica as decisbes alean- gadas num Concilio Geral. O resultado foi um edito imperial de 484, conhe- cido como Henotiton. Bste nao ab-rogou os cinones promulgados em Calee~ donia Admitia que Gristo era homem perfeito ¢ Deus perfeito, mas insistia tem que, num determinado nivel — muito além da compreensio humana —, 1s clementos divino ¢ humano em Cristo se fundiam numa s6 natureza. O pa- pado entendev isso como scndo dirigido contra 0 Papa Leao I, e seguiu-se um estado de cisma. ‘Quando o Imperador Anastacio (491-518) ascendew ao trono de Cons- tantinopla, constarau que governava uma Igreja e um Império limicados as provincias orientais. O Ocidente fora alijado. O que nio significava que exis- tisse um Império “Bizantino”. O império que Anasticio presidiu foi curiosa- mente insatisfatério. Como ele deixou para trés.0 maior tesouro jd registrado por um imperador romano, passou para a histéria como um grande gover- ante. Na verdade, seu reinado foi excessivamente tumultuado. A mais sé- ria oposigio veio de dentro de sua capital, ¢ pode ser vista como as continuas dores do parto de Bizéincio. O patriarea de Constantinopla op6s-se @ ascen= siio de Anastécio e insistiu em que, como preco de sua coroagio,fizesse uma profissio de fé confirmando que, em questies de fé ¢ conduta, 0 imperador se sujeiava a vigildncia ndo apenas da Igreja, mas especificamente do patriar- ca de Constantinopla. Isso causou uma nova reviravolta num relaciona- mento situado no coragio de Bizincio. Anastacia ficou numa dificil pos Era um monofisista convicto; o patriarca de Constantinopla, um seguidor de CaleedOnia. A populagdo da capital ficou dividida, com uma grande parte de lingua latina que tendia a favorecer Roma, Em 511, Anastécio depos 0 pa- ttiarca c substituiu-o por um clérigo mais flexivel, que fez a seguinte con- cessio as simpatias religiosas do imperador: permitiv 0 acréscimo do lema monofisista “que foi crucificado por nés" a0 canto processional conhecido como frisagion: “Santo Deus, santo € poderoso, santo ¢ imortal, tende pic- dade de nés”. [sso levou a distdrbios nas uas de Constantinopla. Anastécio ra velho entdo, com mais de oitenta anos. Apresentov-se perante a plebe no hipédromo ¢ ofereceu sua rentincia a0 trono, diante do descontenta- mento popular. O povo ficou encantado com essa exibigao de humildade & aclamou-o mais uma vez. Quando todos partiram, o imperador mandou os _guardas massacré-los. Embora terminasse da forma como terminow, 0 in dente serviu como prova do poder da opinio popular. 29 (© massacre nio acabou com os distirbios populares, que passaram en tdo a ser espontaneamente gerados por causa das atividades das facgdes do circo — 08 Azuis e os Verdes. Essas facgics, que se tornariam um aspecto caracteristico da vida pabliea bizantina até 1204, foram originalmente uma importagao de Roma, purte do mado como a nova Rama se equipou com as instituigdes da antiga. O hipédromo era o principal lugar de reunie das pes- soas da capital eas faogbes cram responsaveis pela organizacio das corridas e-de outras atividades que ali se realizavam. ‘Também se envolviam na acla- tmagio de um novo imperados, depois da transferéncia do cerimonial da cle- ‘vagio ao cargo imperial para ki em meados do século V. Isso dava is suas acdes um cariter politico que faltava antes, © os imperadores passaram a pprestar mais atengao as facgées do citco no transcorrer do séeulo V. Como um esto, Anasticio mandou decorar o eamarote imperial no hipédromo com retratos de famosos corredoces de bigas da época. Seu favorito era um bio chamado Pérfiro, para quem ergueu pelo menos duas estétuas. Esses monu- tmentos representavam em parte o reconhecimento imperial de suas proczas cesportivas, mas também um sinal de gratido pela maneira como 0 competi- dor ajudara, na lideranga dos Verdes, a defender o Imperador contra as recla- mages de um adversétio, 'A irrupgdo das facgbes na vida politica de Constantinopla acrescentou ‘um elemento em tudo anarquico. As facgdes no tinham nenhum programa religioso ou politico bem definido, além da protegio de seus privilégios, mas valia a pena cultivar o apoio delas, como provou Anastcio. A composigio social das facgbes era idéntica: os Iidercs ¢ 08 patronos vinham das classes altas da sociedade; 0s ativistas eram arrebanhados entre os jovens de todos, bs setores da sociedade, que seguiam os lideres da momento. Os membros dda facgZo cram dados a estilos particulares: usavam a barba ¢ 0 bigode bem longos, & maneira persa; copiavam os nomades selvagens das estepes, dei- xando os cabelos crescer ¢ escorrer pelas costas como uma jubs, cortando-os ‘ao mesmo tempo rentes na testa. Usavam capas ¢ calgas ao estilo birbaro, & ‘uma tdnica presa bem justa nos pulsos, com mangas bufantes cncapeladas cc ombreiras de largura exagerada. Adotavam de propésito um estilo de roupae penteado que os destacassem do resto da socicdade, Suas lealdades eram ‘exaltadas, passando por cima de qualquer outro lago social concebvel, mas s6 de vez. em quando se revelava a base dessas lealdades. No caso de Teodora, que se tornou a imperatriz. de Justiniano, foi uma manga experiéncia. Ela vinha de uma familia que trabalhava para os Verdes. Seu pai era barbeiro deles. Morreu quando Teodora ainda era erianga; a mae se casou de novo, mas 0 novo marido nao foi nameado barbeiro dos Verdes, rem sequer quando Teodora foi com as irmis a0 hipédromo como suplican- tes perante a facglo reunida. ‘Teodora se tornou uma adverséria vitalicia € vvenenosa dos Verdes. Vinculou-se aos Azuis, c assim obteve a apresentacio pela qual canto ansiava a um patrono daquela facgéo. Foi Justiniano, um sobrinho de Justino I (518-27), que conquistou a dignidade imperial com a morte de Anastécio. Justino era um homem de lingua latina vindo do coragio dos Balcas. Anda rapaz, fora a pé para Constantinopla ¢ se inscrevera na guarda do palé- ‘Ascendev a influente posigio de conde das sentinelas, que 0 tornow res- ponsével pela seguranga do palicio. Embora nao tivesse instrugao alguma, mal conseguindo assinar 0 nome, tomou providéneias para que o sobrinho obtivesse uma excelente educagio. Justiniano retribuiu ao tio senda mentor do golpe que 0 levou ao trano, Embora os detalhes sejam complicados, 0 drama foi encenado no hipédromo, Justiniano conseguiu suboar as facgses do circo para aclamar o tio como imperador, em vez de qualquer dos outros candidatos, num episédio que fundamentou o poder das facgbes do citco. ‘Também expds como fora insatisfatério o estilo de governo de Anasté- cio, “Autocracia temperada com assassinato” ¢ forma preferida para descre- ver a constituigio bizantina, embora muito longe da verdade. A sucessio em Bizancio era na maioria das vezes pacifica ¢, em termos gerais, dindstica, Anastécio talvez. ndo tenha deixado quaisquer herdeiros sangitineos, mas tinha sobrinhos, dos quais se esperava que no curso normal dos aconteci- ‘mentos saisse o sucessor, da mesma maneira como Justiniano sucederia a0 tio, A falha de Anastcio foi ndo fornecer uma diregio clara. A tolerincia © a conciliago so admiréveis do ponto de vista de hoje; nao cram encaradas assim na época de Anasticio. A polftica imperial de indiferenca a Caleeddnia resultou na falta de clareza nas questées centrais do dogma. Abandonat Roma ¢ 0 Ocidente aos birburos significou 0 esvaziamento de sentido de Romanitas — 0 que deveria ser um romano. Concessdes desse tipo feitas por Anasticio s6 enfatizaram como era fraco o controle imperial da capital centro nao se agientava. Mas, assim que Justiniano assumiu 0 poder, comegou a refrear as atividades das facgdes do circa, como um primeico _passo para restaurar a ordem nas ruas da capital O REINADO DE JUSTINIANO I Sob Justiniano, linhas claras substituiram a deriva caracteristica do reinado de Anasticio. Sua primeira ago importante foi liquidar o cisma que isolaraa Igreja de Constantinopla do papado. A restauracio da unidade eclesifstiea era uma condigéo essencial para a restauragio da unidade politica, Justinia- 31 BIZANCIO no talver tenha esperado que os governantes getmanicos do Ocidence pu- dessem ser induzidos a abandonar a forma de cristianismo ariano como um primeiro passo para sua ineorporagao no novo [mpério Romano. Fstabeleced lagos pessoais com as familias vandalas ¢ ostrogodlas governantes, 0 que eat ‘sou 0 seu fracasso. Provocou apenas uma violenta reacio, pois a elite germi- nica considerou ameacada a sua privilegiada posigao. Justiniano recorreu & forca. Em 333, mandou o general Belisério contra o reino vandalo de Car- tago. Os novos exércitos romanos tomaram tudo de roldao. Cartago foi cap- turada em 534 c 0 rei dos vindalos levado como prisioneiro para Constanti- nopla, onde em triunfo o fizeram desfilar pelo hipédromo, Belisirio depois fez a travessia para a Sicilia © avangou pelo Sul da Ilia em direcio a Roma. (0s ostrogodos ofereceram uma resisténcia mais forte que os vandalos, mas em $40 Belisacio entrou vitorioso na capital deles, Ravena. Esse nao foi o fim dahistéria, pois os ostrogodos langaram um contra-ataque, envolvendo a Lté- Tia em acirrada guerra que durou uns doze anos ¢ deixou a pentnsula devas- tada, Os exércitos de Justiniano combateram até a vit6ria final. Outro exér~ cito conseguiu capturar as costas do Sul da Espanha. Apesar de cnormes dificuldades, Justiniano conseguiu em grande parte por as provincias oc! dentais — pelo menos aquelas em torno do Medicerraneo — sob seu con- trole. Criara um novo Império Romano —em termos assim to literais, por- {que era governado a partir da nova Roma, 0 imperador no tinha intengio de restaurar um Império do Ocidente ‘com capital em Roma ou em Ravena. Talvez tenha apresentado sua politica em termos de uma restauragdo, ou renseatic, do Império Romano, mas isso combina com a regrinha de bolso que sugete que as medidas mais radicais fio tomadas por aqueles que alegam restaurar o pasado, O senso de romani- dade de Justiniano era produro de uma nova Roma, que talvez fosse em ter- ‘mos superficiais e esqueméticos modclada na antiga, mas de cariter inteira- ‘mente diferente. Formava-a uma idcologia de realeza eristé, ndo uma nostal- iia do acordo augustano. Os projetos de construgio de Justiniano deixam {sso claro. Visavam, em primeiro lugar, a transformar Constantinopla numa capital convenientemente eristi, condizente com a nova ardem. A cidade que ele herdou ainda ostentava a marca dos imperadores da dinastia tcodo- siane, Scus monumentos —colunas que exibiam seus feitos em relevo, arca- dds triunfais, foros —eram todos de inspiragdo romana. Até as igrejas corres- pondiam ao tipo da basflica romana, Quando Justiniano chegou ao poder, mal se avistava uma abébada. Mas por volta de sua morte, em 565, a linha do horizonte de Constantinopla era dominada por prédios abobadados, dos quais o mais magnifico cra a Igreja de Sta, Sofia. A oportunidade de apor seu selo em Constantinopla Ihe fora dada pela Sedigio de Nica de 532, que havia resultado na destruigéo do nécleo da cidade entre o Foro de Constantino e a Augustaion. A antiga Catedral de Sta. Sofia e coda a sua drea norte, incluindo a Igreja de Sta. Irene, foram des- trufdas pelo fogo. Essas revoltas foram desencadeadas pelas facgdes do circo, que se opuseram as medidas tomadas por Justiniano para diseiplind-tas. Os adversarios do Imperador na aristocracia senatorial usaram a insatisfagdo das facgGes como encobrimento para suas ambigdes politicas. Fizeram um dos sobrinhos de Anasticio ser proclamado imperador. Justiniano sentira-se inclinado a aplacar os membros das facg6es, mas enti, incitado por sua imperatriz, Teodora, partiu para a repressio brutal. Mandou seus guardas, sob o comando de Belisério, ao hipédromo, onde dizem que eles massacra- ram 30 mil pessoas. Mandou executar seus mais destacados adversirios poli- ticos © confiscou a propriedade de outros senadores. Em conseqiiéncia da Sedigdo de Nica, Justiniano teve nao apenas o controle total de sua capital, ‘mas também uma espléndida oportunidade de construir. Mandou reconstruir toda a érea em volta da Augustaion, que era 0 cen- tro cerimonial da cidade. Quase até a queda final da cidade, sua forma ¢ apa- réncia continuaram sendo as cunhadas por Justiniano. Sua lembranga ainda € preservada em forma da grande Igreja de Sta, Sofia. A obra comegou quase assim que terminou a Sedigao de Nica, ea construcio ficou pronta em ape nas cinco anos, perfodo surpreendentemente curto, em vista das dimensdes € da complexidade da igreja. Os contemporineos se impressionavam nio apenas com a escala da construgio c a suntuosidade de sua decoragio, mas também com o ineditismo de seu planejamento, obra de dois mateméticos, Antémio de Trales ¢ Tsidoro de Mileto. A igreja era uma basilica abobadada, mas também distribufda em volta do nicleo central, de forma tal a deixar 0 espectador com a impressio de um prédio nao alinhado em tomo de um eixo, mas unificado sob a gigantesca c(ipula. A descrigio do historiador Pro- c6pio, que jamais foi suplantada por opinio melhor, diz que o domo parecia “de algum modo pairar no ar, sem nenhuma base firme”. 0 corpo principal da nave embaixo da etipula proporcionava um conve~ niente paleo para o encontro do imperador com sua corte, ¢ do patriarca com seu clero, nas grandes festividades do calenditio erist4o, A mistura de litur- sia imperial e cristd sob o domo de Sta, Sofia tornava-se ainda mais impres yante com a luz que brincava acima dos participantes. Entrava pelo eit culo de janclas instalado na borda da abébada e pelas fileiras de outras nos clerestérios, ¢ projetava-se do mosaico dourado da cGpulae do revestimento de marmore das paredes. Mais uma vez, segundo Procépio, tinha-sc a im- pressio de “que nio era iluminada de fora pelo sol, mas de que a radiagao era criada de dentro dela mesma”. 33 Durante a celebragZo da missa, o patriarca © 0 imperador se encontra- ‘vam logo na saida do sancusrio ¢ trocavam 0 “Beijo da Paz”, Isso simbolizava a harmonia que Justiniano insistia em que devia existir entre 0 imperador ea Igreja, se 0 império quisesse cumprir sua funcio no divino desenrolar da histéria. Bra um conceito de relagbes Igreja-cstado que ele explicou no pre~ ficio de sua Novela VI, que assim comega: “Entre as grandes dédivas que Deus concedeu por bondade do Céu estio 0 clero ¢ a dignidade imperial, Desses, 0 primciro serve as coisas divinas; o Gltimo governa os assuntos humanos € deles cuida”, Insistia em que Igreja ¢ estado formassem uma tunidade harmoniosa, em virtude de uma divisio claramente delineada de trabalho, mas que tinha o irrevogive! efeito de fundir ambos. ‘A maior realizagio de Justiniano foi sua codificagéo da lei romana, Mais uma ver, elaborou-a com impressionante rapide, gragas 8 compettncia do conselho de juristas que reuniu, com Triboniano a frente. A primeira codifi- cagio ficou pronta em 529, ¢ uma segunda por volta de 534, Complemenca- das pelo Digest e pelas Institutas, as duas foram conclufdas em 533. O primei- ro era um pequeno livro de jurisprudéncia ¢ 0 segundo um manual de Direi- to, Embora aprescntada como um retomo as rafzes da lei romana cléssica, a obra de Justiniano remodelou a lei, para que fundamentasse uma monarquia crista. Ble proprio redigiu a maior parte da legislagio relacionada com a Igreja ¢ a rcligido, A lei romana perdeu quase toda a sua independéncia. Embora ele continuasse a aquiescer a idéia de que 0 imperador como indivi- duo estava sujcito a lei, insistia em que, devido a seu cargo, cle era.a encar- nagio da lei. A lei foi atrelada & ideologia absolutisca da monarquia crise’, © recebeu forma concreta na estétva eqiiestre que Justiniano mandou erguer de si mesmo diante da Lgreja de Sta. Sofia: na mao esquerda, segurava uma csfora com uma cruz sobreposta, simbolo de sua autoridade universal ¢ ori- gem divina. Durante o perfodo inaugural de seu reinado, com a ajuda da equipe de especialiseas esplendidamente ralentoses que reuniu & sua volta, Justiniano levou tudo de roldo. Seus exércitos entraram vitoriosos em Cartago, Roma ¢ Ravens; a reunificagio do império parccia iminente. Organizou conferén- cias teolégicas que pareciam oferecer solugdes para as divisbes doutrinais dentro da Igreja. Articulou uma ideologia de império, que abrangia a0 ‘mesmo tempo lei c teologia, € construiu um conveniente paleo para sua decretagio. Criou o ideal do Império Romano Cristdo, que continuaria sendo a base ¢ inspiragio de Bizancio. Talvez. malograsse por querer abarcar ‘omundo com as pernas. Na consagragio de Sta. Sofia, em dezembro de $37, “Salomao, eu vos superei”. acredita-se que tenha murmured BIZANcIO Se assim foi, suas palavras continham, pois, muita arrogancia. As cir- cunstancias voltaram-se contra ele. Em $41, 0s ostrogodos rebetaram-se na Italia. Os gencrais de Justiniano levaram uns doze anos para dominar a situa- gio. A Itilia sofreu rerrivel devastagdo ¢ Roma perdeu grands parte de sua anterior magnificéncia ao passar de um lado para o outro. A luta foi tio pro- longada porque Justiniano enfrentou uma renovagio da guerra a0 longo da frontcita oriental com a dinastia sassdnida do Ira, a0 mesmo tempo que a fron tcira do DanGbio ameacava ceder sob pressio das tribos estavas, Estas eram, um povo que fazia sua estréia no palco da hist6ria, quando comecaram a afluir de sua terra original nos pantanos do Pripiat e arredores. Mas 0 princi pal perigo era mais insidioso, Em S41, a peste bubdnica atingiv o Bgico, eno Ano seguinte alastrou-se por todas as provincias orientais, chegando a Cons- tantinopla, onde fez sentir um terrivel peso. Proc6pio sobreviveu a cla © reconheceu que no auge morriam 5 mil pessoas por dia. A peste paralisou 0 governo c a sociedade por pelo menos trés anos. O préprio Justiniano adoe- cou, mas recuperou-se € concebeu engenhosos expedientes para fazer face a0 desmantelamento produzido pela epidemia. Contudo, apés superar as dificuldades imediatas que se apresentaram, teve de enfrentar uma amarga tcagédia pessoal, Em junho de 548, sua consorte, a Imperatriz Teodota, mor- reu, Ble levou vifios anos para se recuperar da pera Os tiltimos anos de Justiniano foram implacéveis. A peste bubénica res- surgiu a intervalos regulares. Minou as fundagdes econémicas e demogfi- cas do império e solapou a viablidade da polis, que estivera no centro da vida provinciana, Tao importante quanto seus efeitos sociais € econdmicos foi o impacto psicolégico. Pelo detalhado relaro de Proc6pio sobre a peste cm Constantinopla, sabemos que os médicos se desesperaram com sua ciéncia. Nada podiam fazer para combater a dona. As pessoas se aglomeravam den- tro das igrejas como a melhor esperanga de prote¢ao. Apesar de fugir para reas mais seguras 2 aproximagao da peste, outto historiador da época per- deu quase toda a familia em surtos bubénicos; sua imprevisibilidade dei- xou-lhe apenas Deus a quem recorrer. Foi tomado por um sentimento de que Deus punis seu povo pelos pecados cometidos. Justiniano baixou legis- Iago contra o homossexualismo, 2 qual preserevia a pena de morte. Achow que seu império poderia softer 0 mesmo fado das cidades da planicie — Sodoma ¢ Gomorra —€ pelo mesmo motivo. Justiniano sempre fora intensamente religioso, Bebia pouca coisa além de gua; comia com parcimdnia — apenas legumes, picles e ervas, segundo tum relato —e se satisfazia com um minimo de sono, Deleitava-se na com- panhia de monges, ¢ a tcologia proporcionava-Ihe o assunto preferido de conversa, Uma vex eontrai uma infecgio no joctho, provocada por extc~ a5 nuantes devogdes durante a Quaresma, Em outta ocasito — ealver tenha sido quando adoeceu com a peste — os médicos desesperaram-se por Sut la, Mas os santos médicos, Cosme ¢ Damio, visitaram-no numa visio & ele se recuperou, Ele mandou reconstruiro sancusrio dos dois fora de Cons- tantinopla e fez. uma peregrinagao ao local. Em 563, fez outra peregrinagio ao santuétio do Arcanjo Miguel cm Germe, no interior da Anatélia, Tinha ‘oitenta anos na época. Um feito extraordinério para alguém que desde a ado- lescéncia quase nunca viajara além dos arredores da capital. A forga de cariter de Justiniano é evidente pela mancira como enfren- tou as crises do perfodo médio de scu reinado eas superou em grande parte. Um simbolo disso foi sua reagio ao colapso da cGpula de Sta. Sofia em 558: mandou reconstru‘-la, ¢ a igreja foi reconsagrada quatro anos depois. As rea- lizagées da primeira parte de seu reinado foram postas @ prova, mas mostra- ram-se basicamente acertadas. O esforgo para preservé-tas apenas expos com mais clareza seu verdadeiro sentido e cardter radical. A énfase foi dada 20 cristianismo. Justiniano dedicou uma imensa parce de seu tempo a prable- mas de teologia, na esperanga de levar paz 4 Igreja. Percorreu um longo caminho para abrandar 0s monofisistas, condenando os tedlogos ortodoxos que pareciam dar excessiva énfase 3 humanidade de Cristo. Isso nao era do agrado do papado. Quando, em 553, Justiniano convocou um Coneflio Geral em Constantinopla, coagiu o papa da época a aceitara formula de que Cristo poderia ser homem perfeito ¢ Deus perfeito, “distintos, mas insepardveis", porém, no nivel mais {ntimo do ser, era um s6, Sob a orientagio de Justi- niiano, Constantinopla desenvolveu sua propria teologia distintiva, que ao longo dos erés séculos seguintes seria mais crativa do que ade Alexandria ou ade Roma. Justiniano realizou quase tanto quanto pode um homem vivo, mas pré- ximo ao fim da vida parecia nada ter de novo a oferecer, Ficou isolado © impopular — destino dos governantes, por maiores que sejam, que viveram tempo demais —, e sua morte em 565 foi um alivio. Sucedeu-the o sobrinho Justino, que tentou se distanciar da impopularidade do tio, Contudo, sua tentativa de reverter a passiva politica externa dos dlrimos anos de Justi- niano foi mal avaliada, Levou ao rompimento das relagies com o Império Sasséinida, ao enfraquecimento da fronteira do Daniibio e, por fim, 3 invasio da Italia pelos lombardos, 0 que desfez. grande parte da obra de Justiniano. (Os malogros de Justino contribuitam para seu colapso mental e substituigio por Tibétio, membro de seu estado-maiot. Tibério reinou por um breve periodo (578-82) e foi sucedido pelo genro, Mauricio (582-602), por acaso uum dos poucos generais bem-sucedidos da época. Esses imperadores, cada uum a seu modo, lutaram para preservat 0 legado de Justiniano. Embora mais prolongado, foi um periodo semelhante aos anos intermediérios do reinado de Justiniano, quando a luta para superar todos os tipos de dificuldades era alentada pela necessidade de preservar, como uma obrigagio religiosa, 0 império cristo e sua capital, a nova Roma. Nisso, houve completa continui- dade com o reinado de Justiniano, Nenhum desses imperadores teve opor- cunidade de construir na escala de Justiniano na primeira parte de seu rei- nado, mas eles se mantiveram na mesma tradi¢ao de patrocinar relicérios de santos e enfatizar a proximidade do imperador com Cristo. Justino I] acres- centou uma nova sala do trono ao Chhrysotriklinos, 0 principal salao de recep- 0 do Grande Paticio, O trono ficava na abside, sob um mosaica de Cristo,¢ sicentuava o papel do imperador como representante de Cristo na terra, em urande cansoniincia com a concepgio do cargo imperial claborada por Justi- nino. Complementava-se pela forma como os simbolos do cargo imperial petdiam seu cunho romano, O Imperador Mauricio substituiu uma vitéria romana pela imagem da Mae de Deus no sinete imperial. Talvez também tenha sido responsével por instalar uma imagem de Cristo sobre 0 Portio Chalke, a principal entrada do palicio imperial {CONES Havia um claro entusiasmo na corte imperial por imagens cristds, ou icones, Justino I tinha um famoso icone de Cristo, que fora guardado na cidade ‘capadécia de Kamoulianai e levado para Constantinopla em 574, Segundo a renga popular, tratava-se de uma imagem milagrosa do tipo conhecido ‘como acheiropoitos (arqueapoetas, feitas nao por mos humanas, mas eriadas por revelagio divina). A mais famosa reliquia foi o Mandylion de Edessa, um pano com a impressio da face de Cristo. A lenda dizia que 0 soberano de Edessa pedira a Cristo seu retrato, Ble logo o obsequiou, deixande mizaculo- samente suas feig6es num guardanapo que usara para enxugar 0 rosto. A ima- gem de Kamoulianai seria no devido curso usada como um estandarte de batalha nas guerras contra os sassfinidas. A adogio de fcones como simbolos do estado em fins do século VI foi outro sinal da transformacéo do Império Romano num império cristo, mas também um sinal da conseqiente transformagio do cristianismo. A Igreja primitiva via com muita desconfianga as imagens religiosas. Os eristaos limi- tavam-se a um tepertério muito limitado, tomado de empréstimo aos judeus © a0s pagios. S6 apés a conversio de Constantino, a arte crista passou a ganhar merecida fama, mas continuow havendo intensa suspeita da arte ara uso pessoal, pois se aproximava demais da idolactia. A irma de Cons- nrzANcIO. tantino consultou Eusébio de Cesaréia sobre a aquisigao de uma imagem de isto para devogto particular. O clérigo repreendeu-2, porque agora que Cris- toreinava em gloria, sé deveria ser contemplado na mente. Meso. decora- io pblica das igrejas mereceu reprovagio de Epitinio de Salamina (m. em 403), um dos mais respeitados Padres da Igreja. Ele temia que o gosto popu Tar por imagens fosse um meio pelo qual pudessem sc infiltrar no cult eris- tio as priticas e a maneira de pensar pags. ‘Outros, contudo, comegavam a accitar que a decoragdo das igrejas cum- pria uma dtil finalidade como 0s “livros dos analfabetos”, O valor das ima- tiens também ficou vistvel com 0 crescimento de cultos a viios santos em Conseqiiéncia da conversiio de Constantino, As vezes fixayam-se nas relf- {quias do santo, mas também exigiam a visualizagio do sancoem plena flor da vida, Num sermao sobre S. Teodorico, 0 Mogo, Gregério de Nissa (m. c. de 395) imaginou a reagio daqueles que vislumbravam as relfquias do santo: *Sbragavam-nas como se fossem o proprio corpo vivo em plena flor; movi mentavam o8 olhos, a boca, 0s ouvidos, tolos os sentidos. Depois, com légri- mas de reveréncia e paixio, dirigiam ao mértir sua oragio de intercessio, ‘como se ele estivesse sio presente”. Gregério observou que em volea da scpultura havia imagens do santo, Podia-se dar is imagens maior validade fetescentando-se um pouco da pocira das reliquias na pincura, Assim como as curas eram muitas vezes realizadas bebendo-se uma gota de 4gua mistu- rada com poeira das reliquias, também lemos nos Milagres de Sio Cosme & Sio Damido sobre uma mulher que raspou um pouco da pintura de um retrato dos santos, misturou-a com dgua.e ficou curada de suaenfermidade. ‘Na prética, houve a prinefpio algumas hesitagdes sobre 0 papel das ima- gens no culto de um santo, como vemos da Vida de S40 Danicl, o Esclia Ele foi um homem santo sfrio que passou a desempenhar influente papel na vida religiosa e politica da Constantinopla de meados do século V. Rejeitou furioso a tentativa de um dos seus admiradores de erguer sua imagem numa capela privada e escrever uma histéria de sua vida enquanto vivo. Mas acei- tou satisfeito uma imagem de praca de si mesmo pesando mais de cinco qui- tos como oferenda de agradecimento de uma familia que curara. A diferenga parece estar em que na primeira ocasiao o santo achou que 0 admirador ten- tava assumir o controle da santidade dele, enquanto na segunda a imagem foi colocada numa igreja dedicada ao sev culto, Esses episodios revelam que em meados do século V a imagem tinha um papel — calves. ligeiramente ‘contraverso—a desempenhar na promogio do culto dos santos. “Todos 08 indicios sugerem que a decoracio figurativa das igrejas © 0 sur- sgimento de retrates individuais de Cristo, sua mae e seus santos foram ocor- réncias naturais e esponténeas, que se tormaram parte aceita da privica da pIZANcio devociio cristd a partir de fins do século TV. Mas mesmo no infcio do século Vi, continvava a haver dividas na hierarquia eclesidstica quanto a validade dessa pritica. Gerou inquiceacio a forma como as pessoas penduravam pin- turas e talhas nos sancudrios das igecjas, ¢ com isso “mais uma vex perturba- ‘vam a tradigio divina”. No entanto, o consenso era 0 de que serviam & Gtil finalidade de instruir os analfabetos. Os cultos, por outro lado, extraiam ais dos “textos sagrados”, vistos como tendo valor espiritual superior. Os indicios também sugerem que o longo reinado de Justiniano foi um ‘momento decisivo nas atitudes oficiais para com a arte religiosa, Nos primei- ros anos, continuou havendo desconfianca da arte figurativa; j4 quase no final de seu reinado, ela passava a infiltrar todos os aspectos da pritica da devogio cristi. A aprovagio ofieial agora se estendia aos feones: pinturas individuais de Cristo, sua mac ¢ scus santos. As vezes faziam parte da deco- ragio de uma igreja maior, mas também podiam sero foco de devogies priva- das, mesmo se expostas em lugar pablico, como ocorreu com certas imagens cespeciais mantidas em igrejas e mosteiros. Foi o icone, mais que todo impetuoso movimento da arte eristé, que suscitou a questio da legitimi- dade da arte na pritiea da devacio crista, porque os perigos de descambar na idolatria se evidenciavam mais com os feones. ‘Quase néo sobreviveram os primeitos (cones, com a excegto de alguns relacionados com 0 Sinai e Roma. Estes em geral usavam a técnica de cencéustica (pintura baseada no uso de pigmentos cera tratados a quente, ccaracterizada pelo efeito transhicido que produz), privilegiada na pintura cléssica que desapareceu a partir do século VIII, Portanto, podemos ter razodvel certeza de que os feones em que é empregada remontam aos séou- los VI c VIL. So com freqiéncia belissimos e continuam as mais elevadas tradigdes do retrato clissico, mas temos de recorter as fontes escritas para descobrir suas finalidades e sua aura. Dificilmente é uma coincidéncia ofato de que,a partir de fins do século VI. varias fontes comentavam as {cones como se fossem uma parte accita da teligiosidade e culto eristios, enquanto antes s6 se faziam referencias espo- ridicas, Nao € de admirar que a hagiografia de uma ou de outra forma for- rnega a maior parte da informag&o, em vista das estrcitas relagdes que exis- tiam entre os fcones € 0 culto dos santos. ‘A mais esclarecedora pega de hagiografia para nossos fins é a Vida de S. ‘Teodoro de Sicido. Ble nasceu na Galicia, no inicio do reinado de Justiniano, ‘e morreu em 613, Sua vida foi escrita logo depois por um de scus seguidores. Destinava-se a prescrvar sua meméria e promover scu culto. Nao cra uma histéria, mas, como ocorse com a hagiografia, contém muita coisa no que diz respeito a detalhes incidentais. Nao dé énfase alguma a imagens; d4 muito 39 ais énfase a0 ascetismo do santo, a seu papel como homem santo e cura- dor, as visdes, as procissoes ¢ peregrinagdes, a importancia da Bucaristia, Ha em todo o texto apenas seis episédios envolvendo imagens, mas sio instruti vos € revelam que 0s fcones se haviam tornado o acompanhamento natural de muitos aspectos do culto religioso cristo. Aos deze anos, Teodoro foi vitima da peste. A familia desesperou-se pela vida dele e arrastov-o para tuma igreja local, onde o deitaram entrada do santuério, Acima havia uma imagem de Cristo, da qual gotas de umidade cairam nele e realizaram uma cura milagrosa. Alguns anos depois, Teodoro tinha a maior dificuldade para decorar 0 Saltério. Nem sequer a tranqiillidade de uma eapela the trouxe auxilio, Ele se atirou ao chao diante de uma imagem de Cristo ¢ pediu-lhe ajuda, No mesmo instante, sentiv uma dogura na boca, que reconheccu como a graga de Deus, ¢ a engoliu como se participasse da Eucaristia. Nao teve mais o menor problema em aprender o Saltério. Associavam-se os fcones a outros fendmenos religiosos, como visdes. Assim, Teodoro jazia doente na cama, Na parede acima, havia um feone dos santos médicos Cosme e Damiio, Ele comecou a delirar ¢ viu 0s santos sai- rem andando de seus ‘cones. Examinaram-no da forma como faria um mé- dico, Ble implorou-thes que intercedessem em seu nome junto ao rei, que cea, claro, o proprio Cristo. A intervengio deles funcionou e Teodoro ficou curado. Na virada do século VI, as imagens também faviam parte da parafer- nla de peregrinagio a varios sancuérios. Teodoro partiu em peregrinacao cidade pisida de Soz6polis. Sua principal atragao era um fcone milagroso da Mic de Deus, que borrifava mira, Teodoro pds-se diante do icone e seus olhos ¢ rosto encheram-se de mirra. Os espectadores tomaram isso como um sinal de que ele cra um valioso servo de Deus. Essa cra uma forma pela qual um {cone confirmava a santidade. Outra ‘era mandar pintar um feone do santo, como fez em agradecimento alguém ‘curado por’Teodoro. Mais revelacor é um incidente que ocorreu quando’ Teo oro se achava hospedado num mosteiro em Constantinopla. Jé tinha uma reputagao que se estendia longe como milagreito. Os monges quiscram tuma lembranga da estada do grande homem com eles, por isso, contrataram um pintor, que fez.0 esbogo do santo pelo buraco da fechadura de sua cela. Quando Teodoro ia partir, 0 abade pediu-lhe que abengoasse o fcone que fora feo. O santo sortie disse: “E's um grande ladrio, pois que fazes,além de roubaralguma coisa?” Achou que o fcone roubara alguma coisa de sua vir tude, embora ficasse mais lisonjeado que ofendide. Deu sua béngao e foi embora. O sentido desse incidente torna-se ainda mais claro com um epis dio de outra Vida contemporanea, « de 8. Simefo Estilica, 0 Moco, que mor- Feu em 592, Uma de suas devotas pendurou um icone do santo em casa, BIZANCIO onde *faaia milagres, sendo ensombrado pelo espirito santo que morava no santo”. Outros episédios da Vida de S. Teodoro de Sicifo sio cotejados em outta hagiografia dessa época, os Milagres de S. Demésrio. O culto a Demétrio, santo padroeito de Tessalonica, coneentrava-se num cenotifio na cripta de sua igreja. Uma imagem do santo teve de servi como relfquia, pois 2s suas notoriamente jamais foram encontradas. Seus Milagres contém a histéria de que alguns homens viram o santo cavalgando em socorro de sua cidade, com a mesma aparéncia que exibia nos (cones, como forma de autentificagao. Em outra visio, descreveram-no como “usando uma toga ¢ exibindo uma fisio- nomia r6sea ¢ amével, distribuindo seus favores is pessoas como um cénsul a quem o Imperador delegara plenos poderes”, E exatamente assim que apa- rece num dos painéis sobreviventes que decoravam a nave de sua igreja. ‘Também hi icones do santo nos pilares da nave, quando nos aproximamos do sancuério. Moscram-no com seus devotos; um talvez seja 0 Arcebispo Jodo, que, na virada do século VI, foi responsével pela compilagio do primei: ro ciclo dos seus milagres. Os mosaicos sobreviventes da Igreja de S. Dem trio em Tessalonica sio provas do lugar que teve a imagem no desenvolvi mento do culto de um santo local. ‘A imagem, contudo, nio ers apenas essencial a0 culto dos santos; tam- bém parecia unificar todas as facetas da pritica religiosa crista em Bizancio, Podia ser usada para comunicar o sentido da fé em seus diferentes aspectos. (© papel essencial que passaram a assumir as imagens era enfatizado pela ma- neira como algumas adquiriam poderes miraculosos. Um resultado extraor- indrio, mas bastante l6gico, assim que se aceitou quea imagem oferecia um meio de comunicagdo com o mundo espititual. A comunicagéo € um pro- ccesso de mao dupla, portanto era razovel supor que em alguns casos as ima- zens talvez fosscm um vefculo para a agao da graca divina neste mundo. Isso era levado a sua conclusio légica com a suposigio de que alguma coisa do poder especial do santo fosse inerente & sua imagem. Seria dificil scparar uma visio como essa das suposicies pagis sobre 0 papel dos objetos de culto. Foi portanto normal ver a ascensao do culto das imagens na Bizancio do século VI como parte do ressurgimento de padrécs de pensamento mais antigos ¢ de origem muito popular. ‘Tem de haver alguma verdade nisso. Contudo, sabe-se ao certo que em meados do século Via promogio das imagens foi obra da elite, O historiador Agatias deixou um epigrama num icone do Arcanjo Miguel. Na certa foi uma oferenda de agra- Gecimento feita quando ele fazia as provas finais na década de 550. Parte de seu interesse estd na forma como justifica o lugar que assumiam os icones nas devogdes privadas. Agatias afirmava que a “arte consegue por meio das cores agir como uma balsa para prece do coragio”. Admitia a existéncia de uum elo no processo de intercessi0, por “dirigir a mente a um estado de ima- .ginagio mais elevado”. Em poucas frases elegantes, Agatias apresenta a cha- mada justificagdo “anagégica” para as imagens: a idéia de que a arte pode agir como um meio de acesso a coisas mais elevadas coroliio disso era que a reveréncia nio ia para a propria imagem, mas paraa realidade por tris da imagem. Agatias manifesta a empolgacio sentida por um jovem intelectual da época de Justiniano com a possibilidade de o feone abrit um caminho de comunicagio que outrora fora rescrva dos misti- 05 € dos ascetas. Agatias teve pouca dificuldade em misturar o entusiasmo pelas mais recentes formas da religiosidade erista com a exibigio de tradi- cionais talentos literirios. Desse modo, o reinado de Justiniano foi um ponto de equilibrio, A cultura clfssica continuou, mas a experimentagao que pros- segui em tantos campos logo iria revelar como se tornava irrelevante. Os temas da arte clssica ficaram reduzidos ao Aifsch e sew pensamento a um +16p05 ampliado. Em nenhum outro lugar isso foi mais claro que naarce imperial. A antiga imagfstica imperial continuou, mas pareceu cada vex mais obsoleta, pois nfo integrou a autoridade imperial numa prescricdo especificamente cist. Jus- tiniano reagiu claborande novos temas de arte imperial, Incorporou a devo- ‘¢i0 a0 culto dos santos que fora uma caracterfstica da familia imperial desde ‘oséculo V. O Imperador Ledo | homenageou a Mae de Deus, acrescentando uma capela-relicario a sua igreja de Blaquerne para abrigar seu véu. Acima da preciosa reliquia, pos uma imagem de Maria mostrando 0 imperador acom- panhado de sua familia, Isso numa época em que continuava havendo oposi- Gio a0 uso das imagens de alguns setores da hierarquia eclesidstica, Mas foi ‘menos imporcante que a necessidade sentida pelo imperador de associar-se @ uma nova forma de poder, neste caso 0 culto da Mae de Deus. Uma ima- gem foi o meio mais ébvio de cle proclamarsua fidelidade. Os primeiros pas- sos hesitantes para eriar uma imagistica imperial mais relevante foram assim tomades em meados do séeulo V. O exemplo de Ledo I sugere que pela associagio de si mesmo com sua familia ele agia mais numa condi¢ao pessoal do queapresentando toda.a face da autoridade imperial romana. Mas isso é exatamente 0 que mostram Just niano ¢ Teodora nos famosos painéis no santudrio da Igseja de San Vitale em Ravena. De um lado, vé-se « representagdo de Justiniano ¢ sua corte; no ‘outro, a de Teodora e a dela, Ambos sio mostrados em procissio, Justiniano estd rodeado de clérigos, um dos quais identificado como Maximiniano, Areebispo de Ravena, ¢, cobrindo a retaguarda, membros da escolta impe- rial. O Imperador aperta uma patena na mao.’ Teodora, acompanhada de suas 2 BIZANCIO damas de honra, segura um cilice. A saia de seu manto é bordada com figuras dos Reis Magos. Acha-se sob um dossel e direita um eriado afasta urna tina ¢ revela um patio com uma fonte. Essas cenas sfo mais bem interpreta- ‘das como uma versio idealizada da ceriménia da Grande Bncrada, quando um imperador e uma imperatriz entram na Igreja de Sta, Sofia com presen- tes, como os Reis Magos. O significado dos paingis era que Justiniano ¢’Teo- dora também participavam no plano mistico da liturgia da Igreja de San Vitale. A igreja foi planejada como uma declaracdo da ortodoxia dirigida con- tra a ocupagio ariana de Ravena pelos ostrogodos. A principal igreja ariana {hoje chamada San Apoliinare Nuovo) mostrava originalmente ao longo das paredes da nave procissées lideradas pelo rei ostrogodo Teodorica ¢ sta rai- rnha. Os paingis de Justiniano e Teodora foram desenhados para opor-se a isso, O trabalho na Igreja de San Vitale calvez tenha comegado na décuda de 520, quando Ravena ainda era a capital ostrogoda. Sé foi consagrada cm 547, Por volta dessa época, Ravena retornara ao dominio bizantino. Os paingis, portanto, adquiriram importéncia extra: proclamavam que se restaurara 0 governo ortodoxo. iE possivel rejeitar os painéis de Justiniano e Teodora como experimen- tagio, mas eles indicaram a forma como se dava hove sentido a imagem € 40 ‘cargo imperiais, associando-os inequivocamente com Cristo, que da abside preside em majescade a Igreja de San Vitale. A autoridade imperial cra um reflexo da divina, assim como a ordem terrena era um reflexo da celestial Em cermos paradoxais, tanto a arte quanto a literatura retratam 0 céu como uum reflexo do palicio imperial. Aiidéia de que este mundo é de algum modo um reflexo sombrio € dis- tante das perfeiges do mundo celestial é mais bem captada pelas obras de ar- te, que serviam como transmissoras das oragdes dos fi¢is ¢ para responder 0s sinais enviados de cima para baixo. Longe de ser uma vit6ria da supersti- ‘edo ou do revanchismo pagio, 0 triunfo do icone do século VI entremeou-se com a cristalizagio de uma civilizagio bizantina, Oferecia o melhor meio de cexpressar os fundamentos de uma nova ordem ¢ de uma nova visio. Fixa- va-se numa autoridade imperial de inspiracéo divina, numa capital imperial sob protegao divina ¢ numa Igreja em que e&u ¢ terra se miscuravam, Marca- va-o um profundo senso de ordem ¢ hierarquia, que foi mais bem transmi tido pelo ritual e pela arte. Iss0 foi a esséncia da realizagao de Justiniano. “Ba CAPITULO TRES A Divisao dos Caminhos rante algum tempo, Roma conseguira unir 0 mundo mediterrineo, mas, por volta do século III, a cidade nfo mais cumpria esse papel. Nos séculos Ve VI, Conscantinopla tomou seu lugar, embora seu dominio jamais houvesse sido tio assegurado quanto fora o de Roma. A aucoridade politica do imperador em Constantinopla mal influiu nos reinos bérbaros que surgiram no Ocidente no decorrer do século V. Em termos culturais, 0 Mediterrineo iria parecer mais diverso no século VI que na Era dos Antoni- nos, quando Roma se achava no auge do poder. Grande parte disso coube a0 cristianismo, que transformou a cultura clissica, dando-Ihe nova diregio © qualidade. O cristianismo nao apenas favoreceu a cultura grega A custa da Iatina, mas também criou as culturas sirfaea e copra, na Sitia e no Egito, res- pectivamente. Eficil di A historia do mundo mediterrineo é de unidade € diversidade. Du- cerniras fendas, que se alargariam nos séculos VII e VIII, criando as separadas civilizagdes caracteristicas do mundo medieval Nesse processo, Justiniano teve um papel a desempenhar, porque impas a unidade do Mediterranco pela ditima vez, nesse caso sob a égide do impera- dor de Constantinopla ¢ do eristignismo, Sua obra proporcionou uma uni- dade cultural da qual as diferentes civilizagoes medievais extrairam grande parte de seu capital cultural. Apesar da relutdncia, as elites de todas as regides em volta do Mediterraneo continuaram vendo Constantinopla como o centro de seu mundo, Embora o dominio cultural de Bizancio comegasse a declinar a partir de fins do século VI, continuou sendo um fator pelo século TX adentro, época em que o Ocidente earolingio ¢o califado abdssida tenta- ram mais tivalizar com Bizancio € superd-la do que imitécla O COLAPSO DA VIDA URBANA Bizancio conseguiu sobreviver aos reveses que ameacavam esmagé-la, Foi uma agio de retaguarda que garantiu a continuagéo do respeito de nagées 44 A DIVISKO DOS CAMINHOS poderosas circunvizinhas, mas pode-se remontar a origem dos prinefpios de seu declinio as conseqiiéncias do seinado de Justiniano. A partir daf, com breves excegies, Bizdncio viveu sob pressio. A morte de Justiniano em 565 coincidiu com 0 surgimento de uma nova forga ao longo da fronteira do Dandbio. Veio em forma dos dvaros, outro povo da Asia central, que conse- _guiram encher 0 vacuo deixado pelo colapso da confederacao dos hunas mais de um século antes, Puseram as tribos eslavas locais sob seu controle, a0 ‘mesmo tempo que desviavam as lombardos, até entio lea aliados de Bizan- cio, para oeste, na diregio da Itélia, Em 568, os lombardos ocuparam o Vale do P6, que passou a ser chamado de Lombardia, Depois avangaram para 0 sul, limitando a autoridade de Bizincio as freas ao redor de Ravena, Roma e Bari. Grande parte do territ6rio conquistado com tio grande esforgo pelos cexércitos foi perdida de um s6 golpe. Isso nio significou que 0 governo im- perial em Constancinopla tendia a abandonar as realizagdes de Justiniano. Muito pelo contritio: 0s cerritérios ocidentais eram organizados por gover- nadores militares chamados exarcas, que exerciam poderes de vice-reis a partir de suas capitais, Ravena e artago. Esses exarcados ajudam a explicar por que Bizdincio manteve por tanto tempo uma cabega-de-ponte no Oci- dente. ‘Ao mesmo tempo, eclodiu a guerra contra os sessinidas no Oriente. O con- fliro entre Constantinopla ¢ Cresifonte era inevitdvel, em vista das dificul- dades para dividir o Crescente Fértil entre as duas poténcias, Tratava-se de uma luta que vinha ocorrendo desde pelo menos 0 século V a.C. Em muitos aspectos, a luta entre os sassinidas e Bizncio foi um ensaio geral para as guerras entre o Isl e Bizincio. Os sucessores de Justiniano tiveram de reagir ndo apenas as pressbes externas, mas também a profundas divisées internas, que se revelaram de forma mais dbvia em forma de disputas religiosas. A paz que Justiniano imps Igreja foi ilus6ria, Os monofisistas da Siria e do Egito exploraram-na para eriar sua-propria organizagio eclesidstica. A reativagao da guerta com os sassinidas langa divida — de modo bastante desnecessiio — sobre suas lealdades, As autoridades em Constantinopla ficaram transtornadas com 0 caminho que a Igreja Monofisista tomava sob o patrocinio dos gassinidas, uma tribo érabe do lémen que sc estabeleceu 0 longo da fronteira do deserta da Siria no inicio do século VI. Os gassainidas haviam sido escolhidos por Justiniano gracas a uma concessio especial, ¢ 0 chofe tribal deles rece- beu o titulo de filarca. Bram responsaveis pela defesa da frontcira do deserto, mas suas simpatias monofisistas passaram a torné-los cada vex. mais suspeitos. Por fim, em 548, 0 Imperador Mauricio entrou em agéo contra eles ¢ dissolveu a filarquia gassinida, Iss0 no apenas alienou a Igreja Mono- “6 aYZANCIO fisista, mas também ameagou a estabilidade da fronteira oriental, com, como veremos, desascrosas conseqiiéneias. ‘Viam-se outros sinais de descontentamento, Houve uma série de mo- tins do exército e erescente agitagio urbana, que adotaram a forma de rivali- dades entre as faegdes ¢ nfo s¢ limicaram a capital, espalhando-se por todo.o império. As facgbes do citco comegaram a aparecer em toda cidade de bom tamanho. Nao pareciam ter quaisquer afiliagbes sociais ou religiosas claras, mas proporcionavam um escape para a violencia juvenil, que podia ao ‘mesmo tempo ser usada pelos lideres locais. Em Constantinopla, ¢ talvez Cem outras partes, passaram a constituir uma milicia, 0 que Ihes dava maior poder, Avoldtil mistura pegou fogo no infcio do século VIL. O Imperador Mau- ricio deu ordens para que seu exército passasse o inverno além do Dando, Aintengio era dominar as tribos eslavas da dca, Os exércitos amotinaram-se puseram-se em marcha para Constantinopla, sob a lideranga de um centu- rio chamado Focas. Na cidade, Mauricio enfrentou uma sublevagio das fae- es do cireo, que levaram Focas ao poder, Mauricio e membros de sua fami- lia foram executados. Foi osinal para. rivalidade entre as facgSes eclodir em guerras de bandos. As facc6es entalharam seus lemas nas paredes de prédios pablicas, igrejas ¢ teatros; exemplos dessa pichacio sobrevivem em cidades 40 longo de costa litoranea ocidental da Asia Menor, ¢ de Creta, da Siri, da Palestina e do Egito. Usaram-se virias formulas; “Vit6ria para Felicidade dos Verdes” e “Que o Senhor ajude Focas, nosso imperador coroado por Deus, ¢ 0s Azuis” sio tipicas. Num dos casos, a palavra “Azuis” foi raspada c substi- tuida por “Verdes”. Essa explosiio de violencia em ambito imperial nos poe diante dos ester- tores da morte da pols, que permanecera no centro da vida ¢ da administra- co provincianas até fins do século VI. Sua extingio foi o outro lado da tra formacio do mundo meditertineo, claramente assinalad no caso de Biz cio, Pode-se encarar o Império do Oriente como uma rede de cidades em toro de scu centro, Constantinopla. As cidades haviam mudado, no sentido de que também houvera certo grau de racionalizagao. As cidades que nao tinham nenhum papel a desempenhar na administragao sofreram, pois seu funcionamento dependia em grande parte da generosidade imperial. A orgi- nizagio da cidade passou a depender cada vex. mais do trabalho conjunto do bispo com um governador imperial e alguns notéveis locais. Na maioria dos casos, 0 tecido urbano das grandes cidades da antighidade foi mantido até o fim do século VI. A arqueologia oferece provas de moradias comuns sendo restauradas nesse exaro momento em Corinto ffeso. “e A DIVISKO DOS CAMINHOS. Isso foi uma fachada, como se tomou claro com o rapido colapso da vida urbana na primeira metade do século VII. A causa aparente foi muitas vezes a invasio estrangeira. No Peloponeso, diance dos ataques dos avaros ¢ dos cslavos, os habivantes de Esparta, sob o comando de seu bispo, retiraram-se cem fins do século VI para a seguranca de Monemvasia, um rochedo quase inexpugnvel com comunicagdes com a capital pelo mar, Na Asia Menor, as invasées persas resultaram na retirada para uma acrépole defensével. As cidades transformaram-se em dastras, ou fortalezas, que em geral abrigavam © bispo e sua catedral. Um bom exemplo € a antiga cidade de Didimo, conhecida pelos bizantinos como Hieron: transformou-se numa igreja forti- ficada, num pequeno castelo € numa aldeola. Isso assinalou uma decisiva mudanga no equiltbrio entre a cidade ¢ 0 campo em favor do diltimo. A kasera foi aos poucos substituindo a polis, cuja fraqueza era cxposta pela falta de seguranca. Essa transformacao foi mais ou menos compleada em meados do século VII, quando a vida urbana ou se transferira para 0 nGcleo do império 40 redor do Mar de Miirmara ou sobrevivera em alguns postos avangados, como Tessalonica, Efeso e Ravena, mas em escala muito reduzida. Em Efeso, 0s novos muras encerravam uma frea menor que a meride: das dimensdes da antiga cidade, ¢ a imensa catedal foi substicuida por uma nova igreja com apenas metade de seu tamanho, de acordo com as reduidas dimensdes da cidade. A rede de cidades em volta de Constantinopla foi sim- plificada em termos radicais. A maioria das Fungdes urbanas concentrava-se agora na capital, o que a tomou mais dominante que nunca ¢ assinalou 0 carter da cultura e da sociedade bizantinas. A cultura urbana de amplas bases de fins da antighidade deu lugar a uma estreita cultura mecropolitana. O que representou ao mesmo tempo a forga ea fraqueza de Bizincio, Decisivo para esses acontecimentos foi o reinado do Imperador Heréclio (610-41). HERACLIO E OS SASSANIDAS Hericlio vinha das frontciras orientais do Império Bizantino, mas seu pai fora nomeado exarca de Cartago. Foi dai que ele partiu para resgatar o império de Focas. Em 610, entrou vitorioso em Constantinopla, gragas no apoio do Pa- triarca Sérgio © da Facgio Verde, que rompera com Focas. As dificuldades cenfientadas por Heréctio foram enormes: os dvaros vinham causando violen- tos estragos em rodos os Balcas ¢ seus tributarios eslavos se assentavam em grande quantidade: os sassnidas ocuparam quase toda a Anatélia, O cronista “Teéfanes diz-nes que Heréctio sc viu scm saber o que fazer. O exércivo fora reduzido a dois destacamentos. Ele nao podia rechacar os sasséinidas, que se oO pizAncio tornavam cada vez. mais fortes. Em 613, Damasco caiu em mios sassanidas; no ano seguinte, foi a vez de Jerusalém, e, em 619, eles conquistaram o Egito. As provincias oriencais capitulavam com preocupante facilidade. Em 618, Heré- clio ameagou abandonar Constantinopla ¢ voltar para Cartago. Nessa época, contudo, a guerra contra os sassinidas era tratada como religiosa. A propaganda bizantina dizia que o sassdnida Rei dos Reis Cosroés TT recusou as propostas de paz de Hericlio com estas desdenhosas palavras: “Nao terei nenhuma misericérdia por v6s até renunciardes Aquele que foi crucificado e vencrardes 0 sol”. O Patriarca Sérgio ¢ 0 povo da cidade con- venceram Heréclio a ficar, numa demonstragao da solidariedade do patriarca € do povo, além de um apelo a lealdade comum a Mae de Deus, padroeira de Constantinopla, Lembraram Hericlio de sua responsabilidade pela promo- Go do culto dela, Suas duas mais preciosas relfquias — 0 véu e 0 cinturo— haviam sido trazidas da Terra Santa sob os auspicios imperiais ¢ confiadas & guarda segura das igrejas de Blaquerne ¢ de Chalkopracciai, respectiva- mente, Essas igrejas haviam sido restauradas por Justino II, que parece muito ter feito para promover o culto da Mie de Deus. O Imperador Mauti- cio mais tarde estabeleceu a Festividade do Dormitio da Virgem como uma das principais celebragdes do ano cristo. O esforge conjunto da parte dos imperadores em fins do século VI para promover 0 culto da Mie de Deus em Constantinopla reconhecia que o tradicional cerimonial imperial associado 40 hipédromo tinha de ser equilibrado com um ritual especificamente cris- tio. A participagio imperial nas procissbes aos grande santudtios da capical foi o mais claro reconhecimento dessa necessidade, Também ficou dbvio que a capital imperial exigia a mais poderosa intercessora que, por reconhe- cimento comum, era a Mae de Deus. Quando Constantinopla foi sitiada pelos avaros e pelos persas em 626,0 povo da cidade voltou-se para a Mie de Deus em busca de protegio. O Patriarca mandou pintar a imagem dela nos portées da cidade como um ato de desafio. O inimigo foi rechagado, Os coros centoavam 0 hino Afathisros em homenagem a Mae de Deus, com uma nova abertura composta especialmente pelo Patriarca Sérgio, dando-Ihe e erédito da vitéria, como deixam claro os primeiros versos: “Eu, vossa cidade, atribuo a v6s, Mie de Deus, poderosissima comandante, 0 prego da vitéria, € dou-vos gragas por nossa libertagao de uma tertivel calamidade”. Herdclio passou a exibir maior confianga. A fim de enfrentar a ameaga sassiinida, aventurou-se numa estratégia de alto risco. Deixou Constantino- pla aos cuidados do Patriarca e instalou seu quartel-general em Trebizonda, Estabeleceu aliangas com os arménios € os georgianos, ¢ um entendimento com 0s khazaes, « forga dominante nas terras da estepe. Com a ajuda deles, conseguiu avangar fundo no Iraque em diregio & capital sassanida Ctesi- A DIVISKO DOS CAMINHOS fonce. Em 627, conquistou uma grande vit6ria, que subjugou os sassinidas ¢ 0s obrigou a suplicar a paz. Hericlio apresentou-a como uma vit6ria pele cruz sobre 0s sassinidas adoradores do fogo. Afirmou-se que, quando con- quistaram Jerusalém em 614, eles haviam levado a reliquia da verdadeira cruz para Ctesifonte, A reliquia retornara entio, Hericlio devolveu-a for- malmente a seu lugar de diteito na Igreja do Santo Sepulero numa grande ceriménia em 631, a culminagéo de sua vitoriosa marcha através de todas as recém-recuperads provincias orientais. Ao mesmo tempo, em reconheci mento de que a origem de sua autoridade cra mais crista que romana, Heré- clio adatou dasieas como titulo oficial A pedra angular da rescauragio de Hericlio ap6s a vit6ria sobre os sassi- nidas foi sua politica religiosa. A religido sempre foi o meio mais eficaz. de ligar as provincias & capital. Contudo, durante os anos da ocupacio sassi- nida, a [greja Monofisista no Egito ¢ na Siria tomnara-se cada vez mais pode- rosa, Bra irrealista esperar que aceitassem a ortodoxia calcedOnia proce- dente de Constantinopla. Por isso, o Patriarca Sérgio criow uma formula con- ciliat6ria: Cristo poderia ser homem perfeito e Deus perfeito, mas possufa apenas uma energia individual. A principio, os monofisistas receberam-na ‘com satisfagio. Mais surpreendente foi o fato de o papa da época té-la julgado aceitavel. Dos patriarcados, 96 Jerusalém contestou. A oposigo tor- nou-se mais acirrada assim que.a férmula foi incluida num deercto imperial, 0 Bathesis (638). Pareceu entio que o impcrador estava usurpando a fungio de um Concitio Geral da Igrcja, 0 Gnico que tinha a autoridade para alterar dogmas. Em todo 0 caso, muita coisa mudara. No comego da primavera de 638, Jerusalém sucumbiraa um novo poder, 0 islamismo, Quando o Patriarca Softénio viu o lider mugulmano Omar entrando na cidade, dizem que exela- mou: “Na verdade, esta é a abominagio da desolagio estabelecida no lugar santo, de que falou o profeta Daniel”. Reflete a atordoante reagio ao surgi- mento do islamismo. Jé em 634, Heréclio abandonara a Siria, desesperado, transferindo & Santa Cruz de Jerusalém para Constantinopla OISLA ‘A ascensio do Isla & 0 fico mais surpreendente e importante da Tdade Média. A principio, s6 poderia ser explicado em termos apocalfpticos. Sua rapidez e completitude ainda atordoam o poder da crenga. Os érabes eram muito conhecidos dos romanos; ¢ suas qualidades marciais, admiradas. Du- rante séculos antes do Isla, vinham se mudando dos desertos do Hejaz para 08 confins do Crescente Fértil. O padrio normal era 0 governo em Constan- arzANcto tinopla empregar chefes cribais drabes para guardar a fronteira do deserto. Os gassinidas haviam feito isso de modo admirével até o rompimento das relagées com a administracZo imperial, préximo ao fim do séeulo VI. O que deixou as provincias orientais de Bizancio vulnerdveis a ataque, primeira dos sassinidas, e depois dos exércitos do Isla. Heréelio compreendeu a impor- tancia da restauragdo de suas defesas do deserto, mas 0 tempo ndo ficou do seu lado, Uma nova onda de érabes logo irramperia do deserto, mas dessa ‘vez unidos sob um grito de guerra: “S6 existe um Deus, Ald, e Maomé é seu profeta”, ‘A mensagem de Maomé proporcionou aos frabes um grau dé unidade que jamais haviam tid antes. Transformou-os no novo “povo eleito”, com a missio de decrubar a antiga ordem representada pelos impérios romano sassinida, Este dltimo viv-se ainda mais vulnerivel que o primeiro. Sua capital, Cresifonte, ficava muito proxima do deserto. Caiu em 637, em seguida & vitéria mugulmana em Kadisiya. Os sassfinidas foram desbarata- dos, Em 651, 0s mugulmanos perseguiram ¢ mataram 0 Gltimo rei dos reis sassdnida, Yazgird III. Com isso, se concluira de fato a conquista istAmica do planalto do Ird, Os bizantinos perderam a Siria, a Palestina ¢ o Egito com igual rapidez. Nao era muito surpreendente, considerando-se que no inicio do século a Siria ¢a Palestina haviam estado em miios persas durante quase vinte anos, ¢ o Bgito, durante quase dez. A restauragao da administragao bizantina ainda estava apenas num estgio preliminar quando os exércitos do Islé aacaram, A perda dessas provincias é muitas vezes atribufdaa des- lealdade das comunidades cristas, que, segundo consta, viram 0s arabes ‘como libertadores do jugo bizantino. Isso € bobagem. Essas comunidades simplesmence seguiam 0 que se tornara pritica tradicional nas guetras com os persis: era melhor render-se ¢ esperar o desfecho da guerra, Os bizanti- nos haviam sempre retornado vitoriosos, mas ndo dessa vez. Em ver. disso, viram-se rechagados Anatélia adentro pelas forgas do Isl, Durante um século, envolveram-se numa luta de vida e morte para manter a Anatélia contra os exéreitos muculmanos. Nesse perfodo, o islamismo conseguiu desenvolver uma esplendorosa civilizagio, que nao apenas tornou uma impossibilidade a recuperagio bizantina, mas também deixou Bizdncio muito diminuida em comparacio. Provavelmente quase nfo fez diferenca 0 fato de que a morte de Herd clio em 641 tenha sido seguida por uma disputada sucesso em Constanti- nopla. O impeto islimico foi poderoso demais. Apds dorninar os bastides do Norte da Siri, seus exércitos avangaram para a Anatélia ea Armenia. Os dra- bes ganharam 0 mar com 0 mesmo fmpeto que 0s fomanos em suas guerras com 0s cartagineses. Apoderaram-s¢ da ilha de Chipre ¢ em 655 derroraram A DIVISAO DOS CANINHOS a frota bizantina na Batalha dos Mastros, ao largo da costa sul da Anatélia. Era uma vit6ria que teria aberto o Mediterréneo oriental a0 islamismo, ndo houvesse sido logo seguida pelo assassinato do califa Uthman. A decorrente guerra civil deu uma trégua temportiia @ Bizancio. O Im- perador Constincio (641-68) conseguiu refortificar alguns dos pontos estra- ‘égicos na Anata, mas, assim que oislamismo se reunity sob o califa Mu'awiya (661-80), recomegaram os ataques mugulmanos. Constincio desesperou-se ¢ fez.0 que 0 avé Hericlio ameagara fazer: abandonou Constantinopla pelo Ocidente em 662. A explicagio na época foi que ele queria transferir sua capital para Roma. Mas, ap6s uma visita de estado ali, estabeleceu na Sicilia seu quartel-general. A administragio em Constantinopla recusou-se a pet- mitir que os filhos de Constancio fossem se juntar a ele na Sicflia, o que demonstrava a cfetiva divisio do Império. Trata-se de um epis6dio intti- zante, ainda mais importante pela maneira como Consténcio levou consigo ‘0 grosso do exéreito oriental. Nao parece haver conclufdo que Constantino pla era indefensavel, mas sua mudanca para 0 Ocidente lhe rendeu muitos inimigos. Foi assassinado no banho em 668. Goube a seu filho Constantino TV (668-85), em Constansinopla, enfren- carum esforgo conjunto do califa Mu’awiya para conquistar a cidade. A mari- nha mugulmana tomou as vias maritimas que ligavam os portos da Siria 20 Mar de Mirmara, onde em 670 conseguiu estabelecer uma base avancada em Kyzikos, Durante sete anos, Constantinople ficou sob bloqueio, mas 0 ‘atagque final em 678 malogrou, gragas cficicia do “Iiquido” ov “fogo greg”, que parece ter sido semelhante ao napalm, Por muito tempo, os materiais combustfveis feitos de petrdleo haviam sido usados no Oriente Proximo, ‘A novidade era 0 meio de propulsio. Usavam-se agora bombas para langar por um tubo uma mistura combustivel, que se incendiava sob press, O me- canismo parece semelhante ao de um siffo de soda ¢ foi invengio de um refugiado da Siria chamado Calinicos. Seus efeitos foram devastadores. Sal- ‘you Conséantinopla e deu a Bizfincio uma decisiva vantagem defensiva, Era ‘um dos segredos de estado do império. Os exércitos mugulmanos acha- vyam-se inteitsmente destrocados quando se retiraram de Constantinopla para a Anatolia, enquanto sua frota, colhida numa tempestade, foi a piqueso largo das traigoeiras costas do Sudoeste da Asia Menor. Foi uma derrota generalizada para o Isla, que restaurou o prestigio bizantino, Os governantes do Ocidente, do Khagan dos avaros para baixo, mandaram enviados a Cons- tantinopla em busca de paz. Pela primeira vez, a iniciativa passava mais uma vera Bizancio. O proprio califa Mu’awiya viu-se as voltas com uma rebelio, que ameagou sua capital, Damasco. Era obra de um misterioso grupo conhe~ cido como mardaitas, que se haviam estabelecido nas montanhas do Libano. al nizAncto UMA FRAGIL PAZ, Avitéria de 678 deu a Constantino IV a oporcunidade de reorganizaro impé- rio. Mais importante era a necessidade de restaurar a unidade eclesiistica, O afastamento da Igreja no Ocidente de Constantinopla, tanto quanto a de- cisio de Constancio II de mudar a capital para 0 Ocidente, enfatizou a frag- mentagio do Império diante do avango mugulmano. Embora a politica religiosa de Hetéclio a princfpio tivesse 0 apoio do papado, na época em que seu neto Constancio IT a reviveu em seu decteto conhecido como Zipos (648), Roma se havia tornado o principal centro de oposigao. O papado agora contestava.a férmula— monotelista, como passou a ser chamada — que admitia Cristo unido por uma Gnica vontade ¢ energia. Roma adotava o manto de Jerusalém, que fora a fonte original de critica, Iss0 ‘ocorreu em parte porque, em conseqiiéncia da queda de Jerusalém para os mugulmanos, muitos clérigos palestinos encontraram reffgio na Ieélia, atrai- dos em certa medida pelo Papa Teodoro I (642-49), que era de origem pales- tina, No centro da oposigao estava um monge palestino, Miiximo, o Confes- sor, um dos grandes te6logos bizantinos. Nascido em fins do século VI, Maximo iniciou sua formagio nos mosteiros da Palestina, mas a certa altura foi para Constantinople ingressou no servigo imperial. Nao era incomum a inclusio de monges no séquito imperial. Contudo, as atragies da vida ‘monéstica revelaram-se fortes demais para Méximo, e em 618 ele se retirou para um mosteiro préximo & capital. Eram os anos das invasdes sassdnidas, Em 626, Maximo fugiu da Asia Menor para a seguranga do Norte da Africa, Sua reputagio como tedlogo cresceu ¢ foi realgada por um debate pablico ocorrido em 645, em Cartago. Méximo convenceu exarca, que presidia 0 evento, que devia se opor & linha monotclista imposta por Constantinopla. “Também estava por tras do Coneilio de Latrao de 649, convocado pelo Papa Martinho I (649-53), ¢ redigiu as atas desse encontro, que condenou o Tjpos de Consténcio IL Constancio reagiu, ordenando que o exarca de Ravena prendesse Méxi- mo ¢ 0 Papa Martinho. O exarca se recusou € continuou seu desafio até a morte, em 652. Enviou-se um novo exarca, que de Faro cumpriv as ordens imperiais. Martinho foi mandado para Constantinopla, onde 0 condenaram por traigio ¢ o exilaram na Griméia, Maximo, que se recusou com obstinagio a reconhecer a autoridade imperial em questdes de dogma, foi tratado de modo semethante. Acabou morrendo em 662 no exilio, em algum lugar remoto do Caéucaso. O implacével tratamento dado a Martinho ¢ a Maximo subjugou Roma, mas gerou um duradouro ressentimento, A DIVISAO Dos CAMINHOS ‘Quando Constantino [V convocou urn Coneitio Geral da Igreja apés sus vitéria sobre o Isla cm 678, visava 4 recone dentro da Igreja, ¢ com 0 papado co patriarca de Jerusalém, que haviam sido os princi- pais centros de oposigdo a politica monotelista. O coneflio acabou por rcu- nit-se em 680. Condenou-se 0 monotelismo, de acordo com um tomo la ado pelo Papa Agatio, Restaurara-se 0 ideal da unidade eclesidstica. A fragi- lidade dessa unio logo ficou clara, durante o primeiro reinado do filho de Constantino TV, Justiniano II (685-95) Apesar de todas as conquistas do pai—a vit6ria sobre as forgas do Iskie 4 paz. proporcionada a Igreja —, Justiniano I] acha-se inscrito com muito ‘mais expresso no registro hist6rico, € ndo apenas por seu caracteristico far. Ele esperava capitalizar 0 sucesso do pai para concluir a restauragio do Império Bizantino como o principal poder no Oriente Préximo eno Mediter- rineo. O malogro desse grandioso projeto revelou como mudara radical- ‘mente o mapa herdado do mundo antigo. Mostrou que Constantinopla nao era mais capaz de desempenhar um papel unificador. O Isli desenvolvi numa civilizagdo madura, infinitas vezes mais impressionante que Bizanci ‘enquanto o papado conseguia abandonar a tutela de Constantinopla e evoluia como o efetivo centro da cristandade ocidental. Ao mesmo tempo, a obra de Maximo, o Confessor, imprimia na vida religiosa de Bizancio seus tragos dis- tintivos. Constantino TV legou ao filho uma situagio visivelmente favordvel Pouco antes da morte de Constantino, © novo califa, ‘Abd al-Malik (685- 705), aceitou pagar 0 tributo antes acertado por Mu’awiya, que os cronistas de Bizancio estabelecem na considerével soma de mil nomismata por dia, que corresponderiam a mais de 5 mil ibras esterlinas de ouro por ano. Esses ter- ‘mos foram depois renegociados com Justiniano HI. O tributo continuou © ‘mesmo, mas 0 governante bizantino concordou em evacuar os mardaftas da Sitia ¢ da Cilicia, onde haviam representado uma enorme ameaga a0 cali- fado. Isso fazia parte de uma tentativa de criar uma frontcira claramente definida entre Bizineio e o Is, para proteger a Asia Menor. Criou-se uma zona neutra, que se estendia da ilha de Chipre até a Arménia e a Ibéria. AS rendas desses territ6rios deveriam ser divididas igualmente entre Bi 0 califado. Justiniano Il foi criticado por sua ago, porque perdeu ai a0 longo da fronteira oriental. Em curto prazo, porém, isso Ihe deu isengao para se concentrar nos Balcds, onde Tessalonica ha muito fora desligada de Constantinople pelas circunvizinhas cribos eslavas. Em 688, liderou uma Punitiva expedigao que libertou Tessalonica ¢ a deixou sob controle imp Fial mais firme. Arrebanhou grandes ntimeros de eslavos e os pds na Anatéli como colonos militares, O sucesso dessa politica de cransferir populagées 53 przancio continua sendo motivo de debate. Alguns eslavos se revoltaram ¢ recorre- ram aos mugulmanos. Em represilia, Justiniano massacrou outros, mas a provavel conseqdéncia coral talvez. tenha sido o fortalecimento da popula- gio do Noroeste da Anatélia, onde ovorreu a maior parte do assentamento. O CONGILIO DE TRULLO Para comemorar as conquistas dos primeiros anos de seu reinado, Justiniano 1 convocou um Coneilio Geral da Tgreja em 691. Chamam-no em geral de Coneilio de Trullo, por causa da cémara de audiéncias no palicio imperial em que foi realizado, Justiniano considerou-o uma continuagao do quinto ¢ sexto Coneilios Gerais, realizados em Constantinopla respectivamente em 553 680-81, dato nome Quintissexto ques vezes Ihe é dado. Desse modo, Justiniano IT conseguiu apresentar 0 conetflio nao apenas como uma conti- ‘nuagéo da obra do pai, mas também da de seu ilustre homénimo. O objetivo era fornecer as medidas priticas ¢ legais necessérias para complementar a bra doutrinal do quinto e sexto Concilios Gerais. Como o Conelio de Trullo se encaixa de modo meio canhestro na gestio de Concilios Gerais da Igreja, sua importancia foi nio apenas muito neglicenciada como mal entendida, Embora apresentados como continuagio de uma obra anterior os decre- +08 do Conetio de Trullo representam uma realizacio de certa originalidade. A liquidacio, para todos 0s efeitos, da controvérsia monotelista em 680-81 acabou com 0 debate cristolégico em que se haviam empenhado 0s redlogos desde o infcio do século \. Tornara-se estéril. © pensamento religioso pas- sara para um plano diferente, Em conseqUéncia da elaboragtio de uma teolo- gia ascética em torno do tema “uma escada para o céu”, as monges ¢ 03 ace tas hd muito se inclufam entre os mais importantes clementos de uma socie~ dade erist, mas pouca tentativa se fez para explicar racionalmente por que devia ser assim, Talvez.o texto mais importante fosse um guia para a vida ascética intitulado A Fscada Celestial, esctito no inicio do século VII por S. Joao Climaco, um monge do Sinai, Exatamente na mesma época vieram os primeiros esforgos para defender 0 uso de feones, cuja veneragio se tornav essencial para o culto na Igreja bizantina, Em autras palavras, o foco do pen- samento bizantino transferia-se do problema da encarnagio para 0 problema do “sagrado”, que se associava a questo de intercessio ¢ da interagio de ‘humano e divino, Mais que outros, pessoas ou objetos ofercckam um acesso mais imediaeo ao divino? Esta questio se comara de interesse mais profundo com o surgimento de uma politica crista, ondc os elementos seculares herda- dos do passado romano e helénico haviam sido absorvidos ¢ transformados. wo A DIVISAO DOS CAMINHOS Méximo, 0 Confessor, € muitas vezes lembrado por sua oposigéo 20 monotelismo, mas isso foi apenas parte de sua obra teolbgica, Sua maior rea- lizagio foi abordar os novos temas que surgiam. E.0 fez de um ponto de vista monéstico. O principio fundamental de sua teologia era a “deificagao” ou perfectibilidade: isto €, a possibilidade de se tornar igual a Deus que se abria 1 humanidade pela Encarnagio, Era um programa que convinha a monges © ascecas, € transformava a ordem mondstica numa elite mondstica, ‘A maior divida intelectual de Maximo foi com Pseudo-Dionisio, o pen- sador que chegou mais proximo de eaptar as fundamentos do mundo do pensamento bizantino com sua insisténcia em hierarquia, harmonia € refle- xo. Essa misteriosa figura, que dizia ser aluno ateniense de S. Paulo, Diont- sio, o Aeropagita, escreveu na virada do século V, mas foi ignorado ou tratado ‘com desconfianga. Foi obra de Maximo, o Confessor, a introdugdo do pensa- mento dele no curso dominante da ortodoxia. Pseudo-Dionisio situava a mensagem crista numa estrutura césmica. Como a ordem eriada por essa mensagem era em certo aspecto um reflexo do divino, foi inestimivel a capacidade de Pseudo-Dionisio para explicar a ligagio. A explicagio dele girava em tomo de seu coneeito de uma hierarquia e6smica, unindo céu terra, que, afirmava, “faz de seus membros imagens de Deus em todos os aspectos, para serem espelhos imaculados, efletindo o britho da luz primor- dial e na verdade do préprio Deus”. Nesse mundo, 0 foca do sistema hierdr- quico era a liturgia, cuja importancia césmica Pseudo-Dionisio explicou em seu Da hierarquia ecesistica, énfase adotada por Maximo, 0 Confessor. Sua Mistagogia foi um consciente desmembramento da obra de Pscudo-Dionisio sobre a liturgia, Num determinado nivel, Méximo ficou muito feliz em apre- sentar a liturgia como uma reencenagio da vida e do sacrificio de Cristo; uma interpretagio que os crentes comuns compreenderiam. Mas, em outro nivel, a liturgia era a chave para a aproximagdo de Deus. Permitia que 05 per- ticipantes se esvaziassem de paixdes terrenas ¢ se entregassem a “abencoa- dda paixdo do Amor Sagrado”, que thes iluminaria a alma em sua busea por Deus. A compreensio mistica da Euearistia era uma guia para uma elite spiritual, em grande parte, talvez exclusivamente, vinda da ordem monds- tica, A teologia de Maximo teve profundas implicagdes para a ordenagio social. Sua énfase numa elite mondstica contestava 0 papel do imperador como frbitto da sociedad. Maximo recusou-se a aceitar que 0 imperador ti- vesse qualquer papel na fixagdo de dogma, Esse foi um dos motivos para se opor & férmula monotelista publicada nos editos imperiais. A negagio de ‘Maximo de qualquer papel ao impcrador nas questées de Fé talvez. explique 0 estranho fato de que 0 Concilio de 680-81 jamais 0 houvesse mencionado 55

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