Goodwin, J., Broca Descobre o Centro Da Fala

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algo que logo seria declarado improcedente por outros cientistas que usavam métodos que nada tinham a ver com a ablacao. O Método Clinico Os resultados dos estudos que envolvem ablagao nem sempre sao faceis de interpre- tar, basicamente porque a destruicao de uma parte do cérebro influi também sobre as conexdes com essa parte, promovendo efeitos nem sempre previsiveis ou consis- tentes. Além disso, sao estudos que muitas vezes nao podem ser feitos, como no caso dos seres humanos. Uma coisa é remover sistematicamente partes do cérebro de uma pessoa por razdes benéficas do ponto de vista médico (por exemplo, a ablacao do corpo caloso para tratamento da epilepsia) Porém, a destruigao do tecido cerebral hu- mano pela simples razao de observar 0 que ocorre é de dificil justificativa.* Uma alter- nativa ao estudo da funcao cerebral huma- na € 0 método clinico. Ele requer ou (a) 0 estudo das conseqiiéncias mentais e com- portamentais dos danos cerebrais, em eventos como derrames e outros males, ou (b) a identificagao de portadores de algum disturbio mental ou comportamental e 0 exame de seus cérebros apés a morte. A pessoa que geralmente obtém os créditos pelo desenvolvimento do metodo clinico € Paul Broca, a quem conheceremos dentro em breve, mas existem intmeros exemplos de casos clinicos famosos em meados do século XIX. Talvez o mais conhecido diga respeito a um respeitavel trabalhador ferro- vidrio norte-americano: Phineas Gage. 4, Essa questa ética dbvia escapou ao Dr. Roberts Bartholow, de Cincinnatti: em 1874, ele inseriu ele- trodos no cortex de uma imigrante trabalhadora do- méstica que 0 procurara para tratar de uma ferida no couro cabeludo, que havia deixado exposta par- tedo cerebro. A estimulacao moderada produziu al- gumas contracdes musculares, mas 0 curioso Bar- tholow inseriu mais fundo os eletrodos e aumentou a forca da corrente, provocando contracdes fortes que levaram a infeliz a morte (Hothersall, 1995). OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 95 O Notavel Phineas Gage Em 1848, quando explodia rochas para abrir caminho para uma nova linha ferro- vidria perto de Cavendish, Vermont, Gage sofreu um acidente que tinha tudo para ser fatal. Depois de colocar um pouco de pol- vora € um pavio num oriffcio escavado nu- ma rocha que deveria ser explodida, Gage usou um espeto de ferro para comprimi-la Tendo-se distraido, ele arranhou a superfi- cie da rocha o suficiente para criar uma centelha que queimou a polvora. Isso transformou 0 espeto num missil que voou pelos ares e caiu a 30 m de distancia. Mas infelizmente, para Gage, sua cabeca estava na trajetoria. O espeto entrou logo abaixo do olho e saiu na parte superior esquerda do cranio de Gage, arrancando uma boa parte do cortex esquerdo frontal (veja a Fi- gura 3.3). Milagrosamente, Gage esteve in- consciente por pouco tempo e, ao chegar & vila, pode caminhar (amparado) até 0 con- sultorio do médico. Ali ele se sentou e con- versou com amigos (!) até a chegada do médico, cerca de trinta minutos depois do acidente. Dois meses depois, ele havia se recuperado o suficiente para voltar a viver FIGURA 3.3 llustragéo representativa do cranio de Gage, mostrando a posigéo do espeto de ferro, ex- traida do relatério médico original de Harlow. 96 __ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA sozinho,’ mas jamais conseguiu voltar ao trabalho e sua personalidade mudou drasti- camente. Gage, que havia sido um lider co- munitario consciencioso e respeitado (era. inclusive, 0 capataz da equipe de constru- cao da linha de ferro), tornou-se um cons- trangimento para a comunidade, com sua obstina¢do e seu comportamento irrespon- savel e blasfemo (MacMillan, 1986). Um de seus médicos, John Harlow, era simpatizante da frenologia e viu no caso uma prova da crenca frenolégica na locali- zacao cerebral. Harlow fez anotacdes meti- culosas sobre 0 caso e publicou-as em 1848, e 1868, referindo-se a lesdo provocada no lobo frontal de Gage como um dano que destruiu 0 equilibrio |... entre suas faculda- des intelectuais e propensoes animais. Ele apresenta comportamento irregular e irreve- rente, proferindo as vezes as mais vulgares 5. O fato de Gage haver sobrevivido numa época anterior aos antibidticos era simplesmente incrivel, mas sua recuperacio provavelmente foi possivel porque a ferida criou uma area de drenagem natu- ral, que impediu o surgimento de abscessos que muito provavelmente teriam provocado sua morte blasfémias (algo que nao era de seu costu- me), manifestando pouco respeito pelos companheiros, recusando conselhos ou coi- bicdes quando contradizem seus desejos, as vezes obstinado e as vezes caprichoso e hesi- tante, criando muitos planos futuros que lo- go em seguida s4o abandonados. |...] Antes do ferimento, embora nao possuisse educa- a0 formal, ele tinha uma mente equilibrada era considerado pelos que o conheciam um comerciante arguto, muito enérgico e persis- tente quando se tratava de executar todos os planos que tracava. Nesse aspecto, sua men- te alterou-se radicalmente, a ponto mesmo de os amigos e conhecidos declararem que ele “ja nao era 0 mesmo Gage”. (Harlow, 1868, citado por MacMillan, 1986, p. 85) Assim, embora tenha sobrevivido ao aci- dente, Gage mudou radicalmente —a leséo cerebral promoveu mudancas irreversiveis em sua personalidade e em seu comporta- mento. Menos de doze anos depois, viria a falecer, aos 37 anos de idade, apés uma sé- rie de convulsdes que foram tornando-se gra- dualmente mais fortes. O espeto e 0 cranio de Gage podem ser vistos hoje no Harvard's Warren Anatomical Medical Museum. TRECHO DE FONTE ORIGINAL Broca Descobre o Centro da Fala No caso de Gage, Harlow podia relacionar o desfecho psicologico a lesao cerebral inicial. Mas ha outro tipo de caso clinico no qual o paciente ma- nifesta um problema mental ou comportamental especifico que ndo pode ser correlacionado a lesao cerebral até a realizacao de uma analise post- mortem. Essa foi a situacao enfrentada pelo neurologista francés Paul Bro- ca (1824-1880) em abril de 1861, ao tratar de um paciente muito inco- mum, por razdes que logo ficardo evidentes, que ficou conhecido como “Tan”. Esse paciente havia estado internado no hospital Bicétre, em Paris, durante 21 anos e, nos sete anos anteriores a 1861, estivera incapacitado e confinado ao leito, até que uma gangrena grave chamou a atencao de Broca para ele. A seguir, vocé vera um excerto da descrigao feita por Bro- ca desse caso admiravel (Broca, 1861/1965), que desde entao promoveria a associagao do nome do neurologista a um local especifico do cortex. Em 11 de abril de 1861, foi trazido & cirurgia da enfermaria geral do hospi- tal de Bicétre um homem chamado Leborgne, de 51 anos de idade, porta- dor de celulite gangrenosa difusa em todo o lado direito do corpo, do pé as nadegas. Quando perguntado no dia seguinte acerca da origem da doenca, OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 97 ele respondeu com 0 monossilabo tan, repetido duas vezes em sucessao e acompanhado de um gesto da mao esquerda. Tentei descobrir mais sobre 08 antecedentes desse homem, que est em Bicétre h4 21 anos. interroguei seus enfermeiros, seus companheiros de ala e os parentes que vem visité- lo, e eis aqui o resultado dessa investigagao. Desde a juventude ele sofria ataques de epilepsia, mas conseguiu tor- nar-se fabricante de formas de madeira para sapatos, oficio em que traba Ihou até os 30 anos. Foi entéo que perdeu a capacidade de falar e por isso foi admitido em Bicétre. Nao foi possivel descobrir se ele perdera a fala ré- pida ou lentamente, nem se algum outro sintoma acompanhou o surgimen- to desse disturbio. Quando chegou a Bicétre, jé havia dois ou trés meses que ele estava im- possibilitado de falar. Era entdo bastante saudvel e inteligente, diferindo de uma pessoa normal apenas na perda da linguagem articulada. Entrava e saia do hospital, onde ficou conhecido pelo nome de “Tan”. Entendia tudo © que Ihe diziam, Sua audigéo era muito boa, mas sempre que Ihe faziam uma pergunta, respondia: “Tan, tan”, acompanhando a frase com gestos va- riados, com os quais conseguia expressar quase todas as suas idéias. Quan- do nao entendiam esses gestos, ele ficava muito zangado e acrescentava ao vocabulario uma expressao grosseira [“Sacré nom de Dieu!”]. {...] Tan era considerado egoista, vingativo e desagradavel, e os colegas, que o detesta- vam, inclusive 0 acusavam de roubar. Esses defeitos podem dever-se em boa parte & lesao cerebral. Nao se mostravam pronunciados o bastante pa- ra serem considerados patoldgicos e, embora 0 paciente estivesse em Bicé- tre, ninguém jamais pensou em transferi-lo para a ala dos doentes mentais. Pelo contrario, era considerado inteiramente responsavel pelos seus atos. Dez anos depois de perder a fala, manifestou-se um novo sintoma. Os musculos do braco direito comegaram a enfraquecer-se, até que acabaram Por paralisar-se. Tan continuou a caminhar com dificuldade, mas a paralisia gradualmente estendeu-se 4 pera direita. Depois de arrastar a perna por algum tempo, ele teve de resignar-se a permanecer no leito. Cerca de qua tro anos transcorreram desde 0 inicio da paralisia do brago até o momento em que a da perna avangou o suficiente para impossibilitar que ele ficasse de pé. Ao ser trazido a enfermaria, ja havia quase sete anos que Tan estava confinado ao leito. (pp. 224-225) Nos sete anos que passou preso a cama, Tan ficou mais ou menos es- quecido, havendo sobre ele poucas informacoes além do fato de sua visio ter comecado a decair, Como ele nao sofria incontinéncia, seus lengois nao eram mudados regularmente e, por isso, a gangrena que o levou a Bro- ca s6 foi descoberta depois de haver avancado consideravelmente, infec- tando toda a perna. Broca relata que hesitou em examiné-lo, pois seu es- tado geral era “tao grave que teria sido cruel” (p. 225). Todavia, Broca foi adiante, realizando nao sé o exame fisico, que confirmou a paralisia da pera e do braco direito, mas também um exame das capacidades men- tais de Tan. A audicao de Tan permanecia excelente. Ele conseguia ouvir bem o ti- que-taque de um relégio, mas a visao era fraca. Quando queria saber as horas, tinha de pegar 0 relégio, com a mao esquerda e coloca-lo numa po- sigdo peculiar, a cerca de vinte centimetros do olho direito, que aparente- mente era melhor que o esquerdo. 98 __ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Oestado da inteligéncia de Tan nao pode ser determinado com exatidao. Certamente ele entendia tudo que Ihe era dito, mas, j4 que s6 podia expres- sar suas idéias e seus desejos com movimentos da mao esquerda, esse pa- ciente moribundo nao conseguia fazer-se entender to bem quanto enten- dia os outros. Suas respostas numéricas, feitas com o abrir ou fechar dos dedos, eram as melhores. Varias vezes perguntei-Ihe por quanto tempo es- tivera enfermo. Respondia as vezes cinco, as vezes seis anos. Ha quantos anos estava em Bicétre? Abriu a mao quatro vezes e acrescentou um dedo, o que representava 21 anos, a resposta correta. No dia seguinte, repeti a per gunta e recebi a mesma resposta, mas, quando voltei a ela uma terceira vez, Tan percebeu que eu queria fazer um exercicio com essas perguntas. Zan- gou-se e proferiu o xingamento, que dele s6 ouvi essa unica vez. Voltei a mostrar-Ihe o meu reldgio I...l e, apés observa-lo um instante, novamente conseguiu indicar a hora corretamente. Nao havia diivida, portanto, de que o homem era inteligente, podia pensar, havia até certo ponto mantido a lem- branca de antigos habitos. Ele conseguia, inclusive, entender idéias bastan- te complexas. Por exemplo, perguntei-Ihe em que ordem as suas paralisias haviam surgido. Primeiro, ele fez um gesto com o indicador, para mostrar que havia compreendido; em seguida, mostrou sucessivamente a lingua, 0 brago direito e a perna direita. Estava inteiramente certo, pois naturalmen- te atribuia a perda da fala & paralisia da lingua. (p. 226) Broca imaginou que Tan havia sofrido uma lesao cerebral que, nos pri- meiros dez anos, havia permanecido confinada a uma drea relativamente limitada do cérebro, mas que em seguida se disseminara. E nao precisou esperar muito para confirmar o diagnéstico: O paciente faleceu em 17 de abril [de 1861]. A autépsia foi realizada o mais rapido possivel, ou seja, 24 horas depois. Embora fizesse calor, o cadaver 1n&o mostrava indicios de putrefacao. O cérebro foi mostrado algumas ho- ras depois & Société d’Anthropologie e, em seguida, imediatamente coloca- do em alcool. Estava tao alterado que foi preciso muito cuidado para pre- servé-lo. $6 depois de dois meses e varias trocas de fluido ele comegou a endurecer. Hoje esté em perfeitas condigdes e ¢ guardado no Mu- sée Depuytren. (p. 227) O cérebro de Tan permanece no Musée Depuytren, e a le- sao da parte superior esquerda do cértex, surpreendentemen- te, ainda é claramente visivel (Figura 3.4). Conforme Broca resumiu 0 caso, ‘A inspecao anatomica mostra-nos que a leséo continuava aumen- tando quando o paciente morreu. Portanto, era uma les8o pro- gressiva, mas progredia lentamente, tendo levado 21 anos para destruir uma parte relativamente pequena do cérebro. Portanto, parece plausivel crer que no comego a degeneragao nao tenha ul- trapassado os limites do érgao onde comegou. Vimos que o foco original da doenca concentrava-se no lobo frontal, muito possivel- mente na terceira circunvolugao frontal. Assim, inclinamo-nos a dizer, do ponto de vista da anatomia patoldgica, que houve dois periodos: um em que apenas uma circunvolugao frontal — prova- FIGURA 3.4 O cérebro de Tan. velmente a terceira — foi atacada, e outro em que a doenca gra- OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 99 dualmente se disseminou para outras circunvolugées, para a insula ou pa rao nucleo extraventricular do corpo estriado. Quando examinamos agora a sucessao de sintomas, vemos também dois periodos: o primeiro — que durou dez anos, durante o qual a faculda- de da fala foi destruida, ao passo que todas as demais fungdes do cérebro permaneceram intactas — e 0 segundo, que durou onze anos, durante 0 qual a paralisia do movimento, a principio parcial e depois completa, envol veu sucessivamente o brago e a perna direitos. Tendo isso em mente, é impossivel nao ver que houve uma correspon: déncia entre os periodos anatémico e sintomatolégico. Todos sabem que as circunvolucdes cerebrais nao sao érgaos motores. De todos os érgaos ata- cados, 0 corpo estriado do hemisfério esquerdo é 0 tinico em que se pode- ria buscar a causa da paralisia das duas extremidades direitas. 0 segundo perfodo clinico. no qual houve alteracao da motilidade, corresponde ao se gundo periodo anatémico, quando o amolecimento ultrapassou 0 limite do lobo frontal e invadiu a insula e 0 corpo estriado. Segue-se que o primeiro periodo de dez anos, clinicamente caracteriza- do apenas pelo sintoma da afemia, deve corresponder ao periodo em que a lesao ainda estava limitada ao lobo frontal. (pp. 228-229) O termo usado por Broca para o disturbio de Tan logo foi substituido pela palavra “afasia” quando se observou que a origem grega de “afemia” refere-se a reputacao ou fama, ao passo que a traducdo da raiz de “afasia” € “sem fala” (Ryalls. 1984). O disturbio agora € referido como afasia mo- tora ou expressiva e caracteriza-se pela incapacidade de articular verbal- mente as idéias, mesmo que o aparelho vocal esteja intacto e a inteligen- cia geral seja normal. Nos anos seguintes, Broca conheceu diversos pacientes afasicos como Tan, encontrou o mesmo padrao geral de dano ao lobo frontal esquerdo e concluiu que a capacidade de producao da fa- Ja estava localizada nesse lobo. Em homenagem a ele, essa parte do cére- bro é denominada de area de Broca. A pesquisa de Broca colocava em ques- tao as conclusoes de Flourens acerca do grau de localizacéo a encontrar no cérebro. Novos indicios de localizagao da funcao da linguagem foram propiciados pelos estudos clinicos realizados pelo neurologista ale- mao Carl Wernicke (1848-1905). Ele estu- dou um grupo de dez pacientes que eram capazes de fala articulada, mas em geral ca- rente de sentido. Esses pacientes, alem dis- so, tinham dificuldade para compreender o que thes diziam. Wernicke chamou a esse disturbio afasia sensorial, para distincdo em relacdo 4 motora, e descobriu que ela implica a lesao de uma area do lobo tempo- ral esquerdo do cérebro, varios centimetros atras da area de Broca. Mapeando o Cérebro: A Estimulacao Elétrica Vimos que, no século XIX, as descobertas sobre a natureza da eletricidade estavam sendo aplicadas a pesquisa sobre a fisiologia senséria e que a idéia de que a atividade neurologica era eletroquimica estava evo- luindo. Nesse contexto, dois jovens fisidlo- gos alemaes, ambos professores da Univer- sidade de Berlim, quiseram investigar se a superficie do cortex reagiria a correntes elé- tricas nao muito fortes, Embora relaciona- do como co-autor no famoso estudo que fi- zeram, o principal investigador foi Edward Hitzig (1838-1907), que pesquisou o cére- bro ao longo de toda a sua vida, auxiliado

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