Goodwin, C. J., A Frenologia de Gall e Spurzheim

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A Frenologia de Gall e Spurzheim Os frenologistas propuseram a primeira grande teoria da localizagao, e sua resposta a pergunta que acabamos de fazer foi “gran- de”. Segundo os defensores da frenologia, as “faculdades” humanas poderiam ser identificadas e localizadas em areas do cére- bro precisamente definidas. A frenologia te- ve inicio como uma tentativa cientifica legi- tima de estudar a funcdo do cérebro, mas degenerou gradualmente no melhor exem- plo de pseudociéncia do século XIX. Quan- do retratada nos textos atuais de introducao a psicologia, geralmente € caricaturizada como um bizarro beco sem saida da ciéncia. no qual charlataes liam o carater com base nas protuberancias da cabeca das pessoas. Na verdade, a historia é bem mais compli- cada, e muito do que caracteriza a psicolo- gia norte-americana tem suas origens no movimento frenologico. As origens da frenologia costumam re- montar ao respeitado e excéntrico médico e estudioso da anatomia comparada Franz Josef Gall (1758-1828). Gall nasceu em Tiefenbronn, Alemanha, numa familia ca- tolica extremamente devota — seus pais presumiam que um dia ele se tornaria pa- dre. Mas, em vez disso, sua teoria sobre 0 cérebro foi considerada anti-religiosa, seus livros foram banidos pela Igreja, o melhor que se podia dizer sobre sua vida pessoal é que era moralmente anticonvencional e, quando morreu, em 1828, foi-Ihe negado um entero religioso (Young, 1972). Gall resolveu cedo seguir carreira na medicina € formou-se em Viena em 1785. Ali estabele- ceu um bem-sucedido consultério médico € tornou-se um perito anatomista. embora fosse criticado por cobrar entrada dos que desejavam observa-lo na sala de cirurgia e pela sua controversa teoria sobre a funcao do cérebro. Ao ser proibido de fazer suas palestras e demonstracoes cirurgicas publi- cas sob a acusacao de estar supostamente promovendo a imoralidade e o ateismo, ele pos 0 pé na estrada, dando palestras por to- da a Europa antes de se estabelecer, em OCONTEXTONEUROFISIOLOGICO 89 1807, em Paris, onde permaneceu até a morte. Gall garantiu seu lugar na historia da medicina pelo cuidado de seu trabalho ana- tomico. Ele identificou as fibras que conec- tavam os dois hemisférios e confirmou es- peculacées anteriores de que certas fibras cruzavam de um lado do cérebro a outro da medula espinhal, confirmando assim o con- ceito da funcao contralateral, nocao segun- do a qual cada lado do cérebro controla o lado oposto do corpo. Gall também compa- rou as estruturas cerebrais de diferentes es- pécies e defendeu o argumento convin- cente de que as habilidades mentais de diferentes espécies corrclacionavam se ao tamanho e complexidade do cerebro, espe- cialmente 0 cértex. Além disso, ele foi o pri- meiro a argumentar que as circunvolugoes cerebrais seguiam 0 mesmo padrao dentro de cada espécie; por conseguinte, a superfi- cie do cérebro nao era uma mixordia aleato- ria de vales e cristas, mas obedecia a uma es- trutura previsivel. Sua pesquisa anatomica era impecavel — 0 grande fisislogo francés Pierre Flourens, critico acérrimo da freno- logia (veja a seguir), apesar disso relatou que, ao presenciar Gall dissecar um cerebro, foi como se tivesse visto o orgao pela pri- meira vez. Ao contrario da maioria dos ana- tomistas (inclusive Flourens), que disseca- va cérebros cortando segmentos de cima para baixo, Gall trabalhava do tronco ence- falico para cima, removendo as estruturas uma por uma e, assim, tragando as interco- nexoes entre elas com uma preciso impos- sivel quando se comecava de cima (Temkin, 1947). Apesar desses feitos notaveis, Gall ficou famoso por dar origem a frenologia — ou, como ele a chamava, “cranioscopia”. A teo- ria € historicamente significativa por ter si- do a primeira teoria séria da localizagao da funcao cerebral, e Gall € considerado com justica um dos primeiros a afirmar que 0 cé- tebro era o 6rgao dos componentes tanto intelectuais quanto emocionais da mente Porém, infelizmente, ele identificou as fun- Ges erradas e as situou erradamente no cée- 90 _ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA rebro. Além disso, sua logica e seus méto- dos eram falhos. Gall comecou a desenvolver idéias sobre a localizagao muito cedo. Quando jovem, ele pensou ter detectado uma relacao entre a forma da cabeca e certas caracteristicas comportamentais das pessoas. Notou, por exemplo, que a memoria dos colegas de es- cola que tinham olhos salientes aparente- mente era melhor que a sua. Essa antiga ex- periéncia deu inicio a busca — que se estenderia por toda a sua vida — de provas consistentes em casos que servissem de apoio as suas teorias. Assim, alegou que o impulso de roubar provinha do desenvolvi- mento excessivo da faculdade da “Proprie- dade” (posteriormente chamada de “Aqui- sicao”), situada no lobo temporal do cortex, em posigdo Antero-superior em relagao a0 ouvido em cerca de 2,5 cm. Segundo Gall, {...] Quando essas partes do cérebro sao muito desenvolvidas, geram uma proeminéncia na cabeca e no cranio. [...] Encontro-a frequiente- mente em todos os ladrdes inveterados encar- cerados, em todos os idiotas que tém propen- sao irresistivel a roubar e em todos aqueles que embora intelectualmente bem-dotados, ex- traem do roubo um prazer inconcebivel, sendo mesmo incapazes de resistir a paixto que os impele a roubar. (Gall, 1825/1965, p. 218) ‘As conviccdes de Gall por fim evoluiram para a teoria que seus seguidores denomina- ram frenologia, termo derivado do grego “phrens” (mente) e “-logia” (ciéncia). A palavra foi cunhada por Johannn Spurzheim (1776-1832), que foi colaborador de Gall por algum tempo, mas depois veio a romper com este. Spurzheim é o maior responsavel pela difusao da teoria, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Conforme afir- mou em Oullines of Phrenology/Contornos da frenologia (1832/1978), os principios es- senciais da frenologia reduziam-se a cinco: a. O cérebro € 0 6rgao da mente. b. A mente compée-se de um grande nume- ro de habilidades (cerca de 40) ou atribu- tos chamados “faculdades”, algumas das quais sao intelectuais (cognitivas) e ou- tras afetivas (emocionais). c. Cada faculdade tem seu local proprio no cérebro, d. Certas pessoas sao mais dotadas que ou- tras quanto a certas faculdades; nesse ca- so, tém mais tecido cerebral no local cor- respondente que as menos dotadas. e. Como 0 formato do cranio corresponde mais ou menos ao do cérebro, a intensi- dade de varias faculdades pode ser inferi- da pela forma do cranio. O ultimo principio, que ficou conhecido como doutrina do cranio, representava pa- ra 0s frenologistas a chave da mensuracao. Se o tamanho e a forma dos varios locais do cérebro refletiam a forca das faculdades e se a forma do cérebro afetava a do cranio, a me- digao deste equivaleria a das faculdades. Em resumo, tudo 0 que havia de importante so- bre uma pessoa poderia ser conhecido pelo exame da forma de seu cranio. A Figura 3.2 mostra um cranio frenoldgico tipico, com identificagao das faculdades. Nas duas primeiras decadas do s¢culo XIX, a cranioscopia/frenologia foi uma tenta- tiva legitima de identificar as funcoes locali- zadas no cérebro. Quando Spurzheim publi- cou seu Outlines of Phrenology, no mesmo ano em que faleceu durante um tour de palestras que fazia pelos Estados Unidos (1832), mi- Ihares de cranios haviam sido examinados com vistas a correlacdo entre sua forma e 0.ca- rater de seus possuidores. O livro descrevia detalhadamente as faculdades, situando-as no cérebro e fornecendo provas que as sus- tentavam. A andlise mais atenta, porém, dei- xava claro que essas provas tinham graves pontos fracos. Como indicamos anteriormen- te, ao falarmos da faculdade da Propriedade (Aquisitividade), os frenélogos baseavam-se principalmente nas evidéncias sugeridas por casos. Ou seja, buscavam casos especificos que servissem de apoio a sua teoria. Essa abordagem nao é necessariamente falha, pois a coleta de dados em grande quantidade, pa- ra depois tragar generalizacées, € uma estra- FIGURA 3.2 Crani tégia indutiva comum. Contudo, o problema é que eles nao estavam interessados nos exemplos que contradissessem suas con- clusoes. Assim, sua teoria nao obedece a um importante critério para as teorias cientificas auténticas: o de que a teoria deve ser formu- lada com precisdo tal que permita a refutacao. So que os frendlogos nao fizeram isso. O la- drao que apresentasse uma area de Aquisitivi- dade pequena seria ignorado, descrito como ladrao potencial (“qualquer dia desses, ele vai comecar a roubar”) ou explicado com a refe- réncia a combinagées de outras faculdades que anulariam a falta de Aquisitividade. Por exemplo, esse ladrio poderia ser descrito co- mo detentor de areas grandes de Imitacao ou Auto-estima e, por isso, mantinha a auto-ima- gem copiando o irmao mais velho, que era ladrao, apesar de sua falta “natural” de Aquisitividade. Talvez 0 exemplo supremo da recusa frenologica em aceitar as refutagoes seja 0 comentario atribuido a um frendlogo, ao saber que 0 cranio de Descartes era bastan- te pequeno em certas areas relacionadas com OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 91 frenolégico com identificag8o das faculdades. algumas das faculdades intelectuais. Sua con- clusio foi que talvez Descartes, afinal, nao fosse tao inteligente (Fancher, 1990) fracasso da frenologia enquanto teoria aparentemente nao incomodou os frendlo- gos, mas outros cientistas logo o viram co- mo um problema fatal, e assim a frenologia foi relegada a posicao de pseudociéncia em meados da década de 1830. Infelizmente, ela possuia algo em comum com outras pseudo- ciéncias (como, por exemplo, a andlise da caligrafia para avaliacao da personalidade): © publico a adorava. A frenologia tornou-se extremamente popular ao longo do resto do século XIX. Gall e Spurzheim a dissemina- ram pela Europa e, junto com outros, Spurz- heim a exportou para os Estados Unidos E foi nos Estados Unidos que a frenolo- gia atingiu o apice da popularidade. A ver- s40 que Spurzheim ¢ outros levaram para esse pais encaixava-se a perfeicao na cultu- Ta norte-americana do “homem comum”, em especial da segunda metade do século XIX (Bakan, 1966). Embora Gall pensasse 92__ HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA que o tamanho das faculdades de uma pes- soa fosse indicacao de tracos inatos, Spurz- heim argumentava que as faculdades po- deriam ser afetadas pelo que o individuo adquire. Para ele, 0 cérebro era analogo a um mtsculo — suas faculdades poderiam ser exercitadas e fortalecidas pela educacao ¢ pela auto-ajuda, Assim, a frenologia for- neceu uma base aparentemente cientifica para a tradicional crenca dos norte-ameri- canos de que qualquer um, independente- mente de sua heranca, poderia “fazer-se sem ajuda de ninguém” e conseguir pratica- mente qualquer coisa na vida (por exemplo, sair de uma cabana de lenhador para a Ca- sa Branca). A esperanca da nocao de que o cérebro das criancas — e, portanto, seu fu- turo — poderia ser moldado pelo controle de sua educacao e do ambiente em que vi- viam teve profunda ressonancia entre os norte-americanos. Esse mesmo otimismo colocaria 0 behaviorismo em moda entre o publico na década de 1920. A frenologia coadunava-se ainda com essa idéia tao nor- te-americana de que cada pessoa € unica, possuindo seus préprios talentos especiais. Em termos frenologicos, isso traduzia-se em que cada um tinha sua configuracao e suas faculdades distintas. as quais poderiam ser medidas com as ferramentas frenologi- cas certas. Assim, a frenologia foi um dos primeiros exemplos mais importantes de CLOSE-UP: um grande tema de pesquisa que persiste ainda hoje: a busca de meios de idemtificar, medir e avaliar diferencas individuais (Ba- kan, 1966). E, se as diferencas individuais podiam ser identificadas e medidas, os pon- tos fracos e fortes das pessoas podiam ser conhecidos, permitindo a orientagao em termos de profissdo, selecao de parceiros etc. Por conseguinte, a promessa de aplica- oes praticas que melhorassem a vida coti- diana foi mais uma razao para 0 apelo que a frenologia exerceu nos Estados Unidos. A popularidade da frenologia entre as massas aumentou ainda mais com os enér- gicos esforcos de marketing da firma Fowler and Wells, de Nova York. Apesar de a comu- nidade cientifica e os circulos de melhor ni- vel de educacao terem rapidamente rejeita- do a frenologia, o ptblico parecia nao se cansar nunca. Afinal, ela parecia trazer res- postas simples para os problemas dificeis da vida. Fowler and Wells publicaram uma re- vista frenolégica e milhares de folhetos do género “melhore sua vida por meio da fre- nologia”, além de vender toda uma parafer- nalia (bustos com demarcacao clara das fa- culdades, mapas e instrumentos para medir as formas das cabecas). Como vocé pode ver no Close-Up, a frenologia continuou sendo objeto de interesse do publico norte- americano até mesmo passados os primei- ros anos do século XX. O Marketing da Frenologia Quando era aluno da Amherst College no inicio da década de 1830, Or- son Fowler defendia uns trocados examinando a cabeca dos colegas de sa- laa dois centavos cada analise (Joynt, 1973). Depois de formado, juntou- se aos irmaos Lorenzo e Charlotte para criar um museu de frenologia em Nova York, 0 qual dispunha de uma vasta colecao de cranios, moldes de cabecas e outros instrumentos frenologicos do género. A entrada era livre mas, assim que passavam pela porta, os visitantes eram tentados com uma avaliagao frenologica cujo preco variava entre 1 e 3 délares. Quando Char- lotte se casou com um estudante de medicina chamado Samuel Wells, a firma Fowles and Wells nasceu. Situada no numero 753 da Broadway, com filiais em Boston e na Filadelfia, a firma dominaria 0 mercado da frenolo- gia desde a fundacao, em 1844, até a virada do século. A Fowler and Wells, Inc. empreendeu a publicagao de uma lista inter- minavel de folhetos destinados a levar a frenologia a todos os lares dos Es- OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 93. tados Unidos. Além disso, lancou o popular Phrenological Journal, treinou e “habilitou” frendlogos e, numa época em que as palestras publicas eram um dos principais meios de comunicacdo, tinha uma lista de habeis palestrantes, prontos a disseminar a fé frenologica. Para ter uma idéia da va- riedade dos topicos abordados pela firma, observe abaixo os titulos de al- guns dos livros e folhetos comercializados pela Fowler and Wells, confor- me era anunciado no mimero de outubro de 1881 do Phrenological Journal: The Indications of Character, as Manifested in the General Shape of the Head and the Form of the Face [As indicagdes do caréter, segundo sua manifesta- ¢40 pela forma geral da cabega e da face]. llustrado. 15 centavos. Wedlock, or the Right Relations of the Sexes. A Scientific Treatise Disclo- sing the Laws of Conjugal Selection, Pre-natal Influences, and Showing Who Ought and Who Ought Not to Marry [Matrimonio ou a relacao certa entre os sexos. Tratado cientifico que divulga as leis da selegao conjugal, as influén- cias pré-natais e mostra quem deve e quem nao deve casar-se). $1,50; em encadernagao de luxo, $2.00. Amativivity, ot Evils and Remedies of Excessive and Perverted Sexua- lity; Including Warning and Advice to the Married and Single [Amatividade ou os males e da sexualidade excessiva e pervertida e suas solucdes (inclui adverténcias e conselhos para casados e solteiros)]. 25 centavos. Choice of Pursuits, or What to Do and Why. Describing Seventy-five Tra- des and Professions, and the Temperaments and Talents Required for Each [A escola de uma carreira ou 0 que fazer e por qué (inclui a descrigao de setenta e cinco oficios e profissées e os temperamentos e talentos exigidos em cada um)]. 508 pp. $1,75. Quanto ao préprio Journal of Phrenology, cada numero apresentava breves esbocos frenologicos de pessoas famosas, artigos sobre outros te- mas “quentes” na época (como 0 hipnotismo ¢ o espiritualismo) e maté- rias curtas sobre toda sorte de coisa (por exemplo, “Por que as abelhas tra- balham no escuro” e “A moralidade dos guarda-freios”). Embora hoje nao exista nada semelhante ao Journal, a sabedoria propagada em certo tipo de almanaque (como o Old Farmer’ Almanac/Almanaque do velho fazen- deiro) tem alguma semelhanca Os artigos tipicos do Journal of Phrenology apresentavam uma pessoa conhecida e mostravam como a avaliagdo frenologica poderia “explicar” © carater € 0 comportamento dessa pessoa. O numero de setembro de 1873, por exemplo, tinha uma matéria sobre um notério assassino triplo. Eis aqui como ele foi descrito pelo frendlogo que o entrevistou: Sua cabega tem uma circunferéncia de 56 cm, 34,5 cm da Individualidade até 0 cOndilo do occipital e 35,5 cm de Destrutividade a Destrutividade, por sobre 0 alto da cabega na Firmeza. A porgao animal do cérebro predomina sobre todas as demais. A destrutividade é o maior érgao de seu cérebro; a cabega incha-se muito acima das orelhas. O 6rgao da Conscienciosidade é, creio eu, o menor que ja vi... Todos os 6rgaos espirituais s80 pequenos e inativos, e a Cautela e a Secretividade estao abaixo da media. A firma teve vida longa, mas o interesse pela frenologia finalmente co- mecou a decair perto do fim do século XIX, a medida que a opiniao publi- ca se informou melhor acerca do funcionamento do cerebro ¢ que outras formas de medicao (por exemplo, o teste de QI) comecaram a ganhar po- pularidade. Em 1911, 0 Phrenological Journal publicou seu ultimo muimero. 94 HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Flourens e o Método da Ablacgao A frenologia pode ter parecido ciéncia boa para o populacho norte-americano, mas os verdadeiros cientistas nao se deixaram enga- nar. Conforme mencionamos anteriormen- te, a comunidade cientifica rejeitou a teoria de Gal/Spurzheim bem antes de o século XIX chegar a metade. O pior inimigo da fre- nologia foi o eminente fisidlogo e cirurgiao francés Pierre Flourens (1794-1867), que se dispds a mostrar que os frenologistas esta- vam errados. Assim, reduziu-a a dois pontos principais: a mente estava concentrada no cérebro e compunha-se de numerosas facul- dades, cada uma situada num local especifi- co do cerebro. No contundente Examination of Phrenology/Exame da frenologia, original- mente publicado em 1843, ele observa sar- casticamente que “quanto a essas duas pro- posigdes, certamente nao ha nada de novo na primeira e talvez nada de verdadeiro na segunda” (Flourens, 1846/1978, p. 18) Para desmentir as alegacoes dos frendlo- gos, Flourens abordou o problema da loca- lizagao de um ponto de vista experimental, usando o método da ablacao. Embora nao tenha sido o criador do procedimento, ele o elevou a tamanho grau de refinamento que hoje esta associado a seu nome. Em vez de esperar que os experimentos ocorressem de forma natural, por lesao cerebral acidental Flourens removeu partes especificas do cé- rebro (“ablac4o” € uma palavra derivada do latim que significa “tirar, arrebatar") e ob- servou os efeitos. Se o resultado de uma ablacao fosse a incapacidade de ver, presu- mivelmente a porcao removida teria algo que ver coma visao. Naturalmente, 0 méto- do so poderia ter animais como sujeitos de pesquisa, e Flourens fez experimentos com varias espécies, de caes a pombos. O ataque de Flourens consistiu em de- monstrar que as areas do cérebro que supos- tamente seriam responsaveis pela funcao X, na verdade serviam a funcao Y, e que 0 cortex cerebral funciona como um todo integrado, e nao como um grupo enorme de faculdades localizadas em determinados pontos. Um dos focos de sua pesquisa foi o cerebelo. Para os frendlogos, ele controlaria 0 comportamento sexual e seria o centro da faculdade da “ama- tividade”. Flourens teve pouco trabalho para desmentir isso, demonstrando que o cerebe- lo era 0 centro da coordenacao motora. As- sim, os pombos privados do érgao nao conse- guiam coordenar os movimentos das asas para voar e os caes nao conseguiam andar di- Teito: cambaleavam, cafam ou davam encon- trdes em objetos que normalmente evitariam. Alem disso, 0 grau de anormalidade dos mo- vimentos era diretamente proporcional a quantidade de cerebelo removida Depois da remocao de quantidades va- ridveis do cortex cerebral, Flourens encon- trou também uma relacao semelhante entre a quantidade de cortex extraida e a serieda- de da sequela. Porém, nao encontrou ne- nhuma indicacao de que diferentes funcdes estivessem ligadas a areas especificas do cortex e, por isso, concluiu que ele funcio- nava como um todo, servindo as funcdes gerais da percepcao, inteligéncia e vontade. Assim, os pombos que haviam ficado com pouco ou quase nada do cortex aparente- mente percebiam o mundo a sua volta, mas nao davam nenhum sinal de poder apren- der com essa experiéncia, simplesmente ve- getando. A diferenga entre 0 pombo que nao tinha cerebelu € 0 que nao tinha cértex era que © primeiro tentava voar, mas néo podia, ao passo que voar jamais estava en- tre as tentativas do segundo Os principios de que o cortex funciona como um todo e de que a extensao da inca- pacidade € proporcional a da ablacao foram verificados e ampliados pelas descobertas do psicologo e fisiologista americano Karl Lashley, que 0s denominou de principios de equipotencialidade e acao em massa (0 tra- balho de Lashley sera abordado rapidamen- te no final deste capitulo). Porém se, por um lado, eles deram a Flourens armas para atacar a frenologia de uma maneira que im- pediria recuperacao (ao menos, na visao dos cientistas), por outro, ele exagerou, pois argumentou contra a possibilidade de localizacao, em qualquer grau, no cérebro, algo que logo seria declarado improcedente Por outros cientistas que usavam métodos que nada tinham a ver com a ablacao. O Método Clinico Os resultados dos estudos que envolvem ablacdo nem sempre sao faceis de interpre- tar, basicamente porque a destruicao de uma parte do cérebro influi também sobre as conexdes com essa parte, promovendo efeitos nem sempre previsiveis ou consis- tentes. Além disso, sdo estudos que muitas vezes nao podem ser feitos, como no caso dos seres humanos. Uma coisa € remover sistematicamente partes do cérebro de uma pessoa por razdes benéficas do ponto de vista médico (por exemplo, a ablacao do corpo caloso para tratamento da epilepsia) Porem, a destruicao do tecido cerebral hu- mano pela simples razao de observar 0 que ocorre € de dificil justificativa.* Uma alter- nativa ao estudo da fungao cerebral huma- na € 0 método clinico. Ele requer ou (a) 0 estudo das conseqiiéncias mentais e com- portamentais dos danos cerebrais, em eventos como derrames e outros males, ou (b) a identificacao de portadores de algum disturbio mental ou comportamental e 0 exame de seus cérebros apés a morte. A pessoa que geralmente obtém os créditos pelo desenvolvimento do método clinico € Paul Broca, a quem conheceremos dentro em breve, mas existem inumeros exemplos de casos clinicos famosos em meados do século XIX. Talvez o mais conhecido diga respeito a um respeitavel trabalhador ferro- vidrio norte-americano: Phineas Gage. 4. Essa questao ética dbvia escapou ao Dr. Roberts Bartholow, de Cincinatti: em 1874, ele inseriu ele- ‘todos no cortex de uma imigrante trabalhadora do- méstica que 0 procurara para tratar de uma ferida To couro cabeludo, que havia deixado exposta par- te do cerebro. A estimulacdo moderada produziu al- gumas contracdes musculares, mas 0 curioso Bar- tholow inseriu mais fundo os eletrodos e aumentou a fora da corrente, provocando contracdes fortes que levaram a infeliz a morte (Hothersall, 1995). OCONTEXTO NEUROFISIOLOGICO 95 O Notavel Phineas Gage Em 1848, quando explodia rochas para abrir caminho para uma nova linha ferro- vidria perto de Cavendish, Vermont, Gage sofreu um acidente que tinha tudo para ser fatal. Depois de colocar um pouco de pol- vora € um pavio num oriffcio escavado nu- ma rocha que deveria ser explodida, Gage usou um espeto de ferro para comprimi-la. Tendo-se distraido, ele arranhou a superfi- cie da rocha o suficiente para criar uma centelha que queimou a pdlvora. Isso transformou o espeto num missil que voou pelos ares e caiu a 30 m de distancia. Mas infelizmente, para Gage, sua cabeca estava na trajet6ria. O espeto entrou logo abaixo do olho e saiu na parte superior esquerda do cranio de Gage, arrancando uma boa parte do cortex esquerdo frontal (veja a Fi- gura 3.3), Milagrosamente, Gage esteve in- consciente por pouco tempo e, ao chegar a vila, pode caminhar (amparado) até 0 con- sultério do médico. Ali ele se sentou e con- versou com amigos (!) até a chegada do médico, cerca de trinta minutos depois do acidente. Dois meses depois, ele havia se recuperado o suficiente para voltar a viver FIGURA 3.3 llustracdo representativa do crénio de Gage, mostrando a posicao do espeto de ferro, ex- traida do relatério médico original de Harlow.

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