Porque Michel Houellebecq Esta Errado Ac

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Porquê Michel Houellebecq está errado acerca do racismo em Lovecraft

Escrito por: S.T. Joshi


Traduzido por: Gustavo Castanhas

Introduction

The idea of translating this essay into Portuguese came after an extensive conversation
with S.T. Joshi in 2020, when I was still a young beginner in literary criticism and was about
to start graduate school in Literature at Unesp de Assis. However, the world was suddenly hit
by a virus called COVID-19 and I was forced to stay at home until the moment I write this
introduction in 2022. At this moment, with the cancellation of classes and plenty of free time,
I decided it would be interesting to delve deeper into subjects I would like to develop further,
such as literary criticism and theory, so I used as my object of study the works of H.P.
Lovecraft, whom I had had direct contact with only two years before.
During my research, I came across S.T. Joshi's work “The Life of H.P. Lovecraft”
(2014, Hedra Publishing) and decided to purchase it, but not without first talking directly with
the author. Our conversation took place through periodic emails where we discussed
Lovecraft's work, and inevitably we got to the topic about racism in the author's works, that's
when Mr. Joshi sends me the essay entitled “Why Michel Houellebecq Is Wrong about
Lovecraft's Racism”. But the idea of translation would only come a few years later, when the
classes started at a distance and I ended up living alone on business in another city, this gave
me more free time to research and study, and it was then that I came into contact with authors
that I now call my pillars in literary criticism, such as Northrop Frye, Tzvetan Todorov, Terry
Eagleton, Georg Lukács, and Harold Bloom, but this is not relevant at this point.
Years went by and during a class on text analysis and interpretation, the students got
into a debate about racism in classical works, and due to my conversation with Mr. Joshi and
deep research on the subject I was able to notice that many students had a distorted view on
this, where they stated with all their strength that if you read and like an author considered a
racist author this made you involuntarily agree with his opinions, that is, it makes you a racist
person, even if you have never said anything against anyone. However, I devoted my efforts
to other topics and left this discussion aside, until I came across videos on the internet with
people outside the field of literary studies or of any literary quality arguably expressing that
H.P. Lovecraft is a racist author and that without this racial hatred it was not possible to
understand his work, that is, it is only possible to understand the entirety of Lovecraft's work
if you agree with the view (which we will see is unfounded) that Lovecraft was
"pathologically racist". I have had the idea for the translation in my head ever since, and today
I finally got it down on paper.
S.T. Joshi is a great scholar and his work on Lovecraft is undoubtedly valuable,
essential for anyone who wants to build a solid opinion about the author; the amount of
material produced by Joshi is the kick-start for anyone who wants to delve deeper into
Lovecraft's works, without ever leaving anything to be desired. For this reason, I thank S.T.
Joshi for providing me with valuable materials and for authorizing the translation of his essay.

Introdução

A ideia de traduzir este ensaio para português veio após uma extensa conversa com
S.T. Joshi em 2020, eu ainda era um jovem iniciante em crítica literária e estava prestes a
iniciar a faculdade de Letras na Unesp de Assis. Entretanto o mundo foi atingido
repentinamente por um vírus denominado COVID-19 e me vi obrigado a permanecer em casa
até o momento em que escrevo esta introdução em 2022. Neste momento, com o
cancelamento das aulas e muito tempo livre, resolvi que seria interessante me aprofundar em
assuntos que eu gostaria de desenvolver melhor, como crítica e teoria literária, então usei
como objeto de estudo as obras de H.P. Lovecraft, que eu havia tido contato direto apenas
dois anos antes.
Durante minhas pesquisas, me deparei com o trabalho de S.T. Joshi A Vida de H.P.
Lovecraft (2014, Editora Hedra) e decidi adquiri-la, mas não sem antes conversar diretamente
com o autor. Nossa conversa se deu através de e-mails periódicos onde discutimos acerca do
trabalho de Lovecraft, e inevitavelmente chegamos ao tópico sobre o racismo nas obras do
autor, foi quando o Sr. Joshi me envio o ensaio intitulado Why Michel Houellebecq Is Wrong
about Lovecraft’s Racism. Porém a ideia de tradução só viria alguns anos depois, quando as
aulas se iniciaram à distância e eu acabei indo morar sozinho a trabalho em outra cidade, isso
me deu mais tempo livre para pesquisar e estudar, foi quando entrei em contato com autores
que hoje denomino os meus pilares na crítica literária, como Northrop Frye, Tzvetan Todorov,
Terry Eagleton, Georg Lukács e Harold Bloom, porém isso não vem ao caso nesse momento.
Os anos se passaram e durante uma aula sobre análise e interpretação de texto, os
alunos entraram em um debate sobre racismo em obras clássicas, e devido a minha conversa
com Sr. Joshi e profundas pesquisas no assunto pude notar que muitos alunos possuíam uma
visão deturpada sobre isso, onde afirmavam com todas as forças que se você ler e gostar de
um autor considerado racista isso te fez involuntariamente concordar com as opiniões dele, ou
seja, te faz uma pessoa racista, mesmo que nunca tenha proferido nada contra ninguém.
Contudo, dediquei meus esforços a outros tópicos e deixei essa discussão de lado, até que me
deparo com vídeos no internet com pessoas fora da área de estudos literários ou com qualquer
qualidade literária expressarem indiscutivelmente que H.P. Lovecraft é um autor racista e que
sem esse ódio racial não era possível compreender sua obra, ou seja, só é possível
compreender a totalidade da obra de Lovecraft se você concordar com a visão (que veremos
ser infundada) de que Lovecraft era “patologicamente racista”. Desde então venho com a
ideia da tradução na cabeça, e hoje finalmente consegui coloca-la no papel.
S.T. Joshi é um grande estudioso e seu trabalho sobre Lovecraft é indubitavelmente
valioso, sendo essencial para quem deseja construir uma opinião sólida sobre o autor; a
quantidade de material produzida pro Joshi é o pontapé inicial para qualquer um que queira se
aprofundar nas obras de Lovecraft, sem nunca deixar a desejar. Por esse motivo deixo aqui
meu agradecimento à S.T. Joshi por me fornecer materiais valiosos e por autorizar a tradução
de seu ensaio.

Porquê Michel Houellebecq está errado acerca do racismo em Lovecraft

O primeiro livro publicado pelo celebrado novelista e poeta francês Michel


Houellebecq (b. 1958) é um pequeno ensaio intitulado H.P. Lovecraft: Contre le monde,
contre la vie (1991), traduzido para o inglês em 2005 como H.P. Lovecraft: Against the
World, Against Life [H.P. Lovecraft: Contra o Mundo, Contra a Vida, em português, Editora
Nova Fronteira, 1ª Ed. 2020]. Também foi traduzido para italiano, alemão e espanhol. Este é
um trabalho deveras estranho. Seu impulso básico é dizer que Lovecraft estava “cheio de
raiva” (p.109), e essa raiva – especificamente manifestada em direção ao “princípio da
realidade” (p.31), é o que alimenta a visão distinta e a ambientação de sua ficção.
Com toda franqueza, a conclusão de Houellebecq não é baseada em uma pesquisa
sólida. Contudo, é evidente que ele leu a biografia que L. Sprangue De Camp escreveu sobre
Lovecraft (aparentemente na tradução francesa que aparece em 1988, quando Houellebecq
afirma que escreveu seu ensaio [ver p.240]), não é claro que ele leu qualquer carta de
Lovecraft além daquelas que aparecem no primeiro (e único) volume das cartas de Lovecraft
(Lettres [1978]) com tradução de Francis Lacassin, contendo apenas cartas a partir do ano de
1926. Eu ajudei o tradutor da versão inglesa do ensaio de Houellebecq, Dorna Khazeni, e nós
estávamos desconcertados em descobrir que um grande número de suas citações de trechos
escritos por Lovecraft não podia ser localizado, incluindo a estranha passagem
(aparentemente de uma história de Lovecraft) sobre “um certo ritual e costumes
particularmente repugnantes dos habitantes indígenas da Carolina do Norte” (p.75). O estado
da Carolina do Norte jamais foi mencionado dentro das ficções de Lovecraft (incluindo as
revisões). Seria injusto afirmar que Houellebecq simplesmente inventou essas passagens,
visto que não existe uma razão convincente para ele fazer isso; então no mínimo, sua pesquisa
pode ter sido um pouco descuidada.
Houellebecq admira Lovecraft por o que ele acredita ser a abordagem única de
Lovecraft da literatura; em particular, ele declara que o trabalho de Lovecraft é “um antídoto
contra todas as formas de realismo” (p.29). Houellebecq explica o que ele quer dizer com esta
afirmação notável. Ele aproveita o lamento inicial de Lovecraft de que “a idade adulta é um
inferno”, como se essa visão permanecesse uniforme durante toda a vida de Lovecraft (o que
claramente não é verdade), Houellebecq afirma que “Lovecraft, por sua vez, sabia que ele não
tinha nada a ver com esse mundo. [...] Mundo esse que o adoeceu e ele não viu razões para
acreditar que olhando melhor para as coisas, elas poderiam parecer diferentes” (p.31).
Porém, Houellebecq confundiu indiferença com ódio. Um não implica o outro, e o
próprio Lovecraft rejeitou tal junção. Houellebecq conclui seu ensaio afirmando que, para
Lovecraft “o mundo é mau, intrinsicamente mau, mesmo em sua essência” (p.117). Isso faz
com que Lovecraft soe como Thomas Ligotti, que era realmente um pessimista e misantropo.
Lovecraft negou explicitamente que ele era um:

“Contrariamente do que você pode assumir, eu não sou um pessimista,


mas um indiferentista – ou seja, eu não cometo o erro de pensar que o
resultado das forças naturais que rondam e governam a vida orgânica
tem qualquer conexão com os desejos ou gostos de qualquer parte
desse processo de vida orgânica. Pessimistas são tão ilógicos quanto
otimistas; na medida em que ambos vislumbram os objetivos da
humanidade como unificados, e tendo relação direta (seja de
frustração ou satisfação) com o fluxo inevitável das motivações e
eventos terrestres. Ou seja, ambas as escolas de pensamento contêm
um vestígio do conceito primitivo de uma consciência teleológica – de
um cosmos que não dá a mínima para as necessidades especiais e o
bem-estar de mosquitos, ratos, piolhos, cães, homens, cavalos,
pterodátilos, árvores, fungos, dodos ou outras formas de energia
biológica.”

Mesmo assim, Houellebecq se apega ao se ponto de vista desafiando todas as


evidências contrárias, pois isso serve como base vital de sua visão sobre o trabalho literário de
Lovecraft. Segundo Houellebecq, para Lovecraft “o ódio da vida precede toda a sua literatura.
Ele deve permanecer firme a esse respeito, A rejeição de todas as formas de realismo é uma
condição preliminar para entrar em seu universo” (p. 57). Mas o que Houellebecq realmente
quis dizer com “realismo”? Isso logo se torna claro: “Em todo o seu trabalho, não há uma
única alusão a duas das realidades que geralmente atribuímos grande importância: sexo e
dinheiro.” (p. 57). Houellebecq deveria saber que isso é um absurdo. Bobby Derie escreveu
um ensaio inteiro Sex and the Cthulhu Mythos [Sexo e o Mito de Cthulhu] (2014), com dois
capítulos substanciais, ocupando 130 páginas, sobre as próprias atitudes de Lovecraft sobre
sexo e discussões ou alusões a sexo em sua ficção. Aqui podemos nos referir de passagem a
coisas como estupro cósmico em “The Dunwich Horror” [O Horror em Dunwich], a óbvia
referência ao acasalamento entre as criaturas conhecidas como Deep Ones [Profundos] e
humanos em “The Shadow over Innsmouth” [A sombra sobre Innsmouth], e a sucessiva troca
de gêneros de Ephraim/Asenath Waite em “The thing on the Doorstep” [A coisa sobre a
soleira]. Podemos citar também “The Case of Charles Dexter Ward” [O Caso de Charles
Dexter Ward], onde o sobrenaturalmente envelhecido Joseph Curwen provavelmente comete
um estupro conjugal com sua esposa relutante, Eliza Tillinghast, com o intuito de produzir sua
descendente – Ann Tillinghast, que se tornou descendente direta de Charles Dexter Ward.
Alusões a dinheiro são menos frequentes e menos significantes nas histórias de Lovecraft,
mas essa em “The Shadow Over Innsmouth” deve bastar: “Eu não tinha carro, mas estava
viajando de trem, bonde, ônibus, sempre procurando a rota mais barata possível”.
Sejamos caridosos com os exageros de Houellebecq. Mesmo se pudéssemos garantir
que suas referências a “sexo e dinheiro” pretendem aludir mais amplamente ao realismo social
que dominou a ficção europeia no tempo de Lovecraft, e após ele. Duas observações
importantes precisam ser feitas. Primeiro, praticamente a mesma análise poderia ser feita de
muitos predecessores de Lovecraft na weird fiction [ficção estranha], de Poe à Bierce à
Dunsany à Blackwood; a respeito disso, tendência de evitar “sexo e dinheiro” é apenas a
instância mais extrema de uma tendência que dominou por muito tempo um gênero que tinha
um foco muito diferente. Alguns desses autores tinham um pouco mais de personagens
femininas do que Lovecraft, e alguns (notavelmente Poe e Machen) se referiram mais
secretamente ao sexo, geralmente de forma anômala (como a sugestão de incesto fraternal em
“The Fall of the House of Usher” [A Queda da Casa de Usher] ou as depravações sexuais de
Helen Vaughan em “The Great God Pan” [O Grante Deus Pã]). Mas Lovecraft não é um
ponto fora da curva nesse aspecto. É significante que Houellebecq tenha citado as obras de
Richard Matheson como um contraste à Lovecraft (p. 51-52). Foi, na verdade, graças a
contenção de Matheson e outros escritores de sua geração que Lovecraft e outros autores da
Weird Tales ignoraram o realismo do dia-a-dia e procuraram dar à weird fiction outro nível.
Mas isso me leva a segunda observação: existem outros tipos de realismo além do
realismo meramente mundano do retrato ordinário do ser humano realizando suas tarefas
diárias. Quando Houellebecq repetidamente afirma que Lovecraft rejeitou “todas as formas”
de realismo, ele está contradizendo o próprio Lovecraft. Embora Houellebecq revele alguma
familiaridade com os livros comuns de Lovecraft, ele é aparentemente ignorante ao ensaio
“Notes on Writing Weird Fiction” [Notas sobre escrever Weird Fiction] (1933), onde
Lovecraft inequivocadamente afirma:

“Ao escrever uma weird story eu sempre tento muito cautelosamente


alcançar o estado de espírito e a atmosfera correta, e colocar a ênfase
onde ela pertence. Não se pode, exceto em obras de ficção Pulp
imaturas e charlatãs, apresentar uma descrição de fenômenos
impossíveis, improváveis ou inconcebíveis como uma narrativa
comum de atos objetivos e emoções convencionais. Eventos e
condições inconcebíveis têm uma deficiência especial para superar, e
isso pode ser realizado apenas através da manutenção de um realismo
cuidadoso em todas as fases da história exceto aquela tocante a uma
determinada maravilha.”

O realismo de Lovecraft é aqui referido como podendo ser ou não um realismo de


representação de personagem; mas em seu trabalho ele certamente dá uma ênfase meticulosa
ao realismo do cenário e da paisagem, sem citar o realismo no que tange a fatos científicos.
Houellebecq até admira a “precisão onírica” (p.74) da descrição dos Old Ones (Antigos) em
“At the Mountains of Madness” [Nas Montanhas da Loucura], mas falha em compreender que
isso é um “realismo” tanto convincente quanto vital para os propósitos de Lovecraft, assim
como as “descrições totalmente banais (supermercados, postos de gasolina e etc...)” (p.51)
encontradas nas obras de Matheson.
Mas se Houellebecq está longe de distinguir esse aspecto em sua análise de Lovecraft ,
ele vai cada vez mais fundo em relação ao aspecto mais controverso da vida e do trabalho de
Lovecraft – o racismo. Devido ao fato de que Houellebecq estar convencido de que a essência
das obras de Lovecraft ser o “absoluto ódio do mundo em geral, agravado por uma versão
moderna do mundo em particular” (p.57), e ele acredita que Lovecraft era um “misantropo e
levemente sinistro” (p.99) – uma visão que nós já vimos ser falsa – ele foca no racismo como
uma espécie de chave secreta para entender a totalidade do trabalho literário de Lovecraft. Ele
sustenta que nos dois anos em que Lovecraft passou dificuldade em Nova Iorque – onde,
diferente de Providence, ele foi forçado a conviver com pessoas de diferentes etnias para
poder garantir seu sustento – foram cruciais para leva-lo ao seu auge da criatividade, quando
ele retornou para Providence na última década de sua vida.
Houellebecq traz a tona as familiares passagens das cartas de Lovecraft, notavelmente
a discussão dos “ítalos-semíticos-mongoloides” habitantes da parte baixa do lado leste (esse
trecho tem relação com a primeira viagem de Lovecraft à Nova Iorque em abril de 1922).
Essa passagem é agora, segundo Houellebecq, considerada como uma hermenêutica para a
interpretação dos “grandes textos” dos últimos anos de vida de Lovecraft: “Suas descrições de
entidades assustadores que habitam o mito de Cthulhu estão ligadas diretamente às suas
alucinações” (p. 107). Qual a prova que Houellebecq dá para essa afirmação? “The Horror at
Red Hook” (1925). Bem, sim – mas, se posso colocar dessa forma, o que mais cê tem?1 Como
as pessoas nascidas na parte baixa do lado leste têm qualquer relação com as entidades
retratadas no trabalho posterior de Lovecraft? – sejam os fungos crustáceos de Yuggoth em
“The Whisperer in Darkness”[Sussurros na Escuridão] ou os Deep Ones em forma de barril
em ‘At Mountains of Madness”, ou a Great Race (Grande Raça) em “The Shadow out of
Time” [A Sombra Vinda do Tempo] ou mesmo as entidades nebulosas (supondo que haja
mais de uma) que caem do meteorito em “The Colour out of Space” e corrompem tanto a
paisagem quanto os habitante humanos da fazenda Gardner? Qualquer paralelo aqui, como eu
afirmei em outro lugar (ver “Charles Baxter em Lovecraft” 120-21), bastante opaco. E é por
esse motivo que Houellebecq simplesmente não discorre sobre o assunto; ele nem ao menos
cita os Deep Ones em “The Shadow Over Innsmouth”, que entre todos os “grandes textos” de
Lovecraft em sua última década de vida pode ser plausivelmente colocado como um texto
fundado em pressuposições racistas (nesse caso, os perigos da miscigenação).
Houellebecq afirma que os diversos cultistas que adoram os Great Old Ones [Os
grandes antigos] são “quase sempre mestiços, mulatos, de sangue misturado, entre as mais
básicas das espécies” (p.109). Mesmo essa descrição não é precisa o suficiente em detalhes e
deriva quase inteiramente do retrato dos cultistas de Cthulhu em “The Call of Cthulhu” [O
Chamado de Cthulhu]. O sinistro Sr. Noyes em “The Whisperer in Darkness, que é
claramente um aliado com o fungo de Yuggoth, é indizivelmente caucasiano e com uma boa
educação. Contudo, Houellebecq simplesmente afirma a onipresença do motivo racial na
ficção de Lovecraft sem ao menos fazer uma tentativa de estabelecer qualquer evidência
concreta – ou evidência de qualquer tipo.
Pode ser útil contrastar a discussão de Houellebecq nesse tópico – e especialmente os
efeitos dos dois anos em que Lovecraft ficou em Nova Iorque com o resto de sua vida e
trabalho – com comentários de alguém que realmente conhecia Lovecraft e pode falar com
mais autoridade sobre o assunto. Em seu celebrado memorando, In Memoriam: Howard
Philips Lovecraft [Em memória: Howard Philips Lovecraft] (1941), W. Paul Cook fala de
forma eloquente sobre como Lovecraft se tornou uma pessoa diferente após Nova Iorque:

1
Joshi escreve “what else have ya got?”
“Lovecraft nunca se tornou de completamente humanizado,
ele nunca se tornou o homem que nós amamos nos lembrar, até sua
experiência em Nova Iorque. Até o fim de seus dias ele odiou Nova
Iorque do fundo do coração. Com isso eu quero dizer a cidade em si, e
não os bons amigos que ele tinha lá. Mas foram necessárias as
privações, provações e teste de fogo de Nova Iorque para trazer o seu
melhor à superfície. E foi necessário um contato pessoal com os
cultos, educador e sofisticados amantes de Nove Iorque para fazê-lo
ver o todo, para ampliá-lo fazendo com que ele cultivasse uma
tolerância artística, se não alterando seu ponto de vista inteiramente.”

Isso soa muito mais como o Lovecraft que vimos nas cartas em sua última década de
vida – e, mais pertinente, no seu trabalho literário desse período.
A caracterização de Houellebecq sobre o racismo de Lovecraft é uma parcela de sua
visão de Lovecraft como um “reacionário obsoleto” (p. 115) – Mas de novo, ele precisa saber
que isso é falso. Até mesmo a biografia de Camp deixa claro a conversão tardia de Lovecraft
para o socialismo (não-marxista) moderado, e suas cartas mais tardias são cheias de
condenações sobre seu conservadorismo na esfera politica e econômica. Mas esse fato iria
constituir uma qualificação séria das conclusões que Houellebecq já havia chegado, e que
depois seria simplesmente ignorado. Aqui estão outras facetas do seu livro, se torna claro que
Houellebecq desenvolveu uma visão específica de Lovecraft, derivado de suas primeiras
leituras (ele teve seu primeiro contato com Lovecraft através das traduções para o francês aos
dezesseis anos) e aumentado por uma absorção altamente seletiva de outros textos, e ele, de
forma consciente ou inconsciente dispensou as evidências que iriam contradizer sua visão.
Ou seja, tendo isso em mente, é implausível pensar que um jovem entusiasta francês
que pode ou não ter lido muito do trabalho do Lovecraft em inglês, que não é um estudante de
literatura e que claramente tem sua própria maneira de retratar Lovecraft, pôde aparecer com
uma fórmula mágica para o entendimento das obras de Lovecraft – que é totalmente baseada
em “ódio racial” – que escapou à centenas de outros críticos, em inglês ou outras línguas, que
tiveram acesso ao trabalho do escritor de Providence. Houellebecq não é tímido sobre sua
suposta descoberta. Em seu prefácio para a edição francesa de 1999 de seu livro ele declara
que ele experienciou duas surpresas quando leu Lovecraft pela primeira vez – uma foi o
“materialismo absoluto” e a “outra causa de minha surpresa foi seu racismo obsessivo; nunca
e uma leitura das descrições de suas criaturas eu poderia adivinhar que a fonte poderia ser
encontrada em um ser humano real” (p.24). Aqui, novamente, ele simplesmente afirma esse
ponto, aparentemente acreditando que isso foi provado no corpus de seu ensaio, mas não foi.
Em outro lugar ele observa sem o menor traço de ironia, que “o papel do ódio racial no
trabalho de Lovecraft vem sendo subestimado” (p.108) Exatamente! Mas essas circunstâncias
não inclinam Houellebecq a levantar dúvidas acerca de suas próprias conclusões.
A visão de Houellebecq em seu tratado bastante pretencioso teve uma ampla e
lamentável influência em outros críticos que tocaram no mesmo tema. China Miéville afirma
que o “racismo profundo e vicioso de Lovecraft é [sic] conhecido por mim... Isso vai mais a
fundo, em minha opinião, do que meramente ser racista – eu concordo com Michel
Houellebecq... em pensar que a obra de Lovecraft, seu trabalho, é inspirado por um ódio racial
profundamente estruturado” (retirado de Joshi, Lovecraft and Weird Fiction 83-84). Não é
preciso dizer que Miéville em si não providenciou quaisquer evidências de sua afirmação,
acreditando que Houellebecq fez o trabalho para ele; mas não fez. Charles Bexter, em sua
crítica extremamente hostil de The Annoted H.P. Lovecraft, escrito por Leslie S. Klinger
(New York Review of Books, 18 December, 2014), afirma que Lovecraft era um “racista
patológico” (Ver Joshi, “Charles Baxter on Lovecraft” 109) e que o racismo é central no
trabalho literário de Lovecraft. Ele não cita especificamente Houellebecq como fonte de sua
visão, nem sustenta tal argumento com nada que se aproxime de uma evidencia convincente.
Há uma certa diversão em notar o que Houellebecq afirmou, em seu prefácio de 1999,
que “parece para mim que escrevi este livro como uma espécie de romance (novel). Um
romance (novel) com um único personagem (O próprio H.P. Lovecraft) – um romance (novel)
que se constringiu, em que todos os fatos que transmitia e todos os textos que citava tinham
que ser exatos, mas uma espécie de romance (novel) ainda sim” (p.23). Nós vimos que todos
as citações de Houellebecq sobre os textos de Lovecraft estão longe de serem “exatas”, mas,
por outro lado, ele está infelizmente preciso em dizer que seu trabalho é realmente uma
espécie de romance (novel). Deve ser enfatizado que sua visão sobre Lovecraft é no geral
positiva e que ele tem grande admiração por Lovecraft em seu estilo de prosa e como
contribuinte em algo genuinamente novo para a literatura mundial; até mesmo sua discussão
sobre o racismo de Lovecraft é livre de rancor e hostilidade, diferente do que vemos em um
número de outros comentaristas do assunto. Mas mesmo assim, o fato é que infelizmente
Michel Houellebecq promulgou uma informação inverídica – baseada em evidências
inadequadas e uma visão enciumada do que ele quer que o trabalho de Lovecraft represente –
que infectou o trabalho de outros críticos e estudantes muito mais hostis do que ele.

Trabalhos citados

Houellebecq, Michel. H. P. Lovecraft: Against the World, Against Life. Tr. Dorna
Khazeni. San Francisco: Believer Books, 2005.
Joshi, S. T. “Charles Baxter on Lovecraft.” Lovecraft Annual No. 9 (2015): 106–23.
———. Lovecraft and Weird Fiction: Selected Blog Posts, 2009–2017. Seattle: Sarnath
Press, 2017.
Spaulding, Todd. “Lovecraft and Houellebecq: Two Against the World.” Lovecraft
Annual No. 9 (2015): 182–213.

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