As Observações de Wittgenstein Sobre o Teorema de Gödel

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ARTIGO ORIGINAL Dol AS OBSERVAGOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O TEOREMA DE GODEL? Camila Jourdan (UERJ)’ camilajourdan@hotmail.com Néio hd como um matemdtico néo ficar hor rorizado com meus comentarios matematices, jd que foi sempre treinado para evitar a in dulgéncia com pensamentos e dividas do tipo auc desenvolvo (Wittgenstein, PG, I, V, 25) Resumo: © artigo analisa os muito malvistos comentarios de Wittgenstein sobre o teorema de Gédel. Nao se pretende detender esses comentarios, nem atribuir a Wittgenstein algo que ele nao disse. De tato, nao nos seria possivel desconsiderar o que é textual visando fornecer uma interpretacao mais pala- tavel das posigoes de um autor. Nosso objetivo consiste meramente em clari- ficar as posicdes realmente mantidas por Wittgenstein sobre o tema, atribuindo, tanto quanto possivel, alguma razoabilidade as mesmas no que diz respeito @ economia geral das suas observagdes sobre a matematica Palavraschave: Wittgenstein; Matematica; Gédel; Hilbert; ~Omega- inconsisténcia. INTRODUCAO E uma opiniio comumente aceita que Wittgenstein nao compreendeu o teorema de Gédel. Além de Kreisel, Ber- nays e Dummett, foi o proprio Gédel quem, como se sabe, afirmou categoricamente, em uma carta a Menger, que Wittgenstein nao entendera seu teorema: * Recebido: 0804-2012/Aprovado: 14.05-2015/Publicado online: 1702-2013 * Camila Jourdan ¢ Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade do Estado. do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RI, Brasil PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N.2, 7.61104, JUL/DEZ, 2013 61 Camila Jourdan Relativamente ao meu teorema que trata das proposigées indecidi- veis, é na tealidade claro pelas passagens que vocé cita que Wittgens- tein nao o compreendeu (ou fingiu nao o ter compreendido). Ele interpreta-o como uma espécie de paradoxo logico, quando de fato é precisamente 0 oposto, nomeadamente um teorema matemético dentro de uma parte da matematica absolutamente incontroversa (teoria dos ntimeros finitos ou combinatorios). A propdsito disso, toda a passagem que vocé cita parece-me disparatada. Veja e.g. 0 ‘medo supersticioso dos matematicos perante as contradicdes’. (Gédel apud Wang 1991, 92) Por outro lado, aqueles que tentam defender a leitura de Wittgenstein atentam principalmente para 0 fato de que suas criticas aplicam-se nado propriamente ao teorema, mas a interpretacio filoséfica deste - o que ele chama de ‘a pros sobre o calculo’, que envolveria uma @SHiiSASHACEEAS Ses de verdade_e demonstrabi 2). Wittgens ido oO Ta, Mas estar criticando uma leitura metafisica do teorema, que o utiliza- tia como prova do platonismo matemiatico, a partir da con- clusao, atribuida a prova, segundo a qual a verdade nao poderia ser equacionada com a demonstrabilidade. Gadel teria provado que existem verdades matematicas indemons- traveis ou, mais forte ainda, que a verdade ultrapassa a de- monstrabilidade, e sao formulacdes como estas que Wittgenstein nao aceita, pois considera expressdes de uma confusio filoséfica. O que Wittgenstein esta criticando é, primariament: a isiga, como se 0 teorema tivesse demonstrado uma tese filosdfica. Como se sabe, uma posi- cao bastante cara a Wittgenstein é aquela segundo a qual as que devem ser submeti- das a anilise. Se é assim, tal como Wittgenstein afirma em sua obra, a prova de Gédel godkeyestaryexpressancomumelimiis eo PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL G@PAAMGSSOSICONCEIGs, mas nio pode estar provando ne- nhuma tese ontologica: “Pode ser perguntado: que impor- tancia tem a prova de Gédel para nosso tipo de trabalho? Poidddina parte da matematica nao pode resolver problemas do tipo que nos perturbang)(RFM, VII, 22). A questo cen- tral de Wittgenstein é justamente: ‘o que podemos ou nao compreender do teorema de Gédel?’. E, de fato, essa abor- dagem nao se restringe a sua leitura de Gadel, mas aplicase a todas as suas polémicas passagens contra Russell, Cantor, ou Dedekind, em relacao aos quais Wittgenstein também pretendeu erguer uma ilies «°° a interpre- tacao filosdfica de seus resultado: Nao é minha tarefa atacar a logica de Russell de dentro, mas de fora Isso significa dizer: nao atacla matematicamente - de outro modo eu deveria estar fazendo matemiitica ~ mas sua posicao, sta fun Minha posigio nao é falar sobre a prova de Gédel, mas ultrapassitla (RFM, VI, 19) Contudo, de fato, Wittgenstein interpreta a sentenca de Gédel, em algumas passagens, gomomameparadoxovants degomoyparacoxomdommentiroso, ¢ ¢ em relacio a esse ponto que se aplica, mais diretamente, a acusacdo de que ele nao teria compreendido 0 teorema de Gédel. No que se segue, pretendemos conferir alguma razoabili scagens de Wittgenstein sobre Gédel, mostrandd lestas com as demais posicSes mantidas pelo S08 apresentamos e explicamos a interpretacdo que Juliet Floyd e Hilary Putnam propdem, avaliando em que medida tal proposta € plausivel. Finalmente, comentamos como as cri- ticas de Wittgenstein a Gédel podem ser ditas aplicarem-se © isso, primariame incipio inerente a propria demanda do PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2,8. 6-104, JUL/DEZ. 2013 “6 Camila Jourdan O TEOREMA DE GODEL E O DISCURSO MATEMATICO A critica mais repetida por Wittgenstein, relativa prova de Gédel, diz respeito & interpretacdo da prova como estabele- cend ntenca G, indecidivel, seria tein recusar que a sentenca de Gédel seja entendida como verdadeira, ainda que indemonstravel, parece dizer respeito a sua propria camcepcao acerca da natureza das proposicdes matemiaticas. a que, onde faz sentido falar em verdade, o sentido da proposigao deve ser determinado independentemente da sua verdade ou falsi- dade e, por isso, a proposicéo pode ser verdadeira ou falsa. Por outro lado, o ambito da linguagem em que se expressa necessidade estabeleceria os critérios a partir dos quais po- deriamos julgar se yma dada sentenca é verdadeira ou falsa, e esse ambito seri: ambito da matematica é entio entendido, por Wittgenstein, como iil @gumatiive, posto que completamente composto por propor sicdes necessarias. Nesse ambito, por isso, se vamos coffffiuar falando em ‘verdade’ no con- texto da aritmética sera somente em um sentido no qual nao apenas ‘ser demonstravel’ é 0 sentido de ‘verdade’ pri- matio, como também strabili igniticado das s, NAo le uma proposicao matematica independentemente de sua demonstracao. Assim, supor que uma sentenca que afirma de si mesma que nao é de- i i tue indemonstravel no sis- oF PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL qeenigngans, de alguma forma, também, a) tendo em vista algum padrao independente a de- 1 monstrabilidade no sistema, que determinaria ao mesmo tempo a verdade e a semantica da proposicao (suas condi- des de verdade), e € essa posicado, atico por Wittgenstein, que iin ae modo: como a matematica € um ambito normativo, a demonstrabilidade encontra-se equacionada a verdade. As andlises de Wittgenstein do contexto normati- vo da matematica tém como conclusao que, nesse contexto, nao ha e nem pode haver um critério externo em virtude do qual pudéssemos dizer que a sentenca é verdadeira para além da sua demonstrabilidade. Isso porque a demonstrabi- lidade seria constitutiva do sentido da sentenga. Como, em relacio ao ambito da matematica, Wittgenstein concluiemp @@prneipio, que as @ossibilidades de uma sentenca encon- tramse @lapsadasmisisuasspossibilidadesmactuais, dizer que uma sentenca é demonstravel’ é 0 nico sentido no qual poderiamos dizer que a sentenca é verdadeira. ja de terminado, e, assim, nao teriamos em que nos basear para enca omo a se ga é necessaria (desde que se trata de uma sentenca matemiatica), a verdade da sentenga seria da- da com seu sentido. Talvez por isso Wittgenstein compare a sentenca de Gédel com uma sentenca empirica, objetivan- °No caso, dizer que uma sentenca é demonstrivel seria também o mesmo que diséla demonstea da, No geral, uma sentenca demonstrivel nio € necessariamente demonstrada, Mas, se esse fosse © caso para as sentencas matematicas, haveria uma possbilidade em principio determinada inde- pendentemente da demonstrasao neste ambito, © que Wittgenstein recusa. Para Wittgenstein, portanto, ndo haveria sentenca matematica demonsteivel alo demonsteada, Mantemos aqui a terminologia ‘demonstrivel’ apenas para clarficar como fica 0 didlago nesses termos com a tradi io que aczita essa distingdo no ambito matemético. PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2,8. 6-104, JUL/DEZ. 2013 65 Camila Jourdan do deixar claro que o que se conclui para a sentenca de Gédel, no final das contas, é o que se esperaria como natu- ral de uma sentenca contingente, que pode ser verdadeira ou nao sem deixar de ter sentido. Por outro lado. essa sentenca pode ser verdadeira ainda que indemonstravel necessariamente, i i que é 0 que ocorre quando proferimos absurdos. Mas ¢ provavelmente diferente - se eu digo: chove; ou: a proposigio ‘chove’ depreende-se consequentemente adiante! Mas ¢ se as propo- sigdes apenas fossem reconhecidas por depreenderemse delas, e se se seguir daquelas fosse o tinico critério que nds estabelecemos como vilido para a correcio de ‘chove’? (Wittgenstein 2000, item 121 851) Se for assim, uma sentenga que se afirma indemonstra- deira sem contradicao, do que se seguiria em grande medida o proprig carater paradoxal que Wittgenstein atri- bui A sentencasMBem, se vocé 1é esta proposicio e (por exemplo) di: uma contradi, auto-evidente; entao se pode atribuir a vocé Wittgenstein 2000, item 121 80x). Vemos assim a importancia de mantermos como pano de fundo as consideragdes gerais de Wittgenstein sobre as provas e as proposicdes matematicas pata melhor enten- dermos seus comentarios sobre Gédel. Mas, com isso, ape- sar de Wittgenstein possuir razGes independentes para sua abordagem das proposicSes matemiticas. parece muito que ciliata iccacameaatay nS IO com base nela, rejeitar a interpretacao que se faz do resulta- do de Gédel. Mais do que isso, parece que Wittgenstein sustenta uma teoria semantica em grande medida antirrea- 66 PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL lista, e, com base nesta, pretende interditar uma interpreta- cao do resultado de Gédel que, justamente, colocaria tal te- oria em cheque. Dessa forma, Wittgenstein incorreria em uma clara @BeeigaoMelpHneIpid) © é isso que afirma inclusive alguém bastante simpatico com relacéo ao ponto de vista de Wittgenstein, comot@laela(1998, 105-106): Wittgenstein nao pds em questio a validade da prova, mas somente a interpretacao de ‘P’ como um enunciado que afirma ser ao mesmo. tempo indemonstravel e verdadeiro. Um de seus argumentos é que essa interpretacao € paradoxal, ja que, para que ‘P’ seja verdadeiro em §, deve ou ser um axioma de $ ou ter sido demonstrado a partir de tais axiomas.[.] [a linha de argumentagio] pressupde, entretanto, a sua visao de que uma senteng 0 ataque de Wittgenstein a Gédel peca por @SHGOEISEREGISD uma vez que a interpretacgao de Gédel implica precisamente que ha um abismo entre significado e verdade matemditicos, por um lado, e prova e demonstrabilidade matemdticas, por outro. Como responder entio a essa objecio? O caminho pas- sa por notar que, para Wittgenstein, “oven neat ao fi < a ce que, assim, se essa interpretacao é€ usada como uma evidén- cia (ou mesmo uma prova) do realismo, Wittgenstein pode inverter a acusacao de peticdo de principio para aquele que © acusa. Esse nao é, de fato, o ponto mais dificil de defen- der em meio as demais observacdes de Wittgenstein, quase sempre obscuras e polémicas. Tem sido largamente notado que Sonali iaa Como sal ) por exem- plo, Torkel Franzén, todas as sentencas verdadeiras na pro- va de Gédel sio de fato demonstradas e, dado que a sentenca G, pelo segundo teorema de incompletude, seria PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2,8. 6-104, JUL/DEZ. 2013 o Camila Jourdan mesmo equivalente & consisténcia do sistema, a impossibi- lidade de se provar G no sistema equivaleria mesmo aime ee [..] € freqiientemente dito que a prova de Gadel mostra que G é verdadeira, ot ‘em algum sentido’ verdadeira. Mas a prova nio mos- tra G verdadeira. © que aprendemos da prova é que G é verdadeira CRE MEME TE Seeensieere Ss observagao, nao existe razio pa- Ta usar qualquer formelfexo como ‘em algum sentido verdadeira’ [...]. A prova de Gadel nao mostra que existe qualquer enunciado aritmético que sabemos ser verdadeiro, mas nao ¢ provivel em S, pois 0 P*blens e principio envolvido a tarefa é que, se a matematica provar sua propria consisténcia, isso nfio pode ser razao pa- ra confiarmos nela, pois apenas aceitamos a prova de con- sisténcia porque ja a supomos consistente, ou melhor @ja Mas espere - nao é claro que ninguém queira encontrar uma con- tradigao? E entio se eu mostrasse a alguém a possibilidade de uma 90 PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL contradicio, ele faria tudo para torna-la impossivel? (E se nio fizesse isso, seria um ‘cabeca de vento’.) Mas suponha que ele respondesse: “nao posso imaginar uma contradigio em meu cilculo. - Vocé me mostrou uma contradigao em outro, mas nao nesse. Nesse, nao exis- te nenhuma, nem sequer posso ver a possibilidade de uma.” “Se mi- nha concepsao do calculo vier a se alterar; se seu aspecto mudar por causa de algum contexto que no posso ver agora - entio falarei algo mais sobre isso.” Na ag [em meu calculo. cme A confiabilidade na matematica devesserafuleral, isso significa dizer que ela nao esta realmente em questao, mas é suposta para que a propria prova seja aceita e, nesse senti- do, a prova de consisténcia perde seu sentido, pois, em ma- ximo grau, estariamos provando algo que ja supomos e que nao pode, portanto, ser provado, mas precisa sempre ser tomado como necessério: Se tenho medo de que alguma coisa possa em algum momento ser interpretada como a construgéo de uma contradigdo, entio nenhu- ma constru¢ao pode tirar este medo indefinido de mim. A cerca que coloco ao redor da contradic&o no é uma metacerca. Como uma prova pode tornar o calcul certo em principio? Como ele poderia ter falhado em ser um caleulo proprio a menos que essa prova tivesse sido encontrada? (RFM, II, 87) A propria demanda pela prova de consisténcia aparece, assim, como desprovida de propésito, posto que ja supde que tomamos o calculo no qual a prova é feita como certa, indubitavel - isso mostra que nds mesmos alti dtica, como devendo nos fazer joga-la eee confiar no calculo para que a propria demanda da prova de consisténcia faca sentido, se ja confiamos entao no calculo cegamente, por que precisa- mos da prova? A prova nao poderia fornecer a confianca ul- PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2,8. 6-104, JUL/DEZ. 2013 9 Camila Jourdan tima que buscamos (uma que nao seria cega, mas funda- mentada), afinal, a prova de consisténcia é feita na propria matemitica, e se a inconsisténcia é um risco, por que nao afetaria a propria prova? Como poderiamos entio confiar na propria prova de consisténcia? Se a matemiatica for in- consistente, ela mesma nao sera invalida?® Afinal, se supo- mos © sistema inconsistente, e a regra da_trivialidade, qualquer sentenca poderia ser provada, imelusivesamee ele provara sua consisténcia, e, portanto, tal prova nao pode ser razio suficiente para a consisténcia. De outro modo, estariamos agindo como al- guem Pr ed porque ele afirma que nao mente. Ora, mas é evidente Ue seselesmente, (Suma tmentira, da mesma forma que, se a matemiatica fosse ja inconsistente, sua consisténcia seria um teorema. O problema que Wittgenstein vé na prova de Gédel es- taria jd primariamente em gpa lilly por principio impossivel, erguida pelo programa de Hilbert (apud SHANKER 1989, 184): Tudo que constitui a matematica hoje € rigorosamente formalizado, entao esta se torna uma pilha de formulas... A matematica ordinaria, entio formalizada, ¢ adicionada uma, em certo sentido, nova mate- matica, uma metamatemitica. [...] Nessa metamatematica trabalha-se com as provas da matemitica ordinéria, essas tltimas, elas mesmas, tormam o objeto de investigacao. Mas qual o problema geral aqu "De fato, este é também o cere da critica de Poincaré & fundamentacao da matematica com pro- vas de consisténcia, na medida em que o filésofo mantém que tal fundamentacio incorreria em circularidade por precisar se referir a todas as provas do sistema e, a0 mesmo tempo, empregar provas, no podendl, assim, justificar a indlugio matemitica 92 PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL O que se propée: Se as contradiges em matematica comegam através de uma falta de clareza, nunca posso dissipar esta falta de clareza por uma prova. A. prova apenas prova o que ela prova. Mas ela nao pode superar a né- voa. Isso mostra por si mesmo que nao pode existir tal coisa como uma prova de consisténcia (se pensamos as inconsisténcias da mate- matica como sendo do mesmo tipo que as inconsisténcias da teoria de conjuntos), que a prova nao pode comecar a oferecer o que que- remos dela. Se nao estou certo sobre a natureza da matemitica, ne- nhuma prova pode me ajudar. E se eu estou certo sobre a natureza da matemética ququseetieoearsonsistensineseamenmomes (PR, 320) Isso é fundamental para entender o que Wittgenstein afirma sobre a interpretacio filoséfica da prova de Gédel: a coiehinajensandenianatataianbininhatiis <2 222°: prov © que ela prova, nao garante nada sobre a natureza da ma- tematica. Na medida em que Hilbert espera que a matema- tica prove sua propria razoabilidade, parece perguntar pela (CPSSSAAAAMASSNG” - © que seria, para Wittgenstein (problema por ele enfrentado desde o Tractatus), um con- trassenso: ‘Nao posso tracar os limites de meu mundo, mas posso tracar limites no interior de meu mundo. Nao posso perguntar se a proposicao p pertence ao sistema S, mas posso perguntar se ela pertence a parte de S. Desse modo, posso determinar o lugar da trisseccdo de um angulo dentro do sistema maior, mas nao posso, dentro do sistema euclidi- ano, perguntar se ele é solivel. Em que linguagem deveria eu per- guntar isso? Na euclidiana? Mas tampouco posso perguntar na linguagem euclidiana sobre a possibilidade de bissectar um Angulo dentro do sistema euclidiano. Pois, nessa linguagem, isso levaria a perguntar GE OSSTCISAISOINE unia galppereuntanesempre (@agontrasens (PR, 152) Entretanto, isso nao significaria, para Wittgenstein, que, por outro lado, a consisténcia absoluta poderia ser provada satisfatoriamente em um metassistema, por assim PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2,8. 6-104, JUL/DEZ. 2013 93 Camila Jourdan dizer, desde que, por um lado, a questao obviamente retor- naria para esse suposto metassistema, e, ainda teriamos que justificar a relacdo entre sistema e metassistema: Mas aqui nada ha a ser encontrado que pudéssemos chamar de hie- rarquia de tipos. Na matematica, no podemos falar de sistemas em geral mas somente de sistemas dentro de sistemas. Eles sao justa- mente aquilo sobre o que nao podemos falar. E, portanto, também aquilo que nio podemos procurar. [...] Suponhamos agora que te- nho dois sistemas: nao posso peguntar por um sistema que abarque os dois, j4 que no somente sou incapaz agora de procurar esse sis- tema como, mesmo no caso de surgir um sistema que abarque dois sistemas andlogos aos originais, percebo que nunca poderia ter pro- curado por ele. (PR, 152) Assim, nao ¢ suficiente dizer que p pode ser provada; o que devemos dizer & pode ser provada segundo um sistema determinado. Além disso, a proposicao nao afirma que p é provavel no sistema $, mas no seu proprio sistema, o sistema de P. A pertinéncia de p ao sistema $ nao pode ser afirmada, mas tem de mostrar a si mesma. Nao se pode dizer que p pertence ao sistema $; nao se pode perguntar a qual sistema p pertence; nao se pode procurar pelo sistema de p. En- tender p significa entender seu sistema, Essas passagens sao particularmente significativas para entender as observacées de Wittgenstein que expomos an- teriormente. Apenas sob esse ponto de vista, entendendo suas razdes, podemos compreender @qmequsagayaceitangque, i _____ GisteminqerdemonstveliEMpoute. De fato, Hilbert procu- rou diferenciar dois usos da inducio matematica, um uso conceitual e outro formal (cf. Hilbert 1927, 471-472). Nao precisariamos, assim, gatantir pelo método indutivo a pro- pria induc&o matematica. Tal possibilidade se funda na dis- tingao geral de Hilbert entre proposigdes algébricas wed ic = e proposicdes conteudisticas - deals - da matemait 4 PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N. 2, ». 61.104, JUL/DEZ. 2013 ARTIGO ORIGINAL AS OBSERVACOES DE WITTGENSTEIN SOBRE O| ‘TEOREMA DE GODEL proposig6es conteudisticas seriam formalizadas produzindo proposicdes ideais, metamatematicas, que poderiam ser aplicadas em dominios inesperados. Mas a consisténcia das proposicdes conteudisticas é suposta estar garantida intuiti- vamente, e, com base nestas, poderiamos fundar, entao, a consisténcia da matematica em geral, reduzindo as verdades da aritmética superior ao que € providenciado pela intui- cao. Assim, a matematica é dividida, por Hilbert, em (A) uma parte real, intuitiva, e (B) uma parte ideal, formal e sem contetido. A parte intuitiva seria um subconjunto da parte formal, mas a consisténcia da parte real é tomada co- mo garantida e é a partir desta que a parte B seria formali- zada, para que, assim, em B, fosse provada a consisténcia de A+ 1. Bsta 6 uma distingio jue Witgenstein no aceita (cf., e.g PR, XII, 150). A parte ideal precisaria obedecer, de acordo com Wittgenstein, aos mesmos principios do que é real para que a fundamentacao funcionasse - 0 que signifi- ca também dizer que o formal ja deveria estar dado com o conteudistico. Estariamos, portanto, supondo A como cer- ta, e - na medida em que B obedece aos mesmos principios que A - também estariamos, para provar a correcio de A + B, supondo B como certa. Ora, se os principios de B sio os mesmos de A, quando provamos A + B, em B, @StaiiiGsiga- dantindopessesiprincipiosiporelesmiEsMeS (ou melhor, nio os estamos garantindo). O que ocorreria, de acordo com Wittgenstein, seria, primeiro, uma separacdo entre o ambi- to real e o ambito ideal, e, depois, a juncao destes nova- mente, para que um pudesse garantir o outro. Mas, ou bem eles se separam, e nao conseguem mais fundamentar um ao outro, ou ja esto sempre juntos, e a fundamentacio é im- possivel. Hilbert supe que as proposicSes formais seriam desprovidas de sentido, de contetido, mas, se é assim, como PHILOSOPHOS, GOIANIA, V.18,N.2, ». 61104, JUL/DEZ. 2015 95

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